O Carteiro e o Poeta (o filme)
Por: Cid de Oliveira
Da vida ordinária à vida poética
Um filme ou qualquer outra obra de arte sempre nos indica, de algum modo, o ponto de
vista pelo qual ele deve ser abordado - ou seja, seu tema, o problema que pretende tratar.
No caso de O Carteiro e o Poeta, já a primeira cena mostra que o problema é a
construção de uma vida pessoal, singular e verdadeira, apesar das dificuldades do tempo
e do lugar.
Por isso mesmo, dizendo logo a que veio, o filme se inicia com Mario Ruopollo resfriado e
deitado numa cama, onde lê um cartão postal com notícias de seus primos que vivem na
América. Essa imagem inicial ilustra a perplexidade do protagonista frente às limitações
impostas à sua vida pelo ambiente social onde vive. Ouve-se, enquanto isso, o barulho dos
barcos dos pescadores que retornam à praia depois da pesca. Entre eles está o pai de
Mário que chega em casa para comer e comenta que já é tempo dele procurar um
emprego, ganhar a vida. Mário responde que tem alergia aos barcos, que sempre enjoa e,
portanto, não pode ser pescador. O pai dele também reconhece essa inadequação
quando afirma que ele jamais gostou de pescar. Para não deixar dúvidas quanto ao fato
de Mário ser um indivíduo diferente dos outros habitantes da ilha, ele é apresentado ao
espectador, logo na primeira cena do filme, exatamente como um dos poucos que sabem
ler naquele lugar.
Desse modo, o personagem central da história não aceita o tipo de vida que lhe é
oferecida pelo seu ambiente imediato, e sonha com outra vida possível longe dali, na
América, estimulado pelo cartão postal enviado pelos primos. A ilha sugere um ambiente
limitado, isolado e de poucas possibilidades (1) porque lá falta água, figuração clara da
ausência no ambiente social do auxílio, apoio ou amparo necessários para a criação e
geração de uma vida singular. A propósito, a primeira fala do filme dita por Mário é: - Não
tem água.
Mário quer outra vida, diferente daquelas oferecidas pelos poucos modelos existentes na
ilha onde se encontra. E como a vida nos é dada sem pedirmos, limitada num lugar, num
tempo e ainda por fazer, só resta a ele viver a aventura de fazê-la, inventá-la.
A interrupção do fluxo da vida comum e ordinária por um fato extraordinário que
impulsiona ou obriga o herói a realizar sua aventura é uma marca de toda narrativa
heróica. Na nossa história esse acontecimento é a chegada de Pablo Neruda na ilha,
anunciada por um jornal cinematográfico que o apresenta como o poeta amado pelas
mulheres. O aparecimento do poeta muda radicalmente a vida de Mário, pois lhe propicia
o exercício de inusitada profissão: carteiro particular de Neruda. Como conseqüência
desse golpe de sorte, ele inicia uma vida diferente da de pescador analfabeto, o comum
na ilha, e, ao mesmo tempo, ganha uma oportunidade única para descobrir qual o seu
verdadeiro projeto de vida.
No entanto, a vida não é somente o que acontece ao indivíduo, mas também o que ele
faz; e nada se pode fazer sem ter em vista o que se quer ser. Como a vida não está feita,
nem sequer como possibilidade, o indivíduo mesmo é que tem que criar sozinho seu projeto
de vida de modo coerente com suas capacidades. A vocação e as qualidades do sujeito
têm, também, um papel importante no momento em que ele tiver que escolher dentre os
vários projetos oferecidos pela circunstância. Mário é simples, espontâneo, curioso,
estudioso (procura no mapa onde está o Chile), inteligente, emotivo, sensível, puro,
honesto. E é com sua pureza, com sua honestidade e sem trair a voz espontânea de sua
consciência que ele concebe e realiza sua vida nova.
Mas, a situação de Mário é muito problemática porque ele não se sente chamado por
nenhum dos poucos e pobres projetos de vida oferecidos pelo seu contorno imediato.
Quase dois terços do filme é permeado pela tensão entre os estereótipos de vida existentes
no ambiente social da ilha e a nova vida inventada por Mário. Essa tensão é mostrada, por
exemplo, nos diálogos entre Mário e o chefe do Correio que teima em chamar Neruda de
poeta do povo, enquanto Mário rebate insistindo em chamá-lo de poeta do amor.
Essa maneira de Mário enxergar Neruda é muito importante para a compreensão da
mensagem profunda contida no filme. Para ele Neruda é não só o poeta do amor, mas o
próprio Amor, por isso ele o descreve para o Chefe do correio com esta frase:
- "... a mulher dele o chama de Amor".
Outra indicação importante é o modo como Mário pede a Neruda para autografar um
livro. Depois de ensaiar o pedido por muito tempo diante do espelho, o faz espontâneo e
diverso do que treinou dizendo:
- "Pode fazer uma dedicatória, Mestre?".
Ora, a motivação maior com a qual conta o indivíduo para se sentir forte e criativo durante
a difícil tarefa de inventar uma vida que valha a pena é exatamente o Amor. O Amor, que
sempre mobiliza e ativa a imaginação independente do modo como ele se manifeste seja como o amor pela divindade, o amor por uma idéia, aquele apenas sensual, ou o
existente numa grande paixão entre um homem e uma mulher. Inclusive, não é possível
viver esse tipo de sentimento sem imaginação. A imaginação é, portanto, uma faculdade
fundamental para amar, para a concepção do plano de vida e, também, para o
exercício da poesia. Ela é, ainda, um pré-requisito para a ação. Se não se imagina com
muita clareza o que se quer fazer não se consegue realizar nada. É verdade que muitas
vezes o indivíduo pode se satisfazer com os objetos imaginados e não agir. Mas, movido
por Amor é impossível que não realize algo. Está aí a vida de Mário Ruopollo que não nos
deixa mentir.
Mas, antes de começar a agir é necessário que o indivíduo esteja consciente de sua
situação real. Isto só acontece com Mário depois da leitura de um poema de Neruda, que
trata da angústia do homem frente à vida comum.
Vou ao cinema, passo no alfaiate, mas acontece
que me sinto enrugado e entorpecido
como um cisne grande e confuso
na superfície de um oceano de fracassos e causas.
O cheiro da barbearia me desperta e grito:
Assassinato! Estou cansado de ser apenas um homem.
Observe-se que nesta cena, - onde Mário motivado pela poesia de Neruda resolve que vai
ser Poeta e, portanto, inicia a invenção de uma vida singular -, está presente,
sugestivamente como contraponto, um homem de vida completamente estereotipada e
de atos previsíveis, o político Don Cosimo, que aparece ali, em segundo plano ao fundo,
convencendo demagogicamente a viúva Dona Rosa a votar nele.
A poesia nas coisas e a poesia das coisas
Estimulado pelo poema, Mário percebe que não agüenta mais ser apenas um homem
comum que vive apenas ao sabor do que lhe acontece.
Sem dúvida, a vida se compõe de tudo o que acontece ao sujeito. Mas, um exame,
mesmo superficial desse assunto, mostra que nela também se inclui tudo que o indivíduo
faz. Por isso, sem a criação de um objetivo não se realiza nada de realmente válido e
marcante. Desse modo, a vida verdadeira não é feita de uma série de atos encadeados e
sem finalidade. Sempre se faz algo por alguma razão. Isto é inevitável, pois faz parte da
natureza humana mesma. Assim, Mário rejeita as várias vidas possíveis oferecidas pelo
ambiente, e decide um novo objetivo que é ser poeta.
Mas, o que é um poeta, o que é a poesia?
A palavra poesia vem do grego poesis, substantivo derivado do verbo poieô que indica a
ação de fazer. O termo poieô é tomado nas seguintes acepções:
1- fabricar, confeccionar.
2- criar, produzir.
3- fazer nascer, causar.
4- buscar, investigar.
5- fazer por si, fazer segundo seu gosto.
6- criar por si, fazer a si mesmo.
7- apreciar, julgar.
Poiesis (poesia) é, portanto a ação que lhe corresponde. E, poietes que é o realizador
dessas ações tem os seguintes significados: autor, criador, inventor, fabricante, artesão. O
poietés realiza a poiesis porque é poietikós e esta palavra tem as seguintes acepções: que
tem a virtude de fazer; quem é inventivo e engenhoso; o que é próprio da poesia.
Aquilo que o poietes produz, porque é ele mesmo poietikós e realiza poiesis, é o poiema.
Poiema tem as seguintes acepções: o que se faz; a obra, os atos da criação do espírito,
invenção.
Se poiesis é o ato de fabricar, produzir e criar, o primeiro e maior dos poetas é, sem dúvida
o primeiro a criar, ou seja, o Ser Supremo: infinito, sem começo nem fim, fonte e origem de
todas as coisas, eterno, antigo nas eras, em suma, o realizador do poema da criação. Para
certas tradições, Ele é o Artesão que junta e confecciona o cosmo a partir do caos. Desde
este ponto de vista, a criação como um todo é um ato poético: um poema. A criação é
poema na flor que se abre, no rimo das ondas que batem na praia, no próprio ser humano
ou, ainda e mais, no encadeamento das histórias de todas as vidas. Tudo isso é construção
do Grande Poeta. A criação do Ser Supremo é absoluta porque o que ele cria era antes
nada, e é por seu poder criador que cada coisa começa simplesmente a ser. Como o Ser
Supremo é a origem e fonte de todos os seres finitos, e cada ser é em última instância um
modo d'Ele se manifestar, cada ser no seu nível se torna um poema e um símbolo capaz de
remeter a Ele, o simbolizado último.
Mas, a criação de um ser finito distingue-se da do Ser Supremo porque ela consiste em dar
forma a um conjunto de possibilidades que já são, que já existem. Dito de outro modo, a
criação do ser humano resume-se em dar novas significações e expressões às coisas já
existentes, ou estruturá-las em novas totalidades. Quando o ser humano cria, as coisas
começam a ser outras, diferentes do que antes eram; ou seja, realiza-se o
aperfeiçoamento de uma possibilidade, que ainda não era plenamente e que naquele
instante passa a ser. Esse maravilhoso momento em que o possível se torna ato é poesia.
Nesse sentido o poeta é um criador, pois ele cria novos seres com os que já existem. Por
isso, existe uma analogia entre a poesia e a criação divina.
Mas, observem que existe uma gradação das perfeições nas coisas. Assim, uma planta é
mais perfeita do que uma pedra porque a planta tem a perfeição da vida que falta na
pedra. O animal é mais perfeito que a planta porque tem, por exemplo, a perfeição da
sensibilidade e da locomotividade, de que está privada planta. E, por fim, o ser humano é
o mais perfeito de todos, porque, além dessas perfeições, tem a da racionalidade do seu
entendimento. Portanto, porque há mais ou menos perfeição nas coisas, há mais ou menos
poesia nelas.
Esta exposição enfoca a poesia objetivamente, como algo que está nas coisas. No
entanto, é fácil perceber que para captar o poético das coisas é necessário o
funcionamento de uma inteligência, que poderá percebe-lo com mais ou menos
intensidade. Portanto, decorre daí a existência de dois tipos de poesia.
Existe a poesia in re, poesia na coisa, com sua gradação.
Mas, existe, também, a poesia da coisa: aquela apreendida proporcionalmente à
capacidade de entendimento e sensibilidade daquele que pode entende-la. Dentre os
personagens do filme, Dona Rosa, a tia de Beatriz, é exemplo claro da pessoa incapaz de
perceber a poesia que há nas coisas, enquanto outros existem que desvelam o poético e o
captam imediatamente numa intuição simples, como Mário. Descobrir e desvelar o que há
de poético nas coisas é missão do poeta, que cria poemas em si e a partir de si mesmo, ao
captar o que de poético nelas existe.
Vejam que ao grau de poesia que há nas coisas corresponde uma gradação de poesia
que há no poeta. Decorre então, que a criação de um poeta pode ter mais ou menos
poesia, ou seja, ele pode ter mais ou menos capacidade poética. Relembro que a
imaginação criadora é a base da capacidade poética para construir novas estruturas ou
captar seus novos significados.
Se existem duas poesias, existem, também, dois tipos de poetas criadores correspondentes
a elas: o poeta nas coisas e o poeta das coisas.
Existem duas cenas no filme que, no meu entendimento, expressam de modo evidente os
conceitos expostos anteriormente, e ao mesmo tempo distinguem e identificam os dois
tipos de poeta.
Na primeira cena, na porta da casa de Neruda, este explica o que é metáfora, através de
uma comparação, quando pergunta a Mário como ele entenderia uma frase onde se
dissesse que o céu estava chorando. Mário que é um poeta nato afirma imediatamente
que se trata de uma imagem para chuva. Note-se, e guarde-se para uso futuro, que o
poeta está interessado em ensinar a seu discípulo a feitura de metáforas. Conceito para o
qual sua atenção espontaneamente se volta e que ele exerce magistralmente, sem
nenhuma dúvida.
Na segunda cena, a mais importante, e que se passa à beira-mar, Neruda declama e
pergunta a opinião de Mário sobre esse poema:
Aqui na ilha há tanto mar,
O mar e mais o mar.
Ele transborda de tempo em tempo.
Diz que sim, depois que não,
Diz sim e de novo não.
No azul, na espuma, em galope
Ele diz não e novamente sim.
Não fica tranqüilo, não consegue parar.
Meu nome é mar ele repete
Batendo numa pedra, mas sem convencê-la.
Depois com as sete línguas verdes
De sete tigres verdes, de sete cães verdes,
De sete mares verdes
Ele a acaricia, a beija e a umedece;
E escorre em seu peito
Repetindo seu próprio nome.
Mário diz que está enjoado e Neruda considera esse julgamento muito severo. Mário
explica, então, que seu enjôo não foi causado pela qualidade do poema, mas antes
porque se sentiu, enquanto o ouvia, jogado de um lado para o outro, como um barco,
sacudido pelas palavras. Neruda, bom professor, não perde a oportunidade e mostra que
ele fez uma metáfora. No entanto, Mário retruca:
- "Mas, fazer metáfora assim, não vale. Foi sem querer".
Neruda: - "Querer não é importante. As imagens devem surgir espontaneamente". Mário: "Você quer dizer que o mundo todo, o mar, o céu com a chuva, as nuvens... o mundo todo
é, todo ele, metáfora de alguma outra coisa?"
A pergunta que Mário fez é típica do ponto de vista em que naturalmente se coloca um
poeta nas coisas. Com essa questão ele demonstra sua capacidade poética para ver nas
coisas exteriorizadas o simbolizado do qual elas são os símbolos. Ele já detém, portanto, a
arte de penetrar além dos símbolos até atingir os simbolizados, e chega mesmo, com essa
pergunta, a referir-se ao simbolizado último, o Ser Supremo e Criador. A pergunta dele
ensina que todas as coisas simbolizam porque sugerem, apontam ou assinalam a Verdade,
a Beleza ou a Bondade. E, assim como há o poeta que capta uma beleza, uma verdade e
uma bondade das coisas para nós, existe aquele que capta a Beleza, a Bondade e a
Verdade nas coisas em si mesmas. É o primeiro que denomino aqui poeta nas coisas,
Mário; enquanto chamo o segundo poeta das coisas, Neruda.
Observem que todo o comportamento de Neruda nessa ocasião indica, claramente, ser
ele um poeta das coisas, porque com uma cara estranha, responde que não sabe e que
precisa refletir mais sobre o assunto. Neruda tem que pensar sobre a questão porque ele
faz e entende de metáforas enquanto a pergunta trata de símbolos. A interrogação de
Mário não pode ser respondida nem mesmo compreendida com o uso desse conceito,
porque metáfora é apenas o emprego de palavra ou expressão em sentido figurado que
consiste na transferência de uma palavra para um âmbito semântico que não é o do
objeto que ela designa, e que se fundamenta numa relação de semelhança,
subentendida "num mesmo nível", entre o sentido próprio e o figurado. A metáfora, natural
em Neruda, opera por similitude, enquanto o símbolo o faz por analogia de atribuição
intrínseca. No fundo Neruda capta as metáforas e Mário os símbolos, cuja função é
interligar níveis diferentes de realidade.
Tudo isso demonstra que Mário tem a capacidade de exercer uma forma de poesia muito
profunda e original, que lida, na verdade, com símbolos, como indica a pergunta que ele
colocou, pois é o símbolo que permite conhecer de um modo mais profundo, e além da
aparência sensível, as coisas que ele apenas sugere. Conseqüentemente, Mário não se
limita a ver no poético das coisas as metáforas ou mesmo somente os símbolos; ele penetra
nelas e vai mais além da mera aparência sensível, para enxergar ali os simbolizados aos
quais elas se referem.
Plotino dizia que sábio é aquele que por trás de uma coisa vê uma outra. Neste sentido
Mário é um sábio. Ele vê sob a escritura das coisas Aquele que as escreveu. Ele sente
alguma outra coisa. Para o poeta nas coisas tudo é sagrado e a criação inteira é símbolo.
Ele percebe a poesia in re, ele faz o poema na coisa; mesmo que não tenha o domínio
erudito e técnico das regras de semântica, da sintaxe ou do vocabulário que Neruda
possui. Por isso o poema mais fundamental, o mais radical, o mais importante que o poeta
nas coisas pode e deve criar é a vida singular que ele inventa para si mesmo.
Mário faz poemas nas coisas, lidando diretamente com elas, como quando relaciona a
bola do jogo de futebol de mesa com a Lua, e faz seu primeiro poema, um círculo
desenhado. Cena belíssima e muito importante, pois descreve o conceito de símbolo
através da bola que interliga, a Lua, a mulher celeste e arquétipo do feminino, com a
curva da boca de Beatriz Russo, a mulher terrestre. Desse modo, Mário faz poemas o tempo
todo; espontâneos, compostos dos gestos simples do quotidiano, experimentados
diretamente nas coisas e transfigurados por uma alma predisposta à compreensão
simbólica.
Isto não quer dizer que Neruda, o poeta das coisas, desconheça esse tipo de poesia, pois
ele mesmo afirma para Mário:
"... quando explicamos a poesia ela se torna banal. Melhor do que qualquer explicação é
a experiência direta das emoções, que a poesia revela a uma alma predisposta para
compreendê-la".
E acrescenta:
"Ser poeta é ser capaz de olhar as coisas. Vá caminhando pela praia observando tudo".
Beatriz Russo e Matilde
As duas formas de poesia condicionam também os dois modos de amor que movem os
personagens centrais. No primeiro encontra-se o amor por uma mulher específica, por uma
dada praia ou paisagem, etc. No outro, instala-se o amor pela Mulher - protótipo do
feminino, Beatriz, a Natureza, a Beleza - percebido através de uma transfiguração da
mulher ordinária.
Esse paralelismo entre os dois tipos de poesia e de poetas é, também, enfatizado no filme
através da trilha sonora, ganhadora do Oscar, que se compõe apenas de dois temas
musicais que se contrapõem o tempo inteiro: um associado a Neruda, um tango e o outro
a Mário.
Como sempre, a inspiradora, a motivadora e instigadora da realização de uma vida
poética é a Mulher. No caso, Beatriz Russo, a maravilha da ilha. Dito de outro modo, quem
deflagra os atos da mudança vital é sempre o Amor. Depois de receber o olhar, o sorriso e
o gesto (a bola na boca) de Beatriz Russo, (do mesmo modo que Dante no seu encontro
com Beatriz, narrado na Vita Nuova), torna-se impossível para Mário continuar o mesmo:
passivo, segurando sua bicicleta e admirando Neruda amar Matilde e dançar com ela. A
dança de Amor move a vida, como ensina Dante: "Amor che move il sole e l'altre stelle". E,
é Amor, através de Beatriz, que impulsiona Mário a por em prática o projeto da vida de ser
poeta. Observe-se que existem no filme outras referências a Dante - o maior dentre os
poetas fiéis do Amor. O nome mesmo de Matilda aparece na Divina Comédia, nos cantos
28, 29, 31, 32, 33 do Purgatório. Ali, ela representa uma dimensão amorosa da alma diversa
e inferior à de Beatriz.
A sagração pública de Mário como poeta se dá no bar de dona Rosa, com o testemunho
da musa Beatriz, quando o Mestre aprova os poemas do discípulo ao escrever uma
dedicatória num caderno que lhe havia presenteado anteriormente.
Mas, sempre que um indivíduo começa a criação de uma vida pessoal e única, ele se
torna uma ameaça para o ambiente em volta, que imediatamente reage. Neruda avisa
que as palavras são perigosas e cita o caso do poeta François Villon. E a tia de Beatriz,
figuração do senso comum, armada com uma espingarda, faz um discurso inflamadíssimo,
e muito engraçado, contra os poetas, as palavras e as metáforas.
Apesar da oposição da tia, Mário casa com Beatriz e completa uma parte de seu projeto
ao realizar a união com a amada. Na festa do casamento a testemunha é Neruda, que
dança com a noiva, a Musa. É interessante notar que no instante mesmo em que Mário
livra-se dos obstáculos ao seu desejo amoroso, Neruda também é liberado e pode voltar
ao mundo porque seu exílio foi revogado. Outra cena que mostra de modo evidente o
paralelismo existente entre os desenvolvimentos do aprendizado dos dois poetas.
Neruda: mestre de Mário
Mário: mestre de Neruda
Quando o Poeta do Amor chegou na ilha tudo se transformou. Quando ele se vai ressurge
a vida ordinária, comum e rotineira. Mário enfrenta, então, o desafio de fazer poemas
sozinho, sem o estímulo da presença do Mestre. Sem ele há insegurança, rejeição e crítica
dentro da alma. Quem expressa esses sentimentos é a tia que provoca Mário dizendo:
"Passarinho que come vai embora".
Mas, Mário permanece fiel ao Mestre. E ele começa o seu grande poema na casa, agora
solitária, onde Neruda se hospedou, quando vai reunir os objetos deixados pelo escritor
para reenvia-los ao Chile. Ali, o prazer das boas lembranças é a inspiração. Inspiração para
fazer poesia viva, poesia nas coisas e com elas, criando junto a própria vida, como revela
toda seqüência do gravador - que se antes só conseguia gravar dentro, agora
criativamente adaptado, grava fora. Confiante Mário começa, então, a gravação de
uma mensagem para Neruda com a seguinte afirmação: "Quando você foi embora pensei
que tivesse levado as coisas belas daqui, mas agora percebi que deixou algo para mim",
frase que mostra o respeito, a maturidade e a independência frente ao Mestre.
Como Mário é um poeta in re, nas coisas, ele vive seu poema nas coisas mesmas. Ele não o
capta das coisas através da mediação da escrita, mas o capta diretamente nas ondas, no
som dos sinos, nos ventos, na batida do coração do filho e mesmo no céu estrelado, como
se estivesse refazendo a criação. Esse é o poema mais radical e vital que pode existir.
O grande, único e sintético poema nas coisas que Mário pariu como um filho, dentro de
um carrinho de bebê, com a mesma força que gerou sua vida singular, é este:
Número um:
ondas em Cali Sotto. Pequenas.
Número dois:
ondas grandes.
Número três:
vento nos rochedos.
Número quatro...
vento nos arbustos.
Número cinco...
redes tristes do meu pai.
Número seis...
o sino da igreja. Com padre.
(Belo. Não havia notado antes
como era tudo tão belo).
Número sete...
céu estrelado na ilha.
Número oito...
o coração de Pablito.
É a poesia na vida mesma. A vida do poeta Mário é um poema. Ele não vê cada coisa
como separada, mas antes as enxerga todas como manifestações de algo maior que as
transcende. Isso é o que se pode chamar, sem erro, uma visão amorosa. Para um poeta
desse talante todas as coisas, por menores que sejam, não existem autônomas e
separadas umas das outras, mas estão sempre solidárias no Amor maior que faz tudo existir.
Por isso, ele diz enfaticamente a Neruda que "a poesia não pertence àqueles que a
escrevem, mas a quem precisa dela", na cena em que este último se recusa a fazer uma
poesia para Beatriz Russo. Ele concebe seu poema sozinho, longe do Mestre, pois, como
dissemos anteriormente, a vida não nos é dada pronta. Ela é um a fazer que só pode ser
realizado pela pessoa mesma. Um outro não a pode viver. Este é um grande exemplo de
vida inventada com a imaginação e no impulso da força de Amor.
Uma vida que vale a pena ser vivida.
Uma vida que é criação e, portanto, é poiesis - uma ação poética.
Uma vida exemplar, pois ensina que a vida não nos é dada feita, nem como possibilidade;
e por isso mesmo nós é que temos de inventar essas possibilidades a cada instante.
Mas, a vida se compõe, também, da brutalidade do real. O poeta nas coisas morre numa
manifestação política organizada pelo partido comunista. Apresenta-se novamente a
contraposição entre o social e o íntimo; entre as exigências da coletividade e as da
consciência individual. De certo modo, Mário contraria sua vocação ao participar de um
ato político. Na verdade, ele não está ali como ativista partidário, mas como poeta que
vem ofertar um poema ao mestre. Ele não prioriza as forças sociais e políticas que estão em
jogo em torno dele.
Neruda não recebe o poema-oferta porque, como poeta, não está pronto ainda para
ouvi-lo, pois está enleado nas coisas do Mundo. Ele só pode tomar conhecimento do
ensinamento poético contido no poema de Mário lá, no mesmo lugar onde sua
introspecção começou, no ambiente da ilha, que pode ser vista como centro interno e
ordenador para o próprio Neruda. Afinal de contas, ele chegou ali exilado pelas vicissitudes
de um mundo, que poderíamos denominar exterior e profano. Por isso, ele volta para a ilha
com Matilde onde conhece Pablito, filho de Mário com Beatriz Russo, e ouve o poema de
Mário, filho da vida e da poesia.
São dois poetas se fazendo. O poeta das coisas aprende a reconhecer e integrar em si o
outro tipo de poesia, senão seus poemas serão apenas técnicos e literariamente corretos.
Enquanto o poeta nas coisas desenvolve os seus meios de expressão e a técnica. Assim,
Neruda é, sem dúvida, o mestre e poeta do Amor. No entanto, Mário Ruopollo também é
um poeta do Amor. Mas, de tal ordem que seu poema tem uma qualidade vital, básica e
primordial. Tudo que foi dito aponta para a existência de uma complementaridade entre a
poesia que é representada por Neruda e aquela representada por Mario Ruopollo. Temos,
portanto dois tipos de poetas e por conseqüência dois tipos de poesia. Existe uma troca de
sabedorias entre Neruda, o poeta das coisas e Mário Ruopollo o poeta nas coisas.
Assim, além da existência de uma relação explícita, tipo Mestre e discípulo, entre Neruda e
Mário existe e se desenvolve, de modo interno e implícito, outra relação onde Neruda, no
final, é quem termina por aprender com Mário.
O filme, portanto, pode e deve ser enfocado, também, do ponto de vista do
desenvolvimento de Neruda. Ele é um indivíduo que foi exilado do mundo e colocado
numa ilha onde tem a chance de encontrar através de um humilde vivente a verdadeira
Poesia, aquela nas coisas, que não o havia tocado ainda, apesar de sua fama e do
prêmio Nobel. Imagem e texto confirmam essa conclusão.
A imagem é a última do filme onde Neruda relembra sua relação com Mário, emocionado
e mínimo em frente à imensidão do mar, sob a altura majestosa do rochedo,
completamente absorvido pela poesia nas coisas.
O texto, (transcrito abaixo em tradução provisória), é o poema feito por Neruda em
homenagem ao amigo, que aparece depois dos créditos do filme, no qual ele reconhece
honestamente que só naquela instante encontrou a Poesia.
E foi naquela Época...
A poesia chegou me procurando.
Eu não sei, não sei de onde ela veio,
se de um inverno ou de um rio.
Eu não sei como nem quando.
Não, não eram vozes,
não eram palavras, nem silêncio;
mas de uma rua eu fui chamado abruptamente
dos ramos da noite, dos outros,
no meio de um tiroteio violento,
e num retorno solitário lá estava eu
sem um rosto... e ela me tocou.
Pablo Neruda, o poeta das coisas
NOTAS:
1. Este não é ponto de vista do simbolismo da ilha para Neruda, para quem a ilha é um
lugar de refúgio e paz, no meio das ameaças e das agitações do mundo externo e
profano.
Cid de Oliveira
Fragmentos de Arte
10/10/2008
O Carteiro e o Poeta
(Retornando depois de um ano sem escrever...)
Venho escrever sobre mais um dos meus preciosos... que fazem parte daqueles ÚNICOS... que vejo e revejo centena de
vezes pra tentar sugar o mínimo de poesia que ainda reste... falo de O Carteiro e o Poeta.
Baseado na obra de Antonio Skarmeta e realizado pelo cineasta e co-autor Michael Radford, O Carteiro e o Poeta é
um filme obrigatório. É quando se unem política, poesia, extrema sensibilidade e amor numa única produção.
Sinopse: Mario
Ruoppolo mora em uma remota ilha do Mediterrâneo, sem infra-estrutura, onde a
grande maioria dos homens vive da pesca. Só que ele não gosta de barcos e muito menos das
velhas redes de pescaria. Diante de um pai ignorante, como toda a população da ilha, Mario
consegue ser carteiro, de um único endereço, o de Pablo Neruda, poeta chileno que chega à
ilha em 1953, exilado de seu País por ser comunista. Mario, homem naturalmente ingênuo,
mas dotado de sensibilidade, encanta-se com a presença do importante poeta, a ponto de
querer se tornar poeta também. O contato que passa a ter com Neruda, desperta nele um
conhecimento sobre si e seus sentimentos, abrindo seus olhos para ver o mundo limitado em
que vive e que, agora, pode melhor entendê-lo. Quando Mario apaixona-se e se casa com
Beatrice, uma bela e sensual mulher, que trabalha para sua tia, no restaurante local, Neruda
lhe fala das muitas Beatrices que inspiraram diversos poetas. Ao fim do exílio, o escritor retorna
ao Chile, "esquecendo-se" do seu antigo carteiro, e este, movido pela dor do abandono,
escreve uma poesia sobre a ilha sobre Neruda, superando e surpreendendo o famoso poeta.
Não se trata de um filme político, mas é impossível não tomar partido da situação. Não se trata de uma comédia, mas é
inevitável rir da rabugice da mãe da Beatrice ou da ingenuidade de Mário... mas é um riso, diria eu, de admiração. Tampouco é
um dramalhão, mas acho difícil não derramar uma lágrima... uma lagrimazinha que seja , com a evolução do protagonista.
Classificaria este filme como um drama... um drama clássico. Mário é o personagem principal e está maravilhosamente
interpretado (para quem não sabe, o ator Massimo Troisi faleceu logo após as gravações...). Ele é a jóia, a preicosidade do
filme... Neruda é poeta: enxerga, sente e nos presenteia com suas criações através de lindas palavras. Mas Mário vai mais
longe... ele enxerga, sente e contagia com suas emoções. Mostrar essa pureza de sentimentos, de arte, através de um filme de
pouco mais de uma hora de duração... é sim, uma prova de que a arte em seu primeiro estágio é a mais valiosa.
Existem três passagens deste filme que me fizeram parar e pensar durante muito tempo... Renderam charlas, debates,
inúmeras leituras e algumas conclusões. *Primeiro, quando Mário descobre o que significa metáfora e em seguida cria uma
metáfora e não acredita... é um momento de tanta inocência, humildade e sede por saber que essa cena nos soa engraçada...
e rimos simplesmente. Mas como já disse antes, é um riso suave, de uma quase admiração despercebida. É a poesia bruta
(que tantas vezes já citei neste blog), inerente aquele homem que era a própria poesia. *Segundo, quando Mário já triste e
tentando recuperar sua amizade com Neruda, resolve escrever uma poesia sobre a ilha onde vivia. Sua poesia é a mais
tocante e viva das poesias. Poetizou as ondas do mar, a rede de pescadores, a noite com estrelas, o coração a pulsar de seu
filho ainda no ventre de Beatrice... Existe algo mais a dizer? Não... é a poesia vista através dos olhos e mãos de um ser de
alma pura e que só enxergava belezas, em especial aquelas que vemos todos os dias e nunca lembramos de enxergá-las,
senti-las ou respirá-las... *E por terceiro, aquela folha de papel voando... cena final do filme. Qual o seu significado afinal?
Acabou a poesia? O que estaria escrito? Seria uma poesia comunista? Ou simplesmente nos mostra que a poesia dura para
sempre??? Pois esta última opção é a mais plausível... em meio a guerras, mortes, mudanças, alegrias, amor... a poesia, a
sensibilidade, estará sempre viva para quem quiser ler e saborear-se com suas metáforas...
O Carteiro e o Poeta é um filme para ser visto mais de uma vez, com certeza. Primeiro sob o olhar de Neruda que se encanta,
como cada um de nós, com a riqueza de sentimentos do carteiro. Depois, sob o olhar de Beatrice que se apaixona pela
poesia dita através de seu marido. E por fim, sob o olhar doce de Mário Ruoppolo que nos ajuda a sentir o ser humano lindo
que existe dentro de cada um de nós. É um filme que trata da poesia e acaba se tornando a própria... em tuda sua amplitude.
Vejam, sintam e deixem-se invadir pela beleza de O Carteiro e o Poeta!
http://fragmentosdaarte.zip.net/
Download

O Carteiro e o Poeta (o filme) Por: Cid de Oliveira Da vida ordinária