Produção de conhecimento e transformação:
o papel da extensão universitária
Ressignificando a formação e a hospitalização infantil por intermédio da Extensão
Universitária: o Projeto Sorriso para a vida
Lilian Beatriz Schwinn Rodrigues1
Marizete Lemes da Silva Matiello2
Resumo
O presente texto inscreve-se no campo do diálogo sobre a extensão universitária e a
possibilidade da promoção de transformações no processo da hospitalização infantil. Tem
como fio condutor a experiência advinda do Projeto de Extensão “Sorriso para a vida”, que
desde 2001 ocorre no Hospital Regional do Oeste e Hospital Materno Infantil, Chapecó, SC,
cujo objetivo é ressignificar o tempo, os espaços e os sujeitos do processo da hospitalização e
do tratamento oncológico de crianças e de adolescentes, numa perspectiva interdisciplinar e
multiprofissional, por intermédio de ações educativas e lúdicas. Orientadas pela metodologia
dialética e pela pesquisa-ação, as ações ocorrem diariamente ao longo do ano e são
desenvolvidas pelos cursos de Educação Física, Medicina, Letras, Odontologia e Enfermagem
da UNOCHAPECÓ. A experiência evidencie impactos relevantes à qualidade de vida dos
interlocutores e à formação acadêmica, firmando-se como um importante dispositivo na
consolidação das intencionalidades de uma universidade comunitária comprometida com o
desenvolvimento de seu entorno e a produção de novos sentidos à hospitalização. Embora
haja um esforço coletivo para fazer e ser extensão em diálogo com o ensino, a pesquisa e a
realidade, as práticas interdisciplinares ainda são frágeis.
Palavras-Chave: Extensão Universitária. Hospitalização Infantil. Ressignificação.
1
Professora dos cursos de Educação Física e Pedagogia da UNOCHAPECÓ –Rua Pará, 685, Ap 301, Bairro
Maria Goretti, CEP 89801400, Chapecó, [email protected]
2
Professora do curso de Educação da UNOCHAPECÓ – [email protected]
1 INTRODUÇÃO
A dinâmica curricular no ensino superior possui relação direta com a dinâmica social,
econômica e política vigente em cada época. No bojo desse processo, novas demandas
apresentam-se, constantemente às instituições formadoras. Como lócus da formação
profissional, da socialização, geração e disseminação de conhecimentos e saberes, a
Universidade configura-se como tempo e espaço de posicionamentos políticos, éticos e
pedagógicos. A natureza política de um projeto pedagógico está relacionada às articulações a
serem objetivadas, estando implicadas com um “para que”, “para quem” e um “como”. Face à
natureza e diversidade do trabalho acadêmico, também existe uma diversidade conceitual que
interfere expressivamente na dinâmica do pensar, ser e fazer Universidade. Ou seja, ao
assumir estas ou aquelas intencionalidades, os sujeitos da prática, definem a forma e os
caminhos a serem trilhados, com impactos mais ou menos transformadores e emancipatórios.
É na complexidade desse processo que a Extensão Universitária (EU) vem
conquistando outro status nos últimos anos, o de possibilitar a produção e o acesso aos
saberes científicos, tecnológicos filosóficos e artísticos, a partir da articulação entre teoria e
prática, público e privado, universidade e sociedade. Impregnada por intenções e ações
transformadoras, numa interação dialógica com a Sociedade, a EU vem assumindo papel
relevante no desenvolvimento e formação de pessoas e profissionais. Por isso, compreender as
potencialidades que emergem da experiência é fundamental para, também, compreender as
potencialidades emancipadoras por ela permitidas e coaduná-las às questões sociais da
contemporaneidade.
Assim, o presente texto inscreve-se no campo do diálogo sobre a Extensão
Universitária como dispositivo de processos de mudanças e transformações no âmbito da
formação acadêmica e nos cenários da prática. Para tal, coloca-se em cena o Projeto de
Extensão “Sorriso para a vida”, que desde 2001 vem sendo desenvolvido em hospitais de
Chapecó, SC com crianças e adolescentes em situação de hospitalização e tratamento
oncológico.
2 A EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA E O PROJETO SORRISO PARA A VIDA
2.1 A Extensão Universitária na UNCHAPECÓ
Em diferentes tempos, de diferentes formas e com diferentes intencionalidades e
complexidade, a Universidade sempre esteve implicada com as múltiplas demandas das
sociedades, criando mecanismos de relacionar-se com as mesmas. Instituída como produtora
de cultura, da formação acadêmica, agrega ao processo a função de pesquisar e produzir
conhecimentos e tecnologias. É o lugar convencionado à socialização dos conhecimentos já
produzidos ao longo da história humana, assim como, à produção de novos conhecimentos e
saberes e os métodos de produção dos mesmos.
Marcada pela tríade ensino, pesquisa e extensão de acordo com a atual política
nacional (BRASIL, 1988; BRASIL, 1996), a Universidade tem papel preponderante no
desenvolvimento e transformação das pessoas e das sociedades, posto caracterizar-se por uma
função mediadora entre a ciência e o mundo social. Multifacetada, complexa e sem parar no
tempo, vem ampliando seu raio de ação e em meio a crises, avanços e ampliação de seus
sentidos é solicitada a compartilhar, cada vez mais, o seu ser e fazer com a Sociedade. É no
bojo desse processo, que a EU acena como importante dispositivo para a consolidação dos
fins de uma Universidade comprometida com as reais demandas da Sociedade.
As políticas e práticas extensionistas, além de estarem coadunadas com cenários mais
amplos, estão vinculadas a um determinado projeto de Universidade e, no caso da experiência
ora em cena, de uma Universidade Comunitária. A UNOCHAPECÓ caracteriza-se como uma
instituição comunitária, cuja natureza é pública, porém não-estatal, enraizada, mediante
ausência do Estado, “numa tradição de escola mantida pelas comunidades rurais no sul do
país, brotando de uma prática social sedimentada no decorrer de mais de um século” e, de
cujo processo emerge “uma forte demanda de educação superior”, ilustra Marques, citado por
Frantz (2002, p. 22).
Isto significa que sua identidade institucional vem sendo construída a partir de sua
identificação com as demandas da população e o desenvolvimento regional. Criada há 40
anos, a UNOCHAPECÓ vem participando efetivamente com o desenvolvimento do oeste e a
concretização de seus pressupostos, princípios e diretrizes, passam pela “democratização do
acesso ao saber para além dos muros da comunidade acadêmica”, com o qual estão
mutuamente implicados “professores, estudantes universitários e a comunidade que a faz”
(UNOCHAPECÓ, 2010).
Embora as práticas extensionistas sejam uma marca registrada das universidades
comunitárias é importante atentar que o compromisso social com o desenvolvimento regional,
não pode ocorrer somente por intermédio das mesmas, mas em interlocução com o ensino e a
pesquisa e com as demandas do contexto. Botomé (2002) alerta que este processo deve
ocorrer no âmbito do plano das funções da universidade e não plano das atividades. De acordo
com a Carta de Florianópolis (FOREXa), as funções, como processo acadêmico, tomam corpo
na medida em que o processo de produção do conhecimento filosófico, científico e
tecnológico está organicamente vinculado às mesmas e integrado às necessidades da
comunidade. Nesta perspectiva, a extensão passa a ser parte constitutiva da própria identidade
da instituição universitária. Por isso, não é o fato de implementar ações de extensão que torna
a universidade extensionista, ao contrário, diz Degasperi apud Oliveira et al (2006)3, “as
atividades de extensão ocorrem porque ser extensionista é da natureza da instituição
universitária”.
Como política, a Extensão é assumida e concebida na UNOCHAPECÓ (2010) como
um “projeto acadêmico de formação pessoal e profissional, circunscrito nos compromissos
ético-políticos” de seus cursos, configurando-se numa “estratégia, num princípio de
aprendizagem, cuja metodologia forja a aproximação entre teoria e prática e a partir de
diferentes campos e espaços de atuação, via ação cidadã,” com o objetivo de “transformar o
saber acadêmico em bem público”. Emerge daí, que as práticas extencionistas deverão ter
como princípios do processo a produção, divulgação e socialização do conhecimento, o
compromisso com o desenvolvimento regional sustentável, a indissociabilidade com o ensino
e pesquisa, a autonomia teórico-científica, a permanência e regularidade das ações, o
exercício da unidade e pluralidade, a inserção comunitária, a formação continuada e
permanente, a sustentabilidade, ser estratégia de formação pessoal e profissional, a postura
ética e estratégias avaliativas (UNOCHAPECÓ, 2010).
3
OLIVEIRA, Alcivam Paulo. A extensão nas universidades e instituições de ensino superior comunitário:
referenciais teórico e metodológico. Recife: FASA, 2006
2.2 Contextualização e intencionalidades do Projeto Sorriso para a vida”
É no âmbito da dinâmica acima descrita que em 2001 surge o Projeto Permanente de
Extensão “Sorriso para a vida”. Implicado com a atenção e cuidado à criança e adolescente
hospitalizado, em tratamento oncológico ou ambulatorial iniciou suas atividades no Hospital
Regional do Oeste (HRO), Chapecó, SC. Objetiva a (re)significação do tempo, dos espaços e
dos sujeito do processo saúde-doença, numa perspectiva interdisciplinar e multiprofissional a
partir da implementação de ações educativas e lúdicas de cuidado, promoção da saúde e de
humanização do tempo e espaço da hospitalização.
A proposta nasce em atividade de aprendizagem no curso de Educação Física da
UNOCHAPECÓ, cuja efetivação exigia a interlocução com cenários de prática, na tentativa
de romper com a produção de saberes e de uma formação desvinculados do mundo concreto.
Na problematização inicial do componente curricular Recreação e Lazer II, 2001/2, várias
temáticas surgiram, entre elas, as possibilidades de atuação do profissional/professor de
Educação Física no âmbito da hospitalização infantil. Quatro acadêmicas, sob orientação
docente,4 assumiram a temática, mais especificamente, com crianças em tratamento
oncológico, processo que exigiu a realização de um (re)conhecimento inicial da realidade e o
planejamento, implementação e avaliação de uma intervenção.
A intervenção realizada no HRO criou uma demanda efetiva, proveniente da ruptura
com a condição dada, que permitiu o surgimento de outras formas de ser e estar no
tratamento, bem como, dos vínculos afetivos criados. Instituição (HRO) e pessoas (crianças e
seus cuidadores) solicitaram a continuação das atividades. O que deveria ser uma experiência
pontual para agregar sentidos à formação acadêmica, transformou-se em início de um novo
processo que, em interlocução com o contexto e seus atores e “abraçado” pela Vice-Reitoria
de Ensino e Pesquisa, criou volume, regularidade e compromissos éticos, políticos e estéticos
e que vem exigindo ao longo de quase 12 anos ininterruptos, um olhar e escuta atentos às
necessidades, interesses e desejos dos participantes.
A presença uma vez por semana e o brincar como centro das atividades, tornaram-se
insuficientes, e as ações foram ampliadas. Assim, as demandas oriundas da experiência
trouxeram em 2003, para o interior do projeto, os contadores de histórias do Curso de Letras
4
Acadêmicas: Marizete Lemes da Silva Matiello, Tatiane Pauline Bonetti, Sandra Tussi dos Santos e Fabiana
Provenci
Docente: Lilian Beatriz Schwinn Rodrigues
em 2003, por intermédio do Projeto “Uma injeção de alegria”. Com o processo de
reconfiguração da política de Extensão da UNOCHAPECÓ em 2010, fortalecer a articulação
de ações multiprofissionais e de natureza interdisciplinar foi um dos elementos levantados
por vários grupos, entre eles, pelos executores do Projeto Sorriso para a vida. Com isso, os
cursos de Enfermagem, Fisioterapia, Nutrição, Medicina e Odontologia inserem-se ao
mesmo, constituindo uma rede ampliada de atenção e cuidado, agora não só mais às crianças,
como aos adolescentes. Além do HRO, atualmente, as atividades também ocorrem no
Hospital Materno Infantil (HMI).
As intencionalidades expressas no Projeto e materializadas na “realidade se fazendo”,
são fundamentais à seleção, sistematização, implementação e avaliação das ações, bem com, à
forma de atuar. Partem do pressuposto que o processo saúde-doença é um fenômeno mediado
e multideterminado por diferentes fatores como os sociais, históricos, culturais, ambientais,
biológicos e afetivos; e que o adoecer e a hospitalização caracterizam-se como um estado, um
estar e ser no mundo. Como processo, a doença e o “ser doente” configuram-se como “uma
maneira de expressar-se no mundo” (VENÂNCIO; OLIVIER, 1999, p. 99), que mesmo
passageiro ou prolongado, apresenta profundas implicações com a qualidade do viver humano
e com a constituição da subjetividade.
A hospitalização altera significativamente a cotidianidade do ser humano e, muito
mais que o adulto, é a criança que apresenta descompassos significativos na situação de
enferma e hospitalizada. Com o afastamento momentânea do cotidiano familiar e social, o
estado da arte de ser criança é minimizado e seus efeitos podem variar de criança para criança,
assim como também com os adolescentes, de acordo com seu repertório individual de
possibilidades para o enfrentamento de situações adversas. Por isso da aposta do Projeto em
ressignificar essa realidade.
2.3 A dinâmica metodológica proposta
Considerando o exposto, o Projeto Sorriso pela vida (2010) coloca a criança e o
adolescente em situação de hospitalização, tratamento oncológico e ou ambulatorial no centro
da cena. A participação está condicionada ao seu estado clínico e emocional e ao
consentimento de seus cuidadores/acompanhantes, mediante assinatura de termo de
consentimento livre e esclarecido.
A implementação das ações ocorre por intermédio de estudantes bolsistas, que
participam de processo seletivo, com orientação de docentes da UNOCHAPECÓ, em parceria
com equipe médica, assistentes sociais e de enfermagem das instituições parceiras e contam
com financiamento institucional desde seu surgimento. Além dessa prática que permite
regularidade às ações, ainda há a participação de estudantes voluntários, o desenvolvimento
de atividades de aprendizagem de diferentes componentes curriculares dos cursos, estágios e
desenvolvimento de pesquisas. O Projeto também mantém interlocução com o Pró-Saúde
(Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde), possibilitando a
inserção de forma mais efetiva dos estudantes em seu futuro campo de atuação.
De caráter permanente, as ações ocorrem regularmente de segunda à sexta-feira ao
longo do ano e estão assim constituídas: Curso de Educação Física - Brincando no Hospital,
Brinquedoteca Hospitalar, Educação Física na Classe Hospitalar; Curso de Letras - Uma
Injeção de alegria: contação de histórias no hospital; Curso de Medicina - Plantão da Alegria e
Prevenção de doenças transmissíveis em hospitalizados; Curso de Odontologia - Saúde Bucal;
Curso de Enfermagem – Cuidado à criança e adolescente em tratamento quimioterápico.
Recebe também a incursão de ações de outros projetos de extensão da UNOCHAPECÓ:
Curso de Enfermagem - Educando para a saúde; Curso de Nutrição – Alimentação saudável e
Curso de Fisioterapia - Atenção fisioterapêutica às crianças e adolescentes em situação de
hospitalização, tratamento oncológico e ambulatorial.
A proposta metodológica prevê eixos transversais, que devem perpassar todas as
ações, como a ludicidade, a escuta pedagógica e o cuidado. Essa dinâmica requer ações
articuladas e orientadas por interesses e necessidades comuns, considerando, ao mesmo tempo
a totalidade do processo sem, no entanto, perder de vista as suas particularidades. Sendo a EU
compreendida como um princípio de aprendizagem e parte constitutiva de um determinado
processo de formação, a proposta metodológica prevê ações de natureza interdisciplinar, pois,
nela postar, diz Santomé, “significa defender um novo tipo de pessoa, mais aberta, mais
flexível, solidária, democrática”, (1998, p. 45). Aposta que se alinha às intencionalidades não
só do Projeto, como também da política nacional e institucional para a extensão e para a
formação em Saúde.
É preciso então, apostar em formas de trilhar o caminho delineado, pois é na ação que
a palavra toma vida e, para as intencionalidades do presente projeto, significa comprometer-se
com a possibilidade da transformação, da autonomia, da emancipação. Essa dinâmica requer
que a realidade seja o ponto de partida para nela retornar, o que pressupõe que os
extensionistas dirijam de forma mediada a mobilização para a instituição de uma outra forma
de compreender o processo saúde-doença na hospitalização para o qual a metodologia
dialética proposta por Saviani (1977) é a referência.
Se ressignificar é o foco do projeto, produzir sentidos para além das formalidades e da
racionalidade técnica é imprescindível. No assumir de tais especificidades e considerando que
as intencionalidades políticas e pedagógicas do Projeto ocorrem em situação de realidade “se
dando”, os princípios da pesquisa-ação são propostos. Se para Thiollent (1986) a pesquisaação ocorre em estreita relação com a ação, visando a resolução de problemas de forma
cooperativa e participativa, sua aplicabilidade é considerada pertinente para o processo de
agir, refletir e reelaborar as ações e a própria realidade por intermédio da Extensão. o âmbito
desse aporte surge um elemento crucial e que necessita ser considerado por todos, que é a
questão ética. Parafraseando Monteiro (1998, p.19) ao se posicionar sobre a questão ética na
pesquisa qualitativa, é a obrigação que os extensistas devem ter com as pessoas que tocam
suas vidas no curso de viver a vida de extensionista.
Para coleta, registro e análises necessárias, os principais instrumentos são a
observação e o diário de campo. Os instrumentos como entrevistas, fotografias, grupos focais
ou outros, também fazem parte da proposta, conforme as demandas.
2.3 Da intencionalidade à ação: entre os compromissos da extensão e o sorriso
É na possibilidade de ampliar o espaço e a relevância da Extensão, legitimada por uma
determinada forma de fazê-lo, que ocorre a análise a seguir, que visa colocar em cena a
experiência vivenciada durante onze anos por intermédio do Projeto Sorriso para a vida com o
mundo concreto da hospitalização. São provenientes do esforço de promover a intervenção na
vida do outro a partir da compreensão de que a EU abarca diversos saberes em íntima relação
com a produção do conhecimento e a realidade social.
Participar de uma experiência é a possibilidade de acesso a “um saber melhor não
somente sobre si” diz Gadamer (2007, p. 456), “mas também sobre aquilo que antes se
acreditava saber, isto é, sobre o universal”. Nesse sentido, vale destacar a primeira lição
advinda da experiência e considerando o processo constitutivo do Projeto, que teve como
ponto de partida os sentidos e significados construídos pelo fazer: não basta “invadir” espaços
e propor práticas pontuais. Assim, o Projeto nasce da necessidade de referendar um
compromisso social da Universidade para com o contexto, principalmente, em se
considerando seu caráter comunitário. Exigida e acolhida sua criação, sua permanência até
hoje é resultado do esforço de muitas pessoas e, sobretudo, pelo movimento de criar uma
identidade, uma determinada forma de fazer Extensão.
Para o delineamento de tal intenção, a segunda lição toma forma. Os rumos e
resultados desse processo estão atrelados à conjuntura da qual emergem, da extensão que os
mesmos adquirem no processo de sua implementação e, acima de tudo, dependem do lugar e
das condições de quem tem que realizar a ação. Se no processo de formação deve-se
considerar o protagonismo dos sujeitos partícipes do mesmo, faz-se necessário que o Projeto
proposto também deva assegurar tal intencionalidade política. Por isso toma-se a metodologia
dialética e a pesquisa-ação como condutoras do processo.
Considerando-se que tanto protagonismo como a relação entre Universidade em sua
interlocução com a Sociedade não são práticas neutras, não é possível fazer Extensão sem
implicar-se, pois, interesses de ordem política, econômica e social atravessam e movem a
ação, fundamentado a prática e os discursos que a constituem. Daí ter sido importante o
delineamento de algumas categorias. Primeiramente, parte-se do pressuposto que formação,
Extensão, saúde, doença, hospitalização e infância emergem de um processo histórico, de
homens e mulheres produzindo sua realidade.
A discussão acerca da formação profissional e, mais especifica na área da saúde,
origem dos cursos que ora compõe o Projeto, vem ganhando densidade no contexto da
educação universitária brasileira neste início do século XXI. Marcada por práticas e políticas
assentadas na dualidade saúde/doença, sujeito/realidade, indivíduo/coletivo, a formação
esteve fortemente vinculada à especialidade de cada área, à ênfase na fragmentação do
cuidado, no serviço baseado na assistência individual e curativa, à doença e à atenção
hospitalar. Nesta lógica, cabe a cada um, rede de serviços, equipes de saúde e pacientes responsabilizar-se individualmente pela tomada de decisões, assim como, na formação, um
professor, porque experiente, ensina e um discente, que quase nada sabe, aprende.
Com o intuito de reverter tal realidade o Ministério da Educação (ME) e Ministério da
Saúde (MS) vem propondo diferentes políticas indutoras de mudança no âmbito da formação
dos profissionais da Saúde. Com o advento da Constituição de 1988, da Lei Orgânica da
Saúde (LOS) – Leis nº. 8080/1990a e nº. 8142/1990b, da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional – LDB (BRASIL, 1996), novos saberes, fazeres e compromissos são
indicados. No rumo dessas proposições, inicia-se em 1997 a discussão acerca das Novas
Diretrizes dos Cursos de Graduação em Saúde, promulgadas a partir de 2001. Em termos de
processo formativo, isso gera um grande desafio, que é formar profissionais em saúde com
capacidade de atuar em equipe. Movimento que vem sendo considerado desde a implantação
dos primeiros cursos na área da Saúde na UNOCHAPECÓ, ainda ao final da década de 1990.
E assim, surge a terceira lição, pois, este movimento não pode ser desconsiderado pela
prática extensionista, sendo esta parte constitutiva do processo de formação e no presente
trabalho, vinculada ao processo de produção da Saúde Humana. Considerando a
especificidade do Projeto, vale destacar a necessidade de ressignificar, de produzir novos
sentidos na e pela prática acerca do adoecer e da hospitalização que, historicamente, vem
sendo tomados como um recorte do viver cotidiano, com pouca influência no processo de
construção da subjetividade. O corpo doente passa a ser tratado de forma fragmentada e a
doença como um desajuste mecânico, tornando a pessoa um ser divisível em nome da cura. A
subjetividade corpórea, antes é singular e original, descaracteriza-se, assumindo a identidade
dos recortes anátomofisiológicos e dos exames patológicos e, mais do que isso dizem
Venâncio e Olivier (1999, p, 106),.o “rosto do sofrimento pessoal perde a definição de seus
contornos e se torna o rosto genérico do paciente”
Compreender o sujeito a partir de sua relação com a saúde e a doença como resultado
de um processo histórico, significa pensá-lo e colocá-lo nas atividades de extensão a partir da
sua inteireza, da necessidade do encontro dialógico com o outro, a quarta lição. Para tal, o
grande exercício de docentes e discentes, por intermédio do Projeto, tem sido o de confrontar
a descontinuidade acerca da noção de sujeito, infância e corpo no ambiente hospitalar. São
principalmente as crianças, que pelas atividades apesentadas, demonstram uma maior
conscientização acerca de sua dimensão corpórea, que não são meros corpos de passagem
mas, apesar da enfermidade, sendo corpos.
Neste sentido, o brincar tem se colocado como disposto importante ao enfrentamento
da situação, pois possibilita que as crianças possam agir numa esfera cognitiva deslocada de
sua realidade mais imediata, assumindo papéis e dominando objetos para muito além de suas
capacidades e limites de compreensão. Processo possível porque para Vygotsky (1984, p.31),
“as funções da linguagem (comunicação e interação, formação da consciência, a organização
do pensamento, regulação da conduta) passam a ser estimuladas através de situações lúdicas”,
o que possibilita a retomada do sujeito desejante e curioso, que a enfermidade não lhe roubou
a capacidade da inquietação, da curiosidade, da criatividade. E, ao entregar-se por inteiro no
ato de brincar, o ser brincante enfrenta a doença e, momentaneamente, esquece suas dores,
incômodos e medos e rompe o silêncio instituído, com o sorriso.
Compreende-se o termo dispositivo como “um plano estratégico e tático, portador de
significados, analisador de situações, provocador de novas aprendizagens e novas formas de
relacionamento e organização de transformações”5 (SOUTO, 2007, apud, OLIVEIRA et al,
2010, p.136). Portadores de luz própria possuem relação com o visível e o invisível,
permitindo ao objeto nascer ou desaparecer, pois, não existe sem ela diz Deleuze (1990). Para
o autor (1990, p. 159), um dispositivo “marca ao mesmo tempo sua capacidade de
transformar-se ou de fissurar-se em proveito de um dispositivo futuro”, porque revestido de
novidade e criatividade e, neste sentido, “pertencemos a certos dispositivos e operamos
neles”. Ao operarmos com o desejo e as necessidade para além dos protocolos médicos, como
o brincar, por exemplo, é possível identificar elementos da ressignificação de pessoas que
ficam mais abertas e receptivas ao processo de recuperação de sua saúde, bem como, dos
espaços e dos tempos que assumem outra dimensão pela presença de cores, movimentos,
risos, afetos.
A Extensão pode, então, assumir o desafio de ser um dispositivo de mudanças ao
transformar os saberes da ciência em saberes práticos, que no caso do Projeto, vem
permitindo a instituição de uma outra lógica de organizar o tempo e o espaço da infância,
porque os sujeitos se transformam. As expressões registradas durante as observações e diários
de campo - “oba, você veio”, “é a primeira vez que meu filho sorri hoje”, “que bom que o
tempo passou rápido”, “ontem vocês não vieram e ela ficou muito agitada”, “minha filha não
lembra da medicação, ela vem fazer quimioterapia mas só fala que vocês estão aqui para
brincar”, “minha filha vem fazer quimioterapia feliz, porque pode brincar no hospital, nem
lembra das picadas” (Informações verbais)6, são ilustrativas desse processo.
Isso possibilita às crianças e seus cuidadores, dar sentido à própria existência por
intermédio da Extensão, que por sua vez dá sentido ao conhecimento produzido na
Universidade por intermédio da socialização do mesmo, pois, como alerta Santos (2004, p.40)
a sociedade aplica ou não o conhecimento, “uma alternativa que, por mais relevante
socialmente, é indiferente ou irrelevante para o conhecimento produzido” (SANTOS, 2004,
p.40).
5
Un espacio estratégico y táctico que es revelador de significados, analizador de situaciones, provocador de
aprendizajes y nuevas formas de relación y organizador de transformaciones.
Referência:
OLIVEIRA, Valeska Fortes de et al. Dispositivo de formação: vivências no espaço grupal. In: Revista
@mbienteeducação, São Paulo, v. 3, n.1, p. 134-147, jan./jun. 2010. Disponível em:
<http://www.cidadesp.edu.br/old/revista_educacao/pdf/volume_3_1/valeska.pdf>. Acessado em 15 de set. 2011.
6
Registros de observações e dos diários de campo.
Com isso, a quinta lição se apresenta: é possível construir uma rede de atenção e
cuidados que possibilite a construção de conhecimentos que possam qualificar o tempo e o
espaço da hospitalização, na hospitalização e para além dela. Se as políticas públicas apontam
para uma formação em Saúde coadunada com as necessidades da população e voltada ao
trabalho em equipe, por que não fazer das ações extensionistas uma possibilidade de seu
exercício? Por que não transformar o tempo das “gotinhas caindo” em tempo de
aprendizagem para além do espaço hospitalar? Assim surgem, para além do brincar e da
brinquedoteca, ações comprometidas com a instrumentalização voltadas á prevenção,
promoção e recuperação da saúde: prevenção de doenças transmissíveis, saúde bucal,
contação de histórias, alimentação saudável, cuidados em enfermagem e a atenção
fisioterapêutica. As atividades de cunho educativo ocorrem na brinquedoteca e nos quartos,
sempre com a participação dos acompanhantes, seguindo a proposta metodológica proposta.
Esse fato atribuiu uma nova qualidade ao Projeto, cujo comprometimento com o contexto,
permite o movimento de aproximação com o futuro campo de atuação profissional. Ponto que
é destacado por todos os estudantes que já atuaram no Projeto.
Entende-se que a Extensão Universitária, embora pareça induzir a formas menos
formais, não pode ficar ao sabor das práticas dos sujeitos que a implementam. Se as ações
extensionistas conferem relevância e pertinência à produção do conhecimento na sua relação
com o ensino e a pesquisa, fortalecendo o papel social da própria Universidade na sua relação
coma a Sociedade, é necessário instituir um processo de planejamento e mecanismos
avaliativos, para que as intencionalidades políticas e pedagógicas se transformem em ações
que atendam ao processo de formação almejado e às necessidades da população. É esse
processo que diferencia a instituição universitária das demais organizações constitutivas da
realidade humana. Nesse sentido esse texto é resultado da reflexão sobre a própria ação, sendo
decorrente da pretensão de olhar-se a partir de dentro sem perder de vista o que de fora foi
proposto e vice-versa.
3 Considerações provisórias
Impregnada por intenções e ações transformadoras, que necessitam da interação
dialógica com a Sociedade, a Extensão Universitária pode assumir papel relevante no
desenvolvimento e formação de pessoas e profissionais dotados de postura crítica e reflexiva,
capazes de atuar em cenários orgânicos, complexos e polissêmicos e no desenvolvimento das
sociedades. Por isso, compreender as potencialidades que emergem da experiência é
fundamental para, também, compreender as potencialidades emancipadoras por ela permitidas
e coaduná-las às questões sociais da contemporaneidade.
O cuidado pediátrico vem sendo orientado para o sujeito paciente e não mais apenas
para a doença, o que implica o reconhecimento de outras necessidades específicas da
condição de “ser criança”. Logo, envolver-se com os processos de produção da saúde é
comprometer-se com a produção do cuidado em saúde, que implica estar atento às demandas
do
contexto.
Nesse
sentido,
as
atividades
multiprofissionais,
numa
perspectiva
interdisciplinar, desenvolvidas pelos cursos de Educação Física, Medicina, Enfermagem,
Fisioterapia, Odontologia, Letras e Nutrição tem contribuído de forma efetiva e significativa
na qualificação dos tempos e espaços da hospitalização infantil, porque ocorre uma
transformação nas pessoas.
Nesse sentido, há um esforço coletivo por parte de todos que atuam no Projeto Sorriso
para a vida com vistas à implementação das intencionalidades previstas. O caminho já
percorrido aponta para a imprescindível necessidade de aporte teórico, tempo e
disponibilidade individual e coletiva para lidar com as contradições das pessoas, dos espaços,
da fragilidade da formação e das próprias políticas no âmbito do Ensino Superior.
No entanto, é necessário lembrar da questão ética. A Extensão só adquire relevância
na medida em que permite questionar o sentido do ensino e da pesquisa, ou seja, ser capaz de
questionar sobre o sentido da produção e da socialização do conhecimento. Deste modo, a
experiência tem revelado, apesar dos estudos e pesquisas já realizadas na e pela Extensão, que
ainda existe um certo vácuo entre as intencionalidades da formação e a realidade na inserção,
principalmente, no que diz respeito a ações interdisciplinares, pois, trabalhar coletivamente,
não garante a interlocução entre sujeitos, entre Universidade e Sociedade, entre teoria e
prática.
Apesar disso, há um forte sentimento, de que as ações desenvolvidas até o momento
pelo Projeto Sorriso para a vida, vem possibilitando a transformação do conhecimento
acadêmico em bem comum, o que não somente impacta os sujeitos da ação, como o processo
formativo e o próprio papel da Extensão Universitária em sua relação coma Sociedade.
4 Referências
.BOTOMÉ, Silvio Paulo. Extensão Universitária: é necessário superar equívocos, identificar
exigências, definir prioridades e ampliar perspectivas para a Universidade. In: Encontro
Nacional de Extensão e Ação Comunitária. Florianópolis: Univille, 2002
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Abstract
The present text is part of the field of dialogue on university extension and the possibility of
promoting changes in the process of childhood hospitalization. Its guiding the acquired
knowledge of the Extension Project "Smile for Life", which occurs since 2001 in the Hospital
Regional do Oeste and Hospital Materno Infantil, Chapecó, SC, whose objective is to reframe
the time, the spaces and subjects of the process of hospitalization and oncology treatment of
children and adolescents, a perspective interdisciplinary and multidisciplinary , through
educational and entertaining. Guided by the dialectic methodology and research-action, the
actions takes place daily throughout the year and are developed by courses in Physical
Education, Medicine, Arts, Dentistry and Nursing. Evidence of relevant experience impacts
the quality of life and academic partners, establishing itself as an important device in the
consolidation of the intentions of a community college committed to the development of their
surroundings and the production of new meanings to the hospital. Although there is a
collective effort to do and be in dialogue with the extension teaching, research and reality, the
interdisciplinary practices are still fragile.
Keywords: University Extension. Children's hospital. Reframing.
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Ressignificando a formação e a hospitalização infantil por