INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
AS RAZÕES DO NÃO À EMPRESA BRASILEIRA DE SERVIÇOS
HOSPITALARES (EBSERH)
A congregação do IFCH, após debate inicial sobre a EBSERH, empresa
de direito privado vinculada ao Ministério da Educação, criada por lei para gerir
os hospitais universitários, tomou posição contrária à adesão da UFPA. As
restrições ao modelo de gestão por meio dessa empresa, a contratação de
empregados celetistas, a submissão de recursos públicos a uma empresa de
direito privado para gerir hospitais que integram o Sistema Único de Saúde no
país, bem como a questão da autonomia das universidades, princípio
consagrado na Constituição Federal, são pontos centrais no debate.
Após dois anos da assinatura da Lei 12.550/2011, que criou a EBSERH,
a discussão sobre a adesão ou não da UFPA passou a ser encaminhada “em
regime de urgência” pela reitoria desta universidade, sem que nenhum debate
prévio e aprofundado, como exige questão de tamanha relevância, fosse aberto
com a comunidade universitária e com todas as partes envolvidas, durante
esse longo período. Houve, até então, um único momento em que ocorreu
debate mais amplo, vale dizer, por insistência e inconformismo de alguns dos
representantes no Consun, no momento em que foi proposta a adesão
imediata da UFPA à EBSERH.
Esse único momento de discussão ampla foi a audiência pública
realizada no último dia seis deste mês de dezembro. Nessa ocasião, os únicos
que se inscreveram para defender a adesão da UFPA à EBSERH foram os próreitores e a direção do Instituto de Ciências Jurídicas, enquanto que todos os
demais contestaram e apresentaram razões absolutamente plausíveis para
que, no mínimo, o debate viesse a ser aprofundado. Esse fato serviu para
demonstrar claramente que não há respaldo da comunidade universitária para
que uma decisão de tamanha importância, como a de submeter os hospitais
universitários a uma empresa de direito privado, seja tomada em tão curto
espaço de tempo e sem discussão ampla. A coação ilegítima se dá do MEC em
relação às universidades e também dentro da UFPA. Afinal, se havia urgência
em debater a questão, por que a Administração Superior não convocou a
comunidade para tal, ao longo dos últimos dois anos, após a criação da Lei
12.550/2011?
O número de servidores contratados irregularmente por meio da Fadesp
para trabalhar nos hospitais universitários, o que vem ocorrendo há cerca de
duas décadas, foi apontado como um dos principais motivos para a adesão
imediata à EBSERH. Ocorre que a redução de cargos e do quadro de
servidores das universidades públicas vinculados ao Regime Jurídico Único
(RJU), que se efetiva por meio de contratações de trabalhadores pela
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), como está estabelecido na Lei que
criou a EBSERH, é questão central, que em si justifica a investigação
minuciosa da questão. Se cargos e carreiras públicas de área tão fundamental
e sensível como é a saúde pública passarem a ser ocupados por empregados
privados, onde mais poderá ser considerada relevante a atuação de servidores
públicos?
A elaboração do RJU e dos Planos de Carreira dos Servidores Públicos
no país, que hoje consolidam as políticas traçadas para os trabalhadores do
setor público, a capacitação e a qualificação dos quadros de servidores, bem
como os direitos e deveres, constituem política de Estado que abrangem as
autarquias federais, como as universidades públicas federais, a partir da Lei
8.112/90. Por que alterar, de forma discricionária, o regime de trabalho dos que
prestam serviços nos hospitais universitários, se há uma lei maior no país que
os incluiu desde 1990? Por que devemos acatar uma política de governo que
tenta se sobrepor a uma política de Estado?
Não se trata aqui de uma luta corporativa de servidores públicos, em
busca de privilégios, mas sim da compreensão de que o RJU foi criado e está
fundamentado na necessidade de estabelecer responsabilidades e direitos de
pessoas investidas em cargos públicos, amparando juridicamente o sistema
público de prestação de serviços públicos, tão essencial e caro à população
brasileira.
Como podemos concordar que dentro dos hospitais universitários
passem a haver quadros distintos de servidores, que obedecerão a lógicas
igualmente distintas? Como os trabalhadores poderão conviver com tamanhas
desigualdades ocupando as mesmas funções e dentro de uma mesma
instituição?
Poder-se-ia argumentar que isso já vem ocorrendo hoje nos hospitais da
UFPA, uma vez que convivem servidores públicos com trabalhadores
contratados precariamente pela Fadesp, sendo que, agora, os trabalhadores
que viessem a ser contratados passariam a ter o reconhecimento legal, via
CLT, após a adesão à EBSERH. O reconhecimento legal de parte desses
trabalhadores, via empresa, entretanto, não resolve a questão. Muito pelo
contrário, a criação de empresa pública de direito privado para gerir recursos,
patrimônio e empregados públicos levaram a Procuradoria Geral da República
(PGR), o Ministério Público Federal (MPF), representantes do Tribunal de
Contas da União (TCU) e outras instituições públicas a se manifestarem de
maneira diametralmente oposta.
As contratações por meio de uma empresa de direito privado não são
cabíveis, nem admissíveis, para o exercício de funções de natureza pública.
Sendo os hospitais universitários partes integrantes e estruturantes do SUS,
como submetê-los à gestão de uma empresa de direito privado? A EBSERH
configura uma distorção legal, funcional e dos fundamentos do sistema de
saúde pública do país.
A Lei 12.550/2011, que criou a EBSERH, é então objeto de ação de
inconstitucionalidade no STF, proposta pelo Procurador Geral da República.
Entende-se que há necessidade de deslindar as questões que levaram a essa
proposição, de modo que qualquer adesão à empresa não venha a gerar
confronto direto com a Constituição Brasileira, uma vez que nenhuma outra lei
no país pode se sobrepor aos dispositivos constitucionais.
A contratação de pessoal para trabalhar nos hospitais por meio das
fundações de pesquisa e de outros mecanismos, de acordo com o TCU, que
realizou trabalhos de auditoria nas universidades públicas federais, é de fato
irregularidade que precisa ser resolvida. A recomendação do Tribunal às
universidades é que sejam feitos concursos públicos para acabar com a
terceirização nos hospitais universitários, fato este que está presente em
muitos outros órgãos da Administração Pública, de forma sistêmica. O Acórdão
do TCU, entretanto, não vinculou o cumprimento das determinações à criação
de empresa pública para solucionar a questão.
O déficit de pessoal nos hospitais universitários, realidade constatada no
conjunto de setores das universidades, deve-se, em grande medida, à decisão
do governo federal de não abrir novos concursos públicos para ampliar vagas,
ao longo de muitos anos. Nem mesmo tem havido a reposição do quadro de
servidores aposentados, o que já seria insuficiente ante a realidade atual,
levando-se em conta a ampliação das múltiplas e complexas atividades
exercidas nos hospitais universitários. Após todo esse período, em que o MEC
vem submetendo as universidades ao estado em que se encontra e, de certo
modo, forçando-as à busca de alternativas precárias, a EBSERH é
apresentada, então, como a única alternativa para resolver o impasse.
Atualmente, quase 50% dos trabalhadores dos hospitais universitários
não são regidos pelo RJU, isto é, são terceirizados, e por isso não são
custeados pelo MEC. Se tivessem sido admitidos como prevê a Lei 8.112/90,
os recursos destinados às contratações precárias e irregulares, que
correspondem a cerca de 49% dos trabalhadores dos hospitais, deveriam estar
sendo aplicados em ensino, pesquisa, extensão e assistência à saúde da
população, há muitos anos. O que o MEC propõe com a EBSERH é a inversão
dessa lógica. É a tentativa de nos fazer acreditar que os únicos culpados por
esse estado de coisas são as universidades e os hospitais universitários.
Como agravante, além de toda a fundamentação que leva à rejeição do
modelo EBSERH, não há um quadro de informações detalhadas, que tenha
sido disponibilizado à comunidade acadêmica, pela administração superior da
UFPA, nem mesmo na audiência pública, que exponha com clareza os dados
sobre os recursos públicos destinados aos hospitais universitários, pelo MEC e
Ministério da Saúde.
A cifra de R$15 milhões, apresentada como déficit dos hospitais
universitários da UFPA, que precisaria ser retirada dos recursos destinados a
outras finalidades essenciais, não está suficientemente esclarecida. Como vêm
sendo geridos os recursos? Quais os desperdícios já identificados? Em que
setores dos hospitais trabalham os 600 trabalhadores contratados
irregularmente, via Fadesp? Quanto é repassado pelo Ministério da Saúde para
cobrir serviços e atendimentos hospitalares prestados pelos hospitais
universitários?
Sabe-se que esses hospitais vêm atendendo demanda de hospitais de
outras esferas públicas, que são considerados como unidades de referência
em determinadas áreas, como por exemplo a oncologia, em função do excesso
de demanda que recorre ao Hospital Ophir Loyola. Os valores repassados pelo
Ministério da Saúde promovem a cobertura dos atendimentos, cirurgias,
internação e outras despesas que estão sob o encargo dos hospitais
universitários? O Ministério da Saúde não vem destinando recursos relativos a
obras e equipamentos para os hospitais universitários nos últimos anos?
O convênio firmado entre o SUS e as universidades/hospitais
universitários, ou seja, entre o MEC e o Ministério da Saúde, prevê o repasse
de valores que garantam o cumprimento de metas, quantitativas e qualitativas,
cabendo às universidades as despesas de pessoal. Vale, assim, insistir no
questionamento: quanto, então, foi destinado pelo Ministério da Saúde à UFPA
ao longo dos últimos cinco anos? Os recursos obtidos foram investidos? De
que forma?
Há, também, uma outra questão fundamental a ser esclarecida: se os
recursos a serem destinados aos hospitais da UFPA pela EBSERH/MEC
seriam integralmente públicos, argumento utilizado pelo reitor desta
universidade contrapondo-se à identificação do risco de privatização, qual a
justificativa para o ministério não repassar de imediato esses recursos aos
hospitais universitários do país, independentemente da criação de uma
empresa? Por que deixar os hospitais em condições de inadimplência, se os
recursos estão disponíveis, inclusive para contratar um número muito maior de
empregados, ampliar de forma significativa a capacidade instalada e o número
de leitos disponíveis à população, como dizem os defensores da EBSERH? Ou
tudo não passa de uma estratégia para desresponsabilizar o Estado por novas
contratações de servidores públicos?
Afinal, quais os limites e responsabilidades a serem imputados ao
governo federal e à administração superior da UFPA por estarem impondo à
comunidade acadêmica, às pesquisas e à população atendida pelos hospitais
universitários a punição de não ter acesso aos recursos já disponíveis, de
modo a forçar a submissão à EBSERH?
Os Hospitais-escola vinculados às universidades, em todo o país,
constituem o maior sistema hospitalar público brasileiro, composto por 47
unidades hospitalares que integram o SUS, com serviços e atendimentos que
incluem a média e a alta complexidade. Representam também a maior rede de
pesquisas públicas no país na área da saúde, inclusive das que se destinam às
doenças negligenciadas, ou seja, aquelas que prevalecem em condições de
pobreza, para as quais não há interesse, nem investimentos, por parte do setor
privado da saúde. Vale ressaltar que para a UFPA, assim como para as demais
IFES que estão em regiões que possuem níveis elevados de pobreza, que
possuem hospitais universitários em suas estruturas, a questão das pesquisas
em relação às doenças negligenciadas e endêmicas, em populações de baixa
renda, tem relevância fundamental.
O modelo empresa pública, em que se insere a EBSERH, como
esclarecem juristas, é compatível com o exercício de atividade econômica, o
que não se aplica ao sistema de saúde pública do país, administrado pelo
Estado. Há empresas públicas que não oneram o orçamento fiscal do Estado,
porque sobrevivem com suas próprias cobranças e rendimentos, mas a
EBSERH, segundo afirmam seus defensores, deverá ser mantida com recursos
do Estado. Quanto a essa questão, é importante lembrar que, de acordo com o
expressamente definido no inciso II, do art. 8º da Lei 12.550/2011, constituem
também recursos da EBSERH as receitas decorrentes de aplicações
financeiras.
Embora o reitor da UFPA tenha afirmado na audiência pública que no
contrato com a UFPA deverá ser definido que só sejam destinados recursos
públicos para os hospitais desta universidade, a lei aos quais esses contratos
estão vinculados estabelece, explicitamente, a possibilidade da entrada de
recursos privados e de aplicações no mercado financeiro. Mesmo que esta
gestão queira garantir um contrato restritivo à entrada de recursos não
públicos, a administração pública é contínua e será ocupada por diferentes
grupos políticos ao longo de sua história. Havendo o preceito legal, se não for
este arruinado antes, como garantir que em futuras gestões nesta universidade
não venham a ser admitidos recursos privados para os hospitais universitários?
Mesmo que seja alegado que essa questão, se ocorrer, deverá ser discutida no
futuro, é absolutamente procedente imaginarmos que a universidade também
poderá vir a sofrer o que hoje estamos vivenciando, ou seja, a deliberação
apressada e sem discussão com a comunidade universitária.
O discurso da ineficiência do Estado, neste caso, das universidades e de
seus hospitais, que serve para justificar a criação de estruturas próprias do
sistema mercantil, para assumir serviços de natureza essencialmente pública e
estatal, não é novo. Vem sendo insistentemente apresentado, por vários
governos, e já produziu uma série de distorções nos serviços públicos em
nosso país. No caso das universidades públicas brasileiras, as artimanhas,
com diferentes dissimulações, como as OS’s e agora a EBSERH, servem
unicamente a um projeto e visão de Estado, que trazem em si a relativização
dos direitos dos cidadãos e da responsabilidade estatal. Afinal, assumimos que
somos ineficientes, mesmo que trabalhando em condições extremamente
desfavoráveis no que tange ao quadro de servidores? Ou enfrentamos que as
universidades vêm sendo levadas, pelo governo federal e em sucessivos
governos, a chegar à “crise” que interessa a esse projeto de Estado, menos
público e mais empresarial?
Como ponto primordial no debate sobre a EBSERH, está posta a
discussão sobre a autonomia das universidades, preceito constitucional,
frontalmente ameaçado pelo modelo proposto.
Os hospitais universitários, para serem considerados como tal e para
cumprirem a sua finalidade, precisam desenvolver ensino, pesquisa e
extensão. Significa dizer que a formação profissional em saúde na rede pública
de ensino do país, em nível de graduação e de pós-graduação, o
desenvolvimento de pesquisas e a extensão se dão por meio da assistência à
saúde à população, e não o inverso. Ocorre que, afora o superintendente da
EBSERH, que será indicado pelo reitor em cada universidade, todos os demais
cargos, planos de trabalho, atividades, cortes e investimentos, que interferem
diretamente no cotidiano de uma empresa, ficarão a critério de uma equipe de
pessoas que não pertencem aos quadros de servidores públicos da instituição,
com visão empresarial, que serão escolhidas para ocupar esses cargos por
meio de indicações. Definir por esse modelo de gestão é adotar caminhos
alheios aos interesses da universidade pública, do SUS e, certamente, da
população.
Os gerentes da EBSERH - inclusive os de ensino, pesquisa e atenção à
saúde -, de acordo com as diretrizes técnicas da empresa, devem ser de livre
nomeação por parte de um comitê formado por membros da diretoria executiva
da empresa. Considerando que esses gerentes não precisam ser servidores
públicos e que caberá a eles a análise e definição de prioridades a partir de
parâmetros de produtividade, como se poderia garantir que não fosse retirada a
autonomia didático-científico-financeira das universidades públicas?
De acordo com dados apresentados em trabalho científico produzido por
equipe de pesquisadoras da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES),
os hospitais universitários representam hoje 10,3% dos leitos do SUS, 25,6%
dos leitos de UTI, 50% das cirurgias cardíacas e neurológicas e 70% dos
transplantes realizados na rede pública do país. É, portanto, uma engrenagem
de elevada complexidade, altos custos, que necessita de gestão eficiente e
eficaz, demandando para tanto comprometimento público em todos os níveis, a
começar pelo governo federal.
Na condição de hospitais-escola, os hospitais universitários não podem,
sob nenhuma alegação, ser tomados tão somente pela lógica produtivista.
Devem sim ser considerados e analisados por todo o potencial e efetiva
contribuição para o desenvolvimento da ciência, para a formação de
profissionais da saúde, que atuarão em toda e qualquer estrutura do sistema
de saúde no país, assim como para prestar assistência. As soluções para os
hospitais universitários, muito embora incluam a necessidade de mecanismos
competentes de gestão, não podem ser reduzidas a uma visão empresarial e
de cunho meramente gerencial, nem interferir na autonomia das universidades.
Com base nos cinco contratos firmados pelas universidades com a
EBSERH (UNB, UFPI, UFMA, UFTM E UFES), já é possível identificar as
distorções criadas por esse modelo. Afora simplificações, como podem ser
identificadas no contrato firmado pela UFPI, há questões explicitamente
definidas, que encerram ingerência abusiva e expõem o quanto a autonomia
das universidades ficará comprometida. Somente para exemplificar,
transcrevemos a seguir o inciso X, da cláusula sétima, do contrato firmado pela
UNB com a EBSERH: “caberá à Contratada (EBSERH) criar um fundo para o
incentivo à pesquisa, cujo percentual será definido anualmente pela diretoria
executiva da contratada”. O nível de ingerência da empresa nas universidades,
que são entidades autárquicas, é inadmissível e inaceitável.
Confiamos na serenidade e aprofundamento da análise das muitas e
sérias questões que envolvem a adesão, ou não, à EBSERH. Não cabe ao
IFCH, nem às outras unidades e representantes no Consun que são contrários
a essa empresa, de imediato, apontar o receituário para solucionar os inúmeros
problemas que afetam os hospitais universitários. Essa é uma tarefa coletiva,
para a qual precisam ser escolhidas representações da comunidade
universitária, de modo que investiguem a fundo a real situação dos hospitais e
para as quais sejam repassados dados e informações até então
desconhecidos, porque não foram disponibilizados pela administração superior
da UFPA.
Apresentamos a proposta de que se faça na UFPA uma agenda política
para debater permanentemente assuntos estratégicos, de modo a evitar
decisões apressadas, sem amadurecimento, e para que sejam dadas
oportunidades e informações a todos que possam participar e decidir sobre os
processos nesta universidade. Uma agenda com a participação de todos os
diretamente envolvidos para, então, realizar o debate coletivo com outros que
estão indiretamente envolvidos nesses processos e decisões.
Que prossiga o debate!
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