Fórum Nacional de Crítica Cultural 2 Educação básica e cultura: diagnósticos, proposições e novos agenciamentos 18 a 21 de novembro de 2010 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL TAPETE VERMELHO, UMA RELEITURA DO JECA Kathiuscia Santos de Brito1 Alvanita Almeida Santos2 A produção cinematográfica escolhida para essa análise foi o filme: Tapete Vermelho, dirigido por Luiz Alberto Pereira, uma produção de 2006. Essa produção fílmica foi escolhida devido à diversidade de imagens alusivas à cultura popular que são requisitadas ao longo do filme para compor um cenário onde o saber popular é retomado e reavivado através das aventuras vivenciadas pela família para conseguir assistir ao filme de Mazzaropi. Tapete Vermelho aciona os elementos da cultura popular não só para fazer uma releitura da figura do Jeca, mas para, homenagear o cinema mazzaropiano. A referida produção apresenta como trama cinematográfica a belíssima e encantadora aventura de Quinzinho (Matheus Nachtergaele) para cumprir a promessa feita para seu filho, Neco (Vinícius Miranda) de levá-lo até a cidade, junto com sua mãe Zulmira (Gorete Milagres) e seu burro Policarpo, para assistir a um filme de Mazzaropi. A família parte de sua fazenda no interior paulista, no Vale do Paraíba, e tem as mais diversas e mágicas experiências relacionadas ao imaginário popular. Inicialmente, o recorte escolhido nesse trabalho era o de realizar a análise dos elementos relacionados à cultura popular que se constituía em quatro cenas nas quais ficava clara a preocupação em apresentar as manifestações populares: a promessa de Quinzinho, através da qual se desenrola toda a trama, a dança catira, apresentada na casa de Seu Marcolino, a performance de Zulmira como benzedeira, a cantoria presenciada por Quinzinho no bar do Ico e a sua tentativa em fazer um pacto com o Diabo para se tornar um violeiro famoso. Diante da complexidade que constitui a análise de cada um desses temas, verificou-se a necessidade de concentrar o recorte desse trabalho na promessa de Quinzinho por acreditarse no desejo dessa produção apresentar uma homenagem ao cineasta, produtor e ator Amácio Mazzaropi que, na década de sessenta, conseguiu, através dos seus filmes, levar às telas dos cinemas: os problemas, as aventuras, as peripécias e todo o carisma de um dos mais famosos personagens do cinema brasileiro que foi o Jeca Tatu. 1 2 Graduanda em Letras Vernáculas pela Universidade Federal da Bahia. Professora Adjunta do Instituto de Letras da UFBA Doutora em Letras Anais Eletrônicos | 657 Fórum Nacional de Crítica Cultural 2 Educação básica e cultura: diagnósticos, proposições e novos agenciamentos 18 a 21 de novembro de 2010 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL A incessante busca de Quinzinho na tentativa de assistir a um filme do seu maior ídolo revela um desejo de retomar, reavivar, nessa produção cinematográfica, os elementos da cultura popular que irão compor as imagens relacionadas ao homem rural, sertanejo e caipira que foram apresentadas nos filmes de Mazzaropi. A promessa de Quinzinho em presentear o seu filho, Neco, com a ida à cidade para lhe mostrar um filme do seu ídolo apresenta de forma muito evidente a preocupação dessa produção fílmica em fazer uma homenagem à memória de Mazzaropi, bem como de produzir uma incisiva crítica às produções cinematográficas hollyoodianas. Prova disso é a grande dificuldade enfrentada pela família em encontrar um cinema que estivesse exibindo um filme de Mazzaropi. Esse fato também se constitui em uma metalinguagem dessa produção cinematográfica que faz uma importante crítica ao cinema atual. Essa temática central apresenta através da própria caracterização do figurino dos personagens uma releitura da figura do caipira que, nessa produção, apresenta uma reivindicação para o reconhecimento de um dos maiores personagens do cinema brasileiro que foi o Jeca. Prova disso é o inquietante estranhamento vivenciado por eles com as inovações e com as pessoas que eles encontram na cidade. Há uma preocupação em retratar a inadequação sentida por eles à vida urbana. Além disso, a própria linguagem utilizada pelos personagens reaviva o desejo de uma identificação com a linguagem do caipira. É preciso pensar como o filme pretende estabelecer uma comparação entre Mazzaropi e Quinzinho, que seria o caipira na sua versão atual. Há um desejo dessa produção em estabelecer uma aproximação entre esses dois personagens. O discurso de Quinzinho funciona como uma reinvindicação para que se reconheceça a grandiosa e a rica contribuição dada por Mazzaropi ao cinema brasileiro, ao retomar o personagem do Jeca Tatu. Tapete Vermelho realiza uma denúncia pelo descaso, abandono e pelo esquecimento que as obras mazzaropianas vêm sofrendo ao longo de todos esses anos. Prova disso é a cena em que Quinzinho encontra as latas dos filmes de Mazzaropi abandonadas, empoeiradas. O próprio título do filme se apresenta com uma forma de revitalização, revalorização e o reconhecimento das obras de Mazzaropi, tendo em vista o fato de Quinzinho solicitar para o dono do cinema que fosse posto um tapete vermelho quando a família fosse assistir à exibição do filme. O estudo feito a partir das representações fílmicas de Mazzaropi analisando sua contribuição sociológica para o cinema brasileiro foi realizado por Antônio da Silva Câmara em sua dissertação intitulada: “Mazzaropi e a reprodução da vida rural no cinema Anais Eletrônicos | 658 Fórum Nacional de Crítica Cultural 2 Educação básica e cultura: diagnósticos, proposições e novos agenciamentos 18 a 21 de novembro de 2010 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL brasileiro”. Nesse trabalho, o autor apresenta as contribuições promovidas pelo ator, diretor e produtor, Amacio Mazzaropi ao levar às telas do cinema os problemas comuns ao homem do campo, bem com as suas relações familiares, a sabedoria e coragem com a qual leva sua vida, entre outros aspectos. O referido trabalho também analisa a pouca aceitação das produções mazzaropianas pela crítica nos anos de 1960 e também o seu considerado distanciamento do Cinema Novo, que apesar de ser elogiado pela crítica, se constituía num fracasso de público, o que não ocorria com os filmes de Mazzaropi que eram sucessos de bilheteria. O autor, ao analisar a contribuição sociológica dos filmes de Mazzaropi, discute o distanciamento dessas produções em relação à proposta de um cinema subordinado à indústria cultural. Câmara afirma que as obras mazzaropianas preocupavam-se em representar as camadas populares e dessa forma apresentar uma reflexão e compreensão de sua realidade. Para isso o autor reafirma o papel do cinema na sociedade: Mais moderna forma de arte, o cinema tornou-se pouco a pouco objeto de estudos sociológicos que tentam, a partir de representações fílmicas, compreender os próprios mecanismos sociais da sociedade contemporânea, desvendando, sobretudo a suas formas supra-estruturais.3 Câmara justifica a escolha dos filmes de Mazzaropi para sua pesquisa considerando-o um dos cineastas que representaram o mundo rural no Brasil sem conseguir respaldo dos críticos de cinema: Dentre esses cineastas encontra-se Amacio Mazzaropi, que dedicou quase toda a sua obra à reprodução da vida no campo, tendo sofrido discriminação ou esquecimento por parte dos críticos de cinema. No entanto, a multiplicidade de aspectos da vida camponesa representada por Mazzaropi, simbolizada na figura do Jeca camponês, motivou-nos a escolher para a primeira etapa de nossa pesquisa, os filmes deste cineasta.4 O autor apresenta o contexto histórico, no qual as obras de Mazzaropi situavam-se, pois dessa forma pode-se tentar compreender um dos possíveis motivos para que suas obras fossem alvo de ferrenhas críticas, nas décadas de 1950 e 1960. O possível motivo é a ideologia desenvolvimentista na qual os intelectuais brasileiros estavam pautados, sobretudo o discurso de modernidade apresentado no slogan do governo de JK. O autor afirma que: 3 4 CÂMARA, Antônio da Silva. Mazzaropi e a Soc., Vitória da Conquista, v.6, n.1, 2006. Acesso em: 20 jun 2010 CÂMARA, Antônio da Silva. Mazzaropi e a Soc., Vitória da Conquista, v.6, n.1, 2006. Acesso em: 20 jun 2010. reprodução da vida rural no cinema brasileiro. POLITEIA:Hist.e p.212. Disponível em:<www.uesb.br/politeia/v6/artigo10.pdf>. reprodução da vida rural no cinema brasileiro. POLITEIA:Hist.e p.213. Disponível em:<www.uesb.br/politeia/v6/artigo10.pdf>. Anais Eletrônicos | 659 Fórum Nacional de Crítica Cultural 2 Educação básica e cultura: diagnósticos, proposições e novos agenciamentos 18 a 21 de novembro de 2010 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL Logo, admitia-se a existência do camponês, mas apenas enquanto sujeito ativo da moderna história brasileira: revolucionário, anti-latifundista, com um programa de luta popular e democrático. 5 Segundo Câmara, o diferencial dos filmes de Mazzaropi foi: (...) impor-se durante duas décadas graças à ampla aceitação e o reconhecimento conquistado junto ao público, revelando o lado não revolucionário do camponês brasileiro, particularmente daquele que habitava o interior do Sudeste, os seus hábitos conservadores, mas também a sabedoria e capacidade de enfrentar o mundo urbano através de um comportamento esquivo e dissimulado. (CÂMARA, 2006, p.215)6 O autor apresenta, ao longo do referido trabalho, as críticas que foram feitas aos filmes de Mazzaropi, uma delas pelo famoso escritor Ignácio de Loyola que atribui a essa produção a responsabilidade pelo atraso no país: Nosso povo vive dentro de um estágio cultural condicionado pelo subdesenvolvimento. Sob tal condição, é natural que a exaltação da mediocridade vingue. Compreende-se que o homem do povo aceite, até por desafio, o cinema banal, vulgar, incipiente, imbecil. Falta-lhe, além de um gosto apurado, a oportunidade de conhecer obras superiores. Todavia, quando um homem tido como de cultura, tendo em suas mãos um instrumento de divulgação, senta-se numa poltrona de cinema e aprecia o vulgarismo, a imbecilidade, o primarismo, (e ainda recomenda como de alto teor), então, é o andar para trás. Neste caso, ele se emparelha àquele que, na tela, vende por baixo preço a cretinice .(LOYOLA apud CÂMARA,2006, p. 217)7 Percebe-se a forma cruel e preconceituosa com a qual os filmes de Mazzaropi foram vistos pela crítica. Entretanto também foram verificadas, num segundo momento, algumas posições que se distanciavam da ideologia desenvolvimentista, e começam a reconhecer as contribuições dadas por Mazzaropi ao cinema brasileiro. Jean-Claude Bernadêt, apresenta o seguinte comentário acerca do filme Jeca e Seu Filho Preto na Folha de São Paulo: Está aí o cinema de Mazzaropi atraindo multidões, as multidões que se identificam com os problemas colocados na tela: o trabalhador oprimido, as relações marido-mulher, pais e filhos, religião, etc. Jeca e Seu Filho Preto, seu último lançamento, aborda o problema do racismo e o alia às diferenças sociais e culturais, mas esvazia a questão do racismo vira consangüinidade a impedir um casório. Mazzaropi fica assim: joga questões, tempera com humor, e o público ri até da impossibilidade de resolver qualquer coisa. Mas, verdade seja dita, é dele o cinema mais popular feito por aqui. 5 6 7 CÂMARA, Antônio da Silva. Mazzaropi e a reprodução da vida rural no cinema brasileiro. POLITEIA:Hist.e Soc., Vitória da Conquista, v.6, n.1, 2006. p.214. Disponível em:<www.uesb.br/politeia/v6/artigo10.pdf>. Acesso em: 20 jun 2010. CÂMARA, Antônio da Silva. Mazzaropi e a reprodução da vida rural no cinema brasileiro. POLITEIA:Hist.e Soc., Vitória da Conquista, v.6, n.1, 2006. p.215. Disponível em:<www.uesb.br/politeia/v6/artigo10.pdf>. Acesso em: 20 jun 2010. LOYOLA apud CÂMARA, Antônio da Silva. Mazzaropi e a reprodução da vida rural no cinema brasileiro. POLITEIA:Hist.e Soc., Vitória da Conquista, v.6, n.1, 2006. p.217. Disponível em:<www.uesb.br/politeia/v6/artigo10.pdf>. Acesso em: 20 jun 2010. Anais Eletrônicos | 660 Fórum Nacional de Crítica Cultural 2 Educação básica e cultura: diagnósticos, proposições e novos agenciamentos 18 a 21 de novembro de 2010 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL Não é a toa que Mazzaropi tem sucesso. Mazzaropi só tem sucesso porque seus filmes abordam problemas concretos, reais que são vividos pelo imenso público que acorre a seus filmes. Não é só porque é carreteiro e tem um andar desengonçado. É porque põe na tela vivências e dificuldades de seus espectadores, e se assim não fosse, não teria o sucesso que tem. A temática de “Mazza” são problemas da terra, do camponês oprimido pelo latifundiário, dos intermediários entre o pequeno produtor agrícola e o mercado, das relações entre o marido e mulher, pais e filhos, das religiões populares, etc. Há momentos claros e contundentes nos seus filmes. “Mazza” enfrenta delegados de polícia e fazendeiros.8 Dessa forma, percebe se o reconhecimento dado por Mazzaropi ao cinema brasileiro, bem como a confirmação da capacidade de comunicação dos seus filmes. Diante dos aspectos relacionados à cultura popular que são evidenciados no filme Tapete Vermelho, nota-se a grande preocupação dessa produção cinematográfica em fazer uma releitura, reavivar e reapresentar a figura do Jeca através do elo de comparação que é feito entre Quinzinho, encenado por Matheus Nachetergaele, e o personagem do Jeca Tatu, feito por Amácio Mazzaropi. O andar desengonçado, o próprio sotaque da linguagem caipira e o vestuário dos personagens são alguns dos indícios da proposta de revitalização da figura do Jeca nessa produção. Além disso, percebe-se que uma das grandes preocupações dessa produção trata-se da forma como os elementos da cultura popular são requisitados ao longo do filme para que seja construído um mosaico que garanta uma singularidade, um conjunto completo de manifestações populares para compor o imaginário do homem caipira. Contatou-se que a análise do filme, bem como o estudo sobre o cinema de Mazzaropi feito por Câmara pode fundamentar o pressuposto de que Tapete Vermelho pretende não só retomar a figura do Jeca e fazer uma crítica ao cinema atual, mas, sobretudo, reivindicar e reconhecer as contribuições dadas pelo cinema de Mazzaropi, e, dessa forma, prestar-lhe uma homenagem. Referências CÂMARA, Antônio da Silva. Mazzaropi e a reprodução da vida rural no cinema brasileiro. POLITEIA: Hist.e Soc., Vitória da Conquista, v.6, n.1, 2006. p.211-226. Disponível em:<www.uesb.br/politeia/v6/artigo10.pdf>. Acesso em: 20 jun 2010. LOYOLA,Ignácio de. A contribuição de Mazzaropi para o Retrocesso. Disponível em:<http: www.museumazzaropi.com.br/sucesso.htm>. Acesso em: 20 jun 2010. 8 BERNARDET apud CÂMARA, Antônio da Silva. Mazzaropi e a reprodução da vida rural no cinema brasileiro. POLITEIA:Hist.e Soc., Vitória da Conquista, v.6, n.1, 2006. p.221. Disponível em:<www.uesb.br/politeia/v6/artigo10.pdf>. Acesso em: 20 jun 2010. Anais Eletrônicos | 661 Fórum Nacional de Crítica Cultural 2 Educação básica e cultura: diagnósticos, proposições e novos agenciamentos 18 a 21 de novembro de 2010 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL BERNARDET, Jean-Claude. Nem pornô, nem policial: Mazzaropi. Disponível em:<http: www.museumazzaropi.com.br/sucesso.htm>. Acesso em: 20 jun 2010. Anais Eletrônicos | 662