Oftalmologia - Vol. 36: pp.43-50
Artigo Original
Queratoplastia Penetrante:
Epidemiologia e Prognóstico
Pedro Brito, Luís Torrão, Raul Moreira, Jorge Palmares, F. Falcão-Reis
Pedro Brito
Serviço de Oftalmologia, Hospital S. João
Alameda Prof. Hernâni Monteiro
4200 – 319 Porto, Portugal
[email protected]
Resumo
Introdução: A primeira queratoplastia penetrante foi realizada em 1905 por Zirm. Desde então
surgiram inúmeros avanços que tornaram esta cirurgia a única solução terapêutica para uma
grande variedade de patologia grave da córnea. O objectivo deste trabalho é relatar a epidemiologia da cirurgia de transplante de córnea realizada no serviço de Oftalmologia do Hospital de
S. João.
Métodos: Estudo retrospectivo baseado nos registos clínicos dos doentes submetidos a transplante de córnea desde Janeiro de 2008 a Dezembro de 2009. Foram incluídas no estudo 326
queratoplastias penetrantes realizadas em 268 doentes.
Resultados: A indicação mais frequente para transplante foi o queratocone. No total verificamos 52 (15.9%) cirurgias realizadas por falência de enxerto prévio, sendo a disfunção endotelial
a causa mais comum e a queratopatia bolhosa a principal indicação cirúrgica inicial (40.4%).
Os principais factores de risco foram: a história prévia de 3 ou mais cirurgias intraoculares, presença de neovasos no enxerto, infecções da córnea e hipertensão ocular.
Conclusão: A queratoplastia penetrante continua a ser uma cirurgia eficaz no tratamento de várias
patologias da córnea, sendo o queratocone e as distrofias de córnea as indicações com melhor prognóstico. O risco de falência de enxerto foi maior nos doentes com factores de risco potenciadores
de respostas inflamatórias corneanas ou causando marcada debilidade endotelial no leito receptor.
Apesar dos avanços na farmacologia ocular ainda se verifica uma percentagem significativa de
falências de enxerto associadas a factores de risco oculares potencialmente modificáveis.
Abstract
Introduction: The first successful penetrating keratoplasty was performed in 1905 by Zirm. Since then, the many advances that ocurred have contributed to establish corneal transplant surgery,
as the only therapeutic solution for a wide variety of serious corneal pathologies. Our objective
to report on the epidemiology of corneal transplant surgery performed in the Ophthalmology
Department of Hospital S. João.
Methods: Retrospective study based on the clinical records of all patients submited to corneal
transplant surgery from January 2008 to December 2009. We retrieved 326 keratoplasties performed in 268 patients.
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Pedro Brito, Luís Torrão, Raul Moreira, Jorge Palmares, F. Falcão-Reis
Results: The most frequent condition requiring transplant surgery was keratoconus. The total
number of surgeries performed due to a failed previous graft was 52 (15.9%), with endothelial
failure being the main cause of graft failure and bollus keratopathy was the most frequent initial
condition in this group (40.4%). The main risk factors for graft failure were: history of at least
three previous intraocular surgeries, presence of corneal neovascularization, corneal infecctions
and ocular hypertension.
Conclusion: Penetrating keratoplasty continues to be an efective surgery in the treatment of various corneal pathologies, with keratoconus and corneal dystrophies having the best prognosis.
The risk of graft failure was greater in patients with risk factors leading to corneal inflammatory
responses or causing markedly reduced endothelial cell count in the recipient graft bed. Even
though many advances have occurred in ocular pharmacology, we verified a significant percentage of graft failures due to potentially modifiable ocular risk factors.
Introdução
O primeiro transplante penetrante de córnea foi realizado com sucesso em 1905 por Eduard Zirm. Desde então,
foram introduzidas várias melhorias ao nível dos materiais
e técnicas cirúrgicas, meios de conservação e até na farmacologia ocular. No seu conjunto estes avanços contribuíram
para melhorar a sobrevida dos enxertos, que seria de 30%
em 19501 e actualmente os valores referidos apontam para
73% de enxertos transparentes aos 5 anos2. Não é pois de
admirar que o transplante de córnea se tenha tornado um
dos transplantes tecidulares mais realizados em todo o mundo, com mais de 40.000 cirurgias anuais só nos EUA3. Também as indicações cirúrgicas para queratoplastia, têm mudado ao longo do tempo de forma a acompanhar os avanços
da oftalmologia, pelo que a partir de 1985, com o aumento
do número de doentes submetidos a cirurgia de catarata,
a queratopatia bolhosa (QB) tornou-se uma das principais
indicações cirúrgicas para queratoplastia. Partindo destas
considerações, o objectivo deste trabalho é caracterizar a
epidemiologia recente da cirurgia de transplante de córnea
realizada no Serviço de Oftalmologia do Hospital S. João,
procurando identificar as actuais indicações cirúrgicas mais
frequentes, bem como a percentagem de queratoplastias realizadas por falência de um enxerto prévio e quais os factores de risco oculares e sistémicos presentes nesses casos.
Métodos
Recolha de dados
Estudo retrospectivo baseado nos registos clínicos dos
doentes submetidos a transplante de córnea desde Janeiro
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| Revista da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia
de 2008 a Dezembro de 2009. Identificamos 326 queratoplastias penetrantes que correspondem a 268 doentes.
As variáveis registadas foram: a idade do dador e do receptor, indicação cirúrgica, técnica cirúrgica, história de doença ocular e doença sistémica. Nos casos em que se verificou
falência de enxerto, registamos a sobrevida do enxerto prévio, bem como os factores de risco que terão contribuído
para a falência do enxerto.
Procedimentos
O procedimento foi igual em todas as cirurgias. Após
identificação de um potencial dador, o processo clínico era
consultado para procurar evidência de patologia contra-indicadora à colheita, nomeadamente: tumores hematológicos, doença neurodegenerativa potencialmente infecciosa, sépsis não controlada (avaliada analiticamente
e pelos registos clínicos), tumores oculares, história de
cirurgia implanto-refractiva, doença da superfície ocular
ou idade avançada. No momento da colheita as córneas
eram inspeccionadas macroscopicamente, uma vez verificada a ausência de leucomas, neovasos na córnea ou lente
intra-ocular, avançava-se com a colheita do botão corneoescleral, bem como colheita de sangue do dador para estudo serológico para sífilis, hepatite B e C, HIV, HTLV
I. O recipiente de conservação usado foi o Eusol-C e as
córneas ficavam armazenadas no frigorífico do banco de
olhos do nosso serviço, à temperatura de 4ºC. Todas as cirurgias foram realizadas pelos três especialistas da secção
de Córnea do nosso serviço. Em todos os casos a técnica
cirúrgica foi a queratoplastia penetrante, sendo a trepanação da córnea dadora e da córnea receptora realizada com
trépanos de vácuo. Nos casos de re-enxerto com suturas
presentes a trepanação da córnea receptora foi manual. O
Queratoplastia Penetrante: Epidemiologia e Prognóstico
Resultados
diâmetro foi determinado pela patologia presente e o enxerto foi suturado com nylon 10-0 em 16 pontos separados
ou em sutura contínua simples consoante a preferência do
cirurgião, no fim do procedimento era administrado antibiótico intracamerular (cefuroxima). Após o transplante
a medicação incluía antibiótico, corticóide e antiglaucomatoso tópicos, se existisse história de herpes ocular era
realizada profilaxia com aciclovir e se houvesse história
de rejeição de enxerto era adicionado corticóide oral. A
medicação era ajustada consoante a evolução clínica. Na
ausência de complicações, as suturas eram removidas ao
fim de um ano.
Quanto aos conceitos clínicos definimos falência de enxerto como uma alteração irreversível do enxerto, impeditiva à recuperação de uma acuidade visual funcional. Esta
definição inclui não só as opacidades de enxerto por disfunção endotelial ou rejeição imunológica, mas também problemas relacionados com a sutura e falências após queratite infecciosa. Definimos rejeição imunológica como uma
opacidade irreversível da córnea na sequência de reacção
imunológica ao enxerto, identificada por uma combinação
dos seguintes sinais: linha de rejeição endotelial, rejeição
epitelial, precipitados de queratina no endotélio, tyndall, hipópio ou fibrina na câmara anterior associados a dor ocular,
fotofobia ou injecção ciliar. Uma vez que a partir de registos clínicos não é fácil identificar de forma objectiva a data
em que surgiram as primeiras manifestações de falência de
enxerto, definimos o intervalo de tempo até falência como
o intervalo entre duas queratoplastias no mesmo olho do
mesmo doente.
Após análise dos processos correspondentes às 326 queratoplastias, verificamos que a idade média do dador foi 48
(±19) anos, sendo que o dador com mais idade tinha 77 anos
e o mais jovem tinha 1 ano. A idade média do receptor foi
de 49 (±22), variando entre 1 mês e 87 anos. As indicações
cirúrgicas mais frequentes, em doentes transplantados pela
primeira vez no período considerado, foram (Tabela 1a):
o queratocone avançado (não corrigível com graduação ou
lentes de contacto e com uma acuidade visual inferior a
2/10) correspondendo a 111 cirurgias, seguido de leucomas
centrais presentes em 61 córneas e em terceiro lugar verificamos 46 cirurgias por queratopatia bolhosa. Relativamente
ao grupo de doentes com leucomas verificamos que os mais
comuns com causa identificável são secundários a queratites herpéticas (15 em 61) seguidos dos leucomas traumáticos (12 em 61). Outra patologia que merece destaque são
as úlceras de córnea perfurantes, tendo sido identificados 3
tipos: úlceras reumatóides (n=2), úlceras infecciosas (n=7)
e úlceras com descemetocelo sem causa aparente (n=8,
2 sofriam de glaucoma avançado e 2 tinham história de
trauma químico). Relativamente às úlceras infecciosas os
agentes bacterianos foram mais comuns, nomeadamente o
Staphylococcus aureus e bactérias do género Streptococcus
(Tabela 2).
Quanto às falências de enxerto, a causa mais comum
foi o edema por disfunção endotelial, que ocorreu em 7%
(n=23) dos transplantes e 44% de todas as falências (Tabela 1b). O tempo médio até falência foi de 28 (±26) meses.
Tabela 1a | Indicações cirúrgicas para transplante de córnea (primeiro enxerto)
Indicação cirúrgica
Nº de cirurgias
% do total de QPP
Idade média
Nº Falências
Queratocone
111
34.0
30
1 (0.9%)
Leucomas centrais
61
18.7
56
8 (13.1%)
Ker. Bolhosa
46
14.1
72
5 (10.8%)
Úlc. de córnea várias
18
5.5
60
6 (33.3%)
Dist. de Fuchs
15
4.6
71
1 (6.7%)
Outras distrofias
7
2.1
46
0
Outras ectasias
6
1.8
43
0
Hx indeterminada
6
1.8
-
Fal. outros hospitais
4
1.2
-
274
84
Total
20
Queratopatia (Ker); Úlcera (Úlc); Distrofia (Dist); História(Hx); Falências (Fal); Queratoplastia penetrante (QPP)
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Pedro Brito, Luís Torrão, Raul Moreira, Jorge Palmares, F. Falcão-Reis
Tabela 1b | Total de falências de enxerto por tipo
Nº de cirurgias
% do total
de falências
% do total
de QPP
Idade média
Tempo até
falência (meses)
Disf. end. de enxerto
23
44.2
7.0
57
28
Rej. imunológica
12
23.0
3.7
62
9
Infecção de enxerto
10
19.2
3.1
52
9
Dsct. enxerto
4
7.7
1.2
68
10
Fal. pós deisc. sut.
2
3.8
<1
69
6
Ectasia enxerto
1
1.9
<1
16
3
Total
52
100
15.9
60
17
Falências de enxerto
Disfunção endotelial (Disf. end); Rejeição (Rej); Descemetocelo (Dsct); Deiscência sutura (deisc. sut)
Tabela 2 |
Comparação da população de micro-organismos entre primeira indicação para transplante e falência de enxerto
Primeira indicação
Etiologia
Falência enxerto
Factor risco
Staf. aureus
Pós cir. anel corneano
Staf aureus e E. fecalis
AR; DM
Paecylomices
Pós-trauma
C. albicans
AR; DM
Strep. Pneumoniae
Pós-trauma
Fusarium spp
Úlcera exp.
Strep. viridans
Úlcera exp; nvc
Asp. fumigatus
AR; nvc
Staf. aureus
Pós-trauma; er. rec.
Fusarium spp
Pós-trauma
Fusarium spp
Pós-trauma
Strep. pneumoniae
AR
Herpes simplex
-
Paecylomices
Recidiva
Paecylomices
Recidiva
Alcaligenes fecalis
DM
C. albicans
AR
Staphylococcus (Staf); Streptococcus (Strep); cirurgia (cir); exposição (exp); erosão recorrente (er rec); Artrite Reumatóide (AR); Diabetes Mellitus (DM)
A idade média deste grupo foi de 56 (±23) anos, tendo-se verificado uma percentagem maior de homens (61%).
O diagnóstico inicial mais comum neste grupo foi a QB,
presente em 52% dos casos (Tabela 3). O factor de risco
mais comum para disfunção endotelial foi a história prévia de pelo menos 3 cirurgias intraoculares, presente em 7
casos. Quanto a patologia sistémica a mais frequente foi a
hipertensão arterial, mas o valor não foi significativo, pois
é inferior à prevalência nacional. O diâmetro de trepanação
mais comum no receptor foi 7.00mm e na córnea dadora foi
de 7.25mm.
O segundo grupo mais importante de falências de enxerto deveu-se à rejeição imunológica do enxerto que ocorreu em 3.7% (n=12) dos transplantes considerados, sendo
responsável por 23% das falências de enxerto (Tabela 1b).
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O tempo médio até rejeição foi de 9 (±6) meses. A idade média deste grupo foi de 62 (±19) anos e a maioria dos
casos ocorreram em mulheres (75%). O diagnóstico inicial
mais comum foi o leucoma central, com 5 casos, sendo
que 3 destes casos apresentavam neovasos em 2 ou mais
quadrantes da córnea, quanto aos outros dois casos, um
correspondia a uma criança de dois meses com leucoma
congénito e o outro foi num doente com história de queratouveíte herpética. O segundo diagnóstico mais comum
foi a QB com 4 casos (Tabela 4), estando a neovascularização da córnea (NVC) presente em três. Verificamos então,
que o factor de risco mais comum na rejeição imunológica
foi a NVC, estando presente em 50% dos casos. Quanto a
doenças sistémicas é de salientar 2 doentes com artrite reumatóide (16%), valor significativo quando comparado com
Queratoplastia Penetrante: Epidemiologia e Prognóstico
Tabela 3 |
Indicação cirúrgica e factores de risco em doentes com falência de enxerto
Diagnóstico inicial
N
Factor de risco
N
Doença sistémica
N
Ker. Bolhosa
12
Cir. Intraoc. >=3
7
HTA
5
Leucoma
6
Neovasos córnea
5
DM
3
Dist. Fuchs
3
Glaucoma
4
S. Kerns Sayre
1
Úlc. córnea
2
Pós faco
2
Deisc. sutura
2
S. Irvine Gass
1
Total
Tabela 4 |
23
Indicação cirúrgica e factores de risco em doentes com rejeição de enxerto
Diagnóstico inicial
N
F. risco oculares
N
Doença sistémica
N
Leucoma
5
Nv. córnea
6
HTA
3
Ker. Bolhosa
4
Glaucoma
3
DM
2
Úlc. Córnea
2
Cir. intraoc. >=3
1
AR
2
Queratocone
1
Deisc. sutura
1
Total
12
Neovasos (Nv.)
a prevalência mundial da doença. Relativamente aos diâmetros de trepanação, o mais comum no receptor foi 7.00mm,
com um botão dador de 7.25mm, o maior diâmetro usado
no receptor foi de 7.75mm, em apenas um caso.
Outro grupo a destacar é o das falências de enxerto após
queratite infecciosa que ocorreu em 3.1% (n=10) dos transplantes e 19% de todas as falências de enxerto. A idade média deste grupo foi de 52 (±15) anos e nove dos dez casos
eram mulheres. Os agentes fúngicos foram os mais frequentes estando presentes em 7 das 10 falências por queratite
infecciosa (Tabela 2).
Se considerarmos apenas os primeiros transplantes realizados no período de tempo estudado obtemos 20 falências
de enxerto, correspondendo a 38% de todas as falências
detectadas. Neste grupo a patologia mais frequente foi o
leucoma central, presente em 8 casos, 6 dos quais apresentavam NVC. No entanto, a indicação cirúrgica com maior
percentagem de falências no intervalo de tempo considerado, foi a úlcera de córnea com 33.3% (Tabela 1a), correspondendo a 4 doentes, com etiologias diferentes: úlcera
reumatóide, fúngica, herpética e trófica. No total verificamos 52 (15.9%) cirurgias realizadas por falências de enxertos prévios, correspondentes a 42 doentes, com um intervalo de tempo médio até falência de 17 meses, sendo o tempo
mínimo de 1 mês e o máximo de 8 anos. A indicação inicial,
com maior percentagem de falências foi a QB, seguida de
leucomas centrais e úlceras de córnea (tabela 5). Os factores de risco oculares mais comuns foram: história de pelo
menos 3 cirurgias intraoculares (36.5%), presença de NVC
(26.9%), hipertensão ocular (19.2%) e infecções corneanas
(19.2%) (Fig.1). Quanto a doenças sistémicas a única que
encontramos com percentagem superior à prevalência nacional foi a artrite reumatóide, presente em 6 dos 42 doentes com falências de enxerto e que no total somaram 11
Tabela 5 |
Primeira indicação cirúrgica em doentes com
falências de enxerto de todos os tipos
Indicação
Nº casos
%
Ker. Bolhosa
17
40.5
Leucoma
11
26.1
Úlcera córnea
10
23.8
Dist. Fuchs
3
7.1
Queratocone
1
2.3
Total
42
100
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Pedro Brito, Luís Torrão, Raul Moreira, Jorge Palmares, F. Falcão-Reis
cirurgias de re-enxerto. O diagnóstico inicial mais comum
foi a queratite ulcerativa reumatóide (3/6). Estes doentes
apresentaram falência de enxerto por queratite ulcerativa
infecciosa (5/11), descemetocelo espontâneo (4/11) e rejeição imunológica (2/11).
Fig. 1 | Factores de risco oculares e doenças sistémicas em doentes com falência de enxerto.
Discussão
Em primeiro lugar é necessário referir que a metodologia adoptada não nos permite avaliar directamente a taxa de
sobrevida dos enxertos, na cirurgia de transplante de córnea, tal como é realizada no nosso serviço, pois para esse
efeito o método ideal seria um estudo longitudinal com uma
coorte de pacientes submetida sequencialmente a transplante pela primeira vez e seguida ao longo de um período ideal
de 10 anos4, 5. Porém este trabalho tem como principal objectivo caracterizar a epidemiologia actual da actividade de
transplantação de córnea no nosso serviço. Nesse sentido,
a metodologia adoptada permitiu-nos identificar quais foram as principais indicações cirúrgicas, factores de risco e
complicações pós-cirúrgicas. Adicionalmente, uma vez que
segundo alguns autores a maioria das falências de enxerto
ocorrem no primeiro ano após cirurgia4, podemos admitir
que o intervalo de tempo considerado (2 anos) é suficientemente amplo para nos permitir detectar falências nos
primeiros transplantes realizados no período considerado,
bem como em todos os doentes transplantados previamente
e que neste período, tiveram complicações com indicação
para re-enxerto.
Quanto aos resultados verificamos que as indicações
com melhor prognóstico são as distrofias de córnea e o
queratocone. Tal situação compreende-se facilmente pois
são patologias essencialmente estruturais, sem actividade
inflamatória de base e ainda, no caso do queratocone e na
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| Revista da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia
maioria das distrofias o endotélio receptor apresenta densidade e morfologia celular normais, pelo que suporta uma
sobrevida longa do enxerto. Relativamente às falências de
enxerto à semelhança de outros autores4,5, verificamos que
actualmente a maioria se devem à disfunção endotelial do
enxerto, o que por um lado traduz a eficácia dos actuais
corticóides tópicos em controlar a reacção imunológica ao
enxerto, por outro lado é indicativo do número crescente de
cirurgias de catarata com implante de lente, realizadas nas
últimas duas décadas. Efectivamente, a QB foi a indicação
cirúrgica mais comum no grupo das falências por disfunção
endotelial, bem como no total de falências de todos os tipos.
Apesar do pior prognóstico do transplante de córnea por QB,
se encontrar bem relatado na literatura oftalmológica1,4-6, as
explicações apontadas para este fenómeno variam1,6, no entanto todas têm como denominador comum um estado de inflamação crónica presente nesses olhos, que condiciona uma
perda progressiva de células endoteliais. De entre os agentes apontados como responsáveis pela inflamação crónica,
encontramos as infecções loculadas no saco capsular, por
agentes como o P. acnes7 ou o S. epidermidis8, tendo sido
demonstrada a sua presença em lentes intra-oculares (LIO)
explantadas durante a cirurgia de transplante. Adicionalmente, certos tipos de LIO, quando implantadas no sulco, podem
causar degradação da barreira hemato-aquosa e alterações
na íris, contribuindo para o estado inflamatório9. A favor
destas teorias temos um estudo recente que verificou uma
melhoria significativa na sobrevida a 10 anos, dos enxertos
em doentes com QB, se durante a cirurgia de transplante se
procedesse à troca da LIO5. Outra teoria proposta baseia-se
na densidade de células endoteliais do leito receptor, pois
estudos com transplantes autólogos rotacionais, demonstraram que a densidade de células endoteliais diminui muito
mais rapidamente no enxerto homólogo dador, do que no
endotélio autólogo do leito receptor10,11, pelo que se coloca a
hipótese de que nos doentes com QB a debilidade do endotélio receptor não permite suportar a sobrevida do enxerto, a
longo prazo. Esta teoria ajuda a compreender o efeito negativo das múltiplas intervenções intraoculares, presentes em
36.5% das nossas falências de enxerto, pois cada cirurgia
contribui para a perda de células endoteliais, quer pelo trauma cirúrgico, quer pela resposta inflamatória consequente,
resultando num endotélio no leito receptor debilitado.
Quanto às rejeições imunológicas, responsáveis por
23% de todas as falências detectadas, o principal factor de
risco foi a presença de neovasos em pelo menos dois quadrantes da córnea. Uma meta-análise recente3 verificou que
a presença de NVC duplica o risco de rejeição e aumenta
o risco de falência em 30%, sendo o efeito proporcional à
extensão dos neovasos. Tal constatação traduz a perda do
Queratoplastia Penetrante: Epidemiologia e Prognóstico
privilégio angiogénico da córnea, facilitando o acesso de células inflamatórias ao estroma corneano e consequentemente a ocorrência de resposta inflamatória contra antigénios do
dador, resultando em falência endotelial ou sinais clássicos
de rejeição de enxerto, consoante a intensidade da resposta
imunológica. O diâmetro de trepanação, não foi um factor
importante na rejeição, uma vez que o maior diâmetro foi
7.75mm, em apenas um doente, em todos os outros a trepanação da córnea receptora variou entre 7.25 a 6.00mm, que
são diâmetros que permitem uma distância segura relativamente ao limbo. Ainda nas rejeições é importante salientar
nos diagnósticos sistémicos a artrite reumatóide, presente
em 2 destes doentes. Trata-se de uma doença que só por si
pode causar ulceração perfurante da córnea, adicionalmente
a ocorrência de queratite epitelial por síndrome de Sjögren
secundário e a medicação imunosupressora a que estes doentes são submetidos, facilitam a colonização da córnea por
uma variedade de agentes microbianos, contribuindo para o
mau prognóstico do transplante nestes doentes. Quanto aos
doentes com rejeições após queratite infecciosa é interessante notar que a maioria apresentou infecções por fungos,
o que provavelmente traduz o risco associado à corticoterapia prolongada a que estes doentes são sujeitos. Contribuindo para o papel da terapia imunossupressora na queratite
fúngica, temos o facto de metade dos doentes com rejeições
infecciosas no nosso estudo, sofriam de artrite reumatóide
e encontravam-se medicados com imunossupressores sistémicos (prednisolona e/ou metotrexato). Face à prevalência aumentada de agentes fúngicos nos enxertos e ao mau
prognóstico associado, parece-nos justificado iniciar colírios antifúngicos profiláticos à mínima suspeita clínica seja
quer pela história de traumatismo quer pela visualização de
infiltrados estromais suspeitos. Finalmente o último factor
de mau prognóstico que merece referência é a presença de
hipertensão ocular que esteve presente em 19.2% das falências de enxerto, embora não exista actualmente uma
explicação para esta associação, um estudo recente verificou que o endotélio homólogo é mais susceptível do que o
autólogo, a aumentos moderados de tensão ocular12, apresentando uma perda marcadamente aumentada de células
endoteliais, que pode atingir os 55% de perda aos 6 meses
após a cirurgia13.
Conclusão
Este trabalho colocou em evidência as principais indicações actuais para cirurgia de transplante de córnea, bem
como o perfil epidemiológico e factores de risco dos doentes submetidos a esta cirurgia. Verificamos que apesar dos
avanços recentes na farmacologia ocular, existe ainda um
número significativo de falências de enxerto associadas a
factores potencialmente modificáveis por terapia adequada,
nomeadamente: hipertensão ocular, rejeição imunológica e
infecções no enxerto. Ainda assim a queratoplastia penetrante revela-se como uma solução terapêutica indispensável ao oftalmologista que se dedica à patologia da córnea,
apresentado um prognóstico excelente nos casos de queratocone e em distrofias da córnea. Actualmente, estuda-se
a possibilidade de controlar a neovascularização da córnea
com formulações tópicas de anti-VEGF14. Adicionalmente,
será de esperar uma diminuição da incidência de QB associada às melhorias da tecnologia cirúrgica15. Podemos então
admitir, que no futuro o prognóstico da cirurgia de transplante continuará a melhorar devido aos contínuos avanços
na farmacologia ocular e nas técnicas cirúrgicas.
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Vol. 36 - Nº 1 - Janeiro-Março 2012 |
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Queratoplastia Penetrante: Epidemiologia e Prognóstico