TÂMARA NOVAH WERLE REZENDE A “CULTURA DE GRUPO”: UM ESTUDO SOBRE A ORGANIZAÇÃO DA BRINCADEIRA ESPONTÂNEA COM CRIANÇAS DE IDADE MISTA Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Psicologia da Universidade do Vale do Itajaí. Orientadora: Prof. Josiane da Silva Delvan da Silva Itajaí SC, 2007 2 Para Marlene, minha mãe, quem me ensinou que nada pode nos impedir de alcançar nossos sonhos, desde que tenhamos perseverança e humildade. É por ela que busco ser cada vez melhor, para poder ver em seus olhos e em seu sorriso o orgulho ao perceber que tudo valeu a pena. 3 “A criança afirma que existe o que não existe. Sabe que existir existe e não se explica. Sabe que não há razão nenhuma para nada existir. Só não sabe que o pensamento não é um ponto qualquer” (EREB, 2007). 4 AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus, que é a força que me dá paz e segurança. Agradeço à minha família, em especial à minha mãe, é ela quem me motiva para vencer os obstáculos e os desafios que a vida me apresenta, pelo desejo de ver em seus olhos e em seu sorriso o orgulho pelas minhas conquistas. Às minhas amigas que sempre me apoiaram. Agradeço à Gisela, que tem dividido comigo muitos momentos importantes, me ensinando que cada dia é único e cada pessoa que está presente nele é para o nossa aprendizagem e crescimento. Agradeço à minha orientadora Profª Josiane da Silva Delvan, pelo incentivo, pela colaboração, pela atenção e compreensão nos momentos em que precisei e, principalmente, pelo aprendizado proporcionado, que será imprescindível para minha formação e atuação como futuro profissional. Aos professores participantes da banca, Profº Pedro A. Geraldi e Profº Maria Helena Cordeiro, por sua contribuição e empenho para a correção deste trabalho. Gostaria de agradecer a todas as pessoas que contribuíram de alguma forma, direta ou indiretamente, para que eu pudesse concretizar mais essa etapa. 5 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................07 2 EMBASAMENTO TEÓRICO .......................................................................................10 3 ASPECTOS METODOLÓGICOS ................................................................................18 3.1 Participantes da pesquisa.........................................................................................18 3.2 Instrumento................................................................................................................20 3.3 Coleta dos dados.......................................................................................................20 3.4 Análise dos dados.....................................................................................................21 3.5 Procedimentos éticos................................................................................................22 4 APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS ...........................................23 4.1 Apresentação e Análise dos dados...........................................................................23 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................33 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................36 6 A “CULTURA DE GRUPO”: UM ESTUDO SOBRE A ORGANIZAÇÃO DA BRINCADEIRA ESPONTÂNEA COM CRIANÇAS DE IDADE MISTA Orientadora: Prof. Josiane da Silva Delvan Defesa: Junho de 2007 Resumo O trabalho com crianças é um campo bastante recente e implica claramente na necessidade da concretização de pesquisas que tratem de crianças por elas próprias e de metodologias investigativas não apenas sobre elas, mas com elas e suas culturas, para que realmente seja possível captar a cultura dos grupos infantis: os modos como as crianças se organizam, como interagem, como reagem aos adultos e desenvolvem estratégias de participação no mundo que as cerca. O presente trabalho procurou analisar, como um grupo de crianças de 2 a 4 anos se organiza em situação de brincadeira espontânea, buscando apreender a cultura de grupo que surge a partir das interações destas. A metodologia deste trabalho teve como participantes um grupo composto por crianças com idade entre dois e quatro anos. O contexto da pesquisa define-se por uma instituição pública de Educação Infantil de uma cidade do litoral catarinense. A observação com auxílio da vídeogravação foi o instrumento utilizado. Os procedimentos de coleta de dados foram realizados por meio de sessões de vídeogravação com o grupo de seis crianças, no momento de brincadeira livre em uma das salas de aula da instituição, com duração entre 20 a 30 minutos. Foi formado um banco de imagens com as sessões, gravadas durante três meses. O material coletado seguiu os procedimentos de análise qualitativa de episódios definidos na literatura especializada. Como resultados, percebemos que as crianças estabelecem uma dinâmica própria em vivenciar e criar o enredo das brincadeiras com sentidos produzidos nas interações iniciadas e mantidas na sua maioria pelas crianças mais velhas, mas também assumidas pelas mais novas por meio da persistência na formação de determinadas parcerias e na consolidação de uma rotina compartilhada e transformada no campo interacional. Isto nos dá subsídios para compreendermos que a forma de organização das crianças durante o brincar revela uma cultura de grupo que se desenvolve na interação entre elas. Palavras chave: brincadeira; crianças; cultura de grupo. 7 1 INTRODUÇÃO As crianças se distinguem umas das outras nos tempos, nos espaços de escolarização, nas diversas formas de socialização, nos trabalhos, nos gostos, vestimentas, nos tipos de brincadeiras, enfim, nos modos de ser e estar (DELGADO & MÜLLER, 2005). Torna-se necessário, portanto, a observação das relações das crianças consigo mesmas, com os outros e com os objetos e suas formas de agir diante das situações e mudanças na medida em que cada grupo possui características culturais e sociais específicas de acordo com o contexto no qual estão inseridas. A investigação sobre a cultura de crianças é um campo bastante recente e implica claramente na necessidade de concretização de pesquisas que tratem de crianças por elas próprias e de metodologias investigativas não apenas sobre elas, mas com elas e suas culturas, para que realmente seja possível captar a cultura dos grupos infantis, os modos como as crianças se organizam, como interagem com as pessoas, com as instituições, como reagem aos adultos e desenvolvem estratégias de participação no mundo que as cerca. É possível perceber o crescente interesse e a busca de compreensão a cerca do desenvolvimento infantil nos processos interativos em contextos coletivos. Isto é confirmado em um estudo realizado por Silva & Davis (2004) cujos resultados apontam que, na década de 80, já se mostrava a relevância de pesquisas sobre a interação de crianças pequenas com outras da mesma idade para o desenvolvimento infantil. Mas, foi somente na década de 90 que surgiram novas abordagens metodológicas para a investigação da interação de crianças. A observação do comportamento da criança 8 passou a considerar a compreensão de suas ações através de outra criança, ou seja, as ações e significações partilhadas em tarefas realizadas com o outro em um determinado contexto (PEDROSA & CARVALHO, 2005). Novas investigações foram realizadas seguindo estes procedimentos e os processos interativos passaram a ser considerados como elementos integrantes dos complexos processos de desenvolvimento humano. A temática da interação de crianças durante a atividade de brincadeira têm sido tema de várias pesquisas no Brasil, tais como as desenvolvidas por Carvalho (1998, 1989); Carvalho & Pedrosa (2002); Carvalho, Império-Hamburger & Pedrosa (1998); Carvalho & Pedrosa (1995); Carvalho & Rubiano (2004); Lordelo (2002); Lordelo & Carvalho (1998, 1999); Pedrosa (1989, 1994, 2000); Pedrosa & Carvalho (1995), Oliveira (1988, 1995, 1996a, 1996b, 2002); Oliveira et al (1992); Oliveira & RossettiFerreira (1996). Partindo das conclusões apontadas por estes estudos, é possível pensar sobre os significados que as crianças atribuem ao mundo na cultura que se cria no grupo da brincadeira. Desta forma, torna-se imprescindível buscar compreender como estabelecem a dinâmica no grupo, como produzem sentidos sobre o que fazem e o que compreendem do mundo, respeitando suas próprias vozes e particularidades. Propomos esta investigação, tendo como principal objetivo compreender como se organiza um grupo de crianças com idade mista em situação de brincadeira espontânea. Para tanto, buscamos identificar como se estabelecem os posicionamentos de liderança e isolamento das crianças do grupo e descrever como a brincadeira evolui e como se dá a construção de uma cultura no grupo. 9 Diante disto, este trabalho encontra-se organizado da seguinte forma: Na primeira parte, sob o título de “Embasamento Teórico” situam-se os referenciais teóricos utilizados com a perspectiva interacionista do desenvolvimento humano e da Sociologia da Infância. A construção teórica refere-se a temas sobre desenvolvimento humano, cultura, interação e ludicidade. Em seguida são apresentados os “Aspectos metodológicos”, os quais descrevem como foi desenvolvida esta investigação. E, por fim, no capítulo “Considerações finais”, são apresentados os resultados deste estudo, buscando responder aos objetivos elaborados a priori para esta investigação. 10 2 EMBASAMENTO TEÓRICO Em termos ontogenéticos, o modo de vida sociocultural é o único modo que pode constituir um ser humano. Para esse modo de vida social a evolução criou adaptações específicas, que se manifestam desde o início da vida e que possibilitam que o desenvolvimento de um ser humano se dê, necessariamente, através da interação social em um ambiente sociocultural. Em termos evolutivos, a cultura é simultaneamente fruto e instrumento da seleção natural (BUSSAB & RIBEIRO, 1998 apud CARVALHO & PEDROSA, 2002). De acordo com Saramago (2001), a sociologia considera a infância como uma categoria ontologicamente distinta das outras etapas do percurso social dos agentes, afastando definitivamente uma imagem das crianças como desprovidas de qualquer valor próprio que não fosse o de meros objetos de socialização. Essa postura permite caracterizar não apenas a infância, mas também a sociedade onde se encontra inserida como construções mutuamente interdependentes. Ressalta-se assim a capacidade de protagonismo social das crianças, enquanto agentes capazes de desempenhar um papel fundamental nos mecanismos de produção social das suas próprias identidades. Desta forma, percebe-se a legitimidade do grupo infantil enquanto grupo social específico, detentor de um complexo conjunto de práticas e representações específicas e características, que conferem às crianças identidades particulares (DELGADO & MÜLLER, 2005). A Sociologia da Infância, enquanto área de conhecimento que tem dado espaço para as vozes e os olhares das crianças, tem testemunhado a existência de identidades das crianças fortemente edificadas sobre as bases da importância dos mundos sociais 11 vividos e dos contextos de interação entre pares (Saramago, 2001). Por isso, cada vez mais a infância é considerada como uma forma estrutural, e as crianças como um povo de traços específicos, tendo, segundo o sociotipo estudado, uma cultura própria, um sistema de trocas, e, portanto, de ritualização própria, constituindo-se num ser com seu mundo particular (JAVEAU, 1994 apud REZENDE, 2001). A criança é um agente de criação e transmissão de cultura, desde os primeiros anos, e o grupo de brinquedo é um dos espaços de informação em que esses processos ocorrem (CORSARO, 2005). O autor define cultura de pares como um conjunto de atividades, rotinas, artefatos, valores e preocupações que as crianças produzem e partilham na interação com seus pares, e a consolidação dessas rotinas partilhadas, criadas e transformadas na interação é que constituirá a “cultura de grupo”. As crianças utilizam uma afinidade compartilhada por meio da qual é preciso conhecer e gostar para manter as relações com outro. Elas aprendem significados próprios do mundo que as rodeia, criando atividades baseadas no ato de brincar, na imaginação e na interpretação de uma forma própria em seus grupos. Harris (1995 apud SARMENTO, 2005) sugere que o grupo de pares é o principal responsável pelo desenvolvimento de atitudes e valores desde a infância, possivelmente superando o papel dos adultos nesse processo. Em busca da compreensão sobre a dinâmica construída no grupo do brinquedo, é preciso considerar as condições sociais nas quais vivem, com quem interagem e como produzem sentidos sobre o que fazem, as formas de criação e de transformação de normas, maneiras de brincar no grupo social composto por crianças de mesma idade ou de idade próxima, em um contexto de interação livre (CARVALHO, 1989; PEDROSA, 12 1994). Este conceito sugerido pelos autores, de “cultura no grupo do brinquedo”, é que será utilizado para a análise dos dados da presente investigação. Torna-se necessária uma reflexão sobre os sentidos de cultura e sobre as relações entre a microcultura do grupo de brinquedo e a estrutura sociocultural da sociedade mais ampla onde ele está inserido. Ao trazerem elementos da macrocultura para a situação de brincadeira, as crianças assumem também um papel ativo em sua transmissão para os parceiros. Isso é particularmente claro em relação a brincadeiras tradicionais, cuja dinâmica e regras são transmitidas pelas crianças mais velhas e mais experientes para os parceiros mais jovens nos grupos multi-etários ainda comuns em cidades pequenas e em periferias de grandes centros urbanos (PONTES & MAGALHÃES, 2003). A presença da macrocultura no grupo de brinquedo revela-se também através de papéis e valores, por exemplo, na estereotipia de gênero em relação a brincadeiras, na formulação de regras baseadas em conhecimento social ou na recusa de papéis menos valorizados socialmente pelas crianças que lideram uma brincadeira (MORAES & CARVALHO, 1994). Trazer valores e conceitos da macrocultura para a brincadeira é, desta forma, uma oportunidade de questioná-los, de reconstruí-los ou de fortalecê-los, dependendo da interação com conceitos e valores dos parceiros. Sarmento (2004) reconhece a capacidade simbólica por parte das crianças e a constituição das suas representações e crenças em sistemas organizados, ou seja, em culturas. Mesmo em crianças bem pequenas pode-se observar a construção coletiva de conteúdos culturais tais como enredos de brincadeiras, com potencial de persistência no grupo (CARVALHO & PEDROSA, 2002). 13 Braten (1993 apud CARVALHO & PEDROSA, 2002) argumenta que crianças préescolares, ao criarem uma brincadeira de faz-de-conta, estão constituindo simetricamente uma díade co-criativa, cujas ações não são apenas imitações diferidas ou frutos de instrução anterior, mesmo que ainda não exista um conceito de "outra pessoa" no sentido de intersubjetividade reflexiva. O autor atribui essa possibilidade de aquisição cultural à capacidade precoce da criança para envolver-se com sentimentos do outro. O grupo do brinquedo não é social apenas no sentido de ser um espaço de informação e regulação mútua entre seus membros, mas também no sentido de fazer parte de uma sociedade que tem uma estrutura sociocultural, regulada por processos suprapsicológicos, que são permeados pelos processos interacionais concretos e, simultaneamente, os permeiam (CARVALHO & PEDROSA, 2002). Em um ambiente em que crianças convivem regularmente, com espaço físico e disponibilidade de objetos e parceiros estáveis, torna-se possível o estabelecimento de rotinas, através das quais as crianças podem reconhecer suas ações, suas possibilidades e seus desafios, suas realizações e seus insucessos e criar enredos que estabelecem elos entre indivíduos (PEDROSA & CARVALHO, 1995). A consolidação de rotinas compartilhadas e transformadas no campo interacional, constitui a “cultura do grupo de brinquedo” (CARVALHO & RUBIANO, 2004). Pode-se destacar ainda que, segundo os autores, a escolha de parceiros parece ser mediada por um processo de identificação, não só com parceiros do mesmo sexo, mas também de idade aproximada e proveniente da mesma turma. 14 Desta forma, os modos pelos quais as crianças se organizam em grupos e vivem a cultura infantil são distintos e singulares, dependentes em sua formação de fatores como gênero, raça, idade e classe social. No que diz respeito à fantasia do real, Sarmento (2004) explica que o "mundo do faz de conta" faz parte da construção da visão de mundo da criança e da sua atribuição do significado às coisas. Essa transposição imaginária de situações, pessoas, objetos ou acontecimentos, está na base da constituição da especificidade dos mundos da criança e é um elemento central da capacidade de resistência que possui diante das situações mais dolorosas da existência. É por isso que "fazer de conta" é processual, permite continuar o jogo da vida em condições aceitáveis para a criança. Por último, destaca a reiteração ou a "não literalidade que têm o seu complemento na não linearidade temporal" (p.28-29). O tempo da criança é um tempo recursivo, continuamente reinvestido de novas possibilidades, um tempo sem medida, capaz de ser sempre reiniciado e repetido. Alguns pesquisadores têm elaborado estudos tomando a relação entre a brincadeira e a cultura no desenvolvimento das crianças: Bichara (1999); Bomtempo (1999); Brougère (1995, 1998); Carvalho & Pedrosa (2002); Carvalho & Pontes (2003); Carvalho & Pereira (2003); Conti & Sperb (2001); Gosso & Otta (2003); Pedrosa (1994), Pontes & Magalhães (2003); Porto (1998). Os estudos desenvolvidos por Oliveira (1988, 1995, 1996a, 1996b, 2002), Pedrosa (1989, 1994), e Carvalho (1989), têm investigado a organização das ações das crianças pequenas em interação durante a brincadeira. Sobre a interatividade, Sarmento explica que, antes de tudo, as crianças aprendem com as outras crianças, nos espaços de partilha comuns. Essa partilha de 15 tempos, ações, representações e emoções, é necessária para um entendimento mais perfeito do mundo e faz parte do processo de crescimento. Para Tacca (2004), nas relações “entre” há múltiplas possibilidades de significação no momento intersubjetivo do “eu” com o “outro”, o que pressupõe uma atitude dialógica, situando a importância da linguagem nas interações. Colaço (2004) afirma que a interação implica ação e linguagem humana na relação com os outros, na relação com a alteridade. Há que se considerar a temporalidade e o estado do sujeito, pois “mesmo sozinho seu modo de agir, de pensar e de se articular com as coisas do mundo e com as pessoas estão pautados nos processos de significação cultural (p. 334)”. Do ponto de vista sócio-interacionista, a interação social é a matriz de construção do ser humano, necessária para a compreensão dos processos de constituição simultânea do indivíduo e da cultura (CARVALHO & PEDROSA, 2002). Assim, podemos definir interação como o potencial de regulação entre os componentes de um campo interacional, no caso, um grupo de crianças brincando. A partir de pressupostos bem diversos, perspectivas culturalistas e sócio-históricas em Psicologia do Desenvolvimento enfatizam o papel da interação social no desenvolvimento (OLIVEIRA, 1988). Pode-se considerar praticamente consensuais as noções a respeito da criança como agente ativo de seu desenvolvimento e do lugar da interação social e, mais especificamente, da interação criança-criança nesse processo (PEDROSA, 1989). As ações partilhadas e interdependentes que ocorrem em contextos específicos desde o início da vida, como os grupos que existem nas instituições de Educação Infantil, possibilitam a construção de relações sociais nas quais as pessoas 16 desempenham determinado papel e ocupam certa posição que delimita as interações naquele contexto. Essas fazem parte do processo da constituição das pessoas e das situações e são, portanto, integrantes do processo de desenvolvimento humano (ROSSETTI-FERREIRA, AMORIM & SILVA, 2004). Para Sarmento (2004), a ludicidade constitui um traço fundamental das culturas infantis, pois brincar não é exclusivo das crianças, é próprio do homem e uma das suas atividades sociais mais significativas. O autor também ressalta que, contrariamente aos adultos, entre brincar e fazer coisas sérias não há distinção, sendo o brincar muito do que as crianças fazem de mais sério. Para Carvalho & Pedrosa (2002), a brincadeira constitui uma rica atividade infantil para a investigação das interações de crianças, pois possibilita viver e recriar papéis, valores e conhecimentos do ambiente cultural no aqui e agora da situação. Pedrosa & Carvalho (1995), Carvalho; Império-Hamburguer & Pedrosa (1998) mostram ainda como a interação dirigida pela criança à atividade de um parceiro, freqüentemente desencadeia a construção de brincadeiras conjuntas. Uma das primeiras teorias sobre o brincar infantil surgiu no século XVIII e entendia essa atividade como o produto de uma energia excedente. Bruner (1976 apud CONTI & SPERB, 2001), postula o brincar como uma atividade que deve facilitar a aprendizagem e/ou prática de comportamentos específicos. Schwartzman (1978 apud CONTI & SPERB, 2001) enfatiza que não podemos separar artificialmente o texto e o contexto em que o brincar acontece, mas que devemos relacionar esta atividade ao valor e ao lugar que lhe são determinados pela cultura na qual ela ocorre, para desse quadro, derivarmos o significado do brincar. 17 Ao analisar a história da civilização humana, Ariés (1981) e Benjamin (1984) nos presenteiam ao apresentarem a história da brincadeira e dos brinquedos relatando sobre sua utilização e transformação ao longo dos séculos. Diferentemente de Corsaro (2005), Prado (2002) afirma que é possível identificar na brincadeira os significados das diferentes culturas, seu sistema de regras, sua estrutura, valores e qual o sentido que cada sociedade lhes atribui, apropriando-se e produzindo práticas sociais. É fato que o ser humano é a única espécie cuja sobrevivência e evolução estão intrinsecamente ligadas a um modo de vida cultural (DELGADO & MÜLLER, 2005) e a interação com as outras crianças, nos espaços de partilha comuns é necessária para um entendimento mais perfeito do mundo e faz parte do processo de desenvolvimento. Não se trata de adaptação ou interiorização de regras, hábitos ou valores do mundo adulto, elas são capazes de atribuir significados ao mundo que as cerca. Este processo é a matriz da construção social do ser humano e necessária para a compreensão da pessoa e da cultura. 18 3 ASPECTOS METODOLÓGICOS Com a proposta de compreender como se organiza um grupo de crianças com idade mista em situação de brincadeira espontânea, optamos pela pesquisa empírica de abordagem qualitativa, por possuir um caráter construtivo-interpretativo do conhecimento, isto é, enfatiza que este tem de ser construído em relação ao que expressa o sujeito estudado, permitindo que os processos humanos sejam compreendidos como originários das relações do ser humano e a sua cultura. 3.1 Participantes da pesquisa Para atender aos objetivos desta investigação, tivemos como participantes crianças de 2 a 4 anos que freqüentam um Centro de Educação Infantil localizado em uma cidade do litoral catarinense. Para cada sessão, o grupo para a coleta dos dados foi composto por 6 crianças (3 meninas e 3 meninos), um par de cada idade. Quadro 01 – Identificação das crianças. Nome Ind Tai Gab Kar Tab Leo Rua Ali Mat Luc Jo Sexo Feminino Feminino Feminino Feminino Feminino Masculino Masculino Masculino Masculino Masculino Masculino Idade 54 meses 47 meses 47 meses 37 meses 32 meses 50 meses 45 meses 42 meses 37 meses 35 meses 27 meses 19 A escolha dos sujeitos que compuseram o grupo para a coleta dos dados ocorreu por meio de alguns procedimentos: 1º) Foram realizadas observações das crianças em várias situações de brincadeira espontânea na instituição; 2º) Juntamente com estas observações, foram feitos contatos com as professoras para que elas confirmassem quais as crianças de cada turma que mais interagem durante as situações de brincadeira. A partir destas informações, de cada turma foram escolhidas 5 ou 6 crianças que aceitaram participar das filmagens. Em seguida, entrou-se em contato com os pais/mães ou responsáveis destas crianças para os esclarecimentos sobre os objetivos e procedimentos de coleta dos dados da pesquisa. Após estes esclarecimentos, foi solicitado aos pais/mães ou responsáveis que procedessem à autorização por escrito da participação das crianças nesta investigação; 3º) realização das sessões de filmagem. Todas as sessões de videogravação foram realizadas na mesma sala de atividades da instituição, a sala da turma do Maternal I. Enquanto a professora responsável pelas crianças que ocupavam habitualmente aquela sala, as levava para brincar fora da sala, a pesquisadora utilizava o espaço para a realização das filmagens, convidando algumas crianças desta e de outras turmas a participar. Esse ambiente era preparado pela pesquisadora que localizava os equipamentos de filmagem e dispunha os brinquedos no chão de modo que as crianças pudessem manuseá-los livremente. Alguns destes brinquedos utilizados na pesquisa foram selecionados entre os existentes na própria instituição, a maioria deles pertencentes à brinquedoteca e alguns à sala de atividades. No entanto, como a quantidade disponível na instituição era insuficiente para utilizar com o grupo da pesquisa, pois ainda deveriam restar outros brinquedos a serem utilizados pelas demais crianças da instituição enquanto estava sendo realizada a sessão de filmagem, outros brinquedos 20 foram introduzidos pela pesquisadora partindo do critério de que favoreceriam o faz de conta. Estes brinquedos foram adquiridos em lojas de brinquedos populares, sendo semelhantes aos brinquedos oferecidos na instituição. 3.2 Instrumento A observação da interação de crianças com idades diferentes foi o procedimento escolhido para a presente investigação. Como equipamento para a realização das sessões de videogravação foi utilizada uma câmera móvel com foco aberto. A opção por este procedimento permitiu deslocar o equipamento pelo espaço possibilitando que os dados fossem registrados da melhor maneira possível. Um gravador de fitas K-7 também foi utilizado para que as falas das crianças fossem gravadas. 3.3 Coleta dos Dados O registro dos dados foi realizado em uma das salas de atividades da instituição, pois a filmagem em ambiente aberto comprometeria a transcrição dos dados em virtude do barulho comum em uma instituição que atende crianças. O ambiente foi preparado pela pesquisadora com os equipamentos para a filmagem e os brinquedos foram dispostos no chão. Após estes procedimentos preparatórios, as seis crianças do grupo foram trazidas para esta sala na qual permaneceram por 30 minutos para a realização da filmagem. Foi realizada uma filmagem por semana durante três meses. Estas sessões compuseram um banco de imagens. 21 Procedimentos para a organização do material filmado: A partir da composição do banco de imagens, teve início a transcrição das sessões de videogravação para familiarização da pesquisadora com o material gravado e a organização do mesmo. Em virtude dos objetivos da pesquisa considerando-se também o volume do total do material filmado, optou-se pelos seguintes procedimentos para a organização dos dados registrados nas sessões de videogravação: a. Para cada uma das sessões filmadas, foram transcritos os 10 primeiros minutos. O critério de seleção para a transcrição dos 10 primeiros minutos da filmagem deu-se em função do início da formação das configurações sociais dos grupos e das interações. b. Após a transcrição das sessões filmadas, o material foi assistido várias vezes para a correção da descrição das ações, falas e formação dos grupos das crianças. c. o critério inicial utilizado para a seleção do material para a análise foi escolher as sessões em que participaram o mesmo grupo de crianças, ou sua maioria. d. as sessões selecionadas foram nos meses de julho, agosto e outubro, já que no mês de setembro não foi possível realizar a coleta em virtude da realização de reformas na instituição. 3.4 Análise dos Dados Para a análise dos dados foram selecionados três episódios relacionados à questão da pesquisa e que possibilitaram a análise da cultura de grupo. A organização dos dados transcritos seguiu a metodologia de análise qualitativa de episódios de interação proposta por Pedrosa e Carvalho (2005). Consideramos para a análise deste 22 material a visão de totalidade da situação, o aqui-e-agora dos processos interativos, a construção compartilhada de significações/sentidos, a alternância de enredos, o posicionamento das crianças no grupo e a evolução da brincadeira. 3.5 Procedimentos éticos Por ser uma pesquisa que envolve seres humanos, foram tomadas algumas providências quanto aos aspectos éticos no que se refere ao uso de filmagens na instituição conforme preconiza a resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. A realização da pesquisa nesta instituição foi autorizada pela diretora do Departamento de Educação Infantil da Secretaria Municipal de Educação. Também foi obtida a autorização da coordenadora da instituição, das educadoras e dos pais das crianças participantes que assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, dispondo-se a colaborar com a pesquisa. Aos pais ou responsáveis foi esclarecido que teriam assegurados os seus direitos na obtenção das informações a respeito desta pesquisa, bem como o acesso aos resultados assim que fossem disponibilizados. Para isto, será agendada uma data na instituição com esta finalidade. Foi também assegurado aos pais ou responsáveis pelas crianças participantes deste estudo que os dados coletados seriam utilizados apenas para os fins da presente pesquisa, conforme previsto pela Resolução nº 016/2000 do Conselho Federal de Psicologia (2002). 23 4 APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS 4.1 Apresentação e Análise dos dados Seguem abaixo as transcrições dos episódios selecionados e em seguida análise dos mesmos. 4.1.1. Episódio selecionado de julho A pesquisadora dispôs alguns brinquedos sobre um tapete que havia em um dos cantos da sala. Entre os brinquedos há carrinhos, uma moto, loucinhas, uma bolsinha e um recipiente com fantoches. As crianças se aproximam e ficam todas sobre o tapete, manipulando os brinquedos. Há na sala um mural onde estão dispostos livros infantis. Após aproximadamente um minuto e meio Ind olha para os livrinhos que estão pendurados em um mural e diz: “eu vou pegar um livrinho!”. Levanta-se e vai em direção a eles. (2 min) Mat empurra o carrinho para longe do grupo e Leo também empurra o seu na mesma direção. Gab, ajoelhada e segurando a motinho, observa os dois meninos. Ind folheando o livro, diz: “era uma vez... uma belhinha...” As crianças pegam seus brinquedos e se posicionam sobre o tapete, de frente para Ind como se a escutassem ler. A menina continua a falar: “uma... borboleta...”, depois pára de “ler” e olha para o grupo, enquanto Gab, segurando a motinho, levanta-se e arruma um livrinho que ficou mal posicionado no painel. Tab levanta-se e tenta pegar o livrinho de Ind, que não deixa. As crianças param e observam as duas meninas disputando o livro. Ind diz: “não é pra pegar...” Levanta-se, vai até o painel e pega outro livro, mas Gab diz: “não era pra pegar... não era pra pegar!” Ind recoloca a livro no painel e senta-se segurando o seu livro. -+, aproxima-se de Leo, que o observa com os objetos e movimenta seu carrinho no chão. Mat também empurra seu carrinho e olha para a pesquisadora. As três meninas observam-se e Ind pega uns pratinhos do chão e os entrega para Tab que está em pé. Gab “ajeita” no painel o livro que Ind havia mexido. Tab pega os pratinhos e sai caminhando lentamente observando os meninos. Gab indica com a cabeça os livros do painel: “esse aqui... aquele ali... tem bastante historinha.” Os meninos voltam a se afastar do grupo empurrando seus carrinhos. Rua olha para a pesquisadora e segurando os bonecos diz: “gato cabeludo!”. Desloca-se para próximo de Ind e Gab que pede o livro para ela: “me dá!”. Ind responde: “não, é meu!”. Gab diz: “não é, é dá professora!”. Ind responde novamente: “não é...”. Gab diz algo (inaudível). Ind vira-se de costas para ela enquanto folheia a livro. (3 min) as crianças estão manuseando brinquedos afastadas umas das outras. Tab aproxima-se de Ind, que lhe entrega o livro: “pega, Tab!” A menina, de pé, pega a livro. Ind diz: “não dá pra ela!” referindo-se a Gab que está segurando um secador de cabelos. Tab agachase com o livro na mão e Ind tenta tirar o secador de cabelos de Gab que não permite e diz: “vai estragá!”. Depois Ind olha em direção à pesquisadora. As meninas estão sentadas umas em frente da outra, enquanto Rua e Leo, mais afastados, manipulam seus brinquedos. Mat, que está mais afastado do grupo e de quatro, empurra seu carrinho para frente e para trás. Gab desliza o secador sobre os cabelos como se estivesse penteando enquanto olha para Ind que a 24 observa. Tab segurando em uma das mãos a livro e em outra os pratinhos, levanta-se e, passando por trás de Gab e Ind, pega uma caixa de plástico do chão e a oferece para Ind. (4 min) as crianças manipulam individualmente seus brinquedos. Gab fica ajoelhada e pega o livro que Tab havia deixado no chão. Folheando as páginas fala: “era uma historinha... a boboleta...” Ind tenta tirar-lhe a livro enquanto diz: ”dá pra ela!” Mas Gab não a entrega. Então Ind coloca seu corpo sobre o de Gab derrubando-a, a menina reclama: “aí!” e olha para a pesquisadora. Depois dá um tapa em Ind, que conseguiu pegar a livro. Ind olha para a pesquisadora e em seguida bate com o livro em Gab, que reclama: “não me bate, tá?” e depois diz: “eu vou chamá a tia Cema!” Tab, sentada, observa a disputa das meninas. Os meninos, cada qual com seus brinquedos, voltam a aproximar-se das meninas. Ind aproxima-se de Tab e entrega-lhe o livro. Mat observa Rua e seus bonecos, depois movimenta seu carrinho pela sala. Ind pega um fantoche e se afasta das meninas. (5 min) Gab pegou um objeto pequeno e o explora enquanto Tab folheia o livro e diz com o dedo indicador sobre a página fingindo ler: “o cavalo passou...”Leo se aproxima e observa Tab com o livro. Gab se aproxima dela e diz: “não é o cavalo!” Tab afasta o livro de Gab, que repete: “não é o cavalo!” Tab olha em direção à pesquisadora depois volta a folhear a livro. Rua de joelhos, aproxima-se deste grupo. Gab olha para ele e diz: “não é vaca, né? Não é vaca, né? É borboleta, né?” tentando reconhecer a figura do livro.Leo, Tab e Rua olham para Gab. Rua confirma Gab com um movimento afirmativo de cabeça. Tab observa Gab e pega os pratinhos que ela havia colocado sobre a caixa. Tab pega a caixa para si enquanto Gab segurando os pratinhos observa a menina. Ind e Mat brincam mais afastados com os carrinhos e a moto. Rua e Leo aproximam-se dos dois e os observam. Mat, de quatro deslizando seu carrinho no chão, olha para Ind e sorri para a menina, que lhe pergunta: “vai andando?” Ele confirma e ela pega o carrinho dele e o empurra para longe. Ele levanta-se e diz: “pega lá!” Apontando o dedo indicador e encaminhando-se na direção do brinquedo. Ind também se levanta e vai na mesma direção saindo, juntamente com Mat do foco da cena.Leo observa enquanto Rua movimenta seus bonecos. Neste episódio, percebemos que o posicionamento de cada criança delimita as ações no grupo. As ações de algumas crianças chamam a atenção das demais para estabelecer parceiras ou para realizar as disputas o que também caracteriza parceria. Atitudes de cuidado de uma criança para com a outra também estão presentes. As crianças com mais idade usam as palavras para expressar significações, enquanto as mais novas preferem os gestos para construir significações. Porém, às vezes, as mais novas verbalizam bastante, embora sua fala seja difícil para um adulto compreendê-la. Em função das parcerias que se estabelecem e das temáticas que se constituem nas interações, o fluxo das ações ocorre de maneira distinta e inesperada, o 25 que abre caminho para a novidade e o desenvolvimento. Algumas ações de determinadas crianças se repetem seguidamente com os objetos e/ou com as crianças ao longo do episódio ou em determinados momentos. O que se vê não é uma simples repetição, mas algo que se aprimora à medida que se expressa, pois cada ação faz parte de uma cena imaginária onde o brinquedo utilizado pode estar em um campo correndo, falando com outro personagem, etc. Talvez isto demonstre a apropriação de significados da criança na situação por meio de ações mais complexas. Estas ações poderiam nos remeter à idéia de aperfeiçoamento da ação em sua execução. A partir do que observamos nas ações destas crianças em interação, podemos sugerir que no momento da repetição de uma determinada ação, o significado vai se consolidando e/ou se reconstituindo, havendo ainda a necessidade de deixar claro a um companheiro a sua vontade. Há indícios de que a repetição da ação poderia se constituir em uma possibilidade para a inserção de outra criança, ou a persistência do enredo é que facilitaria isto. Vemos durante o episódio que o fluxo das ações das crianças é interrompido pelas ações dos outros: uma recíproca constituição de ações, onde uma não está totalmente pronta, mas se completa na ação do outro. Quando temos um grupo com várias crianças cada uma com suas intenções, ou melhor, cada uma em um processo singular de atribuir significações aos que fazem, o que uma está fazendo é interrompido pela fala ou pela ação de outra, ou retomado momentos após. Durante todo o episódio, percebe-se a integração entre movimento, pensamento e emoções. Em nenhum momento é possível identificar um destes elementos presente de maneira isolada dos demais. Vemos as crianças expressando suas opiniões, afetos e 26 vontades por meio dos gestos e expressões faciais manifestadas de forma mais ou menos explícita, dependendo dos significados que são negociados nas interações. 4.1.2. Episódio selecionado de agosto Ind, Rua, Tab e Leo estão sentados no chão, próximos uns aos outros, olhando em diferentes direções e mexendo nos brinquedos que estão no espalhados no chão. Jo está de pé num dos cantos da sala um pouco afastado das demais crianças. As crianças permanecem alguns segundos olhando para a pesquisadora. Kar, também de pé, pega uma boneca e a coloca dentro do carrinho de bonecas, ajeitando-a. Empurra o carrinho em direção a Jo que, próximo à parede, observa as demais crianças sentadas no chão, manuseando os brinquedos. Tab pega algumas peças de lig-lig tentando encaixá-las. Leo e Ind puxam para si a caixa com as peças de lig-lig e mexem nas peças. Ind olha em direção à pesquisadora e diz: “Ô tia... eu também tenho o tênis do Sandy e Junior. Da Sandy!”. Leo e Tab olham em direção à pesquisadora e voltam a mexer nas peças do lig-lig. Leo as encaixa formando uma fileira. Kar empurra o carrinho de bonecas para frente e para trás como se estivesse embalando a boneca. Rua empurra um carrinho na direção de Tab e Ind, mas as meninas não o olham. Jo pega o outro carrinho de bonecas que estava próximo de Leo. Este olha para Jo e volta a montar o liglig. Ind, que também montou uma fileira com as peças do lig-lig, a entrega para Tab: “Tab! Pega pra ti!”. Tab pega a fileira, desencaixa as peças e as coloca no chão. Ind volta a montar outra fileira de peças do lig-lig juntamente com Leo, que está à sua frente. Kar continua empurrando o carrinho de bonecas para frente e para trás, observando Tab e Ind, que brincam com o lig-lig. Jo vai em direção a Kar e fica ao lado da menina, que empurra o carrinho de bonecas vazio para frente e para trás. Rua larga o carrinho que estava brincando e pega um fantoche. Veste-o em uma das mãos, balbuciando algo enquanto movimenta o fantoche. As crianças permanecem alguns segundos em silêncio, envolvidas com seus brinquedos. (1:00) Ind vira-se em direção a Tab, que desencaixou as peças do lig-lig que ela havia lhe dado, e diz: “Não desmancha, Tab! Dá aqui, dá.” Kar e Leo olham para Tab enquanto Ind pega as peças do lig-lig das mãos de Tab e as que estavam no chão próximos à menina, e as coloca de volta na caixa de sapatos. Leo olha em direção à pesquisadora e volta a montar as peças de lig-lig. Rua veste o fantoche do lobo em uma das mãos. Ind olha para Tab e pergunta: “Tu fica aqui, Tab? Olha para a pesquisadora e também pergunta: “Ô tia... a Tab fica aqui?”, fazendo movimentos afirmativos com a cabeça. Depois volta a montar as peças do lig-lig que segura. As crianças permanecem alguns segundos em silêncio, manuseando os brinquedos. Ind coloca as peças de lig-lig na caixa. Vira-se de frente para Tab, que observa Rua brincar com o fantoche. Ind pega o fantoche do cavalo que está no chão e o entrega para a menina, dizendo: “Tab!” Tab pega o fantoche oferecido por Ind e tenta vesti-lo. Rua deixa seu fantoche no chão, pega o carrinho novamente e sai empurrando-o em direção a Leo. Pára na frente do menino movimentando o carrinho para frente e para trás. Ind pega o fantoche do jacaré que estava no chão e tenta vesti-lo na mão. Leo olha para Rua e volta a montar o lig-lig. Enquanto isso, Jo observa Kar. Ela mexe na boneca ajeitando-a, pega a mamadeira que está encaixada no carrinho, coloca-a na boca da boneca e volta a colocar a mamadeira no mesmo lugar que estava anteriormente. Leo afasta-se um pouco do grupo levando uma fileira de lig-lig consigo. Tab ainda tenta vestir o fantoche em sua mão até que consegue. Abre e fecha a boca do boneco enquanto balbucia algo. Ind aproxima-se de Tab com seu fantoche cantarolando abrindo e fechando a boca do fantoche: “O sapo, o sapo na bera da lagoa. Não tem, não tem, rabinho na areia. Uá quá, quá, uá quá quá, uá quá quá quá quá...”. Tab também movimenta o seu fantoche acompanhando a melodia de Ind. Rua observa as meninas. Jo e Kar, empurrando seus carrinhos de bonecas para frente e para trás, assim como Leo, observam Tab e Ind que 27 brincam com os fantoches. Enquanto canta a musica do sapo, Ind tira o fantoche de Tab e lhe entrega o seu, o do jacaré. (2:00) Ao vestir o fantoche em uma das mãos, Ind avisa: “ tá furado!” Tab resmunga algo e toca no fantoche que está com Ind. Essa indica com o dedo o fantoche que está com Tab enquanto diz: “Tá sim, olha aqui!” e dá uma risada. Tab olha para o buraco no seu fantoche. Ind com o fantoche na mão vira-se em direção a Kar e, movimentando o brinquedo, cantarola: “O sapo, o sapo na bera da lagoa... Não tem...” Pára de cantar e pergunta para a menina: “Tu fica aqui?” Kar balança a cabeça afirmativamente. Enquanto isso, Rua mexe em algumas peças de lig-lig que estão no chão e Leo olha para a pesquisadora. Tab olha em direção de Ind, que repete a pergunta para Kar: “Tu fica aqui?” Leo, Tab e Jo olham para Kar, que não responde. Ind pergunta: “fica?” Kar responde: “fico!” Ind vira-se em direção à pesquisadora e pergunta: “Ela fica aqui, tia? Fica?” Todas as outras crianças param de brincar e olham para a pesquisadora, que não responde. Kar diz: “Eu estudo aqui.” Leo volta a montar lig-lig e Jo mexe no carrinho de bonecas observando as meninas que conversam. As crianças observam Kar. Ind pergunta: “onde tá a tua mochila?” Kar faz um movimento com a cabeça indicando o lugar onde as mochilas ficam penduradas. Ind afirma: “quero ver!”. As outras crianças param de brincar e olham para as duas meninas. Rua senta-se ao lado delas formando um círculo. Leo e Rua estão de cabeça baixa montando lig-lig. Ind tira o fantoche das mãos e o coloca no chão. Kar levanta o pé direito mostrando o seu calçado para Ind enquanto diz: “Olha aqui a minha melissa!” As crianças olham em sua direção. Ind veste novamente o fantoche enquanto diz: “É igual ao da... é igual ao da... da Scheila”. Tab repete: “igual.” enquanto pega as peças do lig-lig do chão, observada por Rua. Ind olha para Tab e diz: “deixa ele também brincar, Tab!” Olha para Rua: “né!” Rua faz um movimento afirmativo com a cabeça. Quanto à cultura de grupo, parece em grande parte desta sessão que as crianças elaboram um sentido de si mesmas no questionamento ou confirmação de umas com as outras. No início da sessão, Ind traz elementos da macrocultura quando afirma que também possui “o tênis do Sandy e Junior... da Sandy!”. Fica claro que neste momento, demonstrar que possui determinado calçado é algo significativo para as crianças. É possível que elas questionem, fortaleçam ou reconstruam na interação que estabelecem entre si o valor que determinado objeto possui para elas Cantar aparece como forma de brincar. Ind traz, através da música que canta, elementos da cultura do centro de Educação Infantil. Neste contexto, a música e outras formas de arte são ensinadas pelas professoras e apropriadas pelas crianças em sua constituição enquanto seres humanos. Por meio da canção, Ind e Tab reproduzem as 28 ações já conhecidas das crianças e incorporam novos elementos criados na cultura de grupo. Nesta sessão, a estrutura das brincadeiras é menos aleatória e fragmentada do que na sessão anterior, demonstrando certa continuidade das parcerias nas brincadeiras que são agora mais cooperativas. As ações são reproduzidas, construídas, acomodadas, manipuladas e resistidas ativamente pelas crianças, que criam momentos de negociação que abrem possibilidade para a emergência de novidades. As temáticas das brincadeiras referem-se a contar histórias, imitar ações dos adultos (como empurrar carrinhos de bonecas para embalá-las, fingir secar o cabelo), além de ações que envolvem mais habilidades motoras, como as de encaixe de lig-lig. O faz-de-conta aparece também no uso de fantoches para apresentação de cantos e narrativas fantásticas. Estas temáticas surgem individualmente e são vivenciadas durante alguns minutos enquanto outras temáticas são construídas e compartilhadas pelas crianças. Há também as brincadeiras solitárias ou temáticas individuais. Rua pega o carrinho, os fantoches e as peças do lig-lig, alternando sua brincadeira com estes objetos e mais adiante na sessão, Ind permite a sua brincadeira com Tab e mais tarde ele se aproxima de Leo. Como aponta a literatura em Desenvolvimento infantil, em crianças de até 3 anos, a imitação contribui para a socialização, modalidade importante de interação social. Como a fala ainda encontra-se em processo de desenvolvimento, a comunicação se faz fundamentalmente por meio dos gestos em crianças desta idade. Joa e Kar comunicam-se predominantemente dessa maneira. Ao empurrar o carrinho de bonecas, eles experimentam vários papéis dos adultos, tais como de cuidado físico, 29 acalanto e alimentação por eles já vivenciados quando recebiam cuidados, e os trazem para o presente pelas interações quando assumem. 4.1.3. Episódio selecionado de outubro No episódio selecionado, aos seis minutos e vinte, Tab sentada começa a tirar o seu tênis. Ali manipula um alicate de brinquedo, abrindo e fechando-o. Coloca o alicate no chão a sua frente, e mexe em outros brinquedos. Tai, com uma seringa na mão, levanta-se e vai até o carrinho de bonecas. Tira a boneca de dentro do carrinho e segura-a no colo, deitando-a em um dos seus braços. Ind pega o estetoscópio do chão e o coloca no ouvido e fala: “quem deita pra mim colocá aqui??”. Olha para o Leo e fala: “tu deita Leo??”. Leo responde com movimentos negativos, com a cabeça. Luc senta em frente ao Leo e olha pra Ind, quando esta fala. (7:00) Ind olha na direção de Tai e pergunta: “tu deita...Tai??”. Tai balança afirmativamente com a cabeça. Ind fala: “então vem cá!”. Tai se aproxima de Ind com a boneca nas mãos. Ind levanta-se e fala: “deixa eu ver teu coração, nega!!?...deita!”. Tai deita no chão colocando a boneca em cima do seu próprio corpo. Ind fala novamente: “tira o chinelo...” e tira o chinelo da menina. Tai retruca: “meu tamanquinho...”. Ind repete: “teu tamanquinho?!!”. Tab termina de tirar seu tênis e a meia. Levanta-se e se aproxima de Tai e Ind. Luc, Leo e Ali observam as meninas. Tai coloca a boneca atrás de sua cabeça. Fica parada enquanto é examinada por Ind. Ind coloca o estetoscópio no peito da menina e fala: “tá melhor!” e levantase. Tai senta-se. Ali pega uma panelinha nas mãos e olha os brinquedos à sua volta enquanto Luc e Leo observam Tai e Ind. Tab se abaixa, pega no chão a boneca que já havia pego anteriormente, também o pente e o secador, e brinca de arrumar o cabelo da boneca. Ind pergunta para Tai: “qué brincá de salto??... então deixa eu pegá o teu tamanco um pouquinho??”. Tai pega seus tamancos e uma panelinha, levanta-se e sai segurando os objetos. Ind fala: “meu Deus... quem qué se examiná?”. Tab grita, respondendo à Ind: “eu!!!”, e deita-se no chão. Ind aproxima-se de Tab e fala: “vou ver o teu coração!!”. Ali observa as crianças à sua volta, pega um fantoche de jacaré que estava ao seu lado. Luc e Leo observam Ind examinar Tab, colocando o estetoscópio em seu peito. Taís caminha para o outro lado da sala, contornando Tab e Ind. Ali veste o fantoche de jacaré e fala: “eu vou contá uma historinha...”. Olha para o fantoche, tira-o da mão dizendo: “não!” e coloca o fantoche no chão. Luc vira-se na direção de Ali que mexe nos fantoches. (8:00) Ind tira o estetoscópio do peito de Tab, senta-se e entrega o estetoscópio para a menina. Tab senta-se também e coloca o estetoscópio em volta do pescoço. Ali pega um fantoche de macaco do chão, veste-o, olha para Luc e Leo e fala: “olha qui o macaquinho!!!”. Luc e Leo olham para Ali. Leo levanta-se e pega o carrinho amarelo e começa a empurrá-lo pela sala. Ind deita-se e diz para Tab:“aii, peraí, peraí... vamo lá!. Aqui óh, aqui é meu coração!!, mostrando onde deveria ser examinada, apontando para a barriga. Tab aproxima-se de Ind e coloca a ponta do estetoscópio na barriga da menina. Leo empurra o carrinho até um canto da sala. Tai, sentada no chão, brinca com as panelinhas. Ali tira o fantoche do macaco, segurandoo pendurado pela ponta à sua frente, dizendo: “eu tenho boca... pra cantar!!”. Ele joga o fantoche junto aos demais brinquedos no chão, pega outro fantoche do patinho e o veste. Luc vira de costas para Ali e observa Ind e Tab. Ind levanta-se dizendo: “deu!! já tá melhor...”, e vai até a meio da sala, perto do monte de brinquedos. Tab e fala olhando para Ind: “não, eu vou...”, e vai até a menina. Ind fala para a Tab: “eu sei...”. Tab retruca: “eu sei, sei... eu sei! tá...tá!?!”. Ind responde: “tá!!”. Leo deita-se no chão e empurra o carrinho para frente e para trás. Ali levanta o braço que está com o fantoche, balançando-o e mexendo a boca do brinquedo como se estivesse falando, enquanto fala: “yo,yo,yo,yo,yo...!!”. Luc observa Tab e Ind. De joelhos, Ind 30 pega um caminhão e sua caçamba, que está solta do monte de brinquedos, e fala: “meu Deus, meu Deus... tá tudo estragado!!!”. Tab coloca a corda do binóculos em volta do pescoço, resmungando e bate o pé no chão parecendo irritada. Pega uma boneca pelo cabelo, levantando-a. Ali solta o fantoche e olha para o monte de brinquedos, como se estivesse procurando algo. Luc levanta-se e pega um serrote do monte de brinquedos (08:20). A brincadeira de examinar o companheiro com o estetoscópio mobiliza as ações de todo o grupo, apesar de ser compartilhada apenas entre as meninas, que, todavia, são observadas pelos meninos. Uma das meninas comanda verbalmente a brincadeira a partir do momento em que pega o brinquedo. Com base em uma experiência real: a de ser examinado pelo médico, as crianças criam os elementos para a brincadeira, que se desenvolve com base em algumas regras que a caracterizam como brincadeira de médico. Para “ser examinada” é preciso deitar, permitir que se coloque o estetoscópio sobre o peito para que o médico possa auscultar. A imaginação permite que as crianças criem ações que caracterizam “o examinar o outro” além de criarem o que poderia ser denominado “o novo” inserindo a tentativa do brincar de salto e o de contar história no vai e vem do enredo que envolve o grupo. As ações na brincadeira são executadas de acordo com o enredo vivido pelas crianças. Elas respeitam uma seqüência e uma organização para significarem a situação vivida. Para as crianças, brincar de médico requer auscultar o coração. Isso é indicado pela criança enquanto desempenha o papel de examinadora. Quando os papéis são invertidos e a menina deixa de ser a examinadora (a médica) para ser a examinada (a paciente), ela indica para a outra onde colocar o estetoscópio: “aqui, oh. Aqui é meu coração!”. Neste episódio percebemos a integração das emoções, as ações e a maneira de pensar das crianças. Um exemplo disto pode ser visto quando uma das meninas retira o 31 tamanco de outra, esta protesta choramingando. Apesar da insistência da menina sugerindo para brincarem “de salto”, a outra se afasta e não permite o enredo. Como as ações e significações se produzem nas relações sociais que fazem parte do nosso cotidiano, a ação da menina em não compartilhar da brincadeira proposta, parece ter sido compreendida pela parceira, que não insistiu no enredo. A simultaneidade das ações nas interações pode ser um indicativo da construção de significados. Enquanto uma das meninas solicita à outra para tirar o “chinelo” para ser examinada, uma terceira acaba de tirar seu tênis e meia e se coloca de pé ao lado da que sugeriu a brincadeira. Apesar desta última não estar “participando” da brincadeira de exame médico, sua ação talvez demonstre a intenção de inserir-se no enredo. Assim que há possibilidade, a pequena inicia a brincadeira com a mais velha, porém com papéis invertidos e as crianças têm a oportunidade de desempenharem posições diferentes, reconstruindo os significados nesta nova situação. Podemos observar ainda nesse episódio a interrupção do brincar de médico pela sugestão da brincadeira de “salto”, referindo-se aos tamanquinhos, mas a menina convidada se afasta e não aceita a brincadeira, demonstrando que os papéis podem ou não serem aceitos, mas são negociados nas interações por meio das ações de cada participante. Apesar do posicionamento de liderança da mais velha em determinar e coordenar as ações de algumas crianças para a brincadeira, há possibilidades do surgimento da resistência e talvez pudéssemos denominar isto de novidade, já que se caracteriza pelo inesperado. Tentativas de iniciar um novo enredo e não obter o engajamento das outras crianças é comum nas brincadeiras de crianças, pois nem todas estão “sintonizadas” nos mesmos interesses. Muitas ações acontecem ao mesmo tempo, trazendo novos 32 elementos, abandonando outros, interrompendo e/ou alterando o enredo. Assim, é possível identificarmos ações e falas isoladas que permanecem por um curto período de tempo e outras que não têm continuidade por não mobilizarem as demais crianças na brincadeira compartilhada. Quando observamos a brincadeira de crianças, as significações são construídas por elas nas interações, por meio de novos enredos que se formam enquanto outros são abandonados nestas negociações. Neste episódio vemos Ind dirigindo grande parte das ações das crianças do grupo. É ela quem sugere as brincadeiras e a formação das parcerias, no entanto, as demais crianças são também ativas no momento em que aceitam ou não as determinações. Podemos considerar que o posicionamento de Ind é uma repetição de outras sessões de filmagem, nas quais assume o papel de liderança, porém podemos considerar que há novas nuances em sua postura quando aceita o posicionamento de resistência das crianças acerca das suas propostas. A partir dos episódios selecionados, torna-se possível perceber a concordância entre os dados obtidos por meio desta investigação e a literatura estudada. Embasado no conceito utilizado de “cultura no grupo do brinquedo”, o qual é bastante recente e relevante, pode-se afirmar que a situação de brincadeira espontânea é um espaço de criação e partilha, onde as crianças produzem significados enquanto agem. 33 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo com crianças constitui-se em um desafio pelo trabalho cuidadoso, desafiante e recompensador que é buscar compreender as dinâmicas que se estabelecem nas interações que criam segundo suas próprias determinações e sem a interferência do adulto. A metodologia de investigação adotada delicada e inovadora mostra como os estudos sobre as crianças evoluíram para o entendimento de que as ações de uma pessoa estão inexoravelmente ligadas às de outra e que a cultura é construída no compartilhamento das significações advindas destas interações e que as crianças são capazes de fazê-lo. As reflexões sobre a forma como as crianças se organizam em suas brincadeiras nos fornecem indicativos para pensarmos como estas compreendem o mundo a sua volta e como são capazes de recriá-lo. Durante a brincadeira, podemos tomar a noção de individuação como complementar nesse processo, pois o ser humano necessita do outro e estabelece com ele uma relação de dependência para a sua socialização. Em outras palavras, é necessário estar com outro para aprender com ele práticas sociais culturalmente reconhecidas. No entanto, percebe-se contradição nos processos interativos: isolamento e dependência do outro. Isso não aparece como uma direção na qual se parte do isolamento e se chega à dependência do outro, mas um ir e vir constante que caracteriza as relações humanas. Há momentos em que há necessidade do outro para 34 a formação das parcerias, e há momentos que as crianças ficam mais sozinhas porque assim preferem. Às vezes, estes momentos são maiores e mais explícitos, mas também acontecem de modo muito rápido, quando, por exemplo, alguém chama e a criança não responde, ou olha permanecendo entretida com seu brinquedo. Em relação às interações presenciadas, podemos observar momentos em que há a necessidade do outro numa partilha e aprendizagem das práticas sociais, contudo, há também outros momentos em que as crianças preferem ficar isoladas e/ou em silêncio. A brincadeira evolui quando o enredo é compartilhado pelas crianças que é interrompido diversas vezes e retomado em seguida por alguma delas. Gradativamente as brincadeiras apresentaram-se menos aleatórias e fragmentadas, ratificando determinada continuidade das parcerias no grupo. As principais temáticas das brincadeiras estão relacionadas a contar histórias, imitar ações dos adultos, atividades que envolvem habilidades motoras e faz-de-conta. Esta capacidade simbólica permite que as crianças dêem continuidade à vida real em condições que sejam aceitáveis, e é no faz-de-conta, nesta transposição imaginária das situações, pessoas, objetos ou acontecimentos, que elas constroem sua visão de mundo e atribuem significado às coisas. É importante ressaltar que as ações são reproduzidas e incorporadas por novos elementos, mostrando a imitação, por exemplo, como de suma importância para a socialização, de forma que as crianças estabelecem uma interpretação própria e ressignificam ações vividas pelos adultos, recriando suas próprias ações na interação. Em relação à idade, observa-se que as crianças mais velhas utilizam mais as palavras para expressar significações, enquanto as mais novas preferem os gestos. 35 O modo como se organizaram no grupo evidenciou um posicionamento de liderança da menina mais velha, que dirige a maioria das ações das demais crianças. Ela sugere as brincadeiras e formação de parcerias, entretanto, as demais crianças são também ativas no sentido em que aceitaram ou não a sua liderança. Nas relações entre as crianças aparecem características culturais e sociais específicas do contexto em que vivem, como no fato de estabelecerem entre si o valor de determinados objetos e ações. Através da análise dos episódios secionados, foi possível perceber portando, a formação de uma cultura no grupo estabelecida nas interações e construída na medida em que as crianças partilharam uma rede comum de significações e crenças em sistemas organizados durante a brincadeira. Tais significações e crenças são parte de sistemas mais amplos de significados que circulam no meio social e nos veículos de comunicação de massa. É neste sentido que o processo de desenvolvimento das crianças em situação de brincadeira espontânea no contexto de Educação Infantil merece maior atenção, na medida em que este é o “meio social” no processo de construção do sujeito. É de extrema importância que se compreenda a necessidade da atividade lúdica para o desenvolvimento das crianças, disponibilizando espaço, tempo e material, para que estas, através das brincadeiras e nas relações com as demais, diferenciem-se, superando-se pelo processo que às levam a individuação. O desenvolvimento integral da criança e a sua construção como sujeito social depende das significações construídas em sua cultura, transmitida, compartilhada e recriada no grupo de brinquedo. 36 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARIÉS, p. A história da criança e da família. Guanabara Koogan, 1981. BENJAMIN, W. 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