UM NOVO CIDADÃO PARA UM NOVO ESTADO
A palavra Estado, pela própria etimologia, sugere seu papel em relação à
sociedade civil. Tem a ver com o <<estado>> dessa: sua composição, correlação de
forças, sua <<instituição>>. Mas a esse aspecto estático, estacionário, acresce um outro:
a função <<estabilizadora>> do Estado, de conservar as coisas como estão, de garantir
sua estabilidade.
Precisa a sociedade humana a tal ponto de estabilidade para ter acrescentado a
seus mecanismos um estabilizador desse porte? São tantas assim as forças de
desestabilização que, sem esse mecanismo estabilizador, perderia seu rumo e se
dissolveria? Os transatlânticos, as aeronaves e espaçonaves têm necessidade de um
complexo sistema de pilotagem para executarem com êxito seus percursos. Sucede o
mesmo com a sociedade humana?
I – Gênese do Estado
O Estado nem sempre existiu. Se a sociedade humana tem a duração de 150 mil
anos, que se atribui ao homo sapiens, o Estado apareceu há uns 5 mil anos, com as
primeiras civilizações, ou seja, num dia de 24 horas, não teria sequer uma hora de
duração!
Antes, havia as sociedades sem Estado; as estruturas que coordenavam a vida
social eram expansões da família, feitas à sua imagem e semelhança: clãs, tribos, e
mesmo aldeias, unidos e harmonizados através de uma teia de grupos de parentesco e
de aliança – mas esse <<estado de natureza>> não era a <<guerra de todos contra
todos>>, como imaginava Hobbes, pois inúmeros mecanismos sutis de convivialidade que
evitavam conflitos, e de arbitragem que os superavam quando surgiam, resultavam num
estado de paz invejável, se comparamos com a violência interna de nossas sociedades
atuais.
Depois, quando se foram tornando mais numerosas e complexas, e quando outras
já se organizavam em Estado e surgiam as primeiras civilizações, essas sociedades se
tornaram, na expressão de Pierre Clastres, no título de seu livro, Sociedades Contra o
Estado, ou seja, sociedades organizadas expressamente para evitar o aparecimento do
Estado, que iria tirar a liberdade de que gozavam até então as famílias e indivíduos. É o
caso dos pastores nômades, que, no lombo dos camelos, fugiam para desertos e estepes
– fora do Estado que dominava as cidades e os agricultores ao seu redor.
No entanto, nas sociedades mais complexas, sobretudo onde havia confluência de
vários povos, o aparecimento do Estado se deu como uma fatalidade ou lei natural: foi-se
difundindo pelo planeta, afastando as sociedades tribais para a espessura das florestas
amazônicas, a austeridade dos desertos, a solidão das ilhas do sul.
O papel <<estabilizador>> do Estado se destaca nesta sua gênese: o Estado
surgiu em sociedades divididas em classes, para dar consistência e sanção à dominação
de um estrato de senhores sobre uma massa, em geral bem maior, de escravos. Isso não
é uma teoria marxista, embora Marx a tenha incluído na sua doutrina das classes sociais.
Antropólogos modernos como Lévi-Strauss, Sahlins, Pierre Clastres também a admitem.
Essa fissura profunda no sistema social, essa disparidade e divergência estrutural
necessitavam de uma força muito grande de coesão para manter a unidade, e os
mecanismos anteriores eram incapazes de dar conta dessa função.
II – Estado e violência
E assim o Estado nasceu sob o signo do <<despotismo>>: o despotismo asiático,
uma das primeiras figuras, ilustra bem a violência da situação interna, a crueldade da
opressão e a dureza que tinha de usar para impor-se. Mas, ao mesmo tempo que essa
função interna, o Estado assumiu uma figura guerreira. Sempre houve conflitos e guerras
tribais, mas agora as sociedades organizadas em Estado tinham mais recursos materiais
– pelo excedente econômico que era gerado – mais organização e mais recursos
humanos para as guerras atingirem outro patamar de violência. Era ocasião de ampliar os
territórios, pilhar riquezas e fazer escravos. Os impérios partiam à conquista de povos
menores e se chocavam, na sua expansão, com outros impérios. A tendência de fazer do
mundo conhecido um império único estava presente; o que não havia eram meios
técnicos de alcançá-lo. As muralhas da China protegiam o império-centro do mundo, de
tribos indômitas: o limes do império romano isolava a <<pax romana>> dos povos
bárbaros que o cercavam. A ânsia de expansão do império de Alexandre foi freada com a
morte prematura do Conquistador, como a morte de Gengis Khan fez refluir a expansão
de seu império.
A guerra reforçava os Estados e, justamente por isso, eles incentivavam guerras e
as potenciavam. O filósofo Bérgson acha que a natureza humana, espontaneamente, só
chega até à solidariedade tribal e à nacional, que são como extensões do amor próprio,
ampliações do <<mesmo>>: a fraternidade universal é um ideal ético, difundido por
gênios criadores no campo da moral e da religião. Hegel era ainda mais radical neste
ponto: achava que era da natureza do espírito dividir-se nestas <<massas>>, que são os
espíritos dos diferentes povos. Um Estado universal era uma fátua utopia. Pensava
também que entre Estado e guerra, a união era essencial; que os Estados precisavam
partir para a guerra de vez em quando para ensinar os cidadãos a não se estagnarem nos
interesses individuais, e fazê-los viver para o bem comum, e que a função suprema e
específica do Estado era exigir dos cidadãos <<morrer pela pátria>>.
III- Estado e civilização
Mas há o outro lado da moeda: o Estado coincidiu, em sua gênese, com a da
Civilização. E não foi simples coincidência; um condicionou a outra e foi por ela
condicionado. São duas faces do mesmo processo evolutivo das sociedades humanas,
sua complexificação e convergência, como diria Teilhard de Chardin. Sem dúvida, a
expansão das artes e das técnicas, a invenção da escrita, a metalurgia, as edificações, a
observação dos astros, tudo isso, junto com o caldeamento de culturas e tradições de
diversos povos, possibilitava uma abertura dos espíritos, para além das tradições e do
seu ingênuo etnocentrismo. Uma humanização do homem; e quem diz humanização diz
marcha para a liberdade, pois o homem, em sua íntima essência, é liberdade. E, na
Grécia, o Estado assumiu uma nova forma, oposta ao despotismo asiático: uma cidade de
homens livres, que ditavam suas próprias leis e escolhiam seus magistrados. Não por
acaso isso coincidiu com o grande salto cultural da invenção das ciências e da filosofia.
Platão dizia que a <<polis>> possibilitava, através do diálogo, que a razão fosse
reconhecida pelos homens e iluminasse suas ações e instituições.
Essa forma de organização política dos gregos em que não havia súditos mas
cidadãos, ficou como um ideal; ou o <<mito fundador>> da democracia. Na verdade, é o
único sistema condigno da pessoa humana, pois respeita sua liberdade e lhe reconhece o
direito de participar nas decisões que afetam sua vida. Porém uma longa história nos
separa da invenção da democracia pelos gregos: uma história em que o Estado se
mostrou, na maioria das vezes, de um autoritarismo insuportável, e a sociedade civil não
assumiu sua cidadania, mas aceitou, ou por passividade ou por impotência, tiranias de
vários tipos.
Era o reino da heteronomia e do conformismo; provocando revoltas impotentes,
como o anarquismo, ou revoluções libertárias, que degeneravam em tiranias ainda piores.
Nas vésperas do 3º milênio, cresce a aspiração de um Estado diferente daquele
que marcou tantos séculos com seu menosprezo da liberdade humana. Hoje há outra
consciência dos direitos humanos: o direito de exercer a cidadania é fundamental. Mas
esse novo Estado exige um novo cidadão que não se contente com a proclamação formal
da soberania popular ou com direitos elencados no pórtico das constituições ou em
convenções internacionais, mas saiba exercer essa soberania e efetivar esses direitos. Só
que, para isso, não basta fazer reivindicações, precisa mudar de uma visão privatista e
interesseira para uma cultura de cidadania. Essa cultura sabe ver o bem comum, o
interesse coletivo como algo que está acima dos interesses particulares, e que, por sua
vez, é sua garantia e fundamento. Vê nas leis e nas autoridades algo de respeitável e
digno de obediência, porque a razão mostra o valor da disciplina coletiva, que não é
opressão e sim condição da paz social e do respeito ao direito alheio.
IV – O cidadão ante o Estado
Assim, esse cidadão se coloca ante o Estado numa atitude que o valoriza, - por ser
o instrumento privilegiado para promover o bem comum – mas não o considera outra
coisa que um instrumento que a sociedade de pessoas humanas usa para atingir seus
fins, ou seja, para sua plena realização. Foi assim que, neste século 20, com os
progressos da consciência democrática e da organização da classe operária – que
assumiu com vigor o exercício de sua cidadania – surgiu o Estado do bem-estar social,
segundo Celso Furtado, <<o maior feito da democracia: é o uso do Estado para
democratizar a distribuição de renda. Em vez de ser ditada pelo mercado, ela obedece a
fatores políticos. Se confiar só no mercado, toma-se a lei do mais forte. O Estado do bemestar social foi a maior experiência de solidariedade que já se inventou, a grande vitória e
a nobreza da democracia moderna. A sociedade assume o destino das pessoas, ninguém
é abandonado>>. (Entrevista à Revista VEJA, 8 jan 97).
Hoje em dia, com a crise de desemprego que assola os países, não está na hora
de desmontar o Estado de bem-estar social, mas de encontrar saídas para o enorme
problema, com ajuda do Estado. Celso Furtado acha que nossa civilização é bastante
criativa para encontrar uma solução.
A cidadania plena exige uma plena participação. A falta de mecanismos para tanto
foi, entre outros fatores, um obstáculo a essa realização da democracia e, muitas vezes,
ficou-se, na democracia formal e na democracia representativa, com alguns corretivos de
democracia direta. Mas, já no horizonte das possibilidades, delineia-se um tempo em que
o avanço das comunicações vai permitir a consulta instantânea da população e
possibilitar ao povo acompanhar as ações e projetos do Estado. Precisa organizar-se para
isso, mas sobretudo ter uma cultura cidadã, um acentuado espírito bíblico e uma
qualidade ética apreciável. Seria possível alcançar esse objetivos? Quem vê quanto se
caminhou em reconhecimento da democracia, dos direitos humanos, desde os começos
do século passado até nossos dias, não achará impossível que mais um século de
evolução nos conduza ao que hoje parece pura utopia. Que será dentro de um milênio?
Ainda persistirá o Estado na sua forma atual, ou os mecanismos de coordenação da
sociedade assumiriam outras formas – mais descentralizadas, com grau muito menor de
heteronomia e de violência? Lembramos que o Estado surgiu algum tempo atrás não por
não se encontrar outro modo de coordenar sociedades complexas e garantir a disciplina
coletiva. A unidade do poder estatal era considerada absoluta: o Rei tinha poder
legislativo, judiciário, financeiro. Vemos hoje o poder judiciário independente em países
em que a corte suprema está acima das flutuações da política partidária e do ocupante do
executivo, em que Bancos Centrais também atingem a autonomia para velar sobre a
moeda e a política monetária, em que o Parlamento – ora o Senado ora a Câmara –
gozam de supremacia em algumas questões fundamentais para o país. E essa divisão
dos poderes é salutar não só para garantir a liberdade dos cidadãos, mas também para
bom funcionamento do Estado.
V – O Estado no futuro
Mas há outro ponto em que a evolução do Estado fará que aperfeiçoe novas
funções, que já começam a se formar no horizonte atual. Vimos antes como o Estado era
guerreiro, que suas relações com a guerra pareciam fazer parte de sua íntima essência.
Temos todo um século, todo um milênio para o Estado evoluir em um Estado de paz: um
Estado diplomata, um plenipotenciário da sociedade para estabelecer laços, convênios,
blocos cada vez mais amplos. Vimos, na Europa, surgir o mercado comum, e uma moeda
comum; a união da Europa, que Napoleão não realizou pelos seus exércitos, mecanismos
civilizados de diplomacia estão levando a cabo. Há um parlamento europeu, e não seria
utópico ver surgir, em algumas décadas, uma confederação européia no modelo da Suíça.
E aqui, em nossa América Latina, temos o MERCOSUL. Os cépticos não lhe
davam crédito, mas não são os cépticos que fazem a história; se dependesse deles, eles
a paralisariam. Os Estados Unidos e a Europa já começam a interessar-se e a preocuparse com nosso MERCOSUL, tal a importância que lhe dão por sua capacidade e pelo
futuro que dele esperam. O pacto Andino fracassou: quem sabe se os países que o
compunham não viriam com o tempo a formar um grande Mercado Comum conosco?
Mas o mesmo movimento que leva a criar Mercados Comuns pode levar a criar
uma Comunidade de Mercados Comuns e assim, pouco a pouco, os países iriam unir-se
com laços bem mais estreitos e mais fortes do que conhecemos. Com isso se estaria em
marcha para um Estado universal? Quando se fala assim, pensa-se numa Autoridade
Soberana sobre as nações, como o Estado atual exerce sua soberania sobre seu
território. Mas o Estado do futuro, ou essa coordenação entre as diversas unidades
políticas, pode ser uma realidade que extravasa os nossos conceitos atuais, que precisa
ainda ser inventada pela criatividade humana ante o desafio das novas circunstâncias.
Hoje em dia, é evidente que o Estado não tem o monopólio de bem comum: há
todo um elenco de agrupações, como a Ordem dos Advogados, que assume tarefas
públicas, sem ser estatal. Que melhor exemplo do que certas ONGs, que se ocupam de
problemas vitais como o ambiental, às vezes lado a lado com o Poder e, muitas vezes,
enfrentando políticas mesquinhas dos Estados? Esse pluralismo da sociedade civil pode
ter mais eficácia em problemas importantes e desafios emergentes que a máquina
unitária do Estado. Pode bem ser que a evolução futura se faça nessa direção, e o Estado
volte a parecer com a coordenação social que havia antes de seus surgimento: o Chefe,
nas sociedades neolíticas, era um executor das vontades da assembléia da tribo, e não
um soberano ou fazedor de leis. À medida que a consciência cidadã se desenvolver
bastante e tiver meios de participação plena, pode a autoridade política voltar a ser o que
era na sua pré-história: um administrador dos interesses coletivos, para executar as
vontades da sociedade civil e não esse poder soberano, imperial – que é o sonho de todo
governante exercer.
Mas – também é evidente – para que esse Estado se estabeleça, é preciso que
haja um substancial progresso da cidadania. O novo cidadão, para esse novo Estado,
deve ter superado os etnocentrismos, os nacionalismos estreitos, como hoje em dia já se
consegue superar as discriminações de raça e de religião dentro da comunidade nacional.
Olhar o bem da espécie humana, do planeta, acima dos melindres e sensibilidades
nacionais. Achar bom que a Comunidade internacional julgue seu país quando viola
direitos humanos ou agride o meio ambiente que é comum a todo o planeta; entender o
ponto de vista dos outros países, quando precisam de ajuda ou são explorados pelo
nosso e desejar uma ordem internacional de justiça, cooperação e equidade. Essa ordem
internacional ainda está longe, enquanto houver superpotências tratando os outros povos
em função exclusiva de seus interesses de nação dominante, impedindo o livre
funcionamento dos organismos internacionais com seu poder político e financeiro, vemos
quanto a realidade está distante dessa nova consciência que começa a expandir-se entre
os povos. O ritmo da história é demasiado lento para nossa impaciência de indivíduos
efêmeros, mas o que nossa geração não conquista não significa que fracassou: as
sementes que semeamos podem germinar, no futuro, em árvores frondosas. É essa
nossa fé e nossa esperança.
REFERÊNCIAS
CLASTRES, Pierre. La Societé contre l’État. Paris : De Minuit, 1974. 186 p. (collection
critique)
FORGNES, Roseli. O mundo do Amanhã. Veja, ano 30, n. 1, p. 8-11, 8 jan. 1997.
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