“HISTÓRIAS DE PESCADOR”: COTIDIANO, MEMÓRIA E EXPERIÊNCIAS DE PESCADORES EM ILHÉUS, 1960-2004. ANOTAÇÕES PARA UM DEBATE EM TORNO DA MEMÓRIA POPULAR, ÉTICA E HISTÓRIA ORAL Luiz Henrique dos Santos BLUME1 DFCH/UESC [email protected] "A tristeza é o que sentimos ao perceber que nossa realidade diminui porque nossa capacidade de agir encontra-se diminuída ou entravada." Espinosa, Ética. Esta comunicação pretende apresentar alguns impasses ético- acadêmico-políticos, surgidos a partir da apresentação à UESC do projeto de pesquisa “Histórias de pescador”: cotidiano, memória e experiências de pescadores de Ilhéus, Bahia, 1960-2004. Por isso, peço a compreensão e a paciência dos presentes para historiar os trajetos e percalços desta pesquisa, finalmente liberada pela UESC para prosseguir os trabalhos. Este projeto tramitou entre várias comissões, pareceristas, avaliadores, conselhos, durante os meses de setembro de 2004 até 20 de dezembro de 2005, quando finalmente foi aprovado pelo Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da UESC, que o remeteu à Comissão de Ética em Pesquisa com Seres Humanos – CEP/UESC. Para surpresa desse pesquisador, o projeto foi devolvido ao autor, sob a alegação de que a CEP teria reprovado o projeto porque ele já estava em andamento, o que impossibilitaria a CEP emitir um juízo sobre a ética do projeto. Em seguida, oficiei um recurso ao CONSEPE/UESC, alegando que o projeto cumpria os procedimentos éticos da pesquisa, pois a mesma está alicerçada em vasta produção bibliográfica que indica quais os procedimentos éticos a serem adotados em pesquisas envolvendo a História Oral no Brasil. Esta maçante, porém necessária apresentação, deve-se ao fato de que 1 Professor Assistente na disciplina Teoria da História, no curso de Licenciatura em História – DFCH/UESC. Esta pesquisa conta com auxílio de bolsista de Iniciação Científica FAPESB/UESC, discente Fabiana Santana de Andrade. ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 08: Dobrando esquinas: (outros) trabalhadores e a cidade. 1 este pesquisador teve de compreender as interpelações dum amontoado de resoluções, normatizações técnicas e procedimentos estranhos à bibliografia costumeiramente ancorada na metodologia da História Oral, entre outras, a resolução do Conselho Nacional de Saúde n.o 196/96, especialmente o item XI.2, alínea a, associado às instruções do Manual Operacional para Comitês de Ética em Pesquisa (Editado pelo CONEP/CNS/MS). Este drama kafkaniano serviu para formular um questionamento mais intenso e complexo acerca das dimensões ética, acadêmica e institucional na pesquisa com grupos e populações tradicionais, populares e, das relações do historiador informado na metodologia da História Oral e a instituição a qual estou vinculado, a UESC. É preciso ainda situar o lugar de onde estabeleci vínculos epistemológicos, políticos e acadêmicos enquanto historiador, pois tenho a perspectiva de travar nesta comunicação um debate que tem causado um profundo mal-estar na academia, o das relações entre os sujeitos da pesquisa e os pesquisadores e as instituições com as quais tem se debatido. Nesse sentido, trago muito mais apontamentos de uma experiência singular na construção de outros lugares e meios para a legitimidade da História Oral de pescadores e marisqueiras da cidade de Ilhéus. Partindo de uma bibliografia informada na História Oral e nos depoimentos de pescadores e marisqueiras, procurarei discutir na pesquisa ainda em andamento, processos de constituição das memórias e lembranças dos pescadores vinculados ou não à colônia de pescadores Z-34 em Ilhéus, buscando apreender como se dá a construção de identidades nesse grupo social e como a experiência de ser pescador foi mantida, com suas modificações ao longo dessas quatro décadas. Logo, esta comunicação pretende mais do que apresentar respostas, suscitar questionamentos para que possamos avançar no desenvolvimento das pesquisas em História Oral, especialmente trocando experiências e informações com outros pesquisadores que já trabalham com a perspectiva de uma história comprometida com as transformações sociais. ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 08: Dobrando esquinas: (outros) trabalhadores e a cidade. 2 A UESC e os impasses éticos: servir-se de seres humanos ou servir à superação de problemas dos seres humanos? A experiência humana no mundo criou a linguagem. Esta tem suporte no invólucro a que chamamos “mundo”, que possui uma dimensão carnal, intrinsecamente humana porque carregada de afetividade. Esta dimensão humana da linguagem criou signos para designar e decifrar o suporte, que foi virando mundo, tornando-se existência. Tornamo-nos homens e mulheres quando participamos desta aventura existencial. Para se tornar humanos dotados de afetividades, criamos significados para nossas emoções. Essas emoções nos impelem a tomar atitudes perante o mundo. Essas atitudes, que fundamentam e nos diferenciam como seres humanos, traduzem-se na vontade de nos posicionarmos perante este mundo. A essa vontade, denominamos ética. Por isso, ser humano implica em sermos éticos ou antiéticos. Devemos, então, propor algumas questões para indagar um sentido ético, não somente para a obediência às resoluções que balizam um controle sobre as relações entre o pesquisador e seus “objetos” de pesquisa, no caso envolvendo seres humanos. Sobretudo, cabe indagar sobre a produção final docente, seja na publicação de resultados parciais de pesquisa em artigos, conferências, workshops, mas também refletir sobre a relação da universidade, incluindo-nos enquanto corpo docente executor das políticas institucionais de um lado, e os sujeitos com os quais lidamos para o labor acadêmico institucional. É preciso apresentar um questionamento sobre como se estabelecem as relações entre o pesquisador, historiador oral e os sujeitos da pesquisa, homens e mulheres de carne e osso que se põem a narrar suas experiências e vivências ao entrevistador-pesquisador, utilizando-se para isso de um instrumento técnico, o gravador de áudio. Por um sentido ético-político da História Oral: construindo a memória popular O sentido para estas afirmações anteriores deve ser tomado como a afirmação de um novo princípio ético para as pesquisas com seres humanos, particularmente nas áreas de ciências humanas e sociais. Pauto minhas afirmações no intuito de apresentar outros princípios para uma ética na ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 08: Dobrando esquinas: (outros) trabalhadores e a cidade. 3 pesquisa em História Oral, no diálogo entre as experiências e vivências de pescadores da cidade de Ilhéus. Trata-se de uma discordância dos princípios que impingem as mesmas características e lógica da pesquisa com seres humanos das ciências empíricas à pesquisa em História Oral, que visa construir narrativas de experiências de pescadores em Ilhéus e não apossar-se de lendas, mitos e tradições das comunidades “tradicionais”. Experiências realizadas por institutos privados, centros de documentação, sindicatos, partidos políticos, organizações populares e de esquerda já indicam uma ampliação do campo de atuação da História Oral. Entre estas, a experiência do Museu da Pessoa, inicialmente uma iniciativa do Museu da Imagem e do Som de São Paulo, resultou na realização, entre outros, do documentário O mundo numa cadeira de barbeiro. Este filme trata das narrativas de imigrantes espanhóis e italianos em até duas gerações, que tem na profissão de barbeiro um fio condutor das transformações pelas quais a cidade de São Paulo atravessou, da primeira metade do século XX ao fim dos anos 90. Do mesmo modo, a iniciativa da Prefeitura Municipal de Santos, no final de 1996, ao criar o MISS - Museu da Imagem e do Som de Santos, teve como projeto piloto a constituição de um banco de depoimentos gravados em áudio e vídeo de personalidades marcantes da cena cultural daquela cidade portuária nas últimas décadas. Infelizmente, a interrupção de políticas públicas por administradores levou ao esquecimento esta iniciativa de recompor narrativas da memória cultural santista. Foram tomados dentre outros depoimentos, Plínio Marcos, Sérgio Mamberti, e o maestro novista Gilberto Mendes. Estas experiências marcam a necessidade contemporânea pela preservação da experiência, da memória dos grupos e dos indivíduos, numa sociedade que rapidamente “deleta” informações para repor outros “programasproblema” na ordem do dia. Vivemos uma era do contemporâneo do contemporâneo, e isso nos assusta. Por isso assistimos à proliferação de sociedades de preservação, partidos, sindicatos e grupos populares que desejam construir outras histórias, coletando suas próprias memórias. No sentido apontado por Alistair Thomson (1997), da construção de ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 08: Dobrando esquinas: (outros) trabalhadores e a cidade. 4 identidade através das histórias que formulamos de nós mesmos e que contamos aos outros, é que podemos apontar algumas questões a partir da entrevista realizada com pescadoras-marisqueiras do bairro do Teotônio Vilela, em Ilhéus. Esta entrevista ocorreu na casa de D. Júlia e Sr. Gileno, pais de Maria Helena, também pescadora, e contou com a presença importante de D. Tertulina, vizinha do casal e marisqueira. Dona Tertulina, 59 anos, no início da entrevista mostrava-se reticente e desconfiada dos entrevistadores, um professor da UESC e uma jovem universitária. Com o decorrer da entrevista, D. Tertulina resolveu justificar aos entrevistadores conhecimentos técnicos e práticos da sua atividade profissional, a pesca e coleta de mariscos. Em certo momento da entrevista, questionou sobre o conhecimento que tínhamos sobre a coleta do marisco. No diálogo com D. Tertulina sobre a forma de pescar com o manzoá, instrumento feito de vários feixes de cipó ou paus encontrados no próprio mangue, ao perguntar sobre o método que o peixe ou o camarão seria fisgado, D.Tertulina demonstrou impaciência com nosso desconhecimento. Reproduzirei um trecho para melhor esclarecimento. Luiz Blume: Você pode mostrar de novo como você fez? Dona Tertulina: Ele quer deitado. A gente coloca ele aqui aí vêm lá com um gancho... Luiz Blume: Como é que é? D.T._ Coloca um gancho menino! {fala com voz mais forte, demonstrando impaciência} L.B._ Certo! D.T. _Chega aqui nele aí vêm de lá pra cá com o gancho sustenta ele, aí o marisco vêm de lá pra cá aí vai entrando se a maré tiver seca entra o aratu, se você botar quatro horas para poder pegar a moréia é a hora que a maré começa a alargar a maré aí sente o cheiro do...do caranguejo que tá aqui dentro aí ele vai saindo de dentro do pé de mangue e vai entrando aqui dentro. De manhã quando você vai pegar tá cheio aqui dentro. Esta atitude somente ao final da entrevista pôde ser elucidada, pois a marisqueira não conseguiu obter o benefício da aposentadoria especial para a categoria de pescadores. Sua queixa aos entrevistadores da negativa em seu pedido de auxílio que, segundo afirmava, tinha direito, deu-se no sentido de que os pesquisadores vinculados à UESC também representavam um poder, e dessa forma, talvez inicialmente acreditasse que as perguntas se tratassem de um “teste” para que ela pudesse apresentar seus motivos de discordância com ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 08: Dobrando esquinas: (outros) trabalhadores e a cidade. 5 o parecer do funcionário da agência de previdência local, negando-lhe o benefício da aposentadoria, porque não teria respondido de forma correta ao funcionário do INSS. Em outra parte da entrevista, Dona Júlia, 60 anos, moradora da casa onde realizamos a entrevista, quer provar aos entrevistadores o seu conhecimento na pesca do marisco: D. Júlia - ... Aí quando é hora da maré a gente tava na maré, quando era hora da roça a gente tava na roça não perdia tempo não... em pescaria e roça, ninguém diz assim, você não conhece isso não. Porque eu conheço tudo. De manhã cedo meu pai dizia assim levanta, levanta que o passarinho tá na roça. A gente era só pegar um paninho enrolar pelo braço, molhava tudo. Com esta afirmação, Dona Júlia se qualificava aos entrevistadores como pescadora, reafirmando sua condição de marisqueira experiente. Dessa maneira, forjava sua identidade através da história que nos contou, ao mesmo tempo em que se colocava perante sua vizinha, D. Tertulina, que era pescadora há menos tempo que D. Júlia, mas na entrevista tendia a cortar as falas de D. Júlia e Helena, sua filha, sempre disputando a atenção dos pesquisadores. Podemos afirmar que os depoimentos das pescadoras do Teotônio Vilela podem indicar possibilidades de futuro na condição atual de marisqueiras e pescadoras. As temporalidades se confundem, na medida em que as indicações de tempo apresentam-se articuladas aos lugares: aqui, hoje, a coleta de mariscos na “coroa”, lá, ontem, um tempo em que D. Julia e Sr. Gileno viviam num pequeno sítio no distrito do Banco da Vitória, na zona rural de Ilhéus. Destaca-se aí a presença de Helena, 32 anos, filha do casal, que faz a ponte entre os tempos de fartura, ontem, e de escassez, hoje, na disputa pelo marisco com outras famílias, que se tornaram pescadores a partir da necessidade e da sobrevivência. Ao não encontrar outro tipo de emprego, moradores do bairro Teotônio Vilela, em Ilhéus, aproveitam o fato de estarem numa região lacustre, às margens do Rio Cachoeira, para retirarem da “coroa” o seu sustento. No entanto, esta dificuldade em obter o marisco por conta da disputa atual coloca os pescadores mais velhos próximos de um tempo distante, quando eram sitiantes e se utilizavam da pesca não como uma forma de comércio, mas de reforço à subsistência e sustento da família. ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 08: Dobrando esquinas: (outros) trabalhadores e a cidade. 6 Dona Júlia assim interpreta as suas lembranças: _Eu tou gostando daqui, porque ainda acho que o marisco sendo pouco, mas o dinheiro é mais. E lá naquela época eu não pescava pra vender, era pra gente comer, só vinha mesmo o caboje, e o bobo, porque a gente secava ele e vendia na feira. Quinhentos rés, dez tostões, naquela época , agora dez tostões é um real. Tudo barato no início um tustão...uma peça de farinha era quinhentos rés, mil e quinhentos. As duas gerações de pescadores, D. Júlia, Sr. Gileno e Helena, filha do casal, apontam temporalidades distintas. Para D. Júlia e sr. Gileno, lá, no Porto Novo, que era lugar de pescaria, onde existia o peixe de água doce. Hoje, no Teotônio Vilela, pesca-se na maré, ou “coroa”, o peixe é salgado, a água salobre, a vida mais dificil, pois perderam a condição de sitiantes. No entanto, o pescado é mais valorizado, pois conseguem obter um preço melhor do que antes. Assim, nesta dicotomia antes, doce, peixes de água doce, hoje, salobre, mariscos de água salobra, passado e presente, amargura e fartura cruzam-se experiências das gerações de pescadores, realizando um corte temporal entre as experiências das pescadoras. Para Maria Helena, o aqui, hoje, representa a sua forma de sustento e de sobrevivência na pesca e coleta de mariscos. Ela ainda tem uma vida pela frente, por isso aposta num tempo futuro, ao mesmo tempo em que não tem tanto interesse em falar do passado, mas de como é a pesca hoje, das dificuldades e de como tem a liberdade em seu trabalho, que segundo ela seria difícil ter a mesma condição como empregada doméstica ou trabalhando no comércio. Os pais de Maria Helena, com certa idade, não apostam num futuro, mas ligam suas memórias ao tempo da fartura no Ponto Novo, no tempo que eram sitiantes. Além disso, o lugar da pescaria, para as duas gerações diferencia-se pela sua condição no presente. História Oral e Memória Popular: uma opção de História Radical Traçando um percurso do interesse pela História Popular, o Grupo Memória Popular situa experiências anteriores às da “descoberta” da cultura popular e do povo pela academia(SILVA:2000). A História Popular (KHOURY:2004) define-se muito mais por um projeto político de luta por um mundo melhor. Por História Popular estou entendendo um conjunto de práticas históricas nem sempre vinculadas a projetos acadêmico-institucionais, mas que se servem da História Oral como ponto de partida em sua militância ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 08: Dobrando esquinas: (outros) trabalhadores e a cidade. 7 profissional. Dessa forma, seus objetivos principais tratam não de questões epistemológicas sobre a História enquanto ciência ou disciplina e sua prática, mas democratizar as distâncias entre o historiador oral e a “constituição original”, ou grupo social ao qual o historiador, no meu caso, procura investigar, fornecendo informações através da entrevista gravada. No entanto, o grupo de historiadores orais também se depara com dificuldades e contradições na elaboração de projetos que dêem conta das demandas por memórias de grupos populares. Existiriam quatro principais áreas de dificuldades na relação dos historiadores orais “acadêmicos” e os grupos populares. Em primeiro lugar, uma dificuldade epistemológica, das determinações que fundam práticas historiográficas, em torno de como se constituem os “objetos” na História. Em segundo lugar, a forma pela qual a matéria-prima da história oral ou da autobiografia popular surge originalmente: testemunho individual, narrativa ou autobiografia? E ainda, ao final, é o historiador quem dá o significado ao testemunho e aos depoimentos, conferindo significados às narrativas, no arranjo do depoimento para que seja transformada em fonte oral. Em terceiro, a tendência a encontrar os objetos da História num tempo passado, descontínuo, sem haver uma articulação com as questões do tempo presente. Assim, é preciso de pronto identificar as memórias populares como produção contemporânea de uma consciência e de um sentido histórico. Por último, uma crítica ao poder da relação que estabelecemos com os depoentes. Quase sempre tratando de grupos marginalizados e excluídos, existe a possibilidade de uma reprodução das lutas de classes na sociedade. Os historiadores orais vinculados à instituição universitária detêm o domínio da palavra escrita, e de certa forma, isto faz parte de uma hierarquização colocada inicialmente, independente da posição política que o historiador se coloque. No entanto, a superação dessa comunicação pressupõe uma atitude política de opção pelo diálogo com os grupos populares na formulação de suas narrativas. Essa atitude tem como princípio uma relação ética com os sujeitos com quem conversamos e nos disponibilizam suas experiências. Dessa forma, é preciso apresentar algumas considerações sobre as relações entre ética e História Oral. Os historiadores orais não mais se colocam num campo da ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 08: Dobrando esquinas: (outros) trabalhadores e a cidade. 8 História que se pretenda cientificista, objetiva, neutra. A História Oral não trata das possibilidades de interferência da subjetividade no trabalho do historiador: a História Oral trata da subjetividade, memória, discurso e diálogo. A objetividade no trabalho do historiador oral consiste em assumir que interpretamos os significados das experiências relatadas nos depoimentos. Ainda no campo das relações entre ética e o historiador ora, o resultado final, a que conseguimos obter é, sobretudo, um texto dialógico de múltiplas vozes e intepretações, em que os diversos significados se cruzam nas entrevistas. Pautamos a voz do historiador em primeiro plano, porém, o sentido que damos ao que ouvimos também tem uma interpretação dos ouvintes, dos sujeitos. Dizemos então que os depoentes não são apenas “fontes”, mas sujeitos, pessoas cujas experiências estamos tentando aprender. Por fim, tratando da restituição que o historiador oral faz às comunidades ou sujeitos que emprestaram suas experiências para a realização de nossas pesquisas, Portelli entende que o verdadeiro serviço que prestamos a movimentos e a indivíduos consiste em fazer com que sua voz seja ouvida, em levá-las para fora, em pôr fim à sua sensação de isolamento e impotência (PORTELLI:1996;31). Talvez esta seja também a intenção de D. Tertulina, D. Júlia e Maria Helena, ao nos narrar as duras condições de vida e trabalho na coleta de mariscos, e ao fim de uma jornada, não obter os direitos previdenciários a que fazem jus. Seria esta a condição do historiador oral? Ser porta-voz dos grupos e indivíduos com os quais mantemos contato? Além disso, assumir uma postura ética ao entender que a a organização dos materiais coletados e a mobilização da comunidade para suas demandas cabe à própria comunidade ou grupo social que pertencem, sem pretender um dirigismo político ou paternalista, também fazem parte dessa postura ética. No entanto, não se pode confundir um posicionamento ético com neutralidade acadêmica ou política. Ademais, qualquer sentimento ético pressupõe igualmente um posicionamento político. Dessa forma, a pesquisa em questão pressupõe uma atitude política de ser um parceiro das demandas dos pescadores e sua comunidade, indicando a imperiosa necessidade de buscar um sentido ético-político da História Oral, qual seja, a construção de memórias populares dos pescadores de Ilhéus. Nunca é demais realçar nosso propósito, ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 08: Dobrando esquinas: (outros) trabalhadores e a cidade. 9 o de estabelecer um projeto ético-político, e não simplesmente uma relação de cientista e suas cobaias. Referências: Entrevista: Entrevista realizada com Júlia Dias de Castro (60), Gileno Ferreira dos Santos (75), Maria Helena Castro dos Santos (32) e Tertulina Ferreira Mota (59), no dia 12 de novembro de 2005, na residência de D.Júlia e Sr. Gileno. Entrevista n.01, fitas 1, 2 e 3. Entrevistadores: Luiz Henrique dos Santos Blume e Fabiana Santana de Andrade. Bibliográficas: KHOURY, Y.A.M. et all. (coords.) Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Ed. Olho d’Água, 2004. PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre a ética na História Oral. In: Projeto História. Ética e História Oral. 15. p.13-50. São Paulo: EDUC, 1997. PORTELLI. Alessandro. A filosofia e os fatos: narração, interpretação e significados nas memórias e nas fontes orais. Revista Tempo: Dossiê Teoria e Metodologia. Pp. 59-72. Vol. 1, n.º 2. Rio de Janeiro/Niterói: RelumeDumará/Depto. Departamento de História da UFF, dez. 1996. SILVA, Tomaz Tadeu da. (org. trad.) O que é afinal Estudos Culturais? Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2000. THOMSOM, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a história oral e as memórias. Projeto História 15. p. 51-84. Ética e História Oral. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUCSP. São Paulo, Educ, abril 1997. ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 08: Dobrando esquinas: (outros) trabalhadores e a cidade. 10