A solidariedade difícil
Lincoln G. Dias
Andy Warhol: Arte e práticas para o dia a dia não foi essencialmente uma exposição de obras
do artista, apesar de mostrar algumas de suas serigrafias, cartazes, vídeos e polaroides.
Encerrada a poucos dias no Museu de Arte do Espírito Santo, teve como prioridade trazer à
tona uma certa atitude de Wahrol com relação à arte e a atividade do artista; atitude esta que
evita as questões formais, sociais e éticas que interessaram ao modernismo – bem como a
gravidade com que eram tratadas – e volta as atenções para um cotidiano imediato, tal como é
vivido e sentido pelas pessoas que nele estão imersas. É sabido que Wahrol abordou um dos
aspectos mais significativos do cotidiano de nossa época, que é o poder da mídia de justapor e
homogeneizar a percepção de temas díspares e mobilizadores como pena de morte,
celebridades midiáticas e massacres de civis em paises do terceiro mundo. Mas a exposição
levou em conta trabalhos como as cápsulas do tempo e vídeos como Empire, onde o artista
primou pelo desvio do espetacular e do extraordinário, centrando a atenção nos componentes
mais triviais e anódinos de uma cotidianidade aparentemente destituída de sentido e de
interesse. É do testemunho de obras como estas que a exposição se vale para constituir-se de
um evento de caráter muito mais propositivo que expositivo.
Nas diferentes salas da exposição, o visitante foi convidado a produzir suas próprias
cápsulas do tempo, serigrafias de objetos pessoais e vídeos que mostram os seus próprios
rostos por quatro minutos com câmera fixa. Evidentemente, tais atividades podem ser
recebidas e interpretadas como mera recreação, possibilidade sempre presente nestes tempos
em que a concepção, difusão e realização de eventos culturais segue a mesma lógica de gestão
econômica adotada na produção de espetáculos de puro entretenimento. Mas o projeto
curatorial apostou no potencial do visitante de produzir cognitivamente e materialmente a
partir do contato com questões da arte contemporânea, especificamente aquelas trazidas pela
exposição em cartaz. Para tanto, valeu-se de duas estratégias simultâneas e complementares.
Uma delas foi cuidar para que a exposição alcançasse uma esfera social mais ampla, de
preferência envolvendo grupos sociais não habituados a freqüentar museus de arte. Foi feito
um trabalho de aproximação entre o Museu de Arte do Espírito Santo e a comunidade do
Morro da Piedade, um bairro situado no centro de Vitória, nas imediações do Museu. A idéia,
ao menos a princípio, era constituir um vínculo interativo com esta comunidade, para
trabalhar junto dela atividades que envolveriam visitas à exposição, reflexões sobre esta e
produção de arte, num programa concebido como sendo uma experiência em arte-educação.
Para tanto, formou-se um grupo de jovens artistas e pesquisadores recém-graduados com a
finalidade de estabelecer a aproximação e propor e realizar as atividades.
A outra foi a proposição de um ciclo de conversações que culminou num seminário do qual
este texto é parte. A proposta foi feita a um pequeno grupo de artistas, filósofos, sociólogos,
psicólogos e gestores de políticas culturais e teve como tema “teorias e processos de
agenciamentos culturais em campo ampliado”. Especificamente, o seminário procurou trazer
para o campo reflexivo a experiência vivida pelo grupo de artistas e pesquisadores que
executaram o referido trabalho educativo. A proposta reflexiva estava, portanto, vinculada ao
trabalho empírico dos artistas e pesquisadores, a princípio como um fazer reflexivo que
procuraria dar conta de um fazer pragmático posteriormente a sua realização.
Tratava-se, em síntese, de discutir as implicações sociais e metodológicas de se promover
uma aproximação entre um Museu de Arte e uma comunidade de bairro, cujo perfil sóciocultural fazia afastada do museu. Quando a proposição foi feita, os dois grupos envolvidos
não se encontravam preparados conceitualmente e metodologicamente para a tarefa. Havia
somente uma proposta lançada, sendo parte do desafio efetivar a interlocução com um grupo
de perfil cultural diferente e dar a este trabalho algum contorno e estrutura no plano
conceitual.
Estão implícitas neste trabalho empírito-reflexivo questões importantes como as
potencialidades efetivas da arte, dos artistas e dos museus de arte, frente à perspectiva de um
trabalho de agenciamento cultural. Estão em jogo a sua potencial contribuição para o debate
critico a respeito dos papeis sociais e políticos da arte, do artista e do museu na
contemporaneidade e para o amadurecimento das políticas públicas para a arte, educação e
cultura, sobretudo no que se refere ao trato com a diversidade cultural.
O problema da auteridade
Tratava-se da proposição de uma interação entre dois grupos de perfis sociais diferentes.
Por um lado, estão artistas, curadores, filósofos e gestores da cultura, um grupo ligado ao
circuito das artes plásticas, ainda que pese dizer, um cirtuito historicamente excludente. Por
outro, a comunidade de moradores do Morro da Piedade, um grupo social que poderia ser
descrito, a princípio, pelo seu modesto perfil econômico e pela maioria negra. Como se trata
de um bairro antigo, cujo pequeno crescimento ao longo dos anos se deu de maneira
vejetativa e sem a entrada de grupos migratórios, manteve-se por lá uma certa tradição local,
cujo expressão maior é dada pela escola de samba, muitas vezes vencedora, Unidos da
Piedade.
Sabemos que quando dois grupos dotados de perfis culturais diferentes estabelecem entre si
algum tipo de interação, é desejável que haja um pano de fundo constituído de visões de
mundo suficientemente próximas e que formem uma espécie de consenso geral que dará
apoio e tornará inteligíveis os posicionamentos e ações dos atores de cada um dos grupos.
Sabemos que este consenso não existe.
O primeiro ponto critico é a própria idéia de “agenciamento cultural” e a transformação que
ela já sofreu durante as primeiras ações do projeto. A idéia de agenciamento cultural, ao
menos no entendimento corrente desta expressão, pressupõe um trabalho de aproximar um
determinado grupo social de um certo patrimônio artístico e cultural. Essa aproximação é feita
em geral no sentido de facilitar a apreensão sensível e a compreensão intelectual das obras
pelos indivíduos daquele grupo social. Com isso se desenvolvem apreciadores e espectadores
e se promove a formação de públicos para a cultura.
Sem desprezar a perspectiva de aproximar indivíduos do Morro da Piedade do Museu e das
obras e idéias de Andy Wahrol, o agenciamento cultural mais importante e que foi iniciado
pela equipe foi a aproximação entre os indivíduos do Morro da Piedade e os dados culturais
que constituem a própria identidade específica daquela comunidade.
E essa operação de aproximação se fez por meio de trabalhos de fotografia com as crianças e
da escuta das narrativas dos idosos sobre a história do próprio bairro. É importante frisar que,
no caso das fotografias, não se tratou de exercícios para um aprendizado de técnicas ou
soluções formais simples para introduzir as crianças nesse grande gênero de produção
cultural. Nem se tratou de uma atividade lúdica que se esgota no recreativo.
As crianças usaram as fotografias para trabalhar as suas próprias imagens. O trabalho aguçou
uma percepção imaginaria e vaga que elas tinham delas mesmas e a materialização desta
percepção por meio da fotografia conferiu um certo grau de objetividade nesta representação
imaginaria. As fotografias realizadas por estas crianças viraram significantes culturais que
puderam circular e ser partilhados com os outros indivíduos daquele grupo e se constituiram
como produção cultural capaz de se articular com o sistema de valores identitários daquele
grupo.
Quanto às narrativas dos idosos, o trabalho da equipa não se constitui em uma “coleta de
dados” e sim de uma escuta, um pouco no sentido psicanalítico do termo. Isso quer dizer que
o que importa mais é que, quando eles narram a sua própria história, eles mesmos se escutam.
O conteúdo da memória, quando narrado, ganha materialidade e visibilidade, assim como as
fotografias.
Bibliografia
FOSTER, Hal. “O artista como etnógrafo”. In: Arte e ensaios, 12. Revista do Programa de Pós-Graduação em
Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFRJ. Rio de Janeiro: UFRJ,
FREIRE, Cristina. “Contexturas: sobre artistas e/ou antropólogos”. In: LAGNADO, Lisete e PEDROSA, Adriano
(orgs). 27ª Bienal de São Paulo: como viver junto. São Paulo: Fundação Bienal, 2006. Pp. 107-15.
Download

A solidariedade difícil