Pré-História da UMa
Jesus Maria Sousa
Apesar de continuar a ser “a mais jovem universidade pública portuguesa”, a Universidade da
Madeira, com os seus 25 anos, merece, mesmo assim, que se preste tributo à sua ainda curta história
de vida. Este conjunto de depoimentos terá assim o mérito de juntar diversas histórias,
necessariamente parciais, que se entretecerão numa tessitura que se prevê cheia de cambiantes
pessoais. Pois, o que é isso de História objetiva?
Eis então aqui o meu testemunho (parcial), apenas centrado na “Pré-História da UMa”.
A minha relação com a Universidade da Madeira começou quando ela ainda era um sonho. Corria o
ano de 1984 quando, por iniciativa do Governo Regional, através da SRE, tutelada por Brazão de
Castro, se assinava um acordo de cooperação com a Universidade do Minho para a realização, na
Madeira, de três Mestrados: em Ensino do Português; em Ensino das Ciências da Natureza; e em
Análise e Organização do Ensino. E com que finalidade? Preparar, com a devida antecedência, um
corpo docente capaz para o que se imaginava que iria ser uma Universidade da Madeira. Esta ideia
vinha, aliás, na sequência da criação, em 1983, duma Comissão de Estudo, constituída por Freitas
Ferreira, Lecoq Forjaz e Rui Vieira, por Despacho conjunto da SEES e da SRE, e, um ano depois,
reformulada por outro Despacho conjunto do Ministro da Educação e do SRE.
No entanto, com poucos hábitos de prosseguimento de estudos, pela inexistência de instituições do
ensino superior na Madeira (tínhamos apenas polos de extensão universitária da Universidade de
Lisboa), os dois primeiros Mestrados não tiveram candidatos que justificassem a abertura de turmas.
Só o Mestrado de Educação conseguiu vingar, com alunos provenientes quer da orientação
pedagógica quer da Escola do Magistério Primário. De um grupo maior inicial, chegaram ao fim do
curso, com defesas públicas em 1986 e 1987, apenas Aldina Mécia Melo, Alexandra Branco, Carlos
Nogueira Fino, Dulce Teixeira, Elizabete Oliveira, Maria do Carmo R. Trindade e Teresa V. França
Ferreira, além de eu própria. Éramos, então, 8 Mestres, formados pela Universidade do Minho,
prontos para, no que dizia respeito à área da Educação, encetarmos carreiras dedicadas ao ensino
superior.
Com o Dec.-Lei nº 101/86, de 17 de maio, que determinou o encerramento de todas as escolas do
magistério primário no País, e tendo em conta que não havia ainda a “tal” universidade, a opção
governativa na RAM passou por atribuir a responsabilidade dos cursos da Escola do Magistério
Primário do Funchal à Escola Superior de Educação da Madeira, que, desses 8 Mestres, passou a
acolher, no seu Quadro, cinco, por concurso, e um, por nomeação (política). A recusa em criar um
Instituto Politécnico da Madeira está patente no Dec. do Governo nº 46/85, de 22 de nov., quando
refere o seguinte: “Reserva-se a decisão sobre as Escolas Superiores de Educação da Madeira [e de
Vila Real] até à conclusão dos estudos sobre a criação de um instituto politécnico da Madeira…”. Ora,
isso nunca veio a acontecer. Como todos sabemos, em 1988, foi finalmente criada a Universidade da
Madeira, com a extinção da ESE (Dec.-Lei nº 391/89, de 9 de nov.), passando os seus cursos a
funcionar ao abrigo do centro integrado de formação de professores (CIFOP) da Universidade da
Madeira, criado pelo mesmo Decreto-Lei.
É por isso que rejeito a ideia, posta a circular até agora, de que o curso de Educação Física e
Desporto, que arrancou com o seu 1º ano em 1989/90, foi o 1º curso da UMa, como se os cursos de
Educação de Infância e de Ensino Básico – 1º Ciclo, desse mesmo ano, tivessem funcionado no vazio.
Enquanto representante do CIFOP, transformado mais tarde em Departamento de Ciências da
Educação, acompanhei de perto a elaboração dos primeiros Estatutos da UMa, ao longo da 1ª
Comissão Instaladora presidida por Raúl Sardinha, natural da Madeira, num ambiente de grande
crispação por guerras de poder que desde essa altura foram minando a instituição. A questão que
então se colocava tinha a ver com a própria autonomia universitária. A comissão instaladora era
nomeada por quem? Era sugerida por quem? Devia obediência a quem? Ao poder regional ou ao
nacional? A UMa seria uma universidade regional ou nacional?
A Raúl Sardinha, que pedira exoneração, sucedeu Fernando Henriques, um seu vogal, que tinha
então revelado uma maior proximidade a certa ala do poder regional de maior influência. Saiu, por
essa razão também, a mulher forte da Comissão Instaladora, a Administradora Ana Isabel Cardoso,
sendo substituída por Elizabete Oliveira, um dos elementos do tal grupo de Mestrado de Educação,
mas que não entrara no Quadro da ESE-Madeira. Entretanto, por artes mágicas, os Estatutos da UMa
ficariam convenientemente esquecidos dentro de alguma gaveta, não tendo sido enviados para
homologação, impedindo dessa forma, que a Universidade assumisse de pleno direito a sua
autonomia.
Novos tempos conturbados surgiram a dar lugar a uma nova comissão instaladora, mais uma vez
liderada por um Madeirense, João David Pinto Correia, tendo como Vogais os que seriam mais tarde
Reitores da UMa, José Castanheira da Costa e Rúben Capela, e tendo agora como homem forte, o
Administrador Marques de Almeida. Foi com esta 3ª comissão instaladora que se retomaram os
trabalhos de elaboração dos Estatutos da UMa, em setembro de 1995, com uma nova Assembleia
Constituinte, de que fiz parte igualmente. Os Estatutos foram submetidos à apreciação da chamada
Comissão Ferrer, tendo baixado à Universidade de novo, para a aprovação da sua versão final, em
fevereiro de 1996, já eu tinha o Doutoramento defendido na Universidade de Caen.
Após a homologação ministerial a 13 de maio de 1996, procedeu-se à eleição do primeiro Reitor da
UMa, José Castanheira da Costa, deixando a Universidade de estar em “fase de instalação” para
passar à chamada “fase de transição”. Tendo, de julho de 1996 a junho de 1998, feito parte da
equipa reitoral, enquanto Vice-Reitora responsável pelos Serviços Académicos, fui também, ainda
nomeada pelo anterior Presidente da Comissão Instaladora, Coordenadora-Geral de Avaliação, tendo
lançado as bases de avaliação da UMa, tarefa de que hoje muito me orgulho.
A experiência de trabalho na equipa constituída também pelas Vice-Reitoras Alexandra Branco e
Paulo Castilho, se de início se pautou por grande entusiasmo e vontade de mudar, criar e inovar, foi
aos poucos dando lugar a um misto de desilusão e descrença. Para quando o fim da fase de transição
que então vivíamos? Tendo os Estatutos sido já homologados, o que impediria que a UMa passasse a
uma verdadeira universidade, como as demais do País? Faltava naturalmente um Quadro, com
lugares de professores associados e catedráticos, que permitisse a mobilidade nas carreiras, há dez
anos (apenas para alguns) estagnadas, e a eleição de um Reitor necessariamente catedrático,
segundo as regras de então.
A publicação desse Quadro romperia, de facto, para sempre, com o status quo, abrindo lugar para
algo que ninguém sabia o que iria ser e que muitos receavam por ser pouco ou nada controlável.
Quem seria o Reitor então? Seria ele permeável a pressões políticas ou de outra índole, a influências
daqui ou de acolá? Assumo que a minha intervenção para a publicação do Quadro do Pessoal
Docente da UMa chegou, neste particular, ao nível do Primeiro-Ministro de então.
De bestial a besta foi um passo: de Vice-Reitora respeitada, enquanto detinha poder, a uma
professora da casa, com quem se temia ser visto a tomar café, foi das experiências mais marcantes,
em termos de aprendizagem e crescimento pessoal, imprescindível para se compreender
verdadeiramente os iníquos meandros do poder. A travessia no deserto ensinou-me, entretanto, o
prazer único de deixar de ser a menina bem-comportada, de não recear destoar da maioria
envolvente, de pensar pela minha cabeça e de defender, até às últimas consequências, que uma
Universidade merecedora desse nome deve ser o último bastião onde esse direito possa ser
molestado.
Esta é a “minha” história (pré-história) da Universidade da Madeira.
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