HÉLIO OITICICA E SEUS PARCEIROS: PESOS E CONTRAPESOS Frederico Coelho Em uma de suas fantásticas cartas enviadas de Manhattan para o Brasil, Hélio Oiticica contava uma pequena história que sintetizava sua relação com a música em geral, e com o rock, em particular. Dizia que em seu novo apartamento, na Christopher Street, em Greenwich Village, tinha uma escada que dava acesso à sua porta. Logo na entrada, ainda no hall, tinha afixado um pôster de Jimi Hendrix. Com seu texto sempre ácido quando se tratava da ignorância alheia, Oiticica afirma que, caso a visita não soubesse quem estava no pôster, ela nem entrava em sua casa. Desconhecer o guitarrista norte-americano, morto em 1972, com apenas 27 anos, era inaceitável para o artista carioca. O apartamento, inclusive, foi batizado por ele de Hendrixsts. Nos quase oito anos que passou em Manhattan (janeiro de 1971-dezembro de 1977), Oiticica não foi a nenhum lugar distante da cidade. Mesmo convivendo intensamente com o Brasil por meio de cartas, textos, amizades e obras, tornou-se um especialista na cultura pop norte-americana, consumindo em diversas frentes seus produtos e suas reverberações nas experimentações que a arte provocava, seja no cinema, no teatro, na literatura e, claro, na música. Se nunca foi um fã confesso de Andy Warhol (apesar de comentar com frequência seus filmes) ou da pop art, ele sabia retirar como poucos o lado provocativo dos programas de televisão que inauguravam os reality shows e pensá-los como ícones da cultura de seu tempo. Entre os principais eventos que Oiticica frequentava em Manhattan, os principais foram, sem dúvida, os shows de rock. Durante alguns anos, morou na Segunda Avenida, próximo ao Fillmore East, palco clássico do rock norte-americano dos anos 70. Seu gosto era mais voltado para a vertente do rock que tinha o rythm‘n blues na sua base, em que guitarras ganhavam o centro da cena, com seus efeitos e suas performances. Johnny Winter, Muddy Waters, Taj Mahal e, claro, os Rolling Stones eram shows vistos repetidamente. Além deles, Alice Cooper, David Bowie, Frank Zappa, John Lennon e músicos de jazz como Thelonius Monk e Charles Mingus estavam nas listas, nos textos e nas cartas em que Hélio Oiticica se referia aos sons que ouvia. Mas um nome, sempre, pairava sobre os demais: Jimi Hendrix. Quando Hélio Oiticica realmente respeitava alguém ou alguma coisa que lhe interessava, ele os incorporava. Não como possessão espiritual, mas como parte do seu processo criativo, de sua visão crítica sobre as coisas e o mundo. O guitarrista, cantor e compositor Jimi Hendrix foi um desses dos quais Oiticica tinha imenso respeito e admiração. Era, também, uma espécie de gatilho do seu desejo, na relação que ele construía desde os tempos da Mangueira e dos Parangolés. O crítico Sérgio Martins aponta com acuidade o paralelo que pode ser feito entre Hendrix e Nildo da Mangueira, um dos principais amigos e modelos do período em que Oiticica desenvolve seus Parangolés (1964/68). Ambos são símbolos que unem a negritude, a sexualidade e o virtuosismo do corpo performático (Hendrix no palco com sua guitarra e Nildo nas quadras e desfiles da Escola de Samba).1 Mesmo sem ter conhecido pessoalmente o guitarrista, Oiticica o achava um igual, cujas obras estavam em diálogo direto, mesmo que distantes. Hendrix tinha para Oiticica a mesma importância que Arthur Rimbaud, Nietzsche, Antonin Artaud, Malevitch ou Mallarmé. Aliás, Hendrix era citado em seus textos teóricos com a força de um filósofo ou de um crítico. As performances de Hendrix (que Oiticica viu ao vivo pelo menos uma vez, em um show na Ilha de Randall, perto do Bronx) eram o cerne de seu encantamento pelo músico. Interessado diretamente (ao menos do ponto de vista especulativo) na questão do corpo e de seus usos nas artes, Oiticica via no rock em geral e no de Hendrix, em particular, a fundação de uma liberdade radical da dança. Ao contrário do samba, em que precisamos de uma iniciação para podermos dominar ao menos os seus passos rudimentares, o rock é libertário, pois sua dança, nos termos de Oiticica, já “está contida” em qualquer um de nós. O rock nos propõe um permanente estado de improvisação para que possamos manifestar seu aspecto performático. Esse encontro entre corpo, liberdade, performance e dança era central na obra e no pensamento de Oiticica durante os anos 60 (com os Parangolés) e na década de 1970. Outro ponto fundamental desse destaque para a obra de Hendrix era seu papel de inventor, isto é, daquele que, na terminologia de Ezra Pound, pratica sua arte a partir da criação permanente do novo. Ligado pessoal e intelectualmente a Augusto e Haroldo de Campos, Oiticica compartilhava dessa terminologia para falar de seu trabalho e do trabalho de quem admirava – usando, em contraponto, o termo diluidor para definir aqueles que não viam inovação ou nada que valesse a pena no trabalho. Na rígida escala de valores de Oiticica, Hendrix, pela sua abordagem revolucionária 1 MARTINS, Sérgio. “Assim falou Hendrix: Hélio Oiticica e o rock”. Texto apresentado pelo autor no programa “Tubo de ensaio”, da Rádio Batuta (IMS), em 31 de julho de 2013. no som da guitarra, pelo seu uso de pedais e dos autofalantes, pelas suas performances bombásticas (como a cópula incendiária com a guitarra no Festival de Monterey, em 1967), era, definitivamente, um inventor. Mais do que isso, Hendrix era ao que Oiticica aspirava, isto é, um criador de “estados de invenção”. Hendrix fundava novas formas de ser músico no palco e, por consequência, novas formas de “ser plateia”. Nos termos de Oiticica, o artista inventor é aquele que permanentemente “experimenta o experimental”, aquele que enfrenta a tragédia da criação com a invenção de novos afetos e potências. Leitor intenso de Nietzsche nesse período, citava com frequência o componente trágico e sua restituição por parte do artista. Ao citar uma carta sua para seu amigo Romero, escrita em 8 de maio de 1974 (Acervo Projeto HO), Oiticica sintetiza suas leituras do filósofo e sua articulação com a obra de Hendrix. Sobre o guitarrista, afirma que ele é “A encarnação do herói trágico q nada tem q ver com o dramático: o máximo de clareza q surge com o máximo de improvisação dionisíaca que revela as coisas terríveis da terra/existência natural”. É a Hendrix, sua imagem poderosa e suas declarações – como a famosa entrevista publicada no livro Hendrix de Chris Welch, em que pede para ser chamado de hélio, o gás mais leve – que Oiticica recorre para articular ideias e reflexões amplamente abrangentes. Em uma das Cosmococas feitas em parceria com Neville de Almeida durante o ano de 1973, é notória a presença do músico. Na CC5 Hendrixwar é a capa do disco War heroes (1972) que desencadeia as articulações entre os slides e as fileiras de cocaína-pigmento. Já em um texto escrito em 1974 para ser publicado na revista Pólem, é novamente Hendrix quem Oiticica invoca para servir de guia na escrita de uma carta alucinada para Waly Salomão. Seu texto abre articulando o guitarrista com uma rede de afetos, pensadores e conceitos que eram caros ao artista naquele momento. Vale sempre ressaltar que, ao lado de Hendrix, sempre estava a dupla Mick Jagger e Keith Richards. Os dois, além da questão musical, amarravam a relação de Oiticica com o rock a partir do forte componente erótico-político que o artista via nas performances dos Rolling Stones. Assim como Hendrix, os Stones (em menor medida Bob Dylan) estavam em diversos textos e apontamentos críticos de Oiticica nessa época. Hendrix, como uma força inventiva, que fundava novos paradigmas de performance dionisíaca do corpo e da música. Já os Stones eram o corpo em celebração na arena, coletivizado pela massa e seus refrões, magnetizando uma geração outsider em letras que comunicavam o submundo duro e perigoso em que o próprio Oiticica vivia. Essa dupla Hendrix-Stones foi uma força motriz que alimentou por muito tempo seu imaginário musical e pessoal, fazendo com que suas amizades também passassem por essa relação de admiração, afeto e interesse criativo. É nesse momento que Andreas e Thomas Valentin tornam-se parte ativa nos planos de Oiticica. Amigos pessoais, bem mais jovens, (Andreas chegou a ser aluno do artista, quando criança), durante a maturidade passam a frequentar os dois apartamentos onde o artista viveu em Manhattan. Sua cumplicidade faz com que eles também conheçam como poucos nessa época a vida e o pensamento de seu amigo, mentor e parceiro. Isso porque, na fase adulta de suas vidas, tornaram-se assíduos colaboradores do artista e, de perto ou de longe, foram interlocutores permanentes. Era o período em que Oiticica constituía parcerias através de suas proposições. A Proposição era uma sugestão de trabalho, geralmente performático, para ser executado por terceiros. Por estar em Manhattan, ele estendia sua ação criativa para além de seu território através de colaborações estético-afetivas – ou sugestões unilaterais, na maioria dos casos – com amigos como Silviano Santiago, Haroldo e Augusto de Campos, Guy Brett, Carlos Vergara, Luís Fernando Guimarães, Waly Salomão, Antônio Manuel, Regina Vater, entre outros. Foi também na base da colaboração que Oiticica fez com Neville De Almeida as Cosmococas, obra decisiva do período. Foram cinco séries planejadas com o cineasta, e outras com Thomas Valentin e Carlos Vergara. Com Andreas e Thomas especificamente, Oiticica travou uma intensa troca de cartas entre os anos de 1973 e 1975. Nesse período, as visitas dos irmãos foram constantes e os planos se expandiam rapidamente entre música, cinema, artes visuais e publicações. Entre os projetos, dois envolviam o rock como mote. Um, ousado, chama-se Stonia e deveria ser executado no Brasil em vias de uma eternamente adiada apresentação dos Rolling Stones no Rio de Janeiro;2 o outro, era Call me Helium. O rock unia os três, que formaram um trio constante em shows pela cidade norteamericana. Além das fofocas e dos assuntos de trabalho, Oiticica falava 2 Em fevereiro de 1974, Andreas veio embora dos Estados Unidos, de volta para o Rio. Segundo ele, Hélio Oiticica o surpreendeu com um presente: uma cópia em xerox do projeto do PN17 Stonia, desenhado em um de seus cadernos. No documento original, o cabeçalho diz: "para ANDREAS VALENTIN dedicado e dado a ele como 'projeto-obra' de sua propriedade: como executor ou autorizante único para forma/modo/condições da execução do mesmo". O projeto contém instruções detalhadas sobre como e em que condições STONIA deve ser realizada. Naquele ano – o mesmo de CALL ME HELIUM – foram trocadas várias cartas sobre sua realização no Rio com o intuito de coincidir com uma possível vinda da banda. constantemente em suas cartas do que estava assistindo e ouvindo por lá enquanto Andreas e Thomas estavam no Rio. Pelas cartas, vemos também que nem sempre era fácil trabalhar com Oiticica. Sua tendência imperativa nas definições do que queria para os trabalhos mostrava que, às vezes, as brechas eram breves para o outro lado colaborar com o projeto. Além disso, por ser mais velho e mais experiente, artista conhecido internacionalmente, Oiticica tomava as rédeas de certas questões. Dois aspectos são importantes e se destacam nas cartas trocadas entre Oiticica, Andreas e Thomas Valentin. Primeiro, a irritação do artista com a cena dita contracultural do Rio de Janeiro de então. Sem ter vivido localmente a rotina libertária do píer de Ipanema ou a cena cultural que se formou no bairro carioca, demarcava, a todo momento, diferenças de método. Ao contrário do hedonismo das “dunas”, reivindicava sua seriedade e produtividade, mesmo que inseridas no uso desenfreado da prima (nome secreto que Oiticica utilizava para falar da cocaína). A imagem feita por Oiticica – os jovens hippies cariocas de beira de praia como pessoas “lesadas” e improdutivas – quase se somava à representação estereotipada dos que na época tachavam esses jovens de alienados e desbundados. A razão da intolerância à distância de Oiticica era, novamente, com a “preguiça” que, na sua opinião, assolava o Brasil e as artes brasileiras. A proposta de Oiticica para os irmãos Valentin, segundo ele, deveria ser feita de forma impactante, sem deixar-se levar pelo clima “diluidor” da cidade. Outro ponto importante, e esse vai direto ao tema da colaboração nos trabalhos de Oiticica, era a forma como ele articulava constantemente uma rede pessoal de parcerias ao redor de seus trabalhos. Ele exigiu permanentemente por parte de Andreas e Thomas que o evento Call me Helium tivesse a colaboração dos nomes que, naquele momento, povoavam seu universo afetivo e criativo. Assim, os irmãos tinham de entrar em contato e conseguir a participação, seja de corpo presente, seja de outra forma, de nomes como Lygia Clark, os irmãos Campos, Waly Salomão, Silviano Santiago, Quentin Fiore, Carlos Vergara, Lygia Pape e Ivan Cardoso. O grau de exigência de Oiticica muitas vezes impediu que seus diversos planos fossem à frente. Filmes, livros, obras, performances, pôsteres, muitos deles foram interrompidos ainda no seu planejamento pela impossibilidade de serem feitos de acordo com os desejos rigorosos – e infinitos – do autor. A própria obra Call me Helium acabou não sendo realizada na época planejada, devido aos muitos contratempos que Andreas e Thomas Valentin encontraram pelo caminho. Não por culpa de Oiticica, mas certamente acirrados pelas suas exigências. Com sua morte prematura em 1980, muitos podem olhar para a trajetória de Oiticica pela lente hagiográfica da pura excelência – o que não está longe do que foi a sua obra e do que ela representa cada vez mais no Brasil e no mundo. Mas vale também lembrarmos que muitos foram os parceiros de Oiticica e que nem sempre sua personalidade afirmativa e intransigente no que diz respeito ao seu credo criativo foram itens fáceis de conviverem. Em um texto de 1972, Silviano Santiago, amigo e parceiro em proposições de Oiticica, o chamou carinhosamente – e provocadoramente – de “mentor pouco democrático da palavra”. A força produtiva incessante de Oiticica criava situações em que a leveza do gás hélio, revogada por Jimi Hendrix e tornando o artista carioca um homônimo do músico tão cultuado por ele, às vezes dava lugar ao peso de seu isolamento em Manhattan. A vontade de colaborar através de proposições como Call me Helium nos mostra que a obra de Oiticica ainda tem um amplo espaço para se percorrer. Na sua relação criativa, tensa e iluminadora com seus parceiros, muitos projetos ficaram pelo caminho, mas muitos outros ainda estão pulsando, plenos de invenção para serem postos hoje em prática. Hélio Oiticica, Andreas e Thomas Valentin formam uma parceria de vida que, como prova esta exposição, ainda reverbera pelos tempos e espaços. Como o gás hélio, é o combustível leve que faz subir cada vez mais a potência presente no mundo ao redor de Oiticica.