A PERMANÊNCIA DE UMA HEGEMONIA: COMERCIÁRIOS E
COMERCIANTES VAREJISTAS EM FEIRA DE SANTANA ENTRE 1970 E
1992.
Guilherme Augusto Almeida Santos LOPES
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Universidade Estadual de Feira de Santana
Durante os anos 70 e 80 do século vinte teve lugar em Feira de Santana – BA um
conjunto de modificações importantes na sua principal atividade econômica, o
comércio. Essas mudanças estavam inseridas num processo mais amplo que foi a
expansão industrial ocorrida no município a partir de 1970[1], produto da política
econômica adotada no período pelo governo federal pautada no investimento em
produção de bens de capital intermediários na periferia do país. As rápidas
transformações tanto na infra-estrutura econômica e urbana do município como na sua
superestrutura política e cultural, fazem desse período um marco de transição para uma
cidade “moderna”. É sobre o impacto dessas transformações no mundo do trabalho,
especialmente no comércio varejista formal, entendido este como um espaço onde se
afirmam relações e conflitos sociais, que este projeto pretende ser o início de um
esforço teórico interpretativo.
A cidade de Feira de Santana surgiu em função de atividades comerciais ainda no
século XVIII. A sua posição geográfica privilegiada, ponto de passagem obrigatório
para quem se deslocava em direção a Salvador, Cachoeira ou Santo Amaro, cidades
importantes da Bahia à época, facilitava a aglomeração de pessoas em torno de
atividades mercantis. Com o decorrer do tempo foi se organizando uma feira semanal
onde era comercializada principalmente a carne bovina viva ou morta, produto de
destaque na economia nacional e posteriormente produtos agrícolas e manufaturados.
De um simples entreposto rodoviário o vilarejo de Santana dos Olhos d’água em 1873 é
elevado a condição de cidade, sendo denominada então de Cidade Comercial de Feira
de Santana. Não foi por acaso que a cidade teve no seu nome sua principal
característica, já àquela altura era grande a importância econômica e cultural exercida
pelo comércio feirense no estado da Bahia.
O desenvolvimento cada vez maior da atividade comercial, com a instalação de
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novas casas comerciais e com o crescimento da feira-livre, propiciou a cidade um rápido
crescimento populacional tornando-se em meados do século XIX e início do XX uma
das cidades mais populosas do Estado. Em 1860, Feira de Santana era habitada por
30.000 pessoas, aumentando este número para 51.459 em 1872, 63.000 em 1900 [2] e
77.600 em 1923 segundo dados do anuário estatístico da Bahia. [3]
Num universo populacional expressivo como este, o poder político estava
concentrado nos grupos que detinham a maior parte do capital agromercantil, ou seja,
grandes fazendeiros que na maioria das vezes eram grandes comerciantes e vice e versa.
Serão estes mais tarde, que irão ocupar os cargos executivos e legislativos do município
quando da sua emancipação política. Irá ocorrer também uma diversificação do capital
agromercantil, permitindo a criação de estabelecimentos bancários, pequenas fábricas e
usinas. Em outras palavras, os grandes comerciantes tornaram-se um grupo
politicamente hegemônico em Feira de Santana, devido também à sua posição
hegemônica exercida na atividade econômica. Só a título de exemplo, em 1926 foi
criado o Banco de Crédito Popular de Feira de Santana, que tinha como proprietário o
comerciante Arnold Silva que posteriormente, nas décadas de 30 e 50, tornou-se
prefeito municipal. Uma das primeiras indústrias de porte médio da região de Feira a
Usina Itapetingui que funcionava nas mediações de Amélia Rodrigues, era de
propriedade de João Marinho Falcão, outro grande comerciante que também se tornou
prefeito.
Aldo José Morais Silva também percebeu o papel central assumido pelo comércio
para a história de Feira de Santana. Ele demonstrou como a difusão de um ideal de uma
cidade que possuía uma natureza sã estava associada ao desenvolvimento do comércio.
Para ele o trabalho realizado pelas autoridades municipais, “através de discursos e
ações” no sentido de transmitir a imagem de uma cidade saudável e segura, o que
muitas vezes contradizia com a realidade, tinha como objetivo assegurar o progresso
comercial, pois a segurança e a salubridade eram condições positivas para um bom
desempenho desta atividade econômica. [4] No entanto, onde Aldo José vê a “existência
de um projeto expresso por um discurso e por ações em prol da Feira sã”, vemos sem
discordar, mas através de um outro olhar, a produção de um consenso (hegemonia) em
torno do projeto político dos comerciantes feirenses que associavam o desenvolvimento
do comércio ao progresso da cidade, fortalecendo assim sua posição dominante.
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Observamos que o comércio teve para a formação social de Feira de Santana não
apenas uma importância econômica no sentido de ser parte determinante no processo
produtivo local. Teve também um grande valor histórico, pois foi o comércio o impulso
fundador da cidade; social, sendo majoritariamente através do movimento comercial
que os sujeitos estabeleciam relações harmônicas ou conflituosas, políticas, se
comunicavam; e cultural, pois era nessa atividade que se forjavam costumes e uma
linguagem associada ao hábito cotidiano de trabalhar negociando, vendendo, trocando,
comprando, fundando por sua vez uma tradição comercial transmitida por gerações e
presente até hoje na sociedade feirense.
Já na década de 1950 e 60, Feira de Santana se consolida como a cidade do
interior baiano de maior centro comercial. Segundo o Plano Local de Desenvolvimento
Integrado[5] nesse período “o comércio cresceu em 107,2% e 124,4% em numero de
estabelecimentos e pessoal ocupado, respectivamente”. A economia feirense já havia
alcançado um alto índice de diversificação, com o crescimento das atividades industriais
e de prestação de serviços, no entanto o comércio continuava sendo predominante,
como também mostra os dados PLDI: “em 1968 havia 58% de estabelecimentos
comercias, 31% de prestação de serviço e 11% de estabelecimentos indústrias”. O
diagnóstico chegou à conclusão de que o município de Feira de Santana passava por
uma elevada expansão das atividades comerciais, notadamente as do comércio varejista
localizadas na zona urbana.
Apesar do crescimento econômico local verificado nos anos 50 e 60, que
acompanhava a tendência de expansão industrial do Estado da Bahia com a implantação
da Petrobrás, foi a partir dos anos 70 com a chegada da nova indústria concretizada na
criação do Centro Industrial Subaé pelo poder público municipal e com a ajuda de
subsídios estaduais e federais, que Feira de Santana passou por um conjunto de
transformações socioeconômicas mais amplas. No bojo desse processo houve também
um esforço concreto e ideológico por parte das autoridades municipais e do
empresariado, de promover uma modernização (conservadora), pautada pelo discurso de
uma nova fase de desenvolvimento e progresso.
Os grupos dominantes da cidade articularam essas transformações através do
aparelho estatal e da sociedade civil, juntamente com a elite intelectual que exerceu um
importante papel no sentido de difundir, principalmente pelo jornal “Feira Hoje”
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fundado justamente em 1970, novos costumes e padrões de vida compatíveis com a
“nova fisionomia” que a cidade deveria assumir. As ações implementadas nesse sentido
foram várias, vale destacar a construção da Universidade Estadual em 1976, a
transferência da feira livre do centro da cidade para uma “moderna” Central de
Abastecimento em 1977. Até o “Fluminense de Feira”, time de futebol da cidade, foi
disputar pela primeira vez o Campeonato Nacional em 1976, através de um lobby feito
por um deputado federal do município à época.
Embora a centralidade que o setor industrial passou a assumir no que se refere aos
investimentos despendidos pelo poder público municipal em infra-estrutura e subsídios
fiscais, “o terciário continuaria sendo o setor mais importante para a economia
feirense”.[6] A participação do setor terciário no PIB municipal era de 53% em 1970 e
55% em 1980. [7] Entre 1970 e 1985 o comércio teve um crescimento expressivo
quanto ao número de estabelecimentos e pessoal ocupado. De 2.568 estabelecimentos e
5.897 postos de trabalho ocupados em 1970, em 1985 esses números chegaram a 4.436
e 12. 617 respectivamente.[8]
Ainda não houve estudos que demonstrassem como essas transformações se
processaram na prática e o nosso empenho em tentar investigá-las parte de alguns
indícios deixados pelos registros históricos da época e mesmo de alguns trabalhos
realizados acerca da industrialização feirense, a exemplo da tese Rossine Cruz.
Foram várias as vezes em que o jornal Feira Hoje anunciou o novo momento
vivenciado pela Princesa do Sertão, enfatizando o novo impulso de desenvolvimento
guiado pela industrialização, sendo que o comércio estaria passando por uma transição e
a cidade estaria conhecendo novas formas de comercializar. O trecho abaixo, de uma
matéria publicada em 5 de setembro de 1973, é ilustrativo:
“(...) sem nos prendermos à história do comércio de Feira de Santana, mais apenas aos
fatos mais recentes e próximos, historicamente, podemos dividir as atividades
comerciais em duas fases ainda não bem definidas, pois passa por um estágio de
transição. (...) Atualmente, o comércio se encontra (...) com dois tipos de comerciantes
bem definidos. Uns que buscam manter a tradição. Esses vivem presos ao passado.
Mantêm seu comércio estagnado, relacionado a velha clientela, preso aos laços de
amizade. Outro tipo de comerciante acompanha bem de perto as novas técnicas de
venda, estabelece custos, monta uma administração compatível com a hora presente e
recorre aos mesmos métodos utilizados nos grandes centros.”
Em outro texto do mesmo jornal um jornalista fazia uma avaliação dos impactos
da industrialização na cidade, dizia que está havia trazido uma mudança na mentalidade
da população feirense e quando se referiu ao comércio afirmou:
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“Este choque de mentalidade já começa a produzir seus frutos: abalando a tradicional
mentalidade do comerciante pecuarista feirense, provocando uma mudança no conceito
de empresa que tínhamos, jogando para a realidade de uma economia diversificada,
apoiada agora na industrialização, no comércio e na agropecuária.”[9].
Ainda em 1973 quando da inauguração de uma filial das Lojas Ipê em Feira de
Santana, o Jornal entrevistou um de seus representantes que entre outras coisas disse
que: “as lojas Ipê não estão aqui para dividir, mas para somar. Somar esforços, somar
simpatias, somar experiência, pois que o comércio da atualidade é considerado um
serviço público”.[10] Já em 1976 na inauguração de uma filial de outra loja, desta vez a
Sadel[11], o prefeito municipal da época, José Falcão, se fazia presente junto com
outras “autoridades” do município e no momento do seu discurso ressaltou que: “para o
engrandecimento do comércio feirense e da região, nos entregam mais uma loja Sadel,
moderna e atuante, à altura do nível de progresso que a nossa cidade conseguiu
atingir”.
Parecia haver um consenso entre a mídia local, os comerciantes e o poder público
municipal, em torno da idéia de uma nova fase no comércio feirense e os trechos acima
são exemplos desse consenso. Rossine Cruz em sua tese de doutorado está de acordo
também com uma mudança nos padrões de comercialização a partir dos anos 70. Sua
analise é direcionada para as mudanças que ocorreram no comércio informal,
especialmente depois da transferência da antiga feira livre para a central de
abastecimento que trouxe “novos hábitos de compra” e “novas práticas comerciais”
colocando em ameaça os antigos “laços culturais, comerciais e mesmo produtivos”.
Contudo, numa parte dedicada discussão da “modernização do terciário” a partir de
1985, quando a indústria feirense entra num ciclo recessivo, ele afirma que:
“Apesar da inexistência de grandes shoppings, o comércio feirense viu surgir novos
estabelecimentos ligados a redes estaduais e nacionais de varejo ou franquias nacionais
e internacionais, mais exigentes em termos de padronização de serviços, instalações e
produtos, que lograram trazer certa modernização ao setor, exercendo forte
concorrência com aqueles segmentos do capital mercantil mais tradicionais”. [12]
Entendemos as modificações no comércio feirense não como movimentos
espontâneos, mas como fruto de ações deliberadas tanto da sociedade civil, quanto da
sociedade política e em alguns momentos da união entre as duas. Exemplo disso é a
instalação no ano de 1976 em Feira de Santana, num convênio com a Associação
Comercial[13] da cidade, de um escritório da Fundação Centro de Desenvolvimento
Comercial (CEDEC)[14] que passou a funcionar na própria sede da Associação e cujo
objetivo principal era prestar assistência técnica as empresas. Assim foi anunciado, no
ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 07: Diversidade e
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jornal Feira Hoje, os objetivos do CEDEC:
“O trabalho consiste em desenvolver esquemas de treinamento de mão de obra,
arrumação de lojas e suas vitrines, sugestões de promoção, mala direta, implantação de
crediário, controle de vendas, além da atualização das técnicas de administração do
setor comercial”.[15]
A partir dessas evidências, estamos levantando a hipótese de que a produção de
um discurso consensual em torno de um novo comércio, baseado em ações concretas
implementadas principalmente através do aparelho privado de hegemonia dos grandes
comerciantes, a Associação Comercial de Feira de Santana, foi fundamental para a
manutenção daqueles enquanto fração hegemônica dos grupos dominantes da cidade e
para o exercício da dominação através do consentimento, da classe trabalhadora
empregada no comércio. Analisar as transformações ocorridas no mundo do trabalho do
setor comercial é, portanto investigar a permanência de uma hegemonia.
Contudo acreditamos que um estudo como este não será completo se restringirmos
o olhar para as mudanças no mundo do trabalho a um ponto de vista técnico. Estamos
sugerindo que elas alteraram as formas de organização política e o modo de vida dos
comerciários. É nesse sentido que faz parte desse projeto uma analise sobre como esse
setor da classe trabalhadora se relacionou com esse conjunto de mudanças atravessadas,
no sentido de aceitação, por meio do Sindicato dos Empregados no Comércio de Feira
de Santana, e em outros casos contestando através de organizações paralelas como foi o
caso do movimento Comerciários em Luta, principal oposição sindical e organizador
das greves desta categoria nos anos 80.
NOTAS:
[1] Segundo Rossine Cruz, “Feira de Santana experimentaria um surto de crescimento
industrial durante os anos 40 e 60 que a coloca como o segundo centro industrial do
interior do estado em quantidade de estabelecimentos, ao final deste período.”
[2] POPPINO, Rollie E. apud SILVA, Aldo José Morais
[3]Anuário Estatístico da Bahia, 1923 apud, SILVA, Aldo José Morais
[4] Natureza sã, civilidade e comércio em Feira de Santana. Elementos para o estudo da
construção de identidade social no interior da Bahia (1833-1937). Dissertação de
Mestrado, UFBA, 2000
[5] Documento que resultou de um estudo realizado pela prefeitura municipal que deu
subsídios para a promulgação da lei municipal nº 631/69.
[6] CRUZ, Rossine Cerqueira. A inserção de Feira de Santana nos processos de
ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 07: Diversidade e
Desigualdade, Poder e Conflito Social: Leituras Dialéticas da História.
6
integração produtiva e articulação comercial. Pg 212. Tese de Doutorado, Unicamp
[7] ARAUJO E CUNHA (1983:33-4), apud CRUZ, Rossine. Pg. 213
[8] IBGE, senso comercial e serviços 1970-1985. apud CRUZ, Rossine. Pg. 236
[9] Feira Hoje, 05 de setembro de 1973
[10] Feira Hoje, 27 de outubro de 1973
[11] Esta filial foi aberta no dia em que se completavam 20 anos da inauguração da
primeira loja Sadel em Feira. Esta loja fazia parte de uma rede de estabelecimentos
comerciais e industriais de propriedade do Grupo João Marinho Falcão S.A.
[12] CRUZ, Rossine. Pg. 271.
[13] A Associação Comercial de Feira de Santana foi fundada em 1945 com o objetivo
principal de defender os interesses dos comerciantes da cidade e representá-los
politicamente.
[14] Órgão da Secretaria de Indústria, Comércio e Turismo do Estado da Bahia.
[15] Feira Hoje, 06 de novembro de 1977.
ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 07: Diversidade e
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Guilherme Augusto Almeida Santos Lopes