A presença da crise existencialista em Morangos Silvestres
Por Débora Caldeira Santos Pestana. Trabalho acadêmico da disciplina Cinema e Vídeo,
curso de Relações Públicas.
O filme Morangos Silvestres (Smultronstället, Suécia, 1957) é uma obra-prima do
cineasta Ingmar Bergman, um clássico que influenciou fortemente o cinema mundial.
Sem grandes inovações na estrutura de linguagem cinematográfica, o que fascina o
espectador é a profundidade do tema, de teor filosófico, e seu realismo. A questão da
morte aparece no filme para exprimir as angústias do ser humano, uma busca de
revelações que o ajudem na compreensão do mistério da vida.
O aspecto intimista de Morangos Silvestres sobressai na primorosa fotografia em
preto e branco, marcada por um intenso contraste visual, ora cheio de luminosidade, ora
seco e escuro. Da mesma forma, características do expressionismo alemão, como tons
sombrios, contribuem para evidenciar sentimentos dos personagens. Completam as
referências do filme, o emprego de conceitos do neorrealismo italiano, caracterizado
pela forma alternativa de produção e na linguagem básica, refletindo a simplicidade do
cotidiano.
É sob a conjunção de dualismos entre o clássico e o moderno, o sensível e o cruel,
que Bergman construiu um de seus intensos e encantadores estudos sobre a existência e
a essência do ser. A partir de situações simples, com poucos diálogos, trilha sonora
aflitiva, Bergman nos revela a dicotomia existente no âmago solitário de cada indivíduo
e registra as dores da vida na tentativa de utilizar a memória como mecanismo da
preservação da identidade humana.
Na abertura do filme, temos um breve histórico da vida do Sr. Eberhard Isak
Borg, numa narrativa em primeira pessoa. A sequência se passa no escritório de sua
própria casa. O Sr. Borg descreve aspectos de sua vida, posicionamentos acerca da
relação com a sociedade e apresenta características de seus familiares.
O Sr. Borg é um médico e professor de 78 anos - reconhecido por seu excepcional
profissionalismo - que mora na cidade de Stockholm. Uma pessoa meticulosa, de
postura categórica, egoísta e amarga que, enfastiado com as críticas e discussões
presentes no relacionamento com o outro, decide se isolar da vida social. Ele será
homenageado com o título honorífico da universidade em que lecionou durante 50 anos,
na cidade de Lund, mas não aparenta nenhum sinal de satisfação ou entusiasmo em
relação a tal fato.
Percebemos no desenrolar do filme que o Sr. Berg tem vida cáustica, - marcada
pela ausência do amor, por complexos e por frustrações nas relações familiares. A
forma como o filme trata a velhice, fazendo associações da memória e contrastando-a
com a melancolia do fim, capta os sentimentos e a psicologia de um homem que se
aproxima da realidade da morte.
Na segunda sequencia do filme, transcorrida na noite que antecede a viagem para
Lund, o Sr. Borg tem um sonho assombroso, quando se confronta com a visão da morte.
Os planos desta composição mostram o Sr. Borg perdido em meio a ruas desertas e
casas em ruínas da cidade. Ele observa na rua um relógio sem ponteiros e ao olhar seu
relógio de bolso, se perturba por ele também estar sem ponteiros. Esta imagem nos
remete à noção de atemporalidade, escoamento do tempo, fator que evidencia a angústia
do fim.
Desnorteado, o Sr. Borg anda por um lado e outro pelas ruas, quando avista uma
pessoa indefinida, que morre inesperadamente ao ser tocado por ele. Logo após, ouve-se
o barulho dos sinos da igreja e, em tom fúnebre, o barulho de uma carroça se
aproximando. A carroça carrega o caixão de um funeral fantasma. O caixão cai na frente
do Sr. Borg e, para seu espanto, é ele mesmo quem está morto no caixão. O sonho,
carregado de simbolismos, pode ser analisado sob uma perspectiva psicanalítica, pois a
presença freudiana na obra fundamenta e confere a teoria da personalidade, dando a este
personagem um sentimento de atenção e descoberta progressiva, que vive na tentativa
de extrair da vida um sentido maior.
Através de uma dialética sutil, a constante transferência entre sonho e realidade
explora a dimensão da lembrança e da memória para compor as experiências do médico
que se passam num período de apenas 24 horas, mas que nos conduzem a um mergulho
nas profundezas do tempo que permeia entre o passado-presente-futuro. Um trajeto que
equivale a uma vida feita de desvios, imprevistos e improvisos, sob sensações
nostálgicas que embatem com a vida que se esvai.
A mistura de sonho e realidade sem o uso de imagens desfocadas ou qualquer tipo
de aviso ao espectador, se funde em uma amálgama de fatos que progridem em linhas
espirais, por labirintos que se fecham e se transformam em suas retomadas. A câmera
subjetiva sugere sensações, o uso expressivo do close up extrai dos olhos e da expressão
facial do ator a mais profunda verdade.
Analogias com a corrente filosófica existencialista de Kierkegaard permeiam
Morangos Silvestres. A opção que o Sr. Borg assume de renunciar à alteridade, por que
age conforme o que acredita ser a verdade, nos faz viajar por um âmbito estranho que se
dá em busca de uma libertação da alma. As implicações desta liberação surgem e se
intensificam ao trazer questões sobre nossas escolhas e como estas agem diretamente
sobre nós e no outro.
A liberdade, segundo Kierkegaard, gera no homem a angústia que pode leva-lo de
várias formas ao desespero. Portanto, cada decisão é um risco, o que deixa a pessoa
mergulhada na incerteza, pressionada por uma decisão que se torna angustiante.
Ao fim da obra, Bergman parece dizer-nos que de nada vale ter prestígio,
reconhecimento e conhecimento intelectual se não possuímos a capacidade de amar e
viver a vida em sua forma plena. Afrontando o silêncio, somos lançados a interrogações
que nos remetem a uma meditação interior, quando percebemos a impossibilidade de
comunicar o incomunicável, e traduzir o intraduzível.
Referência Bibliográfica
Coleção Folha Cine Europeu. Morangos Silvestres: um filme de Ingmar Bergman. Folha de São
Paulo, v. 5, 2011
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