saúde Na escola, à espera que a gripe A mostre os dentes Ainda está tudo tranquilo. O vírus não obedece ao calendário escolar. Tem o seu próprio calendário. Só se sabe que ele vem aí. O que importa é não desarmar as defesas e medidas de prevenção. Porque ele vai mostrar os dentes, alertam os especialistas. Texto de Ana Machado Fotografia Enric Vives-Rubio S ão 8h30 no Instituto Espanhol de Lisboa, em Algés, arredores da capital. Os cerca de mil alunos já recolheram às aulas. Está tudo calmo. Os dispensadores de desinfectante junto aos corrimões de escada e às salas de aula e refeitório vão descansar por algum tempo. Até que a correria se instale de novo pela hora de almoço. Os cartazes espalhados por todo o lado ensinam as regras básicas de convivência com este novo inimigo chamado H1N1, também conhecido simplesmente por gripe A. Ali todos sabem, dos três aos 18, que não se tosse sem tapar a boca com a dobra do braço. Ou com um lenço. E qualquer alerta de febre é encaminhado para a enfermeira Cristina Ramirez. Se há febre, já se sabe: os pais vão ter de vir buscar o aluno. E amanhã, se a coisa se prolongar, não vem à escola. De resto, a vida decorre na normalidade possível numa miniBabel de castelhano e português. 36 • 11 Outubro 2009 • Pública A sala de enfermagem de Cristina Ramirez foi transformada em “sala de isolamento”. “O trabalho começou ainda em Julho, em parceria com as autoridades de saúde dos dois países. Estamos em contacto com o centro de saúde local e com a Administração Regional de Saúde”, diz a responsável do Instituto Espanhol de Lisboa. Os pais podem ligar mais vezes, a tirar dúvidas. E a política de não permitir alunos com febre nas aulas está mais apertada que nunca. “As coisas estão muito tranquilas”, diz Cristina Ramirez. “Mas isto ainda não começou.” Opinião partilhada pela pediatra Paula Valente, coordenadora da unidade de infecciologia pediátrica do Hospital de Santa Maria. “Esta pandemia ainda não mostrou os dentes. Mas pode vir a mostrar. Se nos Estados Unidos a gripe sazonal faz 36 mil mortes por ano, uma pandemia destas faz estragos, necessariamente.” Porque é que, com a concentração de crianças nas salas de aula, no início de Setembro, os casos de gripe A não dispararam? Filipe Froes, pneumologista e consultor da Direcção-Geral de Saúde (DGS), não tem uma resposta concreta: “O melhor para lhe responder é o próprio vírus.” Mas arrisca alguns elementos: “As escolas abriram há pouco tempo e o clima manteve-se bastante ameno e seco ao longo de Setembro. Além disso, a actividade dentro de portas ainda está muito limitada nas escolas. Isso pode justificar que haja esta actividade residual do vírus. Precisamos de esperar mais algum tempo para verificar se entra ou não em fase de aceleração. Mas esperemos que não”, diz Filipe Froes, lembrando que, segundo o relatório semanal do norte-americano Centre for Disease Control (CDC), a actividade do vírus entre 20 e 26 de Setembro revelou-se elevada e registaram-se 11 casos mortais entre crianças. Apesar de tudo, o CDC diz que a incidência de casos está abaixo do índice considerado epidémico. E enquanto nos EUA 99 por cento dos casos notificados c saúde toridades de saúde, que estão a fazer tudo. Não podem é inventar medidas que não existem. Vamos estar atentos, preocupados, mas sem alarmismo.” De olhos postos na escola Crianças até aos cinco anos são um grupo de risco. “Mas não correm mais risco do que com a gripe sazonal”, diz uma pediatra confirmaram ser da estirpe H1N1, em Portugal Filipe Froes indica uma realidade menos alarmante: “Só entre 10 a 15 por cento dos casos dão positivo.” João Vasconcelos Costa, virologista, investigador da Universidade Lusófona, confessa que esperava, por esta altura, que “houvesse um número mais acentuado de casos”. E lembra que, nos relatórios semanais da DirecçãoGeral de Saúde (que podem ser consultados, todas as quartas-feiras em http://www.dgs.pt), os novos casos semanais de síndrome gripal observados, independentemente do tipo de vírus em causa, diminuíram ao longo de Setembro, especialmente entre a 38.ª semana, de 14 a 20 (2213 casos) e a 39.ª, de 21 a 27 (1530 casos). Precisamente a altura de arranque do calendário escolar. Na última semana analisada pelos relatórios da DGS, a 40.ª semana, podese considerar que a situação continua estável, com 1772 casos. Mesmo perante esta aparente estabilidade, o director-geral de Saúde, Francisco George, mostra-se cauteloso: “Não quero comentar porque posso errar.” E remete uma análise para os relatórios semanais, com referência a quadros clínicos mais graves. “É cedo para tirar conclusões, para traçar modelos epidemiológicos. Estamos longe da onda epidémica. Mas ela vai chegar, mais dia, menos dia. Estou aqui sentado, a olhar para a janela e vejo que o tempo mudou. Ninguém 38 • 11 Outubro 2009 • Pública pode prever quando é que o vírus vai começar a atacar. A gripe é muito traiçoeira e imprevisível. A grande vaga não aconteceu ainda. Mas vai acontecer”, garante João Vasconcelos Costa. Maria João Brito, infecciologista e coordenadora da gripe do Hospital Pediátrico Dona Estefânia, em Lisboa, lembra o papel crucial que o Inverno joga aqui: “Os vírus da gripe gostam do frio. É certo que ocorreram surtos no Verão — no Algarve, onde se concentrava muita gente. E continuam a ocorrer surtos pelo país. Mas os casos disparam com o frio. As gripes atacam no Inverno”, diz a médica, que integra a direcção da Sociedade Portuguesa de Pediatria. Para prevenir a propagação quando os casos de H1N1 e a procura de serviços hospitalares aumentarem, o Dona Estefânia inaugura amanhã uma nova unidade de urgência e internamento dedicada à gripe. “Vamos receber doentes com gripe e somos o maior hospital pediátrico do país. Não seria ético estar a misturar os doentes. As pessoas sem gripe têm o direito a estar protegidas.” Vasconcelos Costa acredita que essa epidemia afectará muita gente mas não terá “efeitos graves do ponto de vista individual”. E aposta naquele que é o grande trunfo contra esta inevitabilidade: “Esta pandemia vai encontrar uma rede geral de aconselhamento, de vigilância e prevenção que nunca tinha sido montada em nenhuma outra epidemia. Não há qualquer desconfiança em relação à capacidade das au- De uma coisa os especialistas não têm dúvida: as escolas são uma dor de cabeça. As crianças funcionam como “placas giratórias de distribuição do vírus por outras comunidades, como a familiar e a local”, lembram. “Os mais pequenos trocam chuchas e brinquedos, têm um comportamento social distante do dos adultos. E são disseminadores de vírus mais prolongados, contagiam os que os rodeiam por mais tempo”, explica a pediatra Paula Valente. Mas, apesar de as crianças pequenas serem um grupo de risco – “são sempre” –, há menos casos fatais entre elas. “As crianças até aos cinco anos são classicamente um grupo de risco. Pior ainda com menos de um ano. Mas não correm mais risco do que com a gripe sazonal.” Como pediatra, acredita que o seu papel também é o de tranquilizar os pais: “As epidemias de pânico são mais perigosas que as epidemias de doenças. Evitem, de um modo geral, as urgências porque há mais vírus para além da gripe, não peçam antiviral, que não é necessário para toda a gente e esqueçam os antibióticos, a não ser que ocorram infecções secundárias que o justifiquem. Ah, e evitem locais fechados, como centros comerciais, especialmente com bebés.” A enfermeira Cristina Ramirez lembra todos os dias aos alunos do Instituto Espanhol de Lisboa que as regras, mesmo perante toda a tranquilidade, são para respeitar. E diz que são os mais pequenos que não perdoam quando vêem alguém violar as regras tão propagandeadas nos últimos tempos: “Não perdoam quando vêem um adulto espirrar ou tossir sem pôr um braço à frente. Abusam é um pouco do desinfectante. Estou sempre a insistir para que lavem bem as mãos à mesma.” Face à calma de Setembro, Filipe Froes não acredita que a sociedade deixe descuidar estas medidas de prevenção. “Seria expectável ocorrer aquilo que chamamos de fenómeno do ‘Pedro e o Lobo’: falou-se tanto na gripe e ela não veio que agora já ninguém acredita que venha.” Mas o pneumologista acha que a lavagem das mãos, os cuidados com a tosse e espirros não são de descuidar: “Na prática, estas medidas ainda não foram postas à prova. Só o tempo provará a sua capacidade efectiva de resposta.” Paula Valente acredita que, se alguma boa lição se pode tirar desta pandemia, é o enraizamento de hábitos de higiene simples mas que eram descuidados: “É pelas crianças que as regras começam. Até nas casas de banho dos centros comerciais se vê que as pessoas são mais cuidadosas com o lavar as mãos. E os miúdos não eram ensinados a tapar a boca quando tossiam. Estes hábitos interiorizaram-se.” Gregória von Amann, especialista da DGS em saúde escolar é da mesma opinião: “Nesta altura, a população já adquiriu um grupo de comportamentos que vão ficar e ainda bem. Servem para tudo na vida.” a [email protected]