Consumo Sustentável: Muito Além do Consumo “Verde” Autoria: Sylmara Lopes Francelino Gonçalves-Dias, Carla Moura Resumo Embora altamente desejável, o desenvolvimento sustentável, é tipicamente um objetivo a ser atingido no longo prazo e seu alcance depende em grande medida das mudanças introduzidas nas formas atuais de produção e consumo de bens. Como conseqüência, a busca da sustentabilidade passa inevitavelmente pelo equacionamento da questão do consumo. O propósito deste ensaio é discutir a possibilidade de construção de outro padrão de consumo, mais sustentável, dentro da cultura de consumo contemporânea, a partir da reflexão da sua formação e das alternativas que surgem nas propostas de consumo “verde” e consumo sustentável. A confusão entre os conceitos “verde” e sustentável é debatida, assim como o papel de cada um deles na formação de um novo paradigma de consumo que possa conduzir à sustentabilidade. 1. Introdução Embora altamente desejável, o desenvolvimento sustentável, é tipicamente um objetivo a ser atingido no longo prazo e seu alcance depende em grande medida das mudanças introduzidas nas formas atuais de produção e consumo de bens. A busca de condições sustentáveis para o meio ambiente é responsabilidade tanto de produtores como de consumidores (MANZINI, VEZZOLI, 2002). Fica difícil separar a atividade de produção da atividade de consumo quando o objetivo é sustentabilidade (RIBEMBOIM, 1999). Da relação de interdependência existente entre os atos de produção, consumo e proteção do meio ambiente, surge a necessidade de discutir o tema de consumo sustentável. No Brasil, alguns estudos acadêmicos já se dedicaram aos impactos do consumo no meio ambiente; ora buscando uma visão de como as empresas estão agindo em relação ao meio-ambiente (BARBIERI, 2004; DINATO, 1998), ora buscando verificar a visão e a sensibilidade dos consumidores sobre esta questão (LAGES e VARGAS NETO, 2002; PEREIRA et al, 2004; ROCHA e MARQUES, 2004; BEDANTE e SLONGO, 2004). Contudo, são escassos os estudos que tratam diretamente do consumo sustentável, havendo muita confusão conceitual dos termos consumo sustentável e consumo “verde”. O problema é que a maioria dos estudos sobre consumo sustentável parte do ponto de vista do consumo em si, e foram baseados na perspectiva da economia e da engenharia (HEISKANEN, PANTZAR 1997). Uma concepção mais abrangente dos significados da prática do consumo requer a incorporação da sociologia, antropologia, psicologia e filosofia (CONNOLLY, PROTHERO, 2003). Assim, o propósito deste ensaio é discutir a possibilidade de construção de outro padrão de consumo, mais sustentável, dentro da cultura de consumo contemporânea, a partir da reflexão da sua formação e das alternativas que surgem nas propostas de consumo “verde” e consumo sustentável. A confusão entre os conceitos “verde” e sustentável é debatida, assim como o papel de cada um deles na formação de um novo paradigma de consumo que possa conduzir ao desenvolvimento sustentável. Para cumprir tais objetivos o texto está organizado a partir de três eixos principais que procuram englobar os temas dominantes do debate da literatura contemporânea sobre consumo e meio ambiente. O primeiro eixo trata da formação da cultura de consumo. Para compreender o consumo sustentável é preciso entender como se chegou ao atual estado de consumo. Desta forma um resgate histórico da cultura de consumo, faz-se necessário. “Porque nós 1 consumimos da maneira como consumimos?” (DEFRA, 2003), é o questionamento-chave da seção 2. O segundo eixo constitui o centro do debate em relação ao consumo sustentável. “Será suficiente para nós consumirmos menos produtos prejudiciais ao meio ambiente ou se será necessário consumir muito menos produtos?” (COOPER, 2002). Como a questão premente da redução do consumo, necessária para a sustentabilidade, se coloca dentro da cultura de consumo? Como romper o círculo? Não consumindo?! A reflexão destes questionamentos é introduzida a na seção 3 e continua na 4. O terceiro tema é se o consumidor individualmente tem o poder efetivo para mudar o mercado ou não. “Será possível um novo projeto de sociedade que seja socialmente construído e “puxado” pelo mercado?” Esta questão conduz ao levantamento dos fatores que norteiam o poder de escolha do consumidor e seu impacto na sociedade e é debatida no item 4.1, a partir dos conceitos de consumo sustentável e consumo “verde”. 2. Do comprador ao consumidor: A formação da cultura do consumo: A cultura de consumo é fruto da necessidade de encontrar compradores para a capacidade de produção industrial alcançada no final da Primeira Guerra Mundial (GORZ, 2005). Uma nação de pessoas trabalhadoras (produtores) foi convertida ao status de consumidor, cuja dinâmica de consumo beirava a luxúria. A fonte de status não residia mais na habilidade para fazer coisas, mas simplesmente na habilidade para comprá-las (RIFKIN, 1995). Houve na verdade uma a metamorfose da cultura produtora para a cultura do consumo a partir dos anos 20, do século XX (RIFKIN, 2001). Desempenhar o papel de consumidor, passa a ser a norma, não formalmente declarada, mas resultado da formação de uma sociedade de consumo que gerou uma cultura de consumo específica. Então, é possível pensarmos em uma pré-história da cultura de consumo na perspectiva econômica e sócio-política? Na formação da massa consumidora destacam-se dois aspectos, os objetivos e os subjetivos. Aspectos objetivos: a mudança da sociedade agrícola para a sociedade urbana e industrial nos EUA, de 1880-1920 gerou uma sociedade pronta para o consumo de massas. A propagação do crédito ao consumidor; a criação das lojas de departamento; a venda por correspondência e a redução da jornada de trabalho podem ser destacados como os maiores propulsores da urbanização e criação das condições adequadas para o crescimento do consumo (DURAND, 2003; PEREIRA, 2000). Os aspectos subjetivos remontam a uma “transição ideológica”, que se iniciou a partir de uma crescente identificação entre felicidade e prazer (RIFKIN, 1995, BAUMAN, 2001). Para isso contribuiu – e muito – a formação do campo publicitário. O nascimento deste campo profissional implicou em um novo ethos determinante para a formação da cultura de consumo (DURAND, 2002, 2003). A publicidade foi muito importante para construção do “American way of life”, especialmente na época da guerra fria, através das grandes marcas americanas e produção de uma identidade nacional forte (LAGNEAU, 1981). Neste momento, os produtos fabricados em massa começaram a se atrelar a significados culturais que eram veiculados por anúncios comerciais, absorvendo o trabalho criativo de escritores, artistas e intelectuais da época (DURAND, 2003). Para aumentar o consumo era preciso desfazer-se da idéia de que as compras respondem a necessidades práticas e considerações racionais (RIFKIN, 1995). É às instâncias inconscientes, às motivações irracionais, aos fantasmas e aos desejos inconfessáveis das pessoas que era preciso apelar. A promessa da publicidade para cada indivíduo é escapar à condição comum tornando-se um privilegiado que pode oferecer a si mesmo um novo bem, 2 mais raro, melhor, mais distinto. Ou seja, oferecer soluções individuais para problemas coletivos (GORZ, 2005). A perspectiva da produção do consumidor fica clara em Sennett (1988). Ele mostra como, para a criação da cultura de consumo foi necessária a produção de certa materialidade, proporcionada pelo progresso tecnológico em vários setores da economia. Então, o surgimento das lojas de departamento não ocorreu por acaso. Elas demandaram uma revolução na cidade, no sistema de transporte em massa – para que a cidade pudesse ter compradores. Entretanto estes fatos não explicam a mudança que ocorreu na esfera do indivíduo e de suas relações sociais. Sennett (1988) lança a pergunta crucial acerca do comportamento do consumidor: por que ele se dispôs a entrar nesse jogo? Por que se dispôs a comprar os produtos como sendo algo além do que eles se propunham? Para Sennett (1988) a resposta está na mudança do que era o âmbito público no século XIX, onde todos interagiam como atores. Mudou a natureza do privado. Era uma mudança bem maior, da qual o comércio e o consumo, eram sintomas – e passaram a ser protagonistas desse processo (FONTENELLE, 2006). Há que considerar ainda as transformações nos valores da sociedade desta época que acompanharam a evolução do comprador a consumidor. A sociedade americana foi construída com base nos valores do auto-sacrifício, da acumulação e da parcimônia. A ética protestante se enraizara profundamente no modo americano de vida e a frugalidade, a poupança e o investimento no futuro sempre foram colocados acima da gratificação imediata. Em pouquíssimo tempo, contudo, o consumo passou de vício a virtude (RIFKIN, 1995). Tratava-se do início de um novo “espírito de época” no qual as pessoas passaram a dar importância às aparências exteriores, como expressões de sua personalidade, como objetos de status (COSTA, 2004). A fragmentação devida à mobilidade social e geográfica desta época enfraqueceu a noção de identidade pessoal e aumentou a importância do julgamento alheio para a auto-estima, que antes estava fundamentada nas referências religiosas e comunitárias (DURAND, 2002). Featherstone (1991) indica que a cultura de consumo pode ser identificada a partir de três perspectivas fundamentais: econômica, sociológica e psicológica, que se convergiram: (1) Concepção econômica: a expansão da produção capitalista de mercadorias, que deu origem a uma vasta acumulação de cultura material, na forma de bens e locais de compra e consumo. Isso resultou na proeminência cada vez maior do lazer e das atividades de consumo nas sociedades ocidentais contemporâneas; (2) Concepção sociológica: as pessoas usam as mercadorias de forma a criar vínculos ou estabelecer distinções sociais; (3) Concepção psicológica: a questão dos prazeres emocionais do consumo, os sonhos e desejos celebrados no imaginário cultural consumista que produzem excitações físicas e prazeres estéticos. Essas três perspectivas não são estanques, nem cronologicamente determinadas. Elas existem e convivem até hoje e, em seu conjunto, explicam a formação da cultura de consumo. Mas há um ponto em comum que liga todas essas perspectivas: qual seria ele? A questão da utilidade do produto. A característica central da cultura do consumo ë que o ato de consumir vai além da mera utilidade do produto. Portanto sua a natureza é multidisciplinar, e deve ser explicada a partir da Economia, da Sociologia, da Psicologia e da Antropologia (CANCLINI, 2006). 3 3. O meio ambiente estaria colocando limites ao consumo? Apesar do elevado padrão individualista de consumo ser almejado por quase todos os povos, principalmente pelo mundo subdesenvolvido ocidental, condicionantes históricoestruturais impossibilitam sua concretização. Desta forma, o padrão de consumo adotado pelos países afluentes jamais poderia ser estendido às demais sociedades, pela própria impossibilidade do meio ambiente natural absorver os impactos advindos desta adoção (FURTADO, 1974, CONSTANZA, 1991, LEIS, 1999). A tomada de consciência deste fato tem permitido a ampliação dos questionamentos na busca deste impasse, relativo à utilização dos recursos naturais e conseqüências (CONSTANZA, 1991). Percebe-se uma grande preocupação com relação à depleção dos recursos naturais da Terra por parte dos fenômenos da produção e consumo (LEIS, 1999; SEROA DA MOTTA, 2002). A ameça de exaustão dos recursos naturais tem sido o tema de crítica constante à sociedade de consumo por mais de três décadas (SHOVE, WARDE, 1998) No início dos anos 80 Furtado (1974) já afirmava que a hipótese de generalização das formas de consumo que prevalecem nos países cêntricos (afluentes), não tinha cabimento. “O custo, em termos de depredação do mundo físico, desse estilo de vida, é tal forma elevado que toda tentativa de generalizá-lo levaria inexoravelmente ao colapso da civilização atual (...)” (p. 75). De outro lado, o tema do entrelaçamento entre produção limpa e consumo ambientalmente responsáveis se configura como o terreno mais avançado de debate e de intervenção no campo ambiental (MANZINI,VEZZOLI, 2002). Essa discussão atinge o cerne da questão ambiental: “como a demanda social de bem-estar se confronta como o sistema produtivo; e como surge, ou surgiria, desse confronto um mix de produtos e de serviços”. (p.80) Para eles, este vem a ser o terreno fundamental em que se podem delinear, e possivelmente praticar estratégias eficazes para a sustentabilidade. A própria construção de padrões de produção e consumo sustentáveis em níveis globais é tarefa extremamente complexa. Isto significa alterar princípios econômicos num esforço cooperativo de longo prazo (BREZET, 1997). A dificuldade, entretanto, reside em como promover inovações sustentáveis dentro de uma economia de mercado que seleciona produtos e processos, não com base no critério ambiental, mas com base na lucratividade, que por sua vez é influenciada pela demanda (FREEMAN, SOETE, 1997). Os economistas, como Coase (1960), argumentam que é essencial que os preços de mercado reflitam os custos da degradação ambiental e da escassez de recursos, ou seja, o poluidor tem que pagar. Quanto mais a economia é regulada pelo mercado, mais importantes são os preços, inclusive para refletir os custos ambientais. Contudo, preços de mercado refletem mudanças de curto e médio prazo e não têm como, por si mesmos, comportar os custos sociais de produtos e processos, não conseguindo refletir, portanto, objetivos de longo prazo como o desenvolvimento sustentável. Os impostos e as taxas devem consequentemente, ser usados para realinhar os preços de mercado de modo que se ajustem melhor aos custos sociais de longo prazo (FREEMAN, 1996). De fato, a ecologia e a economia estão cada vez mais entrelaçadas em uma rede inteiriça de causas e efeitos, cuja complexidade só começou a ser entendida recentemente. (CONSTANZA, 1991; FREEMAN, 1996). Em virtude disto, existe também a preocupação de que a deterioração ambiental possa impedir ou reverter o desenvolvimento econômico (CMMAD, 1991). A manutenção ou recuperação da qualidade dos ambientes sejam eles naturais, urbanos ou agrícolas, não é mais preocupação ou tarefa específica de alguns poucos estudiosos e pesquisadores. Neste contexto surge a proposta de sustentabilidade como parte do processo de reflexão para o equacionamento dos inúmeros problemas ambientais. 4 O conceito mostra que soluções isoladas são apenas paliativas e que será necessário transformar nosso modo de vida para recuperar a qualidade do meio ambiente (AFONSO, 2006). Como conseqüência, a busca da sustentabilidade passa inevitavelmente pelo equacionamento da questão do consumo. Seriam o consumo sustentável e o consumo “verde” respostas a este chamado? 4. Consumo sustentável e consumo “verde”: contradições e dilemas para construção dos conceitos Consumo sustentável e consumo “verde”, termos sinônimos? Tanto a literatura acadêmica como a mídia apresentam certa confusão entre os termos relacionados ao consumo sustentável. Existem limites e diferenças entre os conceitos largamente empregados, então há de se esclarecer que estes termos não são sinônimos. A figura 1 ilustra a abrangência destes conceitos. Consumo Sustentável Consumo “verde” Figura 1: Abrangência do consumo “verde” e sustentável Consumo sustentável representa o consumo de bens e serviços com respeito aos recursos ambientais, de forma que garanta o atendimento das necessidades das presentes gerações sem comprometer o atendimento das gerações futuras (HEAP, KENT, 2000). Cooper (2002) explica o significado de consumo sustentável: “padrões de consumo através da compra e uso dos bens e serviços que atendam às necessidades básicas das pessoas em conjunto com a minimização da degradação ambiental”. Para atender estas premissas o consumo sustentável implica necessariamente, em redução de consumo. Desta forma, consumo sustentável não é uma quantidade específica entre o baixo consumo causado pela pobreza e o super-consumo gerado pela riqueza, mas um padrão de consumo bem diferente para todos os níveis de renda pessoal em países do mundo todo. Para Consumer International (1998, p.48), há sinais de que já ocorre um tipo de mudança de consciência necessária à busca de outro padrão de consumo. A mais visível é a emergência do consumo “verde”. Atividades simples e cotidianas como “ir às compras” − seja de bens considerados básicos, seja de itens considerados luxuosos − começaram a ser vistas como comportamentos e escolhas que afetam a qualidade do meio ambiente (CONSUMER INTERNATIONAL (1998). O consumidor verde é definido como aquele que, além da variável qualidade/preço, inclui em seu “poder de escolha”, a variável ambiental, preferindo produtos que não agridam ou sejam percebidos como não-agressivos ao meio ambiente (MAKOWER, 1997; PORTILHO, 2005). Nesta perspectiva do consumo “verde” ações individuais bem informadas e preocupadas com questões ambientais aparecem como uma nova estratégia para a solução dos problemas ligados ao meio ambiente e para as mudanças em direção à sociedade sustentável (EDEN, 1993; ELKINGTON e HAILES, 1991; HALKIER, 1999; PAAVOLA, 2001; 5 STERN, 1997). Assim, o consumidor “verde” estaria contido no conceito de consumo sustentável (figura 1). Entretanto, o estudo de Connolly e Prothero, 2003 não confirma estas premissas: “(...) o consumidor não relaciona seu consumo diário com a degradação ambiental” (p.289). O movimento de consumo verde enfatiza a habilidade dos consumidores agirem em conjunto, trocando uma determinada marca por outra, ou mesmo parando de comprar um determinado produto, para que os produtores percebam as mudanças na demanda. No ambiente internacional, o consumo verde materializou-se em boicotes, como o movimento internacional contra os gases CFCs, a troca de produtos por outros mais ecológicos, e a pressão, por meio da internet e dos tribunais, sobre as grandes corporações para adoção de formas de produção mais compatíveis com as exigências ambientais e sociais (HARRISON et al, 2005). No Brasil, o consumo verde concretizou-se mais na divulgação de programas de educação ambiental envolvendo a reciclagem do lixo e redução do desperdício (PORTILHO, 2005), e na introdução de produtos “verdes” nas prateleiras dos supermercados Contudo, o interesse pelas compras “verdes” tem sido limitado pelos altos preços associados a elas (CRESPO, 2002; FELDMAN, CRESPO, 2003). As ações e as escolhas individuais motivadas por preocupações ambientais passaram a ser vistas como essenciais e o consumidor como o responsável, através de suas demandas e escolhas cotidianas, por mudanças nas matrizes energéticas e tecnológicas do sistema de produção. No entanto, essa estratégia de “comprar um futuro melhor” acabou sendo posta em xeque pelos dilemas e desafios nos quais implica (ELKINGTON e HAILES, 1991; PORTILHO, 2005). Os consumidores acreditam que a escolha de produtos “verdes” e aumento da reciclagem sejam sua contribuição, sendo que o atual nível de consumo não é identificado como um problema (CONNOLLY, PROTHERO, 2003). 4.1. Consumo “Verde”: uma estratégia limitada? O consumidor individual tem o poder efetivo para mudar o padrão de produçãoconsumo ou não? Esta questão esbarra no poder do consumidor, gerando debates e controvérsias entre pesquisadores. Alguns autores como Ottman (1998), enfatizam a efetividade do poder do consumidor para mudar a demanda. Já autores como Scherhorn (2004) argumentam que “a soberania do consumidor é ilusória” uma vez que a estrutura da sociedade, o mercado e o estilo de vida estão fundamentados sob bases insustentáveis. Se pelas propostas de “consumo verde”, o consumidor é o principal agente de transformação, pois suas demandas estimulam a modernização ecológica das indústrias, com a perspectiva do “consumo sustentável”, essa questão assume contornos mais complexos. O consumo sustentável é complexo por contemplar diferentes arenas do território humano tais como tecnologia, cultura, crenças, atitudes e vida em sociedade. Enquanto que consumo verde é superficial e ataca somente um lado do problema ambiental, tais como uso de energia ou reciclabilidade (COOPER, 2002). O consumo verde, portanto, ataca somente uma parte da equação, a tecnologia, e não os processos de produção e distribuição, nem a cultura do consumo propriamente dita. Irvine (1991) ressalta a necessidade de se mudar também, o aparato tecnológico, os valores culturais, as instituições políticas e o sistema econômico, pois a questão ambiental impõe uma mudança paradigmática da chamada “Sociedade de Consumo”. A estratégia de consumo verde é analisada por Portilho (2005) como uma espécie de transferência da atividade regulatória em duas vertentes: (1) do Estado para o mercado, através de mecanismos de auto-regulação; e (2) do Estado e do mercado para o cidadão, através de suas escolhas de consumo. Assim, ambos – governos e empresas – encorajariam as 6 responsabilidades individuais, implícita ou explicitamente, através de referências ao poder do consumidor, ao “bom cidadão” ou à valorização da contribuição pessoal de cada um, transferindo a responsabilidade pela proteção ambiental para um único lado da equação: o indivíduo. É importante ressaltar que a discussão sobre o consumo “verde” tem girado em torno da escolha de marcas e pouco se avançou no debate entre consumir e não consumir. Sem dúvida, isto parece um alívio para aqueles que sensibilizados pelos problemas ambientais, não se dispõem a desfazer o vínculo longamente construído entre consumo e auto-indulgência. Elkington, et al (1988) asseguram aos hesitantes, em seu guia para o consumidor verde: “não é preciso reduzir drasticamente as compras a um mínimo, uma vez que ninguém deseja regredir a um modo de vida menos confortável, bastando compreender como as decisões de compra podem afetar o ambiente e decidir por produtos mais verdes”. A restrição ao consumo deixa de ser abordada pelos autores, possivelmente por erigir uma barreira considerada muito grande à atuação do indivíduo comum, sendo abandonada como demasiado penosa numa sociedade em que o consumo passou a mediar todas as relações sociais e a própria noção de identidade (SAFATLE, 2005). Dentro dos padrões da cultura de consumo atual, o consumo é apresentado como um “sonho de vida boa” e felicidade e não pelas conseqüências negativas ao meio ambiente (KILBOURNE et al. 1997) A mensagem do consumo “verde” é mais cômoda: “consuma cuidadosamente”, em vez de “não consuma” ou “consuma menos” (HARRISON et al, 2005). Por mais genuína que seja a preocupação com o meio ambiente, o consumo “verde” acaba sendo uma estratégia fechada em uma tendência ou modismo. A estrutura da sociedade onde ocorre o consumo “verde” permanece fundamentalmente a mesma (COOPER, 2002). O quadro 1 diferencia as abordagens do consumo “verde” e do consumo sustentável. CONSUMO “VERDE” CONSUMO SUSTENTÁVEL • Consumir produtos diferentes • Consumir menos • Essencialmente positivo em relação ao consumo • Consumo além das necessidades básicas é negativo • Mudança no padrão tecnológico • Mudança no estilo de vida e no padrão de consumo • Foco no lado da oferta: produção • Foco na demanda: ´usuário final’ • Consumidores respondem às informações adequadas • Consumidores aquisição • Mudança gradual • Mudança radical: urgente e essencial • Crescimento “verde” no lugar de crescimento econômico • Alta qualidade de vida sem degradação ambiental querem alternativas de Quadro 1 – Abordagens do consumo” verde” e do consumo sustentável Fonte: a partir de Cooper (2002) Paavola (2001), por exemplo, alerta para o fato de que a estratégia de consumo “verde” enfatiza produtos “elitizados”, destinados a uma parcela da sociedade, enquanto os pobres ficariam relegados ao consumo de produtos inferiores e/ou em um nível abaixo do atendimento das necessidades básicas. Por outro lado, a incorporação do custo ambiental ao 7 preço das mercadorias faz com que esse custo recaia mais no consumidor do que no produtor, indicando que as empresas estariam repassando os custos ambientais para os consumidores (MURPHY, 2001; LAYRARGUES, 1998; SEROA DA MOTTA, 2002). A perspectiva do consumo “verde” deixa à margem aspectos como a redução do consumo, o descarte e a obsolescência planejada, enfatizando a reciclagem, o uso de tecnologias limpas, a redução do desperdício e o incremento de um mercado “verde”. Se é possível dizer “eu sou um consumidor verde”, já não faz sentido afirmar “eu sou um consumidor sustentável” (PORTILHO, 2005), pois, a idéia de “consumo sustentável” não se resume a mudanças no comportamento individual. Também não se limita a mudanças no design de produtos ou na forma de prestação de um serviço para atender a esse novo nicho de mercado. Cooper (2002) responde com a idéia de que será necessária uma mudança radical no padrão de consumo contemporâneo, envolvendo uma redução no consumo dos produtos e não apenas mudando características do produto. É requerida uma redução no consumo que vá além da mera substituição de produtos poluentes por verdes com o mesmo ou maior nível de consumo. Assim mudanças tecnológicas têm que ser acompanhadas de transformações culturais e estruturais (HEISKANEN et al, 2005; WEAVER, JANSEN, 2000). A estratégia de produção e consumo limpos ou verdes precisa perder espaço para uma estratégia de produção e consumo sustentáveis. A discussão relativa ao meio ambiente deve deixar de ser apenas uma questão de como são utilizados os recursos (os padrões), para também estar vinculada à preocupação de quanto se utiliza (os níveis); portanto, um problema de acesso, distribuição e justiça (SACHS, 2004; VEIGA, 2005). 5. Considerações Finais Algumas considerações serão traçadas a partir das questões-chave que constituíram os eixos para elaboração do ensaio. (1) “Porque nós consumimos da maneira como consumimos?”: O cenário atual não é mais o cenário de abundância do passado, no qual foi forjada a cultura do consumo, e no qual este foi adquirindo significado positivo em virtude de um projeto social e político que precisava dar vazão a uma super-oferta de bens. Desde os primórdios da cultura de consumo, as mercadorias foram sendo usadas como meio de expressão pessoal e para criar vínculos sociais. Era preciso transformar cidadãos em dóceis consumidores (GORZ, 2005): canalizando os interesses da população segundo seus desejos individuais de consumir. O consumidor, individual por definição, foi concebido desde a origem como contrário do cidadão; como o antídoto da expressão coletiva de necessidades coletivas, contrário ao desejo de mudança social, à preocupação com o bem comum (GORZ, 2005). Daí talvez surja a dificuldade de se abdicar da satisfação imediata e individual em prol de um bem comum de longo prazo, como seria requisito para a expansão de um consumo sustentável, voltado para o coletivo e marcado por preocupações morais. (2) “Será suficiente para nós consumirmos menos produtos prejudiciais ao meio ambiente ou se será necessário consumir muito menos produtos?”. Como a questão premente da redução do consumo, necessária para a sustentabilidade, se coloca dentro da cultura de consumo? Como romper o círculo? Não consumindo?! Consumo sustentável só será possível quando os sistemas tecnológicos que nos envolvem forem sustentáveis em suas raízes (BREZET, 1997). Assim, a presença massiva de produtos verdes não é garantia de uma sociedade sustentável se os padrões de consumo e estilo de vida não mudarem. 8 Assim, mudanças profundas nas atitudes e valores sociais são essenciais para uma transição bem sucedida. Reconhecidos os limites e armadilhas da estratégia de consumo “verde”, a proposta de consumo sustentável enfatiza cada vez mais ações coletivas, mudanças políticas e institucionais, mais do que tecnológicas, econômicas e comportamentais (PORTILHO, 2005). (3) Será possível um novo projeto de sociedade que seja socialmente construído e “puxado” pelo mercado? Só através da reconquista do espaço público, do interesse pelo público, o consumo poderá ser um lugar de valor cognitivo, útil para pensar e para agir significativa e renovadamente na vida social (CANCLINI, 2006, p.72). O consumidor só se tornara ator quando ele for agente de mudança. Fica então a indagação se o movimento de consumo sustentável estaria apenas representando um fenômeno de nicho de mercado ou se realmente inaugura uma fase de transição do modelo de produção e consumo. Sabe-se que, mudança nos padrões de produção e consumo implica aumento do nível de informação da população, conscientização das pessoas, eliminação de desperdício, desenvolvimento de tecnologias, responsabilidades compartilhadas, reciclagem, mas acima de tudo mudança do padrão comportamental da sociedade. Mas a maneira como deve ser feita a transição para uma economia de consumidores de baixo consumo é ainda desconhecida. Parte do desafio na busca de sociedades economicamente sustentáveis é encontrar caminhos para equilibrar a satisfação às necessidades individuais de consumo com aqueles que podem ser necessários para o bemestar coletivo. O desafio fundamental é satisfazer a exigência por uma melhor qualidade de vida e o subseqüente consumo de produtos e serviços de maneira que não seja cumulativamente destrutivo para os recursos e ameaçador para a vida numa escala planetária. Sendo assim, a exploração irracional dos recursos naturais deve ser repensada de forma que não seja tão fortemente vinculada ao consumo, visto que a base para uma mudança efetiva estaria relacionada ao padrão de consumo vigente. Mesmo que o consumo sustentável não possa se concretizar agora, pois são necessárias grandes transformações estruturais em nossa sociedade num processo de longo prazo, antes de proclamar que os movimentos de consumos alternativos são imperfeitos, é preciso reconhecer que eles podem estar indicando o início de um processo que acabe levando ao consumo sustentável. Para finalizar trazemos um argumento de Bauman (2001, p.83) de que a “transformação se faz no andar”. E isto só a história poderá contar... 5. Referências Bibliográficas AFONSO, Cintia M. Sustentabilidade: caminho ou utopia? São Paulo: Annablume, 2006. BARBIERI, J. C. Gestão Ambiental Empresarial: conceitos, modelos e instrumentos. São Paulo: Saraiva, 2004. BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. 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