RELATÓRIO PARCIAL SÓCIO-ANTROPOLÓGICO SOBRE A
OCUPAÇÃO DO HIP HOP, DA GRAFITAGEM E DA PICHAÇÃO EM BELO
HORIZONTE, INVESTIGANDO A VIOLAÇÃO/EFETIVAÇÃO DO DIREITO À
CIDADE.
Relatório parcial do Projeto Internacional de
Pesquisa Cidade e Alteridade, iniciativa conjunta da
UFMG, da UFV, da UI e do CES/UC, sob a
Coordenação Geral da Professora Dra. Miracy Barbosa
de Sousa Gustin e do Prof. Dr. Boaventura de Sousa
Santos, apresentado à Coordenação de Inclusão e
Mobilização Sociais do MPMG. Núcleo temático Cultura
de Rua. Pesquisadores do Núcleo: Ana Beatriz V.
Mendes, Ludmilla Z. Andrade, Mariana F. Gontijo,
Guilherme Abu-Jamra, Guilherme M. D. Debbio,
Eduardo Faria, Guilherme C. M. F. Guimarães, Amanda
C. P. Santos e Pedro Virgílio.
Belo Horizonte
Maio de 2013
PROJETO INTERNACIONAL DE PESQUISA CIDADE E ALTERIDADE
Convivência Multicultural e Justiça Urbana
Coordenação Geral
Profa. Dra. Miracy Barbosa de Sousa Gustin
Prof. Dr. Boaventura de Sousa Santos
Coordenação de gestão e planejamento
Aline Rose Barbosa Pereira
Fernanda de Lazari Cardoso Mundim
Marisa Lacerda
Coordenação de sub-eixos
Aderval Costa Filho
Adriana Goulart de Sena Orsini
Ana Beatriz Vianna Mendes
Ana Flávia Santos
Eloy Pereira Lemos
Iara Menezes Lima
Gregório Assagra de Almeida
Miracy Barbosa de Sousa Gustin
Márcia Helena Batista Corrêa da Costa
Rennan Lanna Martins Mafra
Orientadores de campo
Ana Paula Santos Diniz
Carla Beatriz Marques Rocha e Mucci
Gabriela de Freitas Figueiredo Rocha
Luana Xavier Pinto Coelho
Ludmilla Zago Andrade
Mariana Fernandes Gontijo
Raquel Portugal Nunes
Ricardo Alexandre Pereira de Oliveira
Pesquisadores
Ana Carolina Rodrigues
Ana Flávia Brugnara
Ana Flávia Nogueira
Ana Luiza Rocha de Melo Santos
Clênio de Sousa Rodrigues
Dilson Nascimento
Evandro Alair Camargos Alves
Lilian Nássara Chequer
Lívia Mara de Resende
Lucélia de Sena Alves
Marcela Müller
Maria Antonieta Gonçalves dos Santos
Patrícia Rodrigues Rosa
Paula Cançado
2
Fábio André Diniz Merladet
Fernando Nogueira Martins Júnior
Grazielly de Oliveira Spínolla
Isabella Gonçalves Miranda
Paulo Alves Lins
Raíssa de Oliveira Murta
Raquel Letícia Soares Martins
Estudantes
Ananda Martins Carvalho
Juliana da Silva Rosa
Bárbara de Moraes Rezende
Lívia Bastos Lages
Bruno Menezes Andrade Guimarães
Nayara Rodrigues Medrado
Cátia Meire Resende
Patrícia Dias de Sousa
Gislaine Alves Rodrigues
Pedro de Aguiar Marques
Guilherme Abu-Jamra
Rayanna Fernandes de Souza Oliveira
Guilherme Mendonça Del Debbio
Regiane Valentim Leite
Humberto Francisco F. C. M. Filpi
Thaís Lopes Santana Isaías
João Pedro Lima de Guimarães Vargas
Yuri Alexandre dos Santos
Equipe responsável pelo relatório:
Pesquisa e redação: Núcleo Cultura de Rua
Coordenadora: Profa. Dra. Ana Beatriz Vianna Mendes
Orientadores de Campo: Dra. Ludmilla Zago Andrade
Ms. Mariana Fernandes Gontijo
Pesquisadores: Guilherme Mendonça Del Debbio
Guilherme Abu-Jamra
3
SUMÁRIO
CAPÍTULO 1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
6
CAPÍTULO 2. ARCABOUÇO TEÓRICO-METODOLÓGICO
10
2.1. Abordagem etnográfica
10
2.2 O conceito de cidade, de cultura e de Estado
14
2.3 A cidade como lócus da ordem e da potência
20
CAPÍTULO 3. O GRAFFITI
26
3.1 O graffiti como inscrição do indivíduo na cidade
34
CAPÍTULO 4. O PIXO
37
4.1. Relato das conversas com os pixadores
39
4.2. Pixo, autoria e identidade
42
4.3. A experiência com o pixo no trabalho das Medidas Socioeducativas
46
CAPÍTULO 5. O GRAFFITI E A PIXAÇÃO: EMBATES COM O DIREITO
51
5.1. Primeiro relatório de campo: grafitti, pixação e Estado
52
5.2. Segundo relatório de campo: o graffiti como cultura
64
5.3. Reflexões sobre a cultura da pixação e o direito formal
69
CAPÍTULO 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS: INSCRIÇÕES NOS MUROS, DEMOCRACIA E
DIREITO À CIDADE
73
4
CAPÍTULO 7. EPÍLOGO FOTOGRÁFICO DOS MUROS DO ENTORNO DO DUELO DE
MCS: INTERAÇÕES ENTRE PIXO E GRAFFITI
78
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
89
ANEXOS
99
Roteiro semi-estruturado aplicado aos graffitiiros
99
Roteiro semi-estruturado a ser aplicado aos pixadores
101
Lei 12.408/11:
102
Transcrição de algumas frases pixadas pela cidade:
103
5
CAPÍTULO 1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O foco do presente relatório gira em torno de concepções de direito à cidade a
partir de alguns grupos e indivíduos que aqui definimos como “atores da cultura de rua”, a
saber: pichadores e grafiteiros. Com efeito, embora muitos outros atores possam ser
também investigados sob esta categoria ampla e inclusiva, “cultura de rua” – a ser melhor
definida no próximo capítulo –, a equipe centrou seus objetivos nos atores citados por
questões de interesse pessoal dos pesquisadores e por considerar que eles permitem o
aprofundamento
de
algumas
questões
específicas
de
grande
relevância
para
compreender a pluralidade de sujeitos, e, em especial, a pluralidade desses sujeitos, que
dialogam com o acesso e o direito à cidade. Isso implica em compreender as complexas
questões identitárias que os aproxima e os distancia e como eles se identificam. Dentre
elas, de modo mais específico, o diálogo desses atores com o poder público.
A partir da investigação feita junto a esses atores da cultura de rua e buscando
compreender as perspectivas deles próprios, entende-se o aparato estatal, como apenas
um dos elementos que constituem esses indivíduos e grupos enquanto tais, e cuja
importância tem variações em graus diversos que vão da ordem do indivíduo à
conformação de aspectos mais categóricos de grupos. Ou seja, ainda que em termos
legais haja uma definição aparentemente clara entre pixadores e grafiteiros, conforme
discussão jurídica feita especialmente no quinto capítulo, os próprios grafiteiros e
pixadores se concebem de formas variadas em relação ao Estado, àquilo entendido
como legal e ao que é ilegal, à ‘ordem’ e à ‘desordem’, sugerindo relativizar as fronteiras
que dividem e identificam esses atores.
O presente relatório é fruto de investigações que foram realizadas por equipe
interdisciplinar1, aproximadamente desde o segundo semestre de 2010, na cidade de Belo
1
A equipe é composta por um aluno de graduação em Ciências Sociais (Guilherme Abu-Jamra); um
psicólogo (Guilherme del Debbio); uma mestre em Direito (Mariana Gontijo); uma doutora em Literatura e
psicanalista (Ludmilla Zago) e uma doutora em Antropologia (Ana Beatriz Vianna Mendes), que é a
coordenadora do sub-eixo.
6
Horizonte. Vale destacar, entretanto, as especificidades da atuação dos pesquisadores,
que têm inserções distintas – em termos temporais, espaciais e funcionais – em relação
ao campo de investigação.
Há resultados preliminares de incursão realizada por um dos integrantes da equipe
na cidade de Porto (Portugal), onde o mesmo realiza intercâmbio estudantil2. Os
resultados de suas observações complementam-se àqueles já obtidos por ele após mais
de um ano de pesquisas em Belo Horizonte, permitindo a comparação dos dados das
duas cidades nos temas por ele trabalhados (especialmente o graffiti). Além disso, ao
longo da pesquisa, uma das integrantes do projeto defendeu sua dissertação de mestrado
em Direito, na Universidade Federal de Minas Gerais3. Alguns dos resultados de sua
dissertação também compõem os resultados parciais aqui apresentados. Há, ainda, um
dos integrantes da pesquisa que traz uma análise das observações que fez durante sua
atuação como técnico da Prefeitura de Belo Horizonte para definição de medidas
socioeducativas de prestação de serviço à comunidade4, junto a crianças e adolescentes
que cometeram o ato infracional do pixo. E, finalmente, duas das pesquisadoras têm
atuado de forma bastante intensa como mediadoras e têm assessorado os atores
estudados em direção ao seu empoderamento5.
Desta forma, deve-se reconhecer a construção do conhecimento aqui apresentado
a partir da diversidade de olhares lançada sobre os atores estudados, que são também
diversos e cuja constituição identitária é complexa. É justamente a riqueza dos olhares
lançados sobre esses atores plurais que permite considerar de forma mais ampla e
diversificada aspectos que estão envolvidos na relação desses grupos e indivíduos entre
si e com o poder público e o direito à cidade.
2
Trata-se de Guilherme Abu-Jamra, que chegou em Porto em agosto de 2012, através do programa Ciência
sem fronteiras, e lá permanecerá até agosto de 2013.
3
GONTIJO, Mariana Fernandes. O direito das ruas: as culturas do graffiti e do hip hop como constituintes
do patrimônio cultural brasileiro. 2012, 88f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito,
Universidade Federal de Minas Gerais, 2012.
4
Conforme preconizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, de 1990), a ser melhor
descrito no sub-item 4.3.
5
Mariana Gontijo tem acompanhado como advogada dos réus, às vezes em parceria com a Divisão de
Assistência Judiciária – DAJ, da Faculdade de Direito da UFMG, alguns casos de processos judiciais
envolvendo pixo. Tem também assessorado a “Família de Rua”, que é o coletivo que organiza o duelo de
MCs a constituir o Estatuto Cultural. Ludmilla Zago tem proposto, a partir de sua atuação na organização
não governamental Pacto e de demandas da Família de Rua, discussões sobre o uso e ocupação do
espaço onde ocorre o duelo de MCs – embaixo do Viaduto Santa Teresa. São reuniões quinzenais
chamadas de “Real da Rua”.
7
Cabem ainda alguns comentários relativos à grafia utilizada no presente relatório.
Etimologicamente, ‘pichação’ remete a ‘piche’, “substância negra, resinosa, muito
pegajosa, obtida da destilação do alcatrão ou da terebintina”, do inglês pith. (CUNHA,
2007). O termo ‘grafite’, por outro lado, tem sua raiz etimológica fundamentada no termo
grego grapheín, designando “escrever, descrever, desenhar” (Cunha, 2007). Neste
sentido, grafite abarcaria tanto o que hoje reconhecemos genericamente no Brasil como
‘picho’ quanto o que reconhecemos como grafite. Por outro lado, do ponto de vista do
vocabulário6, ainda que com raízes etimológicas distintas, pichar e grafitar remetem, no
sentido que aqui interessa, ‘a inscrições, assinaturas ou desenhos feitos em muros ou
paredes’. Ou seja, são termos praticamente indistintos.
No Brasil, entretanto, histórica e sociologicamente, convencionou-se distinguir entre
pichar e grafitar. E essa distinção está referida e foi reconhecida pelo aparato jurídico
brasileiro e certamente tem algum tipo de respaldo sociológico. O presente relatório,
embora não seja um estudo etimológico, pretende contribuir para compreender as razões
desta distinção a partir de análise socioantropológica dos grupos que praticam essas
ações, bem como a partir da interpretação das normas e atuações do poder público na
cidade de Belo Horizonte diante destes atos. Trata-se, não obstante, de um relatório
preliminar.
Conforme nos alerta Sahlins (2003), os significados das categorias sociais sempre
correm riscos empíricos, pois são sempre mediados:
Qualquer uso real de um signo em referência, seja por uma pessoa, seja por um
grupo, emprega apenas uma parte, uma pequena fração, do sentido coletivo.
Afora as influências do contexto, essa divisão do trabalho significativo é, de um
modo geral, função das diferenças de experiência social e dos interesses entre as
pessoas. (...) Agindo a partir de perspectivas diferentes e com poderes sociais
diversos para a objetivação de suas interpretações, as pessoas chegam a
diferentes conclusões e as sociedades elaboram os consensos, cada qual a sua
maneira. A comunicação social é um risco tão grande quanto as referências
materiais” (SAHLINS, 2003: 10. Grifos nossos).
6
Conforme consulta feita ao Dicionário eletrônico Priberam, que consideramos como uma fonte atualizada e
de amplo acesso a informações sobre palavras, pichar assume três sentidos: “1. Aplicar piche ou pez a. 2.
Escrever ou desenhar em grandes superfícies como muros ou paredes. 3. (Brasil, Informal) Dizer mal de. =
escarnecer, espinafrar, maldizer”. Grafitar, por sua vez, remete ao sentido da palavra francesa graphite, que
diz respeito ao “carvão mineral que é usado para escrever ou desenhar”; e ao sentido italiano da palavra
graffito, que diz respeito à “técnica de incisão com ponta em superfície dura” e, no Brasil, remete a
“Desenho, inscrição, assinatura ou afim, feito com tinta, geralmente de spray, feito em muros, paredes e
outras superfícies urbanas”. Disponível em: http://www.priberam.pt. Acessado em 18/05/2013.
8
Assim, ainda no terreno das questões envolvendo grafia, e partindo dos resultados
parciais já atingidos, opta-se aqui por utilizar ‘pixo’ – e seus derivados: pixação, pixador,
etc. O estranhamento causado por este tipo de grafia remete ao contexto mais amplo de
exclusão experienciado por parte da população que se reconhece como pixadora:
A pixação é, neste sentido, a assinatura compulsiva de um direito à cidade. Um
abaixo-assinado, às vezes surdo, às vezes cego, pleno de erros, analfabeto,
precário em sua retórica, mas que, em sua forma e conteúdo, sinaliza um retrato
em negativo da verdade quanto ao espaço – e nosso modo de percebê-lo – nas
sociedades urbanas. Espaço atravessado, estraçalhado, pela exclusão social
7
(Tiburi)
Mesmo que em termos jurídicos e gramaticais tenha se convencionado utilizar a
grafia ‘picho’ – o que se reflete, de um modo geral, na bibliografia científica produzida
sobre o tema –, no presente relatório priorizamos explicitar graficamente o aspecto
transgressor do pixo. Esta opção está ancorada também em aspectos estéticos:
A revolta geral da sociedade contemporânea contra a pichação se ampara na
hipótese de seu caráter violento. Usarei a expressão pixação, com X, para tentar
tocar no X da questão. A estética da brancura ou do liso dos muros, hegemônica
em uma sociedade que preserva o ideal da limpeza estética, dificulta outras
leituras do fenômeno da pixação. O excessivo amor pela lisura dos muros, a
sacralização que faz da pixação demônio, revela enquanto esconde uma estética
da fachada (Tiburi)8.
Em certo sentido, a partir das concepções de alguns atores que se reconhecem
como grafiteiros, há também entre eles, a contestação dessa estética de fachada e seria
coerente estender a subversão gráfica que fazemos com relação ao ‘pixo’ também a eles.
Mas vale ressaltar que classificação desses grupos, o poder de nomeação dos mesmos é
também algo que está em debate. E o fato de eles se afirmarem grafiteiros e
transgressores, deve ser considerado seriamente.
Os homens em seus projetos práticos e em seus arranjos sociais, informados por
significados de coisas e de pessoas, submetem as categorias culturais a riscos
empíricos. Na medida em que o simbólico é, deste modo, pragmático, o sistema é,
no tempo, a síntese da reprodução e da variação (SAHLINS, 2003: 9. Grifos
nossos).
7
TIBURI, Marcia.
135. Disponível
22/02/2013.
8
TIBURI, Marcia.
135. Disponível
22/02/2013.
“Pensamento Pixação - Para questionar a estética da fachada”. Revista Cult Uol, Edição
em: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/pensamento-pixacao/. Acessado em:
“Pensamento Pixação - Para questionar a estética da fachada”. Revista Cult Uol, Edição
em: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/pensamento-pixacao/. Acessado em:
9
Trata-se, portanto, de considerar os aspectos de autoclassificação e atribuição de
sentidos por parte desses atores de cultura de rua, mais do que atribuir às suas
categorias sentidos nossos. Do ponto de vista da bibliografia sobre o tema, a grafia tem
comumente variado entre ‘graffiti’ e ‘grafite’, sendo o segundo termo empregado mais
genericamente também em outros contextos (leis, reportagens, dicionários). Optamos
aqui por utilizar o termo ‘graffiti’, pois é como boa parte dos grafiteiros usa o termo.
Quanto à distinção entre graffiti e pixo é preciso atentar ao fato de que:
“classificar consiste nos atos de incluir e excluir. Cada ato nomeador divide o
mundo em dois: entidades que respondem ao nome e todo o resto que não.
Certas entidades podem ser incluídas numa classe – tornar-se uma classe –
apenas na medida em que outras entidades são excluídas, deixadas de fora.
Invariavelmente tal operação de inclusão/exclusão é um ato de violência
perpetrado contra o mundo e requer o suporte de uma certa dose de coerção”
(BAUMAN, 1999:11).
A antropologia fornece ferramentas pertinentes para compreender os sentidos
dados pelos outros às coisas, conforme será trabalhado no próximo capítulo, que discute
o arcabouço teórico-metodológico da pesquisa. Na sequencia, no terceiro capítulo, a
ênfase é na pesquisa feita por Guilherme Abu-Jamra e Mariana Gontijo sobre o graffiti. No
quarto capítulo, seguem os relatos e reflexões suscitadas a partir da pesquisa com os
pixadores, por parte de Ludmilla Zago e Guilherme Del Debbio. No quinto capítulo são
feitas análises densas sobre processos envolvendo o poder público e os atores
enfocados, por Mariana Gontijo. No sexto capítulo, são tecidas algumas considerações
finais. E, finalmente, no sétimo capítulo, Ludmilla convida o leitor, com um ensaio
fotográfico a perceber a interação entre pixo e graffiti numa situação específica.
CAPÍTULO 2. ARCABOUÇO TEÓRICO-METODOLÓGICO
2.1. Abordagem etnográfica
Toma-se como premissa que reconhecer as manifestações dos sujeitos sociais na
e da cidade, suas diversas formas de ocupação, uso e expressão cultural, para além das
formalizações, implica entender e valorizar o uso e a democratização da própria cidade,
10
além de propiciar o questionamento da imposição e do predomínio do sentido absoluto da
mercantilização sobre a mesma (SANTOS, 2009; LEFEBVRE, 2001, 2006; VAINER,
2000; BOURDIEU, 2001). Trata-se aqui, portanto, de dar visibilidade e reconhecimento a
formas de vivência e expressão na cidade que, via de regra, são marginalizadas.
Vale ressaltar que o embasamento teórico-metodológico da pesquisa, apresentado
nesse capítulo, tem grandes semelhanças com o que foi usado na tese da Coordenadora
do sub-eixo da Cultura de Rua (Mendes, 2009).
A antropologia de um modo geral tem como objeto de estudo a alteridade. A partir
do convívio intenso e de um olhar e ouvir treinados que permitam obter o que os
antropólogos chamam de 'modelo nativo’ (OLIVEIRA, 2000: 22), busca-se compreender
os sentidos atribuídos pelos mais diversos grupos às mais variadas coisas do mundo. A
ideia é que o ‘nativo’ amplie a percepção do antropólogo.
Como disse Mariza Peirano:
“notoriamente preocupada com a peculiaridade do objeto de pesquisa, a
antropologia talvez seja, dentre as ciências sociais, paradoxalmente, a mais
artesanal e a mais ambiciosa: ao submeter conceitos preestabelecidos à
experiência de contextos diferentes e particulares, ela procura dissecar e
examinar, para então analisar a adequação de tais conceitos” (Peirano, 1995: 15).
É muito frequente, neste processo, que ocorra um desarranjo dos pressupostos de
pesquisa (QUEIROZ, 1991; WAGNER, 2010; OLIVEIRA, 2000; DAMATTA, 1978;
CARDOSO, 2000; GEERTZ, 1973).
“A atitude hermenêutica supõe uma tomada de consciência com relação às
nossas opiniões e preconceitos que, ao qualificá-los como tais, retira-lhes o
caráter extremado. É ao realizarmos tal atitude que damos ao texto a possibilidade
de aparecer em sua diferença e de manifestar a sua verdade própria em contraste
com as ideias preconcebidas que lhe impúnhamos antecipadamente”. (Gadamer,
1998:64).
Clifford Geertz (1973), apoiado na leitura do filósofo francês Paul Ricoeur, afirma
que a sociedade (ou cultura) pode ser interpretada como um texto, com a aplicação dos
métodos interpretativistas da hermenêutica. A hermenêutica aparece como método
privilegiado para as ciências humanas em geral, e para a antropologia em particular, pois
pressupõe uma apreensão da realidade relacional – e não absoluta. Assim,
“a hermenêutica deve partir do fato de que compreender é estar em relação, a um
só tempo, com a coisa mesma que se manifesta através da tradição e com uma
tradição de onde a ‘coisa’ possa me falar. Por outro lado, aquele que efetua uma
compreensão hermenêutica deve se dar conta de que a nossa relação com ‘as
11
coisas’ não é uma relação que ‘ocorra naturalmente’, sem criar problemas.
Precisamente sobre a tensão que existe entre a ‘familiaridade’ e o caráter
‘estranho’ da mensagem que nos é transmitida pela tradição é que fundamos a
tarefa hermenêutica. (...) No que se refere ao caráter a um só tempo ‘familiar’ e
‘estranho’ das mensagens históricas, a hermenêutica reivindica uma ‘posição
mediadora’. O intérprete encontra-se suspenso entre o seu pertencimento a uma
tradição e a sua distância com relação aos objetos que constituem o tema de suas
pesquisas”. (Gadamer, 1998:67).
Segundo Roberto Cardoso de Oliveira (2000), ao ir a campo, o olhar do
antropólogo deve estar domesticado teoricamente, pois o objeto que pretendemos estudar
já foi moldado pelo esquema conceitual da disciplina. Este esquema conceitual "funciona
como uma espécie de prisma por meio do qual a realidade observada sofre um processo
de refração" (Oliveira, 2000:19) e forma nossa maneira de ver a realidade. Mas é preciso
estar atento a como se posicionar em relação ao entrevistado:
“No ato de ouvir o informante, o etnólogo exerce um poder extraordinário sobre o
mesmo, ainda que pretenda posicionar-se como observador o mais neutro
possível, como pretende o objetivismo mais radical. Esse poder, subjacente às
relações humanas - que autores como Foucault jamais se cansaram de denunciar
- já na relação pesquisador/informante desempenhará uma função profundamente
empobrecedora do ato cognitivo: as perguntas feitas em busca de respostas
pontuais lado a lado da autoridade de quem as faz - com ou sem autoritarismo criam um campo ilusório de interação. A rigor, não há verdadeira interação entre
nativo e pesquisador, porquanto na utilização daquele como informante, o
etnólogo não cria condições de efetivo diálogo. A relação não é dialógica. Ao
passo que, transformando esse informante em 'interlocutor', uma nova modalidade
de relacionamento pode - e deve - ter lugar” (Oliveira, 2000:23).
A partir do momento em que se percebe isto - e este é um esforço declarado dos
hermeneutas ou "interpretativistas" - o trabalho de campo, que exigia praticamente um
simples "estar lá", de forma neutralizada para entrevistar e observar os nativos, cai em
desuso. Supõe agora um ver e ouvir muito mais dialógicos, em que pese um esforço para
compreender o sentido que o nativo sustenta enquanto seu interlocutor e, como tal, este
se esforce também por ouvir o que o antropólogo tem a dizer. Para citar Roberto Cardoso
novamente, a relação dialógica permite que os horizontes semânticos em confronto
abram-se um ao outro, e se transformem em um "encontro etnográfico":
Cria-se, então, um espaço semântico compartilhado por ambos interlocutores,
graças ao qual pode ocorrer aquela 'fusão de horizontes' - como os hermeneutas
chamariam este espaço. Mas para isso é preciso que o pesquisador tenha a habilidade de
ouvir o nativo e por ele ser igualmente ouvido, encetando formalmente um diálogo entre
12
'iguais', sem receio de estar, assim, contaminando o discurso do nativo com elementos de
seu próprio discurso. Mesmo porque, acreditar ser possível a neutralidade absoluta, é
apenas viver em uma ilusão (Oliveira, 2000:24).
Ainda sob esse aspecto, há que se destacar que "o campo te obriga na
Antropologia. [...] Eu não faço o que quero, eu faço o que posso" (Amaral, apud Vagner
2000:31). Por isso, o resultado deste trabalho é sem dúvida parcial e marcado por esta
idiossincrasia – que, ademais, todos os trabalhos etnográficos devem comportar: a de
serem fruto de situações e interações específicas, com pessoas específicas, e em
contextos também característicos.
“’A realidade etnográfica é construída ativamente, para não dizer inventada
(Dumont 1978:66). Escrever um texto autenticamente antropológico não é
apresentar uma realidade absoluta, mas dar forma a dois tipos de
atividades convencionais (entre conversas, traduzir palavras faladas em
palavras escritas), e, portanto, escrever a realidade social. A verdade do
relato antropológico é, como na formulação de Wagner, que antropólogos
inventam a cultura para seus informantes: ela é o que eles imaginam ser
uma explicação plausível do que se entende que os informantes
geralmente estão fazendo” (Rapport & Overing, 2000:305)9.
Deve-se depreender de toda essa discussão que, embora os pesquisadores deste
sub-eixo não sejam, em sua maioria, antropólogos e não tenham feito, stricto sensu,
etnografia sobre esses atores, as indicações metodológicas para o desenvolvimento das
pesquisas caminharam nesta direção. Assim, os relatos aqui apresentados seguiram
esses pressupostos metodológicos para obtenção do conhecimento sobre o objeto
investigado. Portanto, neste relatório são apresentados relatos específicos, produzidos,
explicitamente por cada pesquisador e sua relação com o campo, conforme se
depreenderá da leitura do capítulo. O fato de terem sido incluídos dessa forma neste
relatório parcial, entretanto, não significa que o grupo não esteja de acordo com as ideias
expressas pelos relatos individuais de cada um. Ao contrário. Indica que os
9
Livre tradução do texto: “’Ethnographic reality is actively constructed, not to say invented’ (Dumont
1978:66). To write an authentic anthropological text is less to represent an absolute reality than to fabricate a
fit of a particular generic kind between two types of conventional activity (exchanging spoken words and
arranging written words), and hence to write social reality. The truth of anthropological account, as Wagner´s
celebrated formulation, is that anthropologists invent a culture for their informants: here is what they imagine
to be a plausible explanation of what they understand them generally to have been doing” (Rapport &
Overing, 2000:305).
13
pesquisadores reconhecem a pluralidade de vozes sobre os temas tratados e que
endossam a legitimidade desses relatos, plurais, sobre os temas tratados.
Cabe mencionar também que além de levantamento e análise bibliográfica relativa
aos temas que são objeto desta pesquisa, o grupo realizou reuniões com uma frequência
média mensal para discutir e trazer relatos sobre as observações feitas por cada um dos
pesquisadores, discutir referências bibliográficas e encaminhar questões diversas. Além
desses encontros, eventualmente alguns pesquisadores realizaram atividades de
pesquisa de campo conjuntas. Mas, de um modo geral, cada pesquisador estabeleceu
relações específicas com os indivíduos e grupos investigados e os relatos aqui
apresentados refletem essa condição. De um modo geral, todos realizaram entrevistas
semiestruturadas, observação participante, registro em caderno de campo, conversas
informais e registros fotográficos como técnicas de pesquisa. Questões metodológicas
mais específicas, quando for o caso, serão explicitadas quando da apresentação do
respectivo relato. Todos os nomes de pixadores foram substituídos por nomes fictícios.
No caso de outros atores da cultura de rua, cuja ação não é criminalizada, os nomes
verdadeiros foram mantidos.
2.2. O conceito de cidade, de cultura e de Estado
A partir da abordagem teórica proposta por Lefebvre (2001, 2006) para
compreender a cidade, esta pesquisa situa-se na investigação da inter-relação entre o
espaço abstrato e o espaço social. Segundo esse autor, espaço abstrato é o que se
impõe como norma e se estabelece em institucionalidades determinadas pelo Estado e
pelo aparato de reprodução da lógica socioespacial hegemônica. Por outro lado, o espaço
social representa a dinâmica da vida na cidade, as múltiplas formas de apropriação e de
vitalidade dos espaços, e as possibilidades do fazer social no cotidiano.
Refletindo, portanto, de um lado, sobre os aparatos administrativo, jurídico e
institucional que definem as liberdades, os direitos e os deveres em relação ao Estado e
ao cidadão para com a cidade; e de outro, a realidade fática dos diversos usos e
apropriações que ocorrem na cidade – à revelia, em conformidade ou a despeito de todo
o aparato estatal –, esta pesquisa busca investigar as formas de subversão, de parte a
parte, com a ordem estabelecida. Ou seja, tanto os agentes públicos que representam o
14
Estado gestor da cidade, quanto dos diversos grupos de cultura de rua como atores que
ocupam, criam e vivenciam a cidade.
Trata-se de abordar, portanto, o diálogo, às vezes mais direto, mas muitas vezes
implícito, entre o que está no universo das leis e o que ocorre na prática em relação ao
direito à cidade. Entretanto, a abordagem teórico-metodológica com relação ao universo
jurídico, formal e oficial não difere completamente da que é feita com relação ao universo
da ‘prática em relação ao direito à cidade’. Há, ao contrário, pontos em comum bastante
significativos.
Tanto no universo das leis e atos do poder público quanto no universo sociológico
dos atores da cultura de rua há, em alguma medida, subversão entre o que existe em
termos normativos (sejam esses formalizados pelo Estado, ou pelos grupos sociais, são
objeto de estudo deste trabalho) e o que ocorre na prática. Ou seja, em ambos os casos,
existe, de um lado, o modelo ideal e, de outro, a ação real dos sujeitos. Aquele risco que
as categorias sociais correm na realidade empírica (Sahlins, 2003), por exemplo, é
também ele, de forma específica, compartilhado a partir de uma análise sobre raciocínio
jurídico de que se reveste o sistema judiciário do Estado brasileiro. Eduardo Couture10
tem posicionamento bastante eloquente com relação ao papel criativo e democrático da
interpretação das normas jurídicas:
“[...] é verdade que, em cada atitude interpretativa, existe um pressuposto, ou,
como se disse, um substrato filosófico. Interpretar é, ainda que inconscientemente,
tomar partido por uma concepção do Direito, o que significa dizer, por uma
concepção de mundo e da vida. Interpretar é dar vida a uma norma. Esta é uma
simples proposição hipotética de uma conduta futura. Assim sendo, é um objeto
ideal, invisível (já que o texto escrito é a representação da norma, mas não a
própria norma) e susceptível de ser percebido pelo raciocínio e pela intuição. O
raciocínio e a intuição, todavia, pertencem a um determinado homem e, por isso,
estão prenhes de subjetivismo. Todo intérprete é, embora não o queira, um
filósofo e um político da lei” (COUTURE, 1956:23).
Joaquim Gomes Canotilho, por seu turno, ressalta que o direito criado pelos juízes,
a partir das normas de decisão dos casos concretos, “constitui um dos momentos mais
significativos da pluralização das fontes de direito” (CANOTILHO, 2003: 705). Além disso,
10
Este autor foi citado por Alexandre Corrêa Leite, juiz de direito, para fundamentar sua decisão de
indeferimento à liminar de reintegração de posse requerida por parte de proprietários que tiveram suas
terras invadidas por integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra no Estado do Pará (Autos
n°5018/03). COUTURE, Eduardo. Interpretação das Leis Processuais. Max Limonad (1956:23). A decisão
está disponível no site: < http://www.incra.gov.br/arquivos/0269700270.pdf>, acessado em 26/01/2009.
15
acrescenta que “o direito constitucional é um direito ‘vivo’, é um ‘direito em ação’ e não
apenas um ‘direito nos livros’”.
A esta assertiva relaciona-se, em segundo lugar, o fato de que tanto os processos
sociais, quanto o aparato jurídico das sociedades têm historicidade, pois são marcados
pelas mudanças “dos carecimentos e dos interesses, das classes no poder, dos meios
disponíveis para a realização dos mesmos, das transformações técnicas, etc.” (BOBBIO,
1992: 18). De modo que direitos que eram absolutos no final do século XVIII, como o
direito à propriedade, nas declarações contemporâneas, sofreram radicais limitações.
Ou, para usar as palavras de Norberto Bobbio, “os direitos não nascem todos de
uma vez. Nascem quando devem ou podem nascer” (BOBBIO, 1992: 6):
“O desenvolvimento dos direitos do homem passou por três fases: num primeiro
momento, afirmaram-se os direitos de liberdade, isto é, todos aqueles direitos que
tendem a limitar o poder do Estado e a reservar para o indivíduo, ou para os
grupos particulares uma esfera de liberdade em relação ao Estado; num segundo
momento, foram propugnados os direitos políticos, os quais – concebendo a
liberdade não apenas negativamente, como não-impedimento, mas positivamente,
como autonomia – tiveram como consequência a participação cada vez mais
ampla, generalizada e frequente dos membros de uma comunidade no poder
político (ou liberdade no Estado); finalmente, foram proclamados os direitos
sociais, que expressam o amadurecimento de novas exigências – podemos
mesmo dizer, de novos valores –, como os do bem-estar e da igualdade não
apenas formal, e que poderíamos chamar de liberdade através ou por meio do
Estado” (BOBBIO, 1992: 32, 33. Grifos conforme o original).
Disso decorre que, finalmente, e em terceiro lugar, pode-se tomar como ponto de
partida que o Estado Moderno, tanto quanto o sistema jurídico que lhe serve de
fundamento e esteio são entes morais, posto que “cabe-lhes a tarefa de inculcar nos
indivíduos os padrões de conduta, os costumes e valores da sociedade em que vivem”
(CHAUÍ, 2006: 340).
Nos termos de Davis (1973:10), o direito constitui uma forma específica de
ideologia social, pois “é uma linguagem através da qual as sociedades culturalmente
expressam conceitos de direitos e deveres legais entre os homens”. Foucault é mais
crítico, mas segue na mesma linha ao afirmar que “o sistema do direito, o campo judiciário
são canais permanentes de relações de dominação e técnicas de sujeição polimorfas. O
direito deve ser visto como um procedimento de sujeição, que ele desencadeia, e não
como uma legitimidade a ser estabelecida” (FOUCAULT, 1979: 182).
16
Assim, as ações dos atores de cultura de rua aqui enfocadas, situam-se entre
constrições de éticas normativas impostas pelo Estado e seu aparato jurídico – também
ele, histórico e constituído como um campo de disputas; e éticas locais, baseadas na
razão, na vontade e nas paixões de sujeitos éticos com vista à felicidade (CHAUÍ: 2006:
340). Por sujeitos éticos se compreende seres racionais e conscientes que sabem o que
fazem, livres para decidir e escolher o que fazem, e responsáveis pelo que fazem
(CHAUÍ: 2006: 340). Segundo Marilena Chauí:
“a ação ética só é virtuosa se for livre e só será livre se for autônoma, isto é, se
resultar de uma decisão interior ao próprio agente e não vier da obediência a uma
ordem, a um comando ou a uma pressão externos. Como a palavra autonomia
indica, é autônomo aquele que é capaz de dar a si mesmo as regras e normas de
sua ação” (Idem, 341).
Vale ressaltar que referida razão dos sujeitos éticos deve ser vista de uma
perspectiva singular, condizente com os termos de autonomia e liberdade referidos pelo
próprio agente, e não vindos – unicamente – de uma instância superior e inquestionável.
Evidentemente, ela insere-se em instâncias diversificadas que impõem, acolhem,
escamoteiam e subsumem suas prerrogativas, o que significa que os sujeitos éticos estão
a todo o momento fadados a negociar suas aspirações com os demais sujeitos éticos e
instâncias reguladoras da sociedade.
A pesquisa sobre os sujeitos que manifestam suas linguagens culturais nas ruas
possibilita o entendimento das percepções desses atores sobre suas condições de vida,
sobre seus anseios, sinalizando possíveis formas de intervenção capazes de romper com
certa lógica homogeneizadora que desqualifica a vida plural e impede o exercício do
direito à cidade aos marginalizados que nela vivem, atuam e dela constroem sua
sobrevivência e suas formas de interações múltiplas.
Michel Agier, antropólogo francês, sugere uma abordagem interessante para
aplicar ao estudo da cidade ênfase nos atores e suas agências:
“(...) duas operações de ordem epistemológica [são] necessárias para uma
antropologia da cidade, considerada como aplicação de uma antropologia social e
simbólica dos espaços contemporâneos: primeiro, deslocar o ponto de vista da
cidade para os citadinos (...); em segundo lugar, deslocar a própria problemática
do objeto para o sujeito, da questão sobre o que é a cidade – uma essência
inatingível e normativa – para a pergunta sobre o que faz a cidade. O próprio ser
da cidade surge, então, não como um dado mas como um processos, humano e
vivo, cuja complexidade é a própria matéria da observação, das interpretações e
das práticas de ‘fazer a cidade’” (Agier, 2011: 38-9).
17
Vale mencionar que em 1980, Ulf Hannerz propõe tomar as cidades como “lugares
estratégicos para pensar a cultura em termos de uma organização da diversidade”
(Hannerz, 1980: 199). Para entender a “cultura de rua” a partir da agência dos atores aqui
enfocados, parte-se ideia de que:
[...] em vez de comparar culturas que operariam como sistemas preexistentes e
compactos, com inércias que o populismo celebra e a boa vontade etnográfica
admira por causa da sua resistência, trata-se de prestar atenção às misturas e aos
mal-entendidos que vinculam os grupos. Para entender cada grupo, deve-se
descrever como se apropria dos produtos materiais e simbólicos alheios e os
reinterpreta. [...] Naturalmente, não só as misturas: também as barreiras que se
entrincheiram. (CANCLINI, 2007, p. 24)
Essa abordagem permite, inclusive, tomar os atores como construtores de cultura e
não apenas como reprodutores de regras sociais pré-existentes – como quando se
destaca sua potencialidade em colocar as categorias sociais em risco. Neste sentido, é
apropriado afirmar, como sugere Becker (2008) que o que é considerado como normal e o
que é considerado como desviante numa dada situação implica na compreensão da
relação entre empreendedores morais (que podem ser os ‘criadores de regras’ e os
‘impositores de regras’) e os que são enquadrados como desviantes. Mas é possível
igualmente considerar que, da perspectiva dos ‘outsiders’, os outros é que são
desviantes.
Como será possível vislumbrar especialmente no próximo capítulo, entre
grafiteiros há divergências sobre o que seja realmente a atitude do graffiti; assim como
entre pixadores, também há divergências entre o que é de fato ‘pela ordem’ 11 na prática
do pixo.
Assim, a perspectiva de cultura adotada neste relatório pressupõe, conforme afirma
Nestor Garcia Canclini, que enfatizar a:
[...] incomensurabilidade, incompatibilidade e intradutibilidade das culturas, como
diz Seyla Benhabib, nos desvia das negociações epistêmicas e morais, muito sutis
que ocorrem entre culturas, dentro das culturas, entre indivíduos e também dentro
dos indivíduos mesmos, ao lidar com a discrepância, a ambigüidade, a
discordância e o conflito (CANCLINI, 2007, p. 19).
Canclini sugere alterar a ênfase na cultura em si, para o cultural (como relação de
sentido entre grupos). Ou seja, afirma que a compreensão da cultura deve situar-se
justamente na interação entre culturas, além de entre os indivíduos que se afirmam como
11
Trata-se de termo local que designa a atitude legítima, adequada e honrada, reconhecida pelo
grupo, que se deve ter em relação à prática do pixo ou do grafite.
18
participantes de tais ou quais culturas. Neste sentido, os procedimentos de pesquisa aqui
adotados implicam em tomar as entrevistas realizadas como opiniões que dialogam ao
mesmo tempo com uma ideia de grupo e com a própria definição do sujeito. Utilizando os
termos de Becker, pode-se afirmar que elas permitem interpretar em que medida os
atores de cultura de rua são impositores de regras, seguidores de regras ou criadores de
regras.
Essa perspectiva é coerente com a análise situacional proposta por Van Velsen
(1987). Segundo o autor, esta análise:
“Se refere à coleta efetuada pelo etnógrafo de um tipo especial de informações
detalhadas. Mas isto também implica o modo específico em que esta informação é
usada na análise, sobretudo a tentativa de incorporar o conflito como sendo
‘normal’ em lugar de parte ‘anormal’ do processo social” (Velsen, 1987, p. 345).
Busca-se, assim, encontrar “regularidades nas irregularidades”. A análise do modo
como as pessoas convivem com as suas normas, muitas vezes conflitantes entre si,
“demanda não somente o registro e a apresentação dos ‘imponderáveis da vida real’
(Malinowski, 1922:18), mas também um relato coordenado das ações de indivíduo
específicos” (ibid., p. 360). Ou seja, “normas e regras gerais de conduta são traduzidas
em prática: estas são, em última análise, manipuladas por indivíduos em situações
específicas para servirem a fins específicos” (ibid., p. 355).
A última distinção importante a ser feita em relação ao termo cultura aqui utilizado
para se referir à ‘cultura de rua’ aqui estudada diz respeito à diferença entre o que Roy
Wagner, na obra A invenção da cultura12, chama de sentido geral, antropológico da
palavra cultura; e o sentido restrito, marcado, que ele nomeia de sentido “sala de ópera”.
Esse sentido marcado, segundo o autor13, encarna um ideal de refinamento, e é o sentido
que usamos para lidar com os centros culturais, museus e corporificações que
representam as mais altas representações das atividades humanas, as quais são
preservadas, ensinadas e ampliadas. Diferentemente, no sentido antropológico, o
conceito de “cultura” pode ser ampliado, podendo-se encontrar modos de vida e
pensamento completamente distintos do que estamos acostumados na restrita noção de
“cultura”.
12
WAGNER, Roy. A invenção da cultura. Tradução Marcela Coelho de Souza e Alexandre Morales. São
Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 53-72.
13
Ibid.
19
A palavra “cultura”, aqui, é usada majoritariamente no sentido abstrato e amplo
descrito pelo autor, embora implique também considerações no âmbito do sentido
‘marcado’ de cultura, como se verá ao longo do relatório.
No caso das culturas de rua aqui enfocadas, destaca-se a relação marginal que
alguns sujeitos parecem querer manter em relação ao sistema, mas que a outros é menos
relevante em termos de constituição identitária individual e de grupo. Para compreender o
que se quer afirmar por sistema, introduz-se o no próximo subitem pesquisa e reflexão
elaborada por um dos integrantes do sub-eixo, que permite introduzir reflexões que situam
de forma mais ampla a inscrição desses diversos atores na ideia de ordem que surge
desde o Iluminismo como fundadora e condição de sobrevivência da cidade moderna.
2.3 A cidade como lócus da ordem e da potência14
“A solidão do mundo se reflete nas ruas
Mesmo estando vazia, ainda há vida nas ruas” Shawlin, Funkero & Zé Bolin – Ruas Vazias
É notória e extensa a discussão sobre os mecanismos simbólicos e físicos de
controle do Estado e da autoridade sobre as práticas urbanas, sejam elas específicas ou
cotidianas. Igualmente clara é a relação dos processos de adaptação do capitalismo com
estes mecanismos de acordo com a confluência de interesses e da cada vez maior
inserção do capital privado no processo de decisão política, e inúmeros são os exemplos
que corroboram e/ou trazem novas luzes a essa temática. O que se pretende, aqui, é
analisar práticas urbanas – graffiti e pixação -, através de uma abordagem
socioantropológica, relacionando-a com estes processos de controle estatal e do capital,
de absorção e adaptação (antropofagia pura) das práticas que nascem e crescem na
margem da legalidade, por meio de lógicas morais próprias e estímulos que muitas vezes
transcendem a abordagem positivista e racional tradicional da vida humana.
Discutir o “modo de vida urbano”, o conceito de “cidadão” e o cotidiano na cidade é
discutir a ordenação do comportamento, dos caminhos e das práticas em diferentes níveis
dentro do espaço urbano.
14
Relatório produzido por Guilherme Abu-Jamra, graduando em Ciências Sociais (UFMG) e integrante do
Subeixo Cultura de Rua.
20
A modernidade e o modernismo têm sua contextualização histórica relacionadas à
Ilustração, que por sua vez remonta ao século XVIII. A Ilustração seria o que Habermas
denomina “projeto da modernidade”, um “extraordinario esfuerzo intelectual por parte de
los pensadores de la Ilustración [...] La idea era utilizar la acumulación de conocimientos
generada por muchos individuos que trabajaban libre e creativamente, en función de la
emancipación humana y el enriquecimiento de la vida cotidiana” (Harvey, 1998, p. 27).
Este “lado” é, sem dúvida, mais difundido e integrado na própria definição que se tem da
modernidade. A busca pelo racionalismo, um vetor comum de desenvolvimento e
progresso, um rumo único para a humanidade, demandaria, assim, soluções também
universais para problemas universais da humanidade universalmente conectada. A
ciência positivista e o domínio científico da natureza, aqui, adquirem papel protagonista:
sua “função” é trabalhar pelo progresso contínuo e retilíneo desta humanidade una.
O
projeto modernista
de
cidade
e
planejamento
urbano, representados
classicamente por figuras como Le Corbusier, trabalha através de concepções
funcionalistas do pensamento da cidade, traduzidos em modelos retilíneos e divisões
zonais mono funcionais do espaço. Contextualizados no pós Segunda Guerra, tais
pensadores e planejadores adotavam uma profunda preocupação “por la racionalización
de las pautas espaciales y los sistemas de circulación de manera de promover la igualdad
(por lo menos de oportunidades), el bienestar social y el crecimiento economico” (ibid., p.
88). Esta preocupação refletia uma concepção funcional do espaço, uma construção
determinista do “onde” e do “por que” na vida urbana, através de agentes de
planejamento e do Estado; diz respeito ao “segundo lado” da formulação de Baudelaire
sobre a arte15. Há uma passagem de um texto introdutório à famosa Carta de Atenas
(documento central para o urbanismo moderno, fruto do IV Congresso Internacional de
Arquitetura Moderna, realizado em Atenas em 193316), onde Le Corbusier sintetiza o que
seria a diretriz do pensamento sobre o urbano:
“O urbanismo é a ordenação dos diversos lugares e locais que devem abrigar o
desenvolvimento da vida humana em seus aspectos materiais, sentimentais e
espirituais, em todas suas manifestações, individuais e coletivas. Abarca tanto as
aglomerações urbanas como os agrupamentos rurais. Já não pode estar
submetido a um esteticismo gratuito. Por sua própria essência é funcional. As três
funções fundamentais pelas quais deve velar o urbanismo são: 1º habitar. 2º
15
“La modernidad es lo efímero, lo veloz, lo contigente; es una de las dos mitades del arte, mientras que la
otra es lo eterno y lo inmutable” (Baudelaire, 1863 apud. Harvey, 1998, p. 25).
16
Disponível em: < http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=233 > Acessado em 09/04/2013.
21
trabalhar. 3º recrear-se. Seus objetivos são: a) a ocupação do solo, b) a
organização da circulação e c) a legislação”.
No posterior texto da Carta de Atenas, fica claro o enfoque dado à questão espacial
na formação social da cidade. O manifesto defende a divisão zonal da cidade de acordo
com as funções a serem desempenhadas por cada região, “com o objetivo de atribuir a
cada função e a cada indivíduo seu justo lugar” (Carta de Atenas, p. 8). A cidade deve ser
planejada de acordo com a formação topográfica do terreno, e a partir daí pensar novas
maneiras de formulação do espaço para continuar o trabalho que a natureza topográfica
começou – o ditame da formação social nos espaços urbanos. Toda a crítica da Carta de
Atenas cai sobre o “crescimento desenfreado das cidades”, que culmina em moradias
insalubres e doenças, condições precárias de convivência e circulação, formação dos
subúrbios – “O subúrbio é um erro urbanístico, disseminado por todo o universo e levado
a suas consequências extremas na América. Ele se constitui em um dos grandes males
do século” (ibid., p. 10) -, e etc. Sendo assim, surge como proposição a problemas
característicos desta época de transição. As soluções postuladas são guiadas pela lógica
que guia também o positivismo jurídico, por exemplo. Várias consequências surgem
destes postulados, justificando políticas de gentrificação e despejo praticadas nas regiões
centrais das grandes cidades. Todos eles conectados a uma concepção de ordem urbana
intimamente ligada ao sentido visual. É este o ponto que importa aqui.
Há uma busca por soluções globais para problemas que teoricamente também
seriam globais na constituição do espaço urbano. Toda a expressão iluminista racional,
atravessada pelo darwinismo social e por uma concepção una do ser humano,
características centrais do que chamamos de modernidade, conectam-se intimamente
com o pensamento urbano modernista. O transporte, o trabalho, o lazer e o lar organizamse racionalmente de acordo com as funções pré-estabelecidas para os espaços, de
maneira a tentar otimizar o “rendimento”, o fluxo de uma cidade. As ruas, assim, são
apenas o espaço físico por onde o transporte realiza-se, local que deve ser evitado, palco
de “desgraças” (ibid.).
Uma cidade, portanto, só funciona se houver ordem. A política, “entidade”
organizadora da vida social, “necessária” para a existência social, funda-se na ordem e na
coerção (Maffesoli, 2005). Esta se legitima na luta contra a multiplicidade, contra o
politeísmo inimigo da unidade, do caminho racional e único rumo ao progresso, a única
22
linha da história. Mas não se deve, entretanto, refletir em termos maniqueístas. O Estado
forma-se de distintos movimentos, afluentes ou contraditórios, “resultante[s] de uma
multiplicidade de engrenagens e de focos que se situam a um nível completamente
diferente, e que constituem, em si mesmos, uma ‘microfísica do poder’” (Deleuze, 1998, p.
48) mas que, enquanto processo, resulta também em consequências mais “universais”.
Manuel Delgado traz um esquema que consegue fugir das dicotomias classicamente
trabalhadas entre Estado e sociedade, sugerindo uma divisão tripla entre a polis (o
espaço político), a cidade (o espaço coletivo) e a urbe (o espaço público); este último
seria o espaço das potencialidades, o urbano que nunca chega a seu final, nunca chega a
uma conclusão, mas é um processo constante e incontrolável. Os esforços “direcionamse” para a conversão de toda essa incerteza e potência – a urbanidade – em politização,
ou seja, “en asunción del arbitrio del Estado sobre la confusión y los esquemas
paradójicos que organizan la ciudad” (Delgado, 2008, p. 195).
“Esboça-se sob os nossos olhos uma disposição em tons diversos. Um
deslizamento progressivo e ao final das contas bastante nebuloso que vai da
coação à razão dominadora e totalizante, passando pela moral e por certa forma
de lógica. Mas ainda que com tonalidades diferentes, todas essas atitudes
repousam essencialmente ao mesmo tempo sobre a preocupação com a perfeição
e com a unidade. De maneira mais ou menos consciente, trata-se de frear a
confusão e a desordem, de reabsorver a anarquia da vida; em suma, substituir o
politeísmo dos valores pelo monoteísmo do utilitarismo [...] Daí a imposição de
certa lógica dialética, que pretende ultrapassar todo o “não-lógico” do qual está
repleta a vida social. Claro, nessa perspectiva não pode ser considerado como
lógico o que não responder à injunção do útil, do projetível, do sério” (ibid., p. 43).
A ordem, no entanto, é um conceito que invariavelmente conecta-se com o de
autoridade, estando este também totalmente ligado à ideia de legitimidade. Uma lógica de
autoridade – a racionalidade monoteísta, legítima/legitimada, através de mecanismos
simbólicos e físicos de ação, determina a configuração da ordem vigente, seja através da
moral ou através da lei – isso quando conseguimos separar a moral da lei. Torna-se,
assim, “óbvio” e natural o que é socialmente construído. Isto porque as formas de
conhecimento válidas são determinadas por limites – no caso, relativos à racionalidade
positivista. Para ir além de tais limites, é necessário primeiro enxergá-los.
“La necesidad de realidad se refiere al mundo como riqueza potencial que desafía
al controlo organizado, riqueza gnoseológica que está sometida a una racionalidad
diferente que la del conocimiento científico. Como se ha afirmado, confundir
cultura con un tipo de racionalidad lleva a reducir la realidad a un tipo particular de
conocimiento, y a que la ciencia se identifique con un tipo particular de
conocimiento” (Zemelman, 1998, p. 40).
23
O que Hugo Zemelman explicita, aqui, é o processo de condicionamento da
realidade a partir de pré definições teórico-metodológicas paradigmáticas de classificação
e de análise, em vez de buscar categorias que consigam analisar a realidade enquanto
potência. A luta, então, seria para conseguirmos “[...] colocarnos ante lo inédito antes de
lanzar nuestras redes para atrapar la realidad con significaciones predefinidas” (ibid., p.
42). Tais redes de significação e aprisionamento da realidade em categorias pré definidas
fazem-se visíveis na ordenação moral e legal, que relacionam-se invariavelmente com a
construção capitalista e disciplinar do Estado moderno. Não há como dissociar tais
núcleos de ordenação da realidade na formação de um pensamento crítico e propositivo.
“No es que pensemos sólo en la crítica de Husserl al objectivismo de las ciencias
naturales, o en Benjamin cuando recuerda que la historia como pasado es una
selección de realidades, sino que en la significación profunda que tiene hablar de
sociedades tecnológicas y de comunicación, que privilegian, por sobre lo que es
verdadero, lo que en una acepción amplia puede definirse como posible de
funcionar” (ibid., p. 70).
Assim, a construção social da realidade faz-se baseada em certos valores pré
estabelecidos, ou seja, em relações de poder. A constituição da ordem conecta-se com a
relação de poder que se faz presente – e necessária – para tal. Deleuze mostra que a
ordem, porém, não vem de “cima para baixo”,
“como se fora atributo do seu poder transcendente, mas é solicitado pelos mais
humildes, pelos parentes, vizinhos [...] A ordem régia surge, pois, aqui, como
antepassado daquilo a que nós chamamos ‘internamento voluntário’ em
psiquiatria. É que, longe de se exercer numa esfera geral ou apropriada, a relação
de poder insere-se por toda parte onde haja singularidades” (Deleuze, 1998, p. 5051).
Ou seja, para além de uma ideologização, há aqui uma “produção do real”,
produção da norma - “normalização”. As relações de poder são produtoras da nossa vida
social em amplo sentido, e portanto encontram-se em todos os pontos, micro e macro
sociológicos da análise, bem como em todos os sentidos – ainda assim, admite-se a
existência de “centros locais” de poder-saber, que agem como “elemento central” na rede
produtora do poder. Desconstrói-se a ideia do poder maquiavélico, mas não dispensa-se
a intencionalidade – ainda que “inconsciente” – por trás da sua produção. Cria-se, assim,
o que chamamos de disciplina, imposta em última instância por “nós sobre nós” – afinal,
apenas com a disciplina a sociedade pode funcionar. Ou seja, antes de destruir ímpetos e
potencialidades, as relações de poder produzem as normas que funcionam como nossos
24
ímpetos e nossa potência. A disciplina não combate o “negativo”, mas valoriza e
desenvolve o positivo – a produtividade, as aptidões, a utilidade.
Assim, anteriormente a uma ordenação institucional, há a dita moral, por onde
funda-se a autoridade. Juan Carlos Villegas traz um questionamento interessante logo no
título de sua obra: há obrigação moral de obedecer ao direito? Em sua tese, explicita que
a partir do reconhecimento de critérios que sejam referências para a formação da
autoridade por parte da comunidade – ou por parte dos encarregados de administrar a
justiça – fornecemos um sentido normativo ao que era sustentado somente pela força
moral do grupo.
“Esta práctica que consiste en el reconocimiento de un criterio de autoridad marca
el paso del mundo prejurídico (o del nivel de la simple presión social) al mundo
jurídico. Dicha regla de reconocimiento es tanto un hecho, se constata
socialmente, como una norma, cuya racionalidad consiste en indicar las prácticas
que serán guías para los ciudadanos.” (Villegas, 1996, p. 35).
A obediência ao direito não é, por si só, uma obrigação moral – ou não deveria ser.
Afinal,
“puesto que la existencia del derecho es, ante todo, un ‘hecho’ social, que
adquiere carácter normativo a través de las distintas formas del poder, no se
puede decir que el Derecho, por ser Derecho, entrañe uma obligación moral
cuando estos mecanismos de poder pueden responder a intereses muy distintos a
los que fundamentaron la necesidad natural de su constitución” (ibid., p. 38).
Mas é inegável que este dever natural de obediência às instituições defendida
pelos filósofos jusnaturalistas do direito traz consequências num plano sociológico e
cotidiano de formação da moral, uma vez que a autoridade das instituições para com a
construção e conformação da vida social já existe e é reforçada justamente pelos
mecanismos que lhes foram confiados.
A disciplina racional não poderia desenvolver-se sem o que se denomina o
panoptismo, ou seja, a introdução da vida social dentro de um estado permanente e
consciente de visibilidade, que assegura o funcionamento automático do poder, e,
consequentemente, da sociedade racional. O poder panóptico “É um tipo de implantação
dos corpos no espaço, de distribuição dos indivíduos em relação mútua, de organização
hierárquica, de disposição dos centros e dos canais de poder, de definição de seus
instrumentos e de modos de intervenção” (Foucault, 1998, p. 170).
O “mérito” reside no fato de que tal imposição do poder produz uma ordem
subjetiva necessária ao funcionamento da sociedade. Deste modo, não faz sentido
25
alguém pintar as paredes de uma cidade, pois não é algo que acrescente objetivamente à
conformação da ordem, e, portanto, não ajuda a sociedade a funcionar. Pelo contrário:
questionar um espaço para pintar na cidade coloca em xeque toda a ideologia da maneira
pela qual a vida social “obviamente” funciona.
CAPÍTULO 3. O GRAFFITI17
“Tem arte no vandalismo, vandalismo na arte
Algo real e comum; vejo em toda parte”
(Irmãos De Tinta – Jamés Ventura)
O que se discute é a relação existente dentro do universo do graffiti entre
legalidade e legitimidade. O que é o graffiti legítimo aos olhos de quem o pratica? E aos
olhos de quem o enxerga na paisagem urbana? Como a ética e a estética, dentro da
discussão sobre o graffiti, estão em constante debate e diálogo – sempre muito bem
separadas? Afinal, poder (controle) e potência (possibilidade) são mesmo retas paralelas
sem possibilidade de encontro?
Existem extensos e notórios trabalhos sobre a história do graffiti enquanto
fenômeno social inerente à vida humana, que acompanha toda a história registrada de
nossa vida – seja através de documentação escrita, seja através de registros
arqueológicos. Não é objetivo aqui repetir todo este trajeto, mas partir de uma
constatação: o graffiti é um fenômeno extenso e que existe, hoje, em praticamente
qualquer conglomeração humana. Toda a discussão que aqui se propõe não vai de
encontro às motivações por trás da prática do graffiti, mas foca-se no que vem após a sua
existência. Não importa tanto a intenção, mas o ato em si e quais pontos ele afeta. A
questão que se formula, então, é: quais as bases filosóficas que sustentam o caráter
transgressivo do graffiti? Ou, reformulando a questão, quais paradigmas éticos, morais e
sociológicos são diretamente questionados pela prática do graffiti?
Foi colocado que, afinal, há um efeito bola de neve existente na legitimação do
poder de certas instituições, com base numa moral anterior, em busca do que seria justo
e razoável para a vida em sociedade. A reprodução desta moral, que legitima o poder e
sua institucionalização, é diretamente afetada pelos mecanismos simbólicos e físicos de
17
Relato produzido por Guilherme Abu-Jamra.
26
coerção social dominados por tais instituições. Mais uma vez, vale ressaltar que não há
aqui um sentimento maniqueísta com relação à formação do Estado, mas que é inegável
a existência de um processo ideológico de construção das relações de poder, em última
instância auto reproduzido.
A ideia que forma-se do que “é possível e necessário para a cidade funcionar” tem
um caráter ideológico, mesmo que se construa para além de qualquer intencionalidade
individual aparente. Buscando referência mais uma vez em Foucault, quando este coloca
que o poder, antes de reprimir, produz o que é real, tudo fica mais claro. É óbvio que o
graffiti é prejudicial para uma cidade que se diz limpa, e a repressão parte da polícia não
apenas por receberem ordens superiores, mas porque o graffiti é agressivo, é crime – não
importa por que. Mais uma vez, duB traz um interessante relato, quando conta que vez ou
outra, teve que correr não da polícia, mas de civis que queriam agredi-lo por sua prática
(relato colhido pelo autor em 21/01/2013). Pessoas que se sentem no direito e também no
dever de reprimir tal prática criminosa, que traz um prejuízo coletivo para a vida social
como um todo. Prejuízo, pois constitui um dano ao patrimônio, como expressado através
da imprensa pelo presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Rio, enquanto
acompanhava uma das ações de limpeza e pintura de muros com graffitis realizadas pela
Câmara18. Em meados de janeiro de 2013 essas ações são apoiadas por estudantes
voluntários, que participam da limpeza/pintura de tais muros “degradados”. Como dito por
Rui Rio na mesma oportunidade, “O turismo do Porto está tendo um crescimento enorme,
e em uma altura em que o turismo é fundamental para nossa economia, eu acho que é
nossa obrigação ter a cidade apresentável”.
Há um paralelo claro entre esta política de atuação da Câmara Municipal do Porto
e o Movimento Respeito Por BH. Esta ação, promovida pela prefeitura de Belo Horizonte
num esforço conjunto de todos os órgãos da instituição, teve início em 2010. De acordo
com o website da prefeitura,
“O Movimento Respeito por BH é parte integrante do plano de governo do
Prefeito de Belo Horizonte, Marcio Lacerda, BH Metas e Resultados e visa
“garantir o ordenamento e a correta utilização do espaço urbano, através do
cumprimento e efetiva aplicação da legislação vigente". O movimento busca
organizar o espaço urbano, de forma colaborativa e democrática, fazendo valer as
recentes modificações incorporadas ao Código de Posturas do município entre
outras legislações e, em especial, aquelas que se referem ao meio-ambiente, ao
18
TV Porto, 21 de março de 2013. Disponível em http://tv.cm-porto.pt/arquivo/ambiente/rui-rio-acompanhabrigada-anti-grafito acessado em 26/03/2013.
27
direito à paisagem e à LEI Nº. 10.059, sancionada pelo Prefeito em 28 de
dezembro de 2010.
Os esforços empreendidos pelo Movimento Respeito por BH baseiam-se na Teoria
das Janelas Quebradas, que é resultado de estudos iniciados em 1969, na Universidade
de Stanford (EUA), constatando que a ocorrência de delitos é maior nas zonas onde o
descuido, a sujidade, a desordem e o maltrato são maiores.”19
Este clássico estudo foi a base, também, da Política de Tolerância Zero
empreendida em Nova Iorque no ano de 1994. Trata-se de um estudo que
“[...] teve por base uma experiência executada por um psicólogo americano, Philip
Zimbardo. Philip deixou um carro estacionado em um bairro de classe alta na
cidade de Palo Alto, Califórnia. Na primeira semana, o veículo permaneceu
intacto. Contudo, após ter uma de suas janelas quebradas, após poucas horas o
automóvel estava completamente danificado, tendo sido após furtado por
20
marginais locais.”
Esses estudos fizeram diminuir a relação de causalidade, antes óbvia, entre a
criminalidade e aspectos biológicos e/ou contextuais, fortalecendo a ideia de que um
delito atrai o outro, ou de que um pequeno delito não reprimido irá desembocar em crimes
maiores. Parte-se, assim, de um pressuposto de que a moral e a lei são sempre
constantes e inalteráveis – afinal, da mesma maneira que um vidro quebrado de um carro,
a pixação/o graffiti desautorizado constrói a imagem do abandono e da falta de ordem.
Há aqui uma relação com princípios éticos de organização das nossas condutas.
Pode-se dizer que nossa ordenação jurídica baseia-se em valores éticos oriundos de
diferentes tradições do pensamento moral. O utilitarismo clássico, o utilitarismo das regras
e o imperativo categórico de Kant são alguns dos pontos básicos de partida para a
formulação de nossos valores morais intrínsecos e de nossas leis instituídas. A vida social
organiza-se, assim, com base em modelos racionais de classificação moral. Enquanto
sujeitos racionais plenamente conscientes de nossas ações, temos estas passíveis de
juízos morais; tais juízos têm que “se apoiar em boas razões – se é verdade que devemos
(ou não devemos) fazer tal ou tal coisa, então tem de existir uma razão pela qual
devemos (ou não devemos) fazê-la”; além disso, “quaisquer considerações que aceitemos
19
Disponível
em:
<http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/contents.do?evento=conteudo&idConteudo=47907&chPlc=47907&view
busca=s >. Acessado em 09/04/2013.
20
Fonte: < http://jus.com.br/revista/texto/18690/broken-windows-theory-ou-teoria-das-janelas-quebradas >
Acessado em 09/04/2013
28
como razões num dado caso temos também de aceitar como razões noutros casos”
(Rachels, 2004, p. 185); exprime-se, aqui, a ideia fundamental do imperativo categórico
de Kant: “Age apenas segundo aquela máxima que possas ao mesmo tempo desejar que
se torne lei universal”. Com isto, James Rachels mostra no pensamento de Kant a base
da ideia de que nossas ações têm que possuir uma intencionalidade favorável à felicidade
e prosperidade da vida social. Qualquer ação que possa visar outro fim está em
desacordo com esta regra básica. O que se questiona é como se define tal fim e se é
possível um fim único.
Há também o ponto estético da argumentação. A cidade deixa de ser apresentável
ao turismo por estar degradada, feia, e a fala do presidente Rui Rio explicita a íntima
conexão que ele faz entre estas características negativas e a presença do graffiti. Por ser
uma prática não autorizada, sua existência traria a impressão de situarmo-nos diante de
um espaço abandonado, sem vigilância ou cuidado constante. Aqui, confunde-se a
argumentação puramente estética e o que se pode chamar de construção visual do
sentido de ordem. A percepção sensorial é um elemento cultural, bem como um processo
físico; sendo assim, transmite valores culturais, possui valores simbólicos e está
conectada a outras práticas e dinâmicas culturais – é contextual. Dentro do contexto
urbano ocidental, a visualidade tem valoração especial (Classen, 1997, p. 401). A partir
deste entendimento, percebe-se, primeiro, como a questão estética conecta-se com a
ética e com o contexto racional moderno, e também como o graffiti questiona a ordem do
“Estado” através da quebra de tal ordem visual. Todas as outras formas de comunicação
visual autorizadas nos muros e paredes das cidades – especialmente publicidades de
lojas e tendas – não trazem o mesmo referencial negativo, pelo fato de serem autorizados
e constituírem uma linguagem legítima no contexto urbano. Dessa maneira, constituem
um significante com significado legítimo. Segundo Ricardo Campos, antropólogo e
pesquisador do graffiti em Portugal,
“Não existe um consenso total sobre o sentido daquilo que se exibe diante dos
nossos olhares [...] Isto não invalida a existência de uma gramática cultural
relativamente consensual, colectivamente ratificada e entendida como válida,
aprendida ao longo da nossa socialização no seio de um determinado ambiente
cultural” (Campos, 2010, p. 115).
Isto aponta para a diferenciação clara que é feita entre o pixo e o graffiti no
contexto brasileiro, ou entre as tags – forma de graffiti simples, que funciona como uma
assinatura do artista (imagem 1) – e os graffitis mais elaborados, com mais cores, que
29
talvez possam passar algum significado mais claro. Os graffitis mais elaborados vêm
sendo socialmente aceitos, mesmo em contextos ilegais, muito em função da discussão
que se trava por sua relação com o mundo da arte e sua absorção pelo mercado. Já a
pixação e as tags são indiscutivelmente degradações e moralmente erradas – ao menos é
isso que nota-se no discurso de grande parte dos transeuntes citadinos abordados
durante a pesquisa e que não praticam o graffiti ou a pixação. De acordo com diversos
writers (praticantes do graffiti), entretanto, fica claro que as tags e os graffitis mais
elaborados, como throw ups – tags trabalhadas com contornos e algumas cores, também
feitos de maneira rápida (imagem 2), são, na essência, a mesma coisa. No documentário
Alter Ego, de Daniel Thou, em que são entrevistados writers de diferentes países sobre
questões chave do graffiti, um dos participantes (askew, de Auckland – Nova Zelândia)
comenta:
“Eu fui pego fazendo tags e já fui pego fazendo graffitis em trens, e a
percepção que criaram sobre mim como quem faz tag e como quem faz graffiti é
muito diferente [...] tags são aquelas coisas que as pessoas que não conhecem
muito sobre graffiti costumam falar: ‘É, eu amo graffiti, mas odeio tags...’ (suspiros)
21
Para mim é um comentário realmente frustrante... mas não podemos culpá-los ”.
21
Transcrição e tradução livre feitas por Guilherme Abu-Jamra.
30
Imagem 1 – tag em Porto – Portugal. Foto: Guilherme Abu-Jamra
Alguns chegam, inclusive, a afirmar que o graffiti verdadeiro é aquele que é ilegal.
Portanto, não importa a estética, mas a atitude. Como dito por Hyper, writer brasileiro:
“O graffiti que é graffiti é ilegal. Não importa se você fez o desenho de uma bola
com o spray; se foi vandal, foi graffiti [...] Senão, até a minha avó fazia graffiti”.
(depoimento colhido pelo autor em 11/05/2012)
Já outros writers, como duB, de Porto – Portugal, dizem que uma prática – a ilegal
– não exclui a legitimidade da outra – a ilegal/vandal. duB, porém, afirma que não há
como comparar a sensação de liberdade que existe na prática do graffiti ilegal, e,
portanto, livre (depoimento colhido pelo autor em 26/11/2012). Essa vontade de fazer,
essa potência que define o que é o urbano, voltando às ideias de Manuel Delgado, traduzse bem na fala destes writers.
31
Imagem 2 – throw up em Barcelona – Espanha. Foto: Guilherme Abu-Jamra
Outro ponto a se destacar é a respeito da concepção de propriedade privada que
sustenta essa carga de degradação e violência estética e física ao espaço que são
conferidas ao graffiti. A prática do graffiti em espaços tidos como privados – no meu e no
seu muro, na fachada de sua loja – esbarra em um sentido de moral intimamente
conectado com o sentido de racionalidade. “A moralidade é, antes de mais e acima de
tudo, uma questão de aconselhamento racional. Em qualquer circunstância dada, a acção
moralmente correcta é aquela a favor da qual existirem melhores razões” (Rachels, 2004,
p. 28).
Fica latente aqui a tentativa de enquadrar uma prática expressiva da potência num
sistema de regras e de entendimentos prévio. No dia 25/05/2011 a presidenta Dilma
Rousseff sancionou a Lei 12.408, que descriminaliza o graffiti mediante autorização
prévia, mas que mantém a definição de pixação como crime ambiental – ou seja, o graffiti,
através de todo esse processo histórico de normalização através de sua adoção pelo
universo da arte legal/legítima, ganha novos contornos aos olhos da lei, mas a pixação é,
indiscutivelmente, uma ação imoral. Foi, na verdade, uma alteração do artigo 65 da Lei
9.605/1998. O caput e o primeiro parágrafo foram mantidos; o que mudou foi o segundo
parágrafo. Segundo o texto oficial22:
:
“Art. 65. Pichar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento
urbano: (Redação dada pela Lei nº 12.408, de 2011)
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. (Redação
dada pela Lei nº 12.408, de 2011)
o
§ 1 Se o ato for realizado em monumento ou coisa tombada em virtude
do seu valor artístico, arqueológico ou histórico, a pena é de 6 (seis) meses a 1
(um) ano de detenção e multa. (Renumerado do parágrafo único pela Lei
nº 12.408, de 2011)
o
§ 2 Não constitui crime a prática de grafite realizada com o objetivo de
valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística, desde
que consentida pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário ou arrendatário
do bem privado e, no caso de bem público, com a autorização do órgão
competente e a observância das posturas municipais e das normas editadas pelos
órgãos governamentais responsáveis pela preservação e conservação do
patrimônio histórico e artístico nacional. (Incluído pela Lei nº 12.408, de
2011)”
22
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm > Acessado em 10/04/2013.
32
Imagem 3 – Pixação na Av. Nossa Senhora do Carmo, em Belo Horizonte – Brasil. Foto:
Ana Estrela
É claro que há uma diferença estética entre uma piece (imagem 4) – forma de
graffiti mais complexa que o throw up, no sentido de abarcar mais elementos e cores, e
teoricamente mais tempo de trabalho23 - e uma pixação ou uma tag, bem como há
diferença entre as tags e entre toda criação original no mundo. Mas a criminalização e
posterior descriminalização de uma parte dos elementos a partir desta diferença estética
traz uma mensagem mais complexa.
23
No dia 11/05/2012, na mesma ocasião de conversa com Hyper, houve a fala de um pixador contando que
gastou cerca de oito dias realizando uma pixação. A pixação, em questão, é a da imagem 3.
33
Imagem 4 – exemplo de piece (autorizada) em Porto – Portugal. Foto: duB
3.1 O graffiti como inscrição do indivíduo na cidade24
Pretende-se, aqui - quando se fala em inscrição na cidade -, enfatizar a cultura do
graffiti como participação política, como forma de viver e fruir a cidade. Inscrição que
envolve corpo, sentimento, pertencimento a uma vida comum no espaço urbano.
Busca-se compreender como o indivíduo se relaciona, através da sua arte, com a
cidade e suas leis, participando de um embate político por intermédio da arte e da
afirmação de sua cultura, mesmo que ele aja contra a lei. Pode-se pensar que o próprio
embate entre a arte praticada e a lei já se traduz em política e em afirmação e
reivindicação de direitos.
Vale trazer trecho da dissertação de Mariana Gontijo, pesquisadora do sub-eixo,
em que ela trabalha o sentido dessa inscrição:
“A escolha do graffiti e do hip hop tem uma razão de ser. O desejo inicial da
pesquisa estava associado ao possível caráter político que a prática da arte e ela
própria podem ter. Fala-se nisso no sentido de participação. Pressupõe-se que,
por meio da arte, ou melhor, com a contribuição dela, o homem torna-se cidadão,
participante da vida na pólis.
Ao nomear esse homem cidadão, quer-se referir, principalmente, ao sentimento de
pertencer à cidade – a um todo comum –, e de querer pertencer, inclusive, como
sujeito de direitos, mesmo que essa relação com o direito não seja tão evidente ou
desejada por ele.
Em verdade, o sentimento de pertencer, a que se refere, prescinde do direito –
decorre da vida natural, está mais relacionado com o indivíduo que age no comum
–, mas há relações que se estabelecem entre as práticas artísticas do graffiti e o
direito, inevitavelmente. Ocorre que o direito formal, normalmente, em sua
aplicação, bem como na formação das normas jurídicas, não assimila bem o
25
sentimento desse indivíduo, ou seu significado para ele.”
24
Subitem escrito por Mariana Gontijo, baseado nas reflexões que apresenta em sua dissertação de
mestrado: GONTIJO, Mariana Fernandes. O direito das ruas: as culturas do graffiti e do hip hop como
constituintes do patrimônio cultural brasileiro. 2012, 88f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de
Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, 2012, p. 18.
25
GONTIJO, Mariana Fernandes. O direito das ruas: as culturas do graffiti e do hip hop como constituintes
do patrimônio cultural brasileiro. 2012, 88f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito,
Universidade Federal de Minas Gerais, 2012, p. 18.
34
Sobre o direito formal26 em relação a esse indivíduo que se inscreve, destacou-se,
no referido trabalho, ser o Estado que, com suas técnicas de policiamento – usando as
palavras de Foucault27 –, assume e integra em sua esfera o cuidado da vida natural dos
indivíduos (poder objetivo), e que, de acordo com as investigações realizadas pela
equipe, não se comunica de forma eficaz, eficiente e efetiva com a individuação28.
Considera-se, ao analisar a microfísica do poder descrita por Foucault, que as
técnicas de policiamento presenciadas pelos grafiteiros na rua frequentemente não
permitem uma comunicação de forma eficaz e respeitosa com os processos de
individuação inscritos nas práticas e expressões do grafitti – o que certamente está
relacionado com uma visão de cultura de modo restrito, amplamente adotada pelo direito
formal.
Busca-se enfatizar de que modo a arte gera cidadania, isto é, cria uma posição na
qual o sujeito se inscreve em um espaço de fala na cidade, e como esse espaço e fala
ganham sentido político. O pluralismo jurídico entra aqui, na forma que o sujeito participa
politicamente. Em outras palavras, é essa forma de participação política – inscrição na
cidade por meio da arte –, que, por se tratar do exercício de um direito (direito político de
participação), foi tida, de imediato, como expressão da concepção pluralista de direito, isto
é, como pluralismo jurídico.
Deve-se dizer que o graffiti investigado foi o graffiti de rua propriamente dito. Não
se pretendeu analisar o graffiti como arte que se expandiu das ruas para as galerias, mas
sim investigar a vivência dessas práticas por seus autores, especialmente quando elas se
dão nas ruas. Isso não afasta a atenção ao fenômeno de seleção do graffiti pelo mercado,
sua expansão como arte nas galerias. Ressalte-se, contudo, que as culturas de rua de
que falamos nesse relatório agem, em alguma medida, cada uma à sua maneira, contra a
lógica do capitalismo global, do consumo exacerbado e da cidade higienizada, como já se
destacou na parte introdutória do relatório.
Na realidade, a expressão “graffiti de rua” poderia soar até redundante, pois graffiti
na Europa, nos Estados Unidos e na maioria dos lugares do mundo, nomeia todas as
26
O direito formal de que se fala é o direito estatal, que é uma das formas de direito dentro da concepção
pluralista tomada pela pesquisadora.
27
Retiradas da citação feita por Agamben no Homo Sacer. In: AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder
soberano e a vida nua I. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 13.
28
Processo que leva o indivíduo a vincular-se à própria identidade, à própria consciência e a um poder
externo, vinculando-se politicamente. In AGAMBEN, 2010, p. 12-13, sobre o “duplo vínculo político” definido
por Foucault.
35
formas de escrita de rua, podendo, também, ser chamado de graff, tal como destaca
Maria Inês Lodi29. Nesses países, a pixação seria, também, um graffiti, portanto, tendo
sido o Brasil um País no qual se cunhou a diferenciação terminológica – sociologicamente
e juridicamente, não sem ambiguidades – dentre as duas práticas, como se comentou nas
considerações iniciais do presente relatório.
Há um modo próprio de cada grafiteiro viver e se relacionar na cidade, e com a
cidade, por meio de sua arte. É esse artista que se quer ver respeitado em sua
integralidade, não apenas por sua arte propriamente dita, ou melhor, pelo conteúdo de
sua arte, mas pela prática de uma arte que tem sentido em seu processo de realização
como indivíduo e cidadão. Trata-se de uma pintura que se faz, não dentro de um ateliê
fechado, mas na rua. Os muros são as telas. Há um modo de sentir, pensar e contatar a
cidade, muitas vezes contradizendo-a. É esse graffiti de rua que o nosso ordenamento
jurídico tem dificuldade de permitir, autorizar e entender. Ele tem um componente de
transgressão, de lugar do diverso – diferente –, ou de não lugar, tal como nos fala
Foucault da noção de heterotopia:
Há [...] em qualquer civilização, lugares reais, lugares efetivos, lugares que são
delineados na própria instituição da sociedade, e que são espécies de
contraposicionamentos, espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais os
posicionamentos reais, todos os outros posicionamentos reais que se podem
encontrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados,
contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares,
embora eles sejam efetivamente localizáveis. Esses lugares, por serem
absolutamente diferentes de todos os posicionamentos que eles refletem e dos
30
quais eles falam, eu os chamarei, em oposição às utopias, de heterotopias.
Partiu-se da noção de “práticas estéticas” de Rancière para afirmar que a prática
artística do graffiti ganha sentido político. O filósofo pressupõe referidas práticas como
forma de visibilidade das práticas da arte, do lugar que ocupam e do que fazem no que
diz respeito ao comum. Para ele a “partilha do sensível” – e sensível aqui pensado como
vivência da arte – estrutura a maneira pela qual as artes podem ser percebidas e
pensadas como artes e como formas de inscrição do sentido da comunidade. Essas
formas, segundo ele, definem a maneira como obras e performances fazem política,
29
LODI, Maria Inês. A escrita das ruas e o Poder Público no Projeto Guernica de Belo Horizonte. 2003.
234f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte,
2003, p. 20.
30
FOUCAULT, Michel. Outros Espaços. Conferência, 14 de março de 1967. MOTTA, Manoel Barros da
(org.). Estética: literatura e pintura, música e cinema. Tradução Inês Autran Dourado Barbosa. 2. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2009.
36
quaisquer que sejam as intenções que as regem, os tipos de inserção social dos artistas
ou o modo como as formas artísticas refletem estruturas ou movimentos sociais.31
Vislumbrou-se, a partir daí, a prática do graffiti como vivência da arte e forma de
inscrição do sentido da comunidade.
CAPÍTULO 4. O PIXO32
Carimbo, extintor, borrifador, spray, rolos, giz, canetas, canetões, desodorante,
frascos de detergente. Estes são os instrumentos utilizados na pixação. Deles surgem as
marcas nos muros. Podem ser frases de protesto, apenas as tags, letras de rap,
mensagens de amor, desabafos, nomes de grupos (“um cumprimento da tag”, como diria
nosso pixador entrevistado33). Para se escrever frases de protesto, usa-se uma letra de
forma mais legível; para as tags, uma letra de um vocabulário criado na pixação. Aquele
que deixar a letra mais diferente é aquele mais reconhecido. Aquele que subir mais alto é
o mais reconhecido. Querem ser reconhecidos entre os próprios pixadores, mas o são por
vários na cidade.
Cripta Djan, artista de rua, tem sido reconhecido mundialmente. Leva a pixação
para onde o chamarem. Mas desafia. A todo tempo. A partir de reportagens publicadas
pela Folha de São Paulo (MARTI, 2012 e VAINER, 2012) é possível notar que Cripta Djan
não pixa o que lhe oferecem. Ao invés dos tapumes ou telas deixados para ele na Bienal
de Artes de Berlim, Cripta e seus colegas escalam a igreja e a pixam. E dá seu recado: a
pixação é anarquia; "Não tem como dar workshop de pixação, porque pixação só
acontece pela transgressão e no contexto da rua”. E mesmo assim, Cripta produziu um
documentário polêmico sobre o pixo em São Paulo, apresentou-o em Paris, é entrevistado
com certa constância e convidado a participar das Bienais de São Paulo e Berlim.
31
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO experimental org.; Ed.
34, 2005, p. 18-19.
32
Relato produzido por Ludmilla Zago e Guilherme Mendonça Del Debbio, integrantes da pesquisa.
33
Entrevista semiestruturada com um pichador, realizada no Duelo de MC´s, no dia 08 de junho de 2012,
que se pautou no seguinte roteiro: quais os materiais que se utiliza para a pixação; o que se pixa; a história
de vida do pichador; o quanto se gasta com a pixação; qual é a relação do pixador com o que se pixa; o que
pensa sobre a lei que proíbe o ato de pixar; a relação com o uso de drogas e outros crimes; quais os
principais lugares onde se pixa. Todas as entrevistas feitas com pichadores foram realizadas por Ludmilla
Zago e Guilherme Del Debbio.
37
A partir das leituras de textos e notícias em blogs e jornais, além da escuta
constante dos pixadores no Duelo de MC’s34 e na cidade, é possível observar que o poder
público, não só na cidade de Belo Horizonte – como aponta o texto do blog O Viés – tem
lidado com a questão da pixação de forma puramente repressiva. O discurso disseminado
na mídia e fomentado pela polícia civil é aquele que faz do pixador um vândalo. O pixador
entrevistado nos conta que é assim que eles são vistos pela cidade. Porém, aponta não
acreditar ser um “bandido”, um “vândalo”. Ele diz: “Não é certo você sujar as coisas, mas
se é que está acontecendo isso, significa que alguma coisa está faltando (...) É uma forma
de protesto, entende?”. O que ele nos remete aí é ao fato de não haver, hoje, espaço para
discussão sobre o significado do que se pixa para cada sujeito e das formas de ocupação
do espaço público feitas pela pixação.
O pixo ocupa um grande espaço na paisagem urbana, chega a concorrer com a
publicidade. Cito Lassala que afirma, a propósito, que a pixação “possui uma gramática
própria” (Lassala, 2010, 36).
Outra característica muito ligada ao pixo diz respeito ao ibope:
“Esse tipo de escrita tem o objetivo de gerar fama (ibope) para o indivíduo
ou grupo que conseguiu, por exemplo, pixar um determinado lugar de difícil
acesso e de grande visibilidade. Tal atitude causa indignação nas pessoas, que
não entendem o que está sendo feito, pois não conseguem ler as letras e
concluem que, por não serem autorizadas, as inscrições contribuem para a
poluição visual do espaço urbano, construindo, portanto, uma imagem negativa
desse tipo de escrita.” (Lassala, 2010, p.36).
Ao que parece, a ilegibilidade produz, esteticamente um efeito que acaba por
excluir, estigmatizar e criminalizar o pixador. Há pessoas que entendem que aquela
comunicação serve para o crime, ou que é, ela própria, criminosa. Outras pessoas se
incomodam com a comunicação que ocorre a partir das periferias - o que não entendem,
e outras, ainda, consideram que os pixadores são componentes de uma quadrilha.
Mas, o fato do pixo fazer uma comunicação entre periferias, grupos que de lá se
originam, de jovens, poderia gerar esse estigma em relação ao pixador? Ou será que
eles, os pixadores, se excluem de uma interlocução normal, sendo isso o que faz gerar o
estigma, a exclusão ou a ideia do crime em relação a eles? Há de se considerar o fato de
que o pixo é agressivo - ele traz uma mensagem que quer desfazer, intrigar,
34
O Duelo de MC´s é um movimento do hip hop que ocorre há quase 6 (seis) anos em Belo Horizonte, ao
lado da Serraria Souza Pinto, embaixo do Viaduto de Santa Tereza. Ele acontece todas as sextas-feiras e é
lugar já conhecido, como Duelo, do hip hop, da cultura de rua.
38
desestabilizar. Isso pode parecer agressivo e, se a mensagem não está legível, pode ser
que seja mais fácil para quem vê, perceber a expressão como agressiva.
A possibilidade de não julgar o pixo como certo ou errado, estando na posição de
analista, etnógrafa, leitora ou outro, simplesmente, é fundamental para que se apreenda o
que o pixo tem a dizer. Ou seja, para ouvir de fato o pixador, o escritor, o ator e o autor do
pixo.
Julgá-lo seria, no contexto de escuta e pesquisa, cair no discurso recorrente,
fechado e autoritário, vigente na mídia e no poder municipal. O que o pixo significa para
ele, o que representa em seu contexto, nos contextos da cidade e do país?
Parte-se então à construção do relato das conversas com os pixadores.
4.1. Relato das conversas com os pixadores
Para Ricardo35, pixador entrevistado, o pixo é “arte vandal”36. Arte que, para ele,
tem fundamentos e regras específicas. Por exemplo, não se pixa casa, não se
“esculhamba”37 a posse de quem lutou como sua mãe. E não se pixa estátua. Prédios
públicos e igrejas evangélicas são os locais que Ricardo prefere pixar - não põe seu nome
de rua ou de pixo em qualquer lugar. Diz que os mais jovens querem mesmo aparecer,
não estão “nem aí pra nada”. Ou seja, não refletem sobre a política do pixo, sua forma de
se manifestar, lugar, motivação para além do ganho narcísico do reconhecimento. Até
que, mais tarde, com anos de pixo, o pixador, segundo ele, passa a pensar no que vai
deixar escrito “para a cidade”. Fala dos que deixam o pixo, por não aguentarem a
pressão, a opressão, dentre os quais alguns que escolhem o graffiti.
Por fim, o posicionamento de Ricardo é radical em relação à política brasileira, à
corrupção comum no país, à manipulação das pessoas em relação ao consumo, à fé e à
sua participação política. Afirma que não aceita ou concorda com pacto ou acordo algum
relacionado a políticos ou ao poder. Importante destacar que essa postura também
encontra ressonância em outras falas, advindas de conversas com pixadores em Belo
Horizonte e em São Paulo.
35
Nome fictício. Conforme destacado no início do segundo capítulo, todos os nomes de pixadores foram
substituídos.
36
O termo vandal refere-se à essência transgressora do ato.
37
Cabe notar aqui que o pixador usa termos que os que não gostam do pixo usam para descrevê-lo.
39
Ricardo sempre apontou que o pixo, para quem o faz e para quem desenvolve
certo olhar sobre ele, não é apenas jogar tinta na parede. Diz que ‘tem gente que morre
por causa disso’, então a coisa é séria. O pixo é algo muito precioso ao sujeito que pixa,
como é possível notar na maioria das conversas estabelecidas até este momento da
pesquisa.
Ricardo sempre falou mal ‘de pixador que só quer aparecer’. Não acha que o
pixador merece respeito, se busca apenas isto. Este respeito, que é representado pelo
respeito no contexto do pixo, mas também fora dele, depende do que o pixador deixa, ou
do que inscreve na cidade, e como. O respeito se refere, segundo depreende-se de sua
fala, ao percurso, na pixação, daquele que passou, que transpôs a fase inicial, de
somente querer o ibope, o sucesso, a fama na cidade, seguiu adiante e fez uma longa
história no pixo, na cidade.
José, em depoimento aos investigadores, faz uma comparação entre pixo e graffiti em
relação à arte:
Um grafite eu acho uma arte. Também um desenho. Só que o cara
teve um dom pra fazer uma arte bonita, entendeu? E o pixo eu acho uma
arte... depois que eu ouvi uma música que fala que ousadia é arte...
porque ele fala que é um artista porque ousadia é arte, fraga? Então eu
identifico o pixo mais por causa disso. O pixador é ousado pra fazer a
marca dele. Um artista mesmo, de verdade, que faz esses desenhos de
tela que eles denominam como arte mesmo, o cara está lá tranquilão, não
corre risco nenhum, não está colocando nada em risco, a integridade
física, jurídica, nada. Ele está fazendo aquilo só por dinheiro. Isso aí eu
não considero arte, não. Considero um dom do cara de desenhar e tal.
Considero arte o pixo. Porque é uma coisa ilegal. Pra fazer, é muita coisa
que você está pondo em risco, está gastando, está pondo muita coisa em
jogo... (Depoimento colhido por Ludmilla Zago e Guilherme Del Debbio)
Outro interlocutor da pesquisa, Fábio, explica porque considera o pixo uma arte:
Eu acho que é porque é um tipo de escrita. Uma letra diferente, que
ninguém faz. Se é um tipo de letra que ninguém faz, é um negócio que
acaba relacionando com o grafite. Porque grafite tem técnica. Técnica do
grafite. Técnica é igual pixação, aqui no caso. Então é tudo arte, né,
mano? O bagulho... o negócio é que a arte é legal, né, mano?
(Depoimento colhido por Ludmilla Zago e Guilherme Del Debbio)
Muito interessante o que Fábio diz: se é arte, é legal. Talvez isso tenha relação com
todo o discurso que se impõe ao pixo.
É curioso notar o quanto a pixação, de acordo com o texto “A pixação e a ordem das
aparências” (MIOTTO, 2012), faz emergir uma discussão importante sobre os padrões
40
estéticos. O pixo aponta que o belo e o feio podem ser apenas convenções sociais38. E,
ainda:
Se as ruas são, por suposto, espaço público, é a pixação que consegue levar isto
às últimas consequências e nos mostrar o quão relativos são os conceitos com
que lidamos cotidianamente: para o pixador, na prática, a rua é de todos, é o único
espaço de diálogo que, genuinamente, cabe e faz caber a todos; e na prática, ao
39
agir de acordo com estes princípios, é reprimido .
Também o entrevistado José afirma que, no começo, pixa-se por reconhecimento,
por “ibope”, pelo nome. Mas os que pixam só por isso, param. Continuam os que, por
meio do pixo, passam a se expressar politicamente, como uma atitude combativa. No
caso de José, o que mais o indigna é a desigualdade social. Não seria possível, segundo
ele, manter-se por tanto tempo, com tanto esforço e gasto, se o objetivo fosse apenas
‘aparecer’.
Lud: Muita dedicação...
José: Em troca de quase nada, não é? Sei lá. Eu não me
arrependo de nada. Fiz várias amizades. Onde eu quiser ir, pro Brasil
afora, se eu tiver o dinheiro só da passagem, eu vou e fico tranqüilo, aonde
eu quiser. Tudo através da pixação. Às vezes, se eu não pixasse, eu nem
ia ter tantos contatos assim.
Gui: Em troca de quase nada? Por quê? Tem alguma coisa em
troca?
José: Em troca de quase nada que eu falo é financeiro, material.
Pode vir acontecer alguma coisa aí que vai dar dinheiro por causa de
pixação, mas intenção zero. O negócio é mais por amor mesmo, por gosto,
por vício. Sei lá. Às vezes também é vício. Muitos viciam mesmo. Conhece
uma coisa nova igual borrifador... nó! Neguinho vicia. Quer fazer todo dia e
pah! Biquinho mais grosso, fatcap... neguinho endoida. Foda que só não
tem mais pixação porque é caro pixar. Se não, ia ter mais e mais ainda, eu
acho. Acho que nunca vai acabar, não. Não tem nem como ficar tentando
acabar. Acho que era melhor tentar fazer a galera aceitar, entendeu?
Acabar é foda. Igual eu falei: sei lá, tentar catalogar todos e, quem quiser
reclamar, reclama, mas quem não quiser deixa pixado mesmo. Muita gente
nem reclama, porque fala “se eu pintar vai pixar de novo mesmo. Deixa
isso aí”. Sabe que não tem jeito. Está tudo errado. Mundão tá tudo errado.
Tendência é piorar. Acho que a tendência é aumentar o pixo. Tem como
acabar, não. (Depoimento colhido por Ludmilla Zago e Guilherme Del
Debbio).
38
Conforme visto na discussão feita na segunda parte deste relatório, sobre modernidade e a estética.
http://www.revistaovies.com/reportagens/2012/07/a-pixacao-e-a-ordem-das-aparencias/
Revista Vista Skateboard Art – edição nº 21. Novembro/Dezembro 2008, texto de Miotto, Tiago.
39
41
Cabe indagar sobre esse envolvimento do sujeito com o pixo. Parece que, para os
que se dedicam a isto, é como “amor à primeira vista”, algo que causa no sujeito um
impulso a repetir, a se dedicar, a gastar tempo e dinheiro. É uma vida, uma missão. É
diversão, rebeldia, mas é, também - e principalmente - compromisso. É laço social, uso e
participação da cidade, luta contra a invisibilidade.
4.2. Pixo, autoria e identidade
Há, no pixo, um impulso a fazer-se autor de si, alguém, a fazer, a partir dele, um
nome. Esta autoria nasce da dedicação, do cotidiano do pixo, tomado como texto e feito
que engendra um nome, faz nascer aquele que o faz. O autor é filho de sua obra, o
pixador é filho de seu pixo. Há algo da identidade que se reforça com o pixo, confundido
também com um modo de vida, assim como com o modo próprio de fazer e deixar sua
marca na cidade. Conforme destaca Lefebvre:
“Necessária como a ciência, não suficiente, a arte traz para a realização da
sociedade urbana sua longa meditação sobre a vida como drama e fruição. Além
do mais e, sobretudo, a arte restitui o sentido da obra; ela oferece múltiplas figuras
de tempos e de espaço apropriados: não impostos, não aceitos por uma
resignação passiva, mas metamorfoseados em obra.” (Lefebvre, 1991, P.115)
Ativo, participante da cidade, atento a ela, o pixador, não resignado, inscreve sua
política de existência, visibilidade e pertencimento a partir de sua obra, seus pixos pela
cidade, sua vida na rua, com outros pixadores e outros grupos. E toma o pixo como um
protesto, inclusive a partir da consciência de que o que faz é ilegal aos olhos do Estado:
José: Tipo, porque, sei lá... O doido é isso mesmo. O não
autorizado. Porque está fazendo, porque está protestando mesmo.
Fazendo a coisa errada pra ver que é uma forma de protesto mesmo. Se
legalizar, vai virar igual o grafite. Vai fazer só por gosto mesmo. Não vai
ser mais um protesto.
Fábio: Pra mim é porque ... apesar de que já virou um vício, a
questão da insatisfação, né? De não tá certo. Se não tem um trem certo,
então não tem nada a ver você fazer um outro negócio que não tá. Você
vai fazer um outro negócio que tá errado também. Só que tá acontecendo
um monte de coisa pior que não tem nada a ver. Mas tem que ter um jeito
de você fazer um negócio pra protestar umas coisas erradas que tão
acontecendo também. Igual eu falei da covardia dos policiais. Eles fazem
covardia e a gente fica puto. Mas a gente não pode fazer nada. O que a
gente vai fazer? Vai segurar o policial? Vai impedir dele dar um tapa no
mano dentro da delegacia? Não vai! Vai pixar. Vai mandar frase. Falar: “Ó.
42
Pau no cu dos policiais”, “Fuck Boris”. Vai mandar um tanto de trem que
eles vão ficar doidos. Vão falar: “Nó. Como é que o mano pixou lá? Fez a
cena na cara do Olho Vivo, não deu nada, ele desceu e aí? A gente não
pôde fazer nada. Olha aí. Nó”. Aí eles ficam meio que se sentindo
inválidos. Isso aí pra nós não tem preço. Vê os coxas se sentindo... não
podendo fazer nada. Igual quando a gente fez a cena no Centro. A gente
escalou 30 andares. O que eles podiam fazer com a gente? Trigésimo
andar. A gente lá dependurado.
Manuel, que pixa desde 2000 e tem aproximadamente 25 anos de idade,
mencionou que o movimento da pixação necessita parar com o “lero-lero” e focar: seu
alvo é o sistema. Ao usarem esse termo, os pixadores parecem se referir ao sistema
social, econômico e político da cidade em que vivem – e do país como um todo. Esse
pixador acha que o movimento será mais bem visto se houver organização estética tanto
da forma como o pixo é feito por muitos (ninguém atravessa o pixo do outro, faz do lado,
em cima, abaixo), quanto do seu foco, que deve ser o sistema, e não as pessoas.
Acredita, assim como alguns outros pixadores, que unidos e organizados serão mais
fortes e mais bem vistos. Porém, a este respeito, cabe indagar: o pixo será a mesma
coisa, terá o mesmo peso, se passar a ser bem visto e tornar-se mais forte?
O ato de pixar implica diretamente em transgredir e, de alguma forma, colocar a lei
e o direito em estado de provocação.
Pode-se citar a seguinte resposta do entrevistado Manuel, em uma conversa pelo
facebook40:
“Muitos pontos de vista mais minha meta e vazer a sociedade ver q não
somos vandalos que queremos sujar a cidade, somos protestantes q
colokam seus “nomes" ali em busca de melhorias olha as frazes q tem em
toda a cidade”41.
Muitas outras falas poderiam ser citadas no sentido de sugerir que a pixação não é
um gesto banal que se resume a jogar tinta na parede. Pelo contrário, muitas ideias e
motivos a constituem motivos intimamente ligados ao subjetivo e ao direito à cidade, à
cidadania e ao espaço político.
Ludmilla: Você pixa pra quem ver?
40
Ludmilla Zago utilizou, além das técnicas de investigação descritas no capítulo 1, as conversas que teve
com pichadores em redes sociais como fonte de dados.
41
A grafia é dele, reproduzida exatamente como escreveu.
43
Fábio: Eu pixo pra todo mundo ver. Eu tento fazer, tipo assim, num
lugar que não tem como você não ver. Entendeu? Porque se você tá, por
exemplo, olhando pra árvore, no seu campo de visão, você tá enxergando
o muro. Se você tá enxergando o muro, você tá enxergando o pixo. Fazer
um negócio de um jeito de se destacar pra não ter como não ver. Pra não
ficar intocado. Pra não ficar escondido. Sempre tem um lugar, tipo assim,
que se você olhar pro prédio, não tem como você olhar pro prédio e não
ver o pixo. Igual ali. Não tem como você olhar pra ali e não ver o D... lá.
Você olha e já vê esparrando ali. Não tem como. Agora, se a gente fazer
ali a fachada do meio, não vai ter como olhar e não ver a fachada do meio.
Fazer o lugar o máximo visível possível. E acaba que, como à noite, as
paradas assim, lugar mais alto, poste acaba ajudando. Como que a luz do
poste, atrás do poste, ofusca. Então, lugar mais alto ajuda. Depois que
você subiu, você conseguiu achar uma hora que o [?] parou, subiu sem
ninguém te ver, pode brincar. Aí você brinca. Fuma um e tudo mais. Faz o
que você quiser no telhado. É o que eu faço. Eu faço tranquilo.
Fábio relata, então, que aprendeu isso sobre o pixo no Duelo, ouvindo as ideias
dos MCs. Entendeu que, somados, fazem parte de outra cidade. No início, pixava pelo
seu nome, não por querer reivindicar algo. Ele escreve:
“vejo que eu tenho muito mais que um muro um nome uma caligrafia. Tenho uma arma que pode
afetar os que precisam ser afetados.”
Muitos dos entrevistados, principalmente os mais experientes ou que já passaram
pela cadeia, discordam da criminalização do pixo. Alguns não acham que o que fazem
está errado: gostam do pixo na cidade. Outros acham que o pixador deve assumir o dano
causado e a reparação dele, no caso de ser flagrado em ação. Esses assumem
totalmente
a
responsabilidade
pelo
que
fazem
e
sabem
das
consequências
desagradáveis que podem causar ao outro. Ainda assim, querem espaço para sua
estética, que envolve também uma postura ética e política na cidade.
Lud: Você acha a lei contra a pixação justa?
José:Sei lá, viu! Pra te falar a verdade nem sei se ela é justa ou
não. Eu acho que não deveria ser de cadeia. Mas deveria... sei lá...
Lud: Ter alguma punição?
José: É. Tipo, no caso: faz de conta que o dono do imóvel se sentiu
prejudicado e quer que repare os danos. Ele, sim, fazer uma denúncia.
Mas aí cabe de cada um. Agora, faz de conta que pixou ali, o cara
gostou... tem muita gente que não gosta, mas tem gente que gosta.
(...)
José: A relação com a lei é tipo de bandido e polícia. É
discriminalizando o pixo e tal... então eles vêem a gente como bandido
mesmo. Vândalos.
Gui: E o que você acha disso?
44
José: Sei lá. Não é certo também você sujar as coisas. Mas eles
tinham que ver que se está acontecendo isso aí é porque faltou alguma
coisa. Do governo... está faltando alguma coisa. Isso aí é cobrança. A
galera está protestando, não é? Igual eu falei. Tem uns que estão atrás só
de fama e ibope, mas a maioria é protesto. Protesto, revolta, revolta com
tudo. No meu caso, a maior revolta é a desigualdade social. O pobre vai
preso, o rico não vai. Em questão de saúde, eu já vivi altos casos de
precisar da saúde pública e ficar na mão. Educação eu acho paia também.
Entendeu? Igual vem a Copa aí. Olha as construções da cidade como é
que estão a milhão. Agora, a saúde, o crack... está tudo aí ruim e ninguém,
até então, resolveu nada. Estão preocupando só com a estética da cidade
mesmo. Não querem nem saber da galera, se neguinho tá morrendo, tá
com fome...
Sei lá. Acho que a pixação só estraga esteticamente. Não prejudica
ninguém. Prejudica só os pixadores mesmo. O risco que corre quando está
na janela... já deram tiro na gente. Neguinho já morreu pixando, entendeu?
Igual um pixo que eu sou a fim de fazer: “quem prejudica mais a cidade?
Os pixadores ou os políticos?” A gente não prejudica nada. Está sujando a
cidade [...] É... não é só medo. Às vezes a gente até diverte com o rolê,
com o risco e tudo, mas o medo existe.
Outro pixador comenta:
Fábio: Não. Pra cadeia jamais. Porque, olha pra você ver: eu tô
rabiscando ali, eu não tô fazendo nada com ninguém. Não tô batendo em
ninguém, não tô machucando ninguém, não tô matando ninguém, não tô
roubando ninguém. Não tô tirando nada de ninguém. Tô apenas fazendo
um risco na parede. Às vezes eu posso tá dando prejuízo pro dono de uma
casa que ele vai ter que limpar, mas...
Lud: E aí?
Fábio: Isso aí é se ele quiser limpar. Pra nós, ele não vai ter que
limpar. Ele tem que deixar lá pra ficar eterno.
Lud: Bonito...
Fábio: Bonito. Por isso que a gente procura... pros pichadores que
já fragam, pros manos que já conhecem, procuram mais lugar que vai ficar
eterno. Porque tem lugar que você vai tá praticamente só dando prejuízo
pro dono do muro. Porque tem muro aí que limpa toda semana.
Manuel fala do cuidado que tem para não ser flagrado pela polícia, de sua
preocupação com seu futuro. Para ele, lugar conquistado pelo pixo não pode e não deve
ser violado. Isso justifica seu modo de entender: pixador pixa muro, não rouba, não mata.
Depois de conquistado o muro ou superfície, nada de violar mais nada ali. Ele defende
união e regras, organização interna ao movimento.
Percebe-se que o pixo, assim como a vida, tem sido excluído através da
criminalização, das campanhas de denúncia anônima. Por outro lado, contraditoriamente,
admite-se que muitos jovens ingressam na pixação em decorrência de sua associação
45
com o crime, vista por muitos como glamour. Paradoxalmente, aquilo que provoca
exclusão, também pode servir a alguns como pertencimento.
“O que há de mais admirável do que a passagem do arbitrário para o necessário,
que é o ato soberano do artista, pressionado por uma necessidade, tão forte e tão
insistente quanto a vontade de fazer amor? Nada mais belo do que a vontade
extrema, a sensibilidade extrema e a ciência (a verdadeira, aquela que criamos,
ou recriamos para nós), juntas, e obtendo, por alguma duração, essa troca entre o
fim e os meios, o acaso e a escolha, a substância e o acidente, a previsão e a
oportunidade, a matéria e a forma, a potência e a resistência, que, semelhante à
ardente, à estranha, à estreita luta dos sexos, compõe todas essas energias da
vida humana, exacerba-as uma com a outra, e cria.” (Valéryapud Casa Nova,
2008, p.51).
Pode-se notar que os que estão na rua, fazendo arte ou fortalecendo sua cultura,
estabelecem um código de ética que tem como princípio máximo o respeito. Muitos
entrevistados relataram que sempre houve esse código de ética entre pixadores e
grafiteiros, não obstante ele estivesse apresentando falhas nos últimos tempos. Para
muitos, no entanto, não há como sair dele, de sua forma de ser justo: ocupar e deixar
ocupar. A rua congrega os que estão de fora do padrão e da conduta. E eles constituem,
nessa mesma margem, éticas e códigos de respeito mútuo que, eventualmente, podem
falhar.
Passa-se agora à análise dos casos de medidas socioeducativas que foram
acompanhados por um dos integrantes da pesquisa. É interessante destacar que este
relato permite observar, de uma forma muito específica e particular, aspectos do diálogo
entre os pixadores e o poder público. Cabe ressaltar que o relato foi produzido por um
funcionário público específico, pesquisador do sub-eixo Cultura de Rua, a partir de sua
experiência com crianças e adolescentes que cometeram o ato infracional do pixo e
deveriam cumprir medida socioeducativa. Soma-se, portanto mais uma abordagem para
compreensão de como poder público e atores da cultura de rua relacionam-se entre si.
4.3. A experiência com o pixo no trabalho das Medidas Socioeducativas42
Desde 2004, a Prefeitura de Belo Horizonte se tornou responsável pela
execução da medida socioeducativa de prestação de serviço à comunidade. Esta medida,
42
Relato produzido por Guilherme Mendonça Del Debbio, integrante da pesquisa.
46
conforme consta no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)43, tem a função de
proporcionar aos adolescentes nas idades de 12 a 18 anos condições para que eles
possam se responsabilizar por seus atos, com o viés socioeducativo. É uma das cinco
medidas socioeducativas estabelecidas pelo ECA, as quais são determinadas pelo juiz de
acordo com alguns critérios, tais como a capacidade do adolescente de cumpri-la, as
circunstâncias e a gravidade da infração. São elas:
1- Advertência;
2- Obrigação de reparar o dano;
3- Prestação de serviços à comunidade;
4- Liberdade assistida;
5- Inserção em regime de semiliberdade;
6- Internação em estabelecimento educacional.
Como se vê, a medida de prestação de serviços à comunidade é a terceira
delas na cadeia hierárquica, sendo possível observar que, devido a isso, ela é aplicada,
na grande maioria das vezes, quando o adolescente não possui uma trajetória infracional
mais grave ou cometeu algum ato que, aos olhos de quem aplica a medida, não tem
grande potencial ofensivo à sociedade. Na prestação de serviço à comunidade, o juiz
pode determinar o tempo que achar necessário, mas sempre tendo em vista o prazo
mínimo de um mês, com quatro horas semanais e o prazo máximo de seis meses, com
oito horas semanais. Dentro deste intervalo, qualquer tempo de cumprimento da medida
pode ser determinado pelo juiz.
Importante acrescentar que a metodologia do serviço indica que cada caso
poderá funcionar de um jeito e, de acordo com minha experiência, os efeitos do
cumprimento da medida variam muito. Alguns cumprem o prazo determinado, outros
abandonam, outros se mudam de cidade.
Neste sentido conta-se, inclusive, com a possibilidade de propor ao juiz,
quando se considera pertinente, o encerramento da medida antes do término do prazo
estipulado, por já se ter conseguido avaliar que o adolescente responsabilizou-se por
seus atos. As medidas de prestação de serviço à comunidade e de liberdade assistida
(além da advertência e da reparação de dano) são aquelas em que o adolescente é
43
Lei 8.069, de 1990.
47
determinado a cumprir encontrando-se em total liberdade de ir e vir. O adolescente
inicialmente é convocado em uma das Regionais da Prefeitura de Belo Horizonte (são
nove ao todo) e lá constrói, junto com o técnico de referência que será responsável por
acompanhá-lo no cumprimento da medida, a atividade socioeducativa que exercerá na
comunidade em que vive.
A metodologia do serviço, que se encontra atualmente vinculado à Política
Pública de Assistência Social, define que a escolha da atividade pelo adolescente tem
como função iniciar um processo de autonomia do mesmo na resposta que ele construirá
diante do ato que cometeu. Ele poderá escolher o lugar e o que fazer. No trabalho das
medidas socioeducativas, todos os técnicos sociais responsáveis pelo acompanhamento
de cada adolescente são formados em psicologia ou serviço social.
Desde que o serviço foi criado foi possível observar que, nas audiências
realizadas no Juizado da Infância e da Juventude, àqueles adolescentes apreendidos
pelos atos de dano ao patrimônio ou de crime ambiental (nos quais se enquadra o ato de
pixação) é determinada, na maior parte das vezes, a reparação de danos ou a medida de
prestação de serviço à comunidade.
Sou formado em Psicologia e trabalho há três anos na Regional Noroeste da
Prefeitura de Belo Horizonte como técnico de referência da medida de prestação de
serviço à comunidade. Desde então, tenho recebido para acompanhamento alguns
adolescentes que cometeram o ato de pixação. Ao longo destes três anos, foram 96
adolescentes atendidos. Atualmente, acompanho 17 adolescentes em cumprimento de
medida socioeducativa. São inseridos e desligados cerca de dois a quatro casos por mês.
Dentre os 96 atendidos até o momento, oito se dizem pixadores, embora a apenas quatro
deles tenha sido determinada a medida de prestação de serviço à comunidade devido à
prática do ato infracional ligado à pixação.
Após a construção da atividade socioeducativa nos atendimentos da Regional,
o técnico de referência faz um primeiro contato com a instituição escolhida pelo
adolescente, discute o caso e em seguida faz o encaminhamento. A partir daí, o técnico
acompanha periodicamente o serviço prestado pelo adolescente diretamente na
instituição. Cabe acrescentar, ainda, que caso o adolescente abandone o cumprimento de
sua medida ou resista em iniciá-la, o processo é devolvido ao Juizado da Infância e da
Juventude para que lá sejam tomadas as providências que o juiz achar necessárias.
48
Sabe-se que nesta situação, antes de qualquer decisão, o juiz providencia uma audiência
com o adolescente para que ele justifique o motivo de seu abandono ou de seu
descumprimento.
Visto
isso,
pode-se
afirmar
que
antes
da
construção
da
atividade
socioeducativa a ser realizada pelo adolescente é possível, com o espaço para a palavra
que lhe é ofertado, que ele relate sua trajetória infracional e, consequentemente, seus
interesses e sua história de vida. Isto coloca o profissional que o acompanha a escutar o
laço que o sujeito faz com, no caso, a pixação.
São computados aqui alguns fragmentos de casos que ilustram essa trajetória
dos adolescentes com relação à pixação. Em quase todos os relatos, os adolescentes
pixadores apontam que foi a escolha por se unirem a um grupo específico de jovens que
os levou a pixar pela primeira vez. Segundo seus relatos, existem vários grupos (que são
reconhecidos entre eles por “bandos”) por meio dos quais os pixadores se apropriam de
uma ligação fraternal e de amizade forte que os leva a pixarem juntos ou a pixarem uns
os nomes dos outros.
Um dos adolescentes acompanhados no cumprimento da medida de prestação
de serviço à comunidade escolheu grafitar um muro de creche como sua atividade
socioeducativa. Ao final do trabalho, pediu à diretora da instituição para pixar seu nome
(com a caligrafia própria inerente à pixação) e, também, o nome dos amigos com quem
“cola” (esta é uma forma de dizer que um sujeito se enlaça a outro). Naquela ocasião,
segundo relatou o adolescente, ele já não mais pixava, mas o jeito de se manter fiel ao
que antes era para ele a regra de convivência foi, após a conclusão de seu trabalho,
assinar os nomes na caligrafia da pixação.
Em atendimento a outro adolescente, este destacou que se atraiu pela pixação
quando viu um de seus amigos pixando. Participou de um grupo específico de pixação e
percebeu que alguns deles, em sua comunidade, criavam conflitos entre si, o que gerava
muita violência. Isto o deixou receoso, fazendo-o desistir de pixar. “Era muita guerra entre
os bandos. Não queria isso, não”.
Outro ponto importante a destacar de meu acompanhamento desses
adolescentes no trabalho das medidas socioeducativas é a relação específica entre o
graffiti e a pixação. Um dos adolescentes acompanhados, apreendido por pixação, dizia
pixar pois não gostava de forma alguma de graffiti ou grapixo (uma mistura de graffiti e
49
pixação: é a letra reconhecida no vocabulário da pixação, mas escrita com pompas,
detalhes artísticos e criatividade de cores e tamanhos).
Ao construir sua atividade
socioeducativa, esse adolescente se dispôs a escrever na parede de uma creche o nome
da instituição. Porém, a diretora acordou o seguinte: escrever o nome da creche com uma
caligrafia legível e o nome do adolescente, sua assinatura, da forma como quisesse.
Esse adolescente escolheu a caligrafia de sua marca e, para aprender a
escrever a caligrafia “legível”, convidou um amigo para ensiná-lo (que também prestava
um serviço comunitário na mesma creche por ter sido apreendido pixando). Ao terminar a
escrita do nome da instituição, sem assiná-la, o adolescente abandonou a atividade.
Convidado a dizer o motivo, ele apenas se limitou a contar que não mais queria estar ali,
realizando tal atividade. Não pormenorizou o porquê, mas foi possível observar que a
resposta girava em torno do que não lhe fazia sentido, visto que ele considerava-se ligado
à pixação, não ao grapixo ou ao graffiti.
Em contraposição, o mesmo amigo que lhe ajudou a escrever o nome da
creche, disse ter parado de pixar e, realizando a atividade de ensinar as crianças da
creche a desenhar, revelou: “grapixo surge para a gente não ser preso. A gente pode dar
o nosso recado com autorização”.
Outro caso a ser apresentado aqui revela mais um ponto merece ser
pesquisado acerca da pixação: o do endereçamento. Ao pixar na cidade, mesmo que
apenas sua marca (ou como é mais conhecido por eles, apenas o tag - nome escolhido
pelo pixador e que o identifica, sua assinatura, seu pixo) e não frases políticas ou de
protesto, o que se escreve na pixação é, conforme se depreende dos relatos
acompanhados, destinado a alguém. No mínimo à cidade, ou aos parceiros pixadores.
Um adolescente, que compareceu apenas a um atendimento e em seguida
abandonou o cumprimento de sua medida, relatou sua ligação com a pixação. Durante
sua fala, dentro da sala, o adolescente encontrou um pedaço de um pequeno rodapé
branco no chão, pegou-o e, à medida que a conversa fluía, sem interromper o
atendimento, começou a escrever nele. No fim do atendimento, mostrou-me o rodapé
completamente preenchido pela sua tag e, ao perguntar-lhe o que faria com tal objeto,
entregou-me dizendo: “para você”. Nunca mais entrou em contato ou respondeu aos
recados deixados a ele.
50
Depreende-se desses relatos que cada adolescente que comete o ato de
pixação possui uma relação única, singular, com o que o ato pode significar em sua vida.
Convidados a relatarem suas histórias de vida e seus interesses e planos futuros, cada
um deles revela o modo como a pixação lhes chama atenção e o motivo que os levou a
fazê-la. Esses relatos permitem também perceber que ainda que haja certa dose de
autonomia na definição da medida socioeducativa, alguns adolescentes não se sentem
coagidos
a
cumpri-la,
enquanto
outros
não
só
cumprem-na
como
também,
aparentemente, deixam de pixar. Isso nos faz refletir sobre a eficácia de medidas
punitivas em relação ao que é considerado crime, o que, por sua vez, está relacionado
com o direito à cidade.
Passa-se, portanto, no próximo capítulo, a uma reflexão mais centrada no
universo jurídico-formal em relação ao pixo e ao graffiti. O relato constitui parte dos
resultados defendidos pela pesquisadora Mariana Gontijo44 em sua dissertação de
mestrado, defendida em 2012. Tal relato traz uma interpretação que sugere fundamentar
o respeito ao graffiti como patrimônio cultural brasileiro e a descriminalização penal do
pixo.
CAPÍTULO 5. O GRAFFITI E A PIXAÇÃO: EMBATES COM O DIREITO
Essa parte do relatório é amplamente baseada nos resultados da dissertação de
uma das investigadoras e orientadoras de campo da Pesquisa, Mariana Fernandes
Gontijo45, que defendeu seu trabalho em agosto de 2012, na Faculdade de Direito da
Universidade Federal de Minas Gerais, com o tema “O direito das ruas: as culturas do
graffiti e do hip hop como constituintes do patrimônio cultural brasileiro”. A pesquisa de
mestrado se deu em Belo Horizonte46, de 2010 a agosto de 2012. Aqui, entretanto, alguns
avanços foram feitos desde então.
44
GONTIJO, Mariana Fernandes. O direito das ruas: as culturas do graffiti e do hip hop como constituintes
do patrimônio cultural brasileiro. 2012, 88f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito,
Universidade Federal de Minas Gerais, 2012.
45
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais e mestre em Direito pela mesma
Universidade. Advogada. Pesquisadora e orientadora de campo da Pesquisa Cidade e Alteridade – UFMG.
46
Município de Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais, Brasil.
51
Tendo como foco principal o graffiti, a referida pesquisadora realizou trabalho de
campo no Duelo de MCs47 durante oito meses (de março a novembro de 2011), o que lhe
permitiu ter uma primeira visão geral das culturas de rua ali presentes, quais sejam: a do
graffiti, a do hip hop e a da pixação.
Além do trabalho de campo, a pesquisadora buscou informações e dados junto ao
Estado e acabou, também, vendo-se realizando pesquisa-ação em discussões no
Ministério Público Estadual acerca do combate à pixação. Ali participou como técnica do
direito na Secretaria Adjunta de Planejamento Urbano de Belo Horizonte 48 e pesquisadora
do graffiti.
Com relação à busca de informações e dados acerca da atuação do Estado em
relação ao graffiti e à pixação, a pesquisadora tentou coletar dados junto às Promotorias
de Defesa do Urbanismo e Habitação, e do Meio Ambiente, ambas do Ministério Público
Estadual; e no Judiciário, no Juizado Especial Criminal de Belo Horizonte. Contudo,
ambas instituições não possuíam dados numéricos acerca da quantidade de processos
que envolviam os crimes de grafitagem e de pixação, mas sempre foram muito receptivas
aos questionamentos e à possibilidade de acesso a processos.
Os dados colhidos nas Promotorias e no Juizado Especial Criminal são, portanto,
sempre qualitativos, através de conversas informais sobre o graffiti e a pixação com
Promotores e Juízes presentes nas instituições.
5.1. Primeiro relatório de campo: grafitti, pixação e Estado
Serão colacionadas abaixo partes do relatório de campo do acompanhamento de
grafiteiro no Juizado Especial Criminal49. É importante ressaltar que a pesquisadora
acompanhou o grafiteiro na audiência e, a partir daí, em todo processo, até o
cumprimento da composição cível, no papel de pesquisadora e advogada. O trabalho de
campo passou a ser realizado – a acontecer – a partir do momento em que se decidiu ir à
audiência como advogada. Mas o acompanhamento do caso começou antes, quando o
grafiteiro entrou em contato por e-mail, pedindo uma orientação sobre o ocorrido.
47
O Duelo de MC´s é um movimento do hip hop que ocorre há quase 6 (seis) anos em Belo Horizonte, ao
lado da Serraria Souza Pinto, embaixo do Viaduto de Santa Tereza. Ele ocorre todas as sextas-feiras e é
lugar já conhecido, às sextas-feiras, como Duelo, do hip hop, da cultura de rua.
48
A pesquisadora trabalhou como Técnica em Planejamento Urbano na SMAPU-PBH de junho de 2011 a
maio de 2012, em contrato temporário decorrente de Processo Seletivo Simplificado.
49
Relatório de campo citado a partir da dissertação de mestrado da pesquisadora Mariana Gontijo
(GONTIJO, 2012)
52
Dividiu-se o relatório em dois momentos: o primeiro, de acompanhamento do
grafiteiro na audiência; e o segundo, de acompanhamento do cumprimento da
composição cível.
Transcreve-se, portanto, o relatório contido na dissertação50:
Processo movido contra o grafiteiro
O grafiteiro foi incurso no art. 65, da Lei de Crimes Ambientais – Lei 9.605/98 –,
antes da alteração instituída pela Lei 12.408, de 25 de maio de 2011.
Segundo seu relato, ele estava fazendo um stencil51 (molde vazado) em um muro e
foi surpreendido por um policial à paisana, que o constrangeu de forma violenta, tendo,
em seguida, aparecido vários carros da polícia. Foi revistado, enquanto explicava que o
que fazia não era pichação e que, inclusive, dava aulas de grafite (técnica stencil) em
escolas da Prefeitura de Belo Horizonte. Levaram-no para o quartel, onde esperou
durante três horas e trinta minutos até a chegada de uma viatura, que o levaria para a
delegacia, local onde ficou mais três horas. Saiu com intimação para uma audiência de
conciliação no Juizado Especial Criminal.
Vale esclarecer que o grafiteiro é de Belo Horizonte, formou-se em publicidade,
mas seu ofício, há algum tempo, é o estêncil.
Relatou-me, inicialmente, que trabalha há, aproximadamente, treze anos com
estêncil. É artisticamente reconhecido, de acordo com matérias de jornal que me enviou.
Falou-me do seu trabalho e eu vi algumas coisas de sua autoria, inclusive, na rua. Entrou
em contato comigo por meio de uma amiga em comum, que sabia da minha pesquisa,
sugerindo que eu o orientasse. Inicialmente, eu não trabalharia como advogada no caso,
apenas esclareceria suas dúvidas jurídicas. Toda conversa, inicialmente, se deu por email e tudo fazia crer que ele não queria estar pessoalmente comigo. Acredito – e ele, ao
final, me confirmou – que não queria pagar um advogado, bem como não tinha muita
confiança ou acreditava em advogados. Eu também não atuava como advogada em
contencioso judicial há algum tempo e nunca havia atuado na área criminal.
50
Nas partes transcritas da dissertação, manteve-se a grafia originalmente utilizada pela pesquisadora.
Nestes casos, utiliza graffiti quando se quer expressar a arte que é feita, isto é, o grafite como arte; e utilizase grafite quando refere-se à legislação que trata do tema.
51
Em português, estêncil é uma forma de grafite.
53
Conforme acima descrito, o muro que o grafiteiro estava pintando estava com a
autorização vencida. Explicou-me que, normalmente, quando uma autorização expira, o
muro é pintado todo de branco e, no caso do muro em questão, onde já havia, inclusive,
um trabalho dele, continuava grafitado e pichado, mesmo estando sem validade a
autorização.
Ele me questionou se poderia alegar a questão da autorização, se contaria a seu
favor no processo, além do fato de que é artista e professor nas oficinas de grafite de
escola da Prefeitura de Belo Horizonte.
Chegamos à seguinte conclusão: não valeria a pena prosseguirmos com o
processo no Juizado Especial Criminal. Melhor dizendo: melhor seria aceitar um acordo
na audiência de conciliação que se realizaria em breve no Juizado Especial Criminal.
O acordo permite que o processo seja finalizado para o acusado, pois não conta
como reincidência e não gera antecedentes criminais.
O risco de prosseguir e perder era grande, considerando que o grafite estava
definido como crime no art. 65, da Lei 9.605/98, além de não haver jurisprudência sobre o
tema, conforme pesquisa feita no site do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (na parte
relativa ao Juizado Especial Criminal). Achou-se, também, que não caberia invocar o
desconhecimento do vencimento da autorização, pois, em tese, o grafiteiro deveria, a
cada grafitagem, solicitar autorização ao proprietário ou dono do muro. Essa, no
entendimento dele, seria a atitude mais adequada e menos arriscada antes mesmo da
alteração da Lei 9.605/98 em 2011, quando se passou a exigir formalmente a autorização
para grafitar.
Contudo, a pesquisadora, como advogada do artista, explicitou-lhe a possibilidade
de se prosseguir no processo e apresentar uma defesa argumentando acerca do graffiti
como cultura a ser protegida constitucionalmente, deixando claro que se tratava de algo
novo, com pouca probabilidade de sucesso.
Toda a relação estabelecida entre grafiteiro e pesquisadora pressupunha uma
ajuda em relação ao problema por ele vivenciado. Disponibilizei-me a ajudar e esclareci
não possuir experiência na área penal, mas que poderia solicitar auxílio a algum
advogado conhecido. O meu interesse em relação ao tema era indubitável. Era parte da
minha pesquisa. Em alguns momentos, estranhei o fato de a nossa relação ser apenas
54
virtual, mas, com o tempo, ela se tornava próxima e me ofereci para acompanhá-lo à
audiência de conciliação como advogada, considerando que haveria acordo.
Refletia como pesquisadora e jurista sobre o fato de que, ao que tudo indicava, a
maioria dos casos envolvendo o graffiti terminava em acordo. Isso impedia a discussão
judicial acerca do tratamento que lhe é dado pelo ordenamento jurídico pátrio. Assim,
alguma mudança na Lei de Crimes Ambientais, no sentido de descriminalizar o grafite,
adviria mais do campo político, isto é, do Legislativo, e não do Poder Judiciário.
Na época, não se aventou, efetivamente, a possibilidade de alegar o não
enquadramento do caso no tipo penal vigente, ainda anterior à mudança na legislação,
pois se poderia argumentar no sentido de que o grafiteiro não conspurcou o muro, o qual
já estava todo grafitado e pichado. E, durante o trâmite do processo, como se verá, o
muro continuou “sujo”
Audiência
Cheguei ao Juizado sozinha. Demorei a localizar o processo na pauta das
audiências de conciliação do dia. Posteriormente, descobri que o número do processo na
ata da primeira audiência de conciliação, que havia sido adiada, estava errado. Estava um
pouco nervosa, pois o grafiteiro não chegava e, como mencionado, há muito tempo não
fazia uma audiência.
Ressalte-se que se utiliza aqui a palavra processo em sentido amplo, pois a
audiência preliminar, nos casos julgados nos Juizados Especiais Criminais, trata-se de
fase pré-processual, uma vez que não há denúncia ou queixa ainda ofertada, mas apenas
um “termo circunstanciado”52, lavrado pela autoridade policial.
O grafiteiro chegou. Verificamos o processo, que fica à disposição das partes
quando do início das conciliações da tarde, sob a guarda de uma espécie de porteiro da
entrada das salas de conciliação. Para minha surpresa, o acusado possuía um
antecedente criminal no qual já havia se beneficiado pela aplicação de multa ou pena
restritiva de direitos, porém há mais de 5 (cinco) anos, o que não impediria o acordo
anteriormente previsto, observando-se, fielmente, a regra do art. 76, § 2°, inc. II, da Lei
dos Juizados Especiais – Lei 9.099/95. Foi tenso, contudo, pois, por um momento,
pensou-se que estaria tudo perdido.
52
Trata-se da formalização da ocorrência policial, referente à prática de uma infração de menor potencial
ofensivo. Informação obtida In: NUCCI, 2008, p. 750-751.
55
Em realidade, a pesquisadora advogada não havia se preparado o suficiente para
um prosseguimento da audiência de conciliação, que instauraria de fato a ação penal,
pois a denúncia poderia ocorrer oralmente na própria audiência em que não se faria
possível a transação, tal como previsto no art. 77, da Lei 9.099/95.
Mas, como já haviam se passado mais de 5 (cinco) anos do benefício anterior
concedido ao grafiteiro, nada modificou a possibilidade da transação penal e da
composição cível que viriam no decorrer da audiência. A audiência transcorreu
tranquilamente. Fomos atendidos por 2 (dois) conciliadores simpáticos. O acusado
explicou aos conciliadores ter “mandado no muro”53 um grafite e não uma pichação e, em
seguida, acatou a proposta de acordo do Ministério Público Estadual.
Fora feito o seguinte acordo: 1) composição cível, consistente na limpeza do muro
grafitado, mediante comprovação com fotos antes e depois da limpeza. Caso o local já
estivesse limpo, deveria o autor do fato comparecer à CEAPA/MG (Central de Penas
Alternativas do Estado) para que essa instituição indicasse outro muro, de mesma
metragem, para cumprimento da medida. Definiu-se a metragem, informalmente, de
acordo com o tamanho do stencil de autoria do grafiteiro no muro, não tendo, no entanto,
tal definição, constado em ata. Foi o próprio grafiteiro quem atentou para o fato – o tanto
que teria que limpar – e discutiu com os conciliadores. Deixei-o bem à vontade,
intercedendo quando necessário, e pensando em conjunto, sugerindo, principalmente,
quanto à proposta de acordo. E 2) transação penal, consistente no pagamento de multa
(prestação pecuniária), em valor juridicamente razoável, a ser paga de 3 (três) vezes.
No decorrer da audiência, o grafiteiro explicou a técnica do stencil e relatou bem o
caso. Explicou toda a questão sobre a autorização. Deixei bem claro, e, igualmente, o
grafiteiro, que se tratava de muro grafitado e não pichado, como constara na ata, que foi,
assim, alterada.
A audiência foi pouco formal, seguindo o critério da informalidade que orienta os
processos perante o Juizado Especial. Apresentei-me como pesquisadora e pedi para
conversar com a Juíza de Plantão sobre o tema da minha pesquisa. Não me deterei sobre
toda minha conversa com a Juíza, mas esta expressou a opinião de que a pichação e o
grafite são vistos como a mesma coisa no Juizado, sendo ambos definidos como crime
pela Lei de Crimes Ambientais. Salientou, ainda, que há muitos casos de grafite e
53
Gíria utilizada pelo próprio grafiteiro ao me relatar o caso. Ela é utilizada, frequentemente, por grafiteiros e
pichadores; é parte da cultura de rua.
56
pichação que não terminam em acordo, devido aos antecedentes criminais de boa parte
dos acusados.
Vale lembrar que a audiência se deu antes da mudança da legislação em 2011,
que diferenciou o grafite e a pichação.
Além disso, a Juíza mencionou, rapidamente, que a polícia faz “vista grossa” em
relação ao grafite e à pichação, havendo poucos casos sobre o tema – “sobre o art. 65, da
Lei de Crimes Ambientais”54 – no Juizado, isso se forem comparados a outras questões
ambientais ali apreciadas.
O grafiteiro, que me aguardava, não viu qualquer sentido na composição cível
pactuada – a limpeza do muro, isto é, do seu trabalho –, trabalho que é, inclusive,
ensinado nas escolas da Prefeitura.
4.5.3 Cumprimento da Composição Cível - A Limpeza do Muro
Inicialmente, deve-se esclarecer que o grafiteiro esteve no local para cumprir o
acordo e não o deixaram limpar o muro. O muro ficava ao lado de um batalhão e era parte
do terreno deste. Voltamos lá juntos e não aceitaram a ata da audiência que determinava
a limpeza do muro. Entenderam ser necessária a comunicação oficial da decisão judicial
ao Batalhão, em nome do seu Comandante. Fomos bem atendidos pelo Major na ocasião
e fiquei de providenciar o comunicado oficial.
Destaca-se aqui, novamente, a burocracia da polícia, agora não da Guarda
Municipal, mas da Polícia Militar, esta mais arrogante no uso do poder, para não se falar
em abuso.
De toda maneira, chegamos, no dia da limpeza do muro, com a autorização
(comunicação oficial) e o Major nos recebeu bem, assim como a Secretária que
protocolou minha petição. Na petição, o grafiteiro, representado por mim como advogada,
apresentava e requeria o protocolo do Ofício da Justiça Criminal que determinava o
cumprimento da transação.
Ressalte-se que, sem qualquer fundamento legal, apresentou-se uma petição ao
Batalhão solicitando o cumprimento de uma decisão judicial. Normalmente, a polícia tem o
dever de cumprir uma decisão judicial. A polícia judiciária cumpre decisões, executa
sentenças. Ao que pareceu, o militar quis se colocar no mesmo nível do juiz que
determinou o cumprimento da decisão. E, no caso judicial do grafiteiro, não havia, para o
54
Transcreve-se a forma como a d. Juíza referiu-se ao tema, para destacar a linguagem forense.
57
Batalhão, necessidade de exercer qualquer poder – ato efetivo da polícia – para o
cumprimento da decisão: bastava que alguns policiais, sob o comando do Major,
acompanhassem o cumprimento da reparação do dano. Talvez por isso tenha sido
necessário ao Major demonstrar uma relação de poder entre militar e cidadão, para ele
tido, normalmente, como praticante de um crime.
A Secretária do Batalhão esclareceu que emitiria Ofício ao Juizado Especial
Criminal, informando o cumprimento da composição cível. O objetivo daquilo tudo era
resguardar o Batalhão do cumprimento da composição cível; impor formalidades onde
não havia. Mas abstraímos toda essa questão para providenciarmos a limpeza do muro.
Saindo do gabinete do Major, fomos em direção ao local da limpeza,
acompanhados por dois policiais, mas todo o batalhão se moveu e percebeu a nossa
passagem por ali naquela tarde.
Houve um policial, um dos que não nos acompanharam até o muro, que ficou
querendo conversar sobre medida alternativa, de uma forma arrogante, como se quisesse
falar sobre o tema e entender ao mesmo tempo o que havia ocorrido. Mas foi bastante
ambíguo na sua colocação, de forma que não compreendi se achou insuficiente a “pena” 55
imposta ao grafiteiro ou se achou, também, totalmente sem sentido a limpeza do muro.
Parece-me que, afinal, ele queria debochar do grafiteiro, daquela situação.
Um dos policiais que nos acompanhou durante a limpeza também quis entender o
que estava ocorrendo, achando aquilo tudo “coisa de louco”56. Pediu nossa ata para tirar
cópia e reclamou que “o pessoal lá de cima do Batalhão” não passa nada para eles. No
caso, não tinham lhe passado a ata para o acompanhamento do cumprimento da
composição cível, mesmo tendo ele sido designado para
realizar o referido
acompanhamento.
Também o Cabo que nos acompanhou achou esquisito aquele cumprimento da
“pena”. O grafiteiro começou a limpar o muro. Ele foi todo preparado, com tintas, rolinho e
máquina fotográfica para comprovação do fato junto ao Juizado Especial. Ele é um rapaz
mais velho (entre 30/40 anos), sério, tranquilo. Relatou-me, como já mencionado
anteriormente, que não pinta tanto na rua mais, pois não quer enfrentar problemas. Gosta
55
A palavra pena foi usada muitas vezes e por quase todos que estavam presentes no ato de cumprimento
da composição cível.
56
Expressão que utilizei em minha anotação de campo e que representa o que vi nos olhos, no rosto do
policial.
58
de pintar (“mandar o stencil”) no seu próprio bairro – quando pessoas conhecidas do
bairro pedem ou ele sugere uma intervenção, para melhorar o aspecto da rua, do
ambiente.
Ele mencionou, no momento da limpeza: “imagina como é louco para mim”.
Mencionou a questão de dar aulas de stencil, de trabalhar ensinando graffiti.
Eu me sentia meio advogada, acompanhando seu cliente, meio pesquisadora.
Queria viver tudo. Queria minha máquina de retratos e não estava com ela. Tive vontade
de limpar o muro junto. Quando já estávamos quase no final do “serviço” – ajudei um
pouco, orientando se tinha tampado ou não as figuras grafitadas no muro –, passaram
dois jovens, não tão meninos, já moços, morenos, mais humildes, mas nem tanto, que
pararam, olharam e perguntaram: “que grafite vai sair aí?”
São coisas inesperadas e maravilhosas de se ouvir: “felicidade se acha é em
horinhas de descuido”, já dizia Guimarães Rosa em “Barra de Vaca” (tutaméia) 57. Logo
rimos e esclarecemos que o grafiteiro estava cumprindo uma pena, ou melhor, uma
composição cível, reparação de dano por ter grafitado o muro. E um dos jovens
transeuntes disse: “eu também faço grafite, eu acho massa. Os pichadores são guerreiros
mesmo! Mas eu faço grafite.”
Muito interessante esta última colocação desses jovens. Pichador, para eles, é
homem corajoso. Veja-se que eles são reconhecidos por isso. A busca de
reconhecimento contida na prática da pichação é real, bem como o próprio
reconhecimento, que, de fato, ocorre muitas vezes, seja no círculo de amigos dos
pixadores, no lugar em que vivem ou, talvez mais fortemente, pelo grupo culturalmente
diferenciado de que fazem parte, que aqui foi denominado “cultura da pixação”, no caso
circunscrita ao local e o período desta investigação, quais sejam, “comunidade de
pixadores de Belo Horizonte” – pegando emprestada definição usada por Isnardis58 – e o
período entre janeiro de 2011 e julho de 2012.
Expliquei aos jovens passantes, no decorrer de uma conversa que acabou surgindo
de todo o acontecido – da presença marcante deles ali – que, segundo a Lei, é necessária
57
Citação contida no disco Brasileirinho de Maria Bethânia, no qual todas as frases de João Guimarães
Rosa foram retiradas do livro “Cf. ROSA, João Guimarães. Rosiana: Uma coletânea de conceitos, máximas
e brocados. Seleção e prefácio Paulo Rónai. Belo Horizonte: Ed. Salamandra, 1983.
58
ISNARDIS, Andrei. Pinturas Rupestres Urbanas: uma etnoarqueologia das pichações em Belo Horizonte.
Revista de Arqueologia, Brasil, n. 10, p. 143-161, 1997, p. 150.
59
a autorização para grafitar, o que permaneceu com a mudança recente da Lei de Crimes
Ambientais.
Esclarece-se que a limpeza do muro ocorreu no começo de junho de 2011,
portanto, logo após a alteração da Lei 9.605/98 pela Lei 12.408, de 25 de maio de 2011.
O grafiteiro pintou o muro e ficou aliviado de finalizar aquela história. Melhor
dizendo, ele concluiu a limpeza do muro, pintando-o de cinza. “Comemoramos juntos, eu,
o grafiteiro e meu pai, que aquele dia havia me acompanhado até o ‘local do crime’”59.
Reflexões sobre o muro do quartel
Depois do ocorrido, percebeu-se que o caso da limpeza do muro no quartel tratouse de algo bastante característico da sociedade brasileira atual. Muitas vezes, observa-se
uma não responsabilização das pessoas em relação a algo que se refere ao comum da
vida em sociedade – do viver em comunidade. As pessoas em geral e, mais gravemente,
aquelas ligadas, de alguma maneira ao poder, seja ele econômico ou político, deixam de
agir, algumas vezes, de forma cidadã.
O desinteresse em receber o grafiteiro para o cumprimento de uma decisão judicial
demonstrou a inércia do Batalhão em relação a problemas importantes de sua
responsabilidade, pois o muro está ali situado e o Major e os policiais sequer estavam
preocupados se o muro ainda estava todo grafitado e pichado, ou não. Questionei-os se o
muro estava sem autorização para grafitagem. Eles disseram que sim e que estavam sem
verba para realizar a limpeza do muro. Porém, respondiam como se o problema não fosse
deles, o que pode esclarecer, por um lado, o fato de ser difícil para os grafiteiros solicitar
autorizações em lugares onde, de antemão, é sentida, simultaneamente, certa imposição
e negligência advindas de órgãos e servidores do poder público. Pode-se inferir que,
tendo em vista a experiência relatada, não haveria qualquer vontade por parte do
Batalhão de esclarecer a situação do muro – se está autorizado ou não para grafitagem –
para qualquer interessado em realizar um graffiti.”60 (grifamos)
Foram grifados acima, alguns pontos de destaque na fala do grafiteiro ou de outros
presentes nos lugares relatados, e, também, outros pontos que nos interessam muito na
59
60
Frase retirada do caderno de campo da pesquisadora.
GONTIJO, 2012, p. 54-61.
60
especificidade da proposta que se faz na Pesquisa Cidade e Alteridade, relativamente à
cultura de rua.
Fica claro, a partir do relato, o diálogo que se estabelece entre direito formal e
cultura do graffiti.
Inicialmente, ficou claro como se faz necessária a diferenciação do grafite e da
pixação no Direito, tendo o problema aparecido em duas situações descritas no relatório
de campo: na própria audiência e na fala da Juíza no Juizado Especial Criminal. A
inovação trazida pela Lei 12.408/11 à Lei de Crimes Ambientais – Lei 9.605/98 - caminha
exatamente no sentido dessa diferenciação. Não se pretende dizer que a diferença é
importante para distinguir graffiti e pixação como algo bom e ruim, respectivamente, mas
é importante por caminhar no sentido do reconhecimento de certas inscrições nos muros
como possíveis de serem interpretadas como arte. Entretanto, analisando o contexto mais
amplo do surgimento desta lei, é possível afirmar que ela reforçou sensivelmente a
criminalização da pixação.
Ora, o graffiti, já há algum tempo, é ensinado nas escolas públicas e no sistema
socioeducativo61. Em Belo Horizonte, tem-se notícia do ensino de graffiti nas escolas
integradas do Município (escolas públicas municipais) e em oficinas do programa “Fica
Vivo!”, do Governo estadual. Este último incentiva sua prática como forma de prevenção à
criminalidade. Há também o “Projeto Guernica”, do Governo municipal, que, de elogiado
em seu início – em 1999-2000, na gestão do Prefeito Célio de Castro –, posteriormente
esvaziou-se em sua atuação, estando hoje atrelado a um Governo 62 que foca na
necessidade de o graffiti atuar como prevenção e cura da pixação.
Entretanto, o graffiti, previsto como crime de forma genérica até maio de 2011,
continua, como vimos na legislação ambiental alterada, sendo crime, caso não cumpridas
as duas condições previstas na Lei 9.605/98. Hoje, para que o graffiti não constitua crime,
impõe-se a necessidade de que esse ocorra com autorização e, simultaneamente, seja
caracterizado como manifestação artística com o objetivo de valorizar o patrimônio público
ou privado. Percebe-se que se trata de regra bastante subjetiva, muito dependente da
ação discricionária do Estado.
61
Vide subrelatório do presente documento, produzido por Guilherme del Debbio, sobre o acompanhamento
que prestou como técnico da Prefeitura de Belo Horizonte em casos de medidas socioeducativas.
62
Gestão do Prefeito Márcio Lacerda, com início em 2009. Uma nova gestão do mesmo Prefeito iniciou-se
em 2013.
61
Claramente, percebe-se a possibilidade aberta tanto ao Poder Executivo, quanto ao
Judiciário, no sentido de poderem decidir, discricionariamente, sobre o caráter artístico ou
não de um graffiti em busca de autorização63. A valorização ou não do patrimônio público
ou privado trata-se, também, potencialmente, de outra abertura para decisões contrárias à
cultura do graffiti. Ademais, um juiz que não separe bem graffiti e pixação pode
simplesmente resolver aplicar a lei de forma literal. A possibilidade desse suposto juiz
buscar entender e analisar a realidade, o que possivelmente, em um caso como este, não
estará tão evidente nos autos, – tendo em vista o fato de se tratar de crime de menor
potencial ofensivo, de procedimento sumaríssimo, ou o fato de que o próprio grafiteiro
pode resistir em procurar uma boa defesa, mesmo esta sendo oferecida pelo defensor
público – é pequena.
E, aqui, destaca-se um ponto do relatório de campo que demonstra a importância
do caráter político do graffiti de rua, defendido pela pesquisadora, e, portanto, da proteção
que se deve dar a esta prática cultural e artística. Na realidade, a discussão judicial dos
crimes de grafitagem não chega a acontecer em montante significativo, de forma que
alguma mudança na Lei de Crimes Ambientais, no sentido de descriminalização do
graffiti, provavelmente, adviria de reivindicações do campo político.
Por outro lado, ainda sobre o contexto de consolidação no aparato jurídico
administrativo da diferenciação entre pixo e graffiti, vale mencionar novamente o processo
de recrudecimento em relação ao pixo.
Quando a Juíza opina que a polícia faz vista grossa aos crimes de pixação e
graffiti, pode ser que, na época em que comentou (início de 2011), ela não tenha
percebido a movimentação que já havia na política municipal relativamente ao combate à
pixação. Nessa época, os Piores de Belô64 já haviam sido presos preventivamente sob a
acusação de formação de quadrilha, por realizarem, em conjunto, pixações em Belo
Horizonte. A prisão se deu em 2010.
Aproximadamente naquele momento estava em discussão e foi anunciada em Belo
Horizonte, pelos Governos estadual e municipal, a criação de uma delegacia para tratar
63
Conforme, ademais, discutido no relatório de Guilherme Abu-Jamra, que compõe este documento, essas
noções do belo, do limpo e do progresso são fruto de processos sociais e históricos excludentes e pautados
por uma ótica modernizante.
64
Grupo de pixadores que utilizavam esse nome e foram presos, preventivamente, em 24 de agosto de
2010, acusados do crime de formação de quadrilha, por supostamente atuarem em conjunto e planejarem
suas pixações nas redes sociais.
62
exclusivamente dos casos de pixação.65 E, já havia por parte da pesquisadora, uma
preocupação com o exagero das medidas tomadas pelos Governos contra os pixadores,
em especial pelo Governo municipal, com o programa “Movimento Respeito por BH”.
Ainda vigente, esse programa baseia-se na “Teoria das Janelas Quebradas” – aplicada
com êxito em Nova York em 1994, por meio da implantação da política de “Tolerância
Zero” –, para buscar garantir o ordenamento e a correta utilização do espaço urbano,
através do cumprimento e efetiva aplicação da legislação vigente.
No que se refere à pixação, as discussões no Judiciário ganham maior vulto, sendo
importante, também, a atuação em defesa dos direitos fundamentais dos pixadores e da
descriminalização da juventude brasileira. O pixo, tal como o graffiti, constitui uma cultura
de rua e deve ser compreendida em sua dinâmica social e cultural.
Entretanto, a ambiguidade entre identidade e diferenciação no âmbito sociológico
entre pixo e graffiti é ressaltada, por outro lado, na fala dos jovens transeuntes enquanto
expressões e artes de rua. Eles dizem: “eu também faço graffiti, eu acho massa. Os
pixadores são guerreiros mesmo! Mas eu faço graffiti.”66
É ressaltada, inclusive, pela própria Juíza, ao afirmar que pixadores e grafiteiros
têm alto índice de antecedentes criminais. Ainda que isso deva ser melhor investigado em
termos quantitativos e qualitativos, os dados que colhemos na pesquisa até o momento
não confirmam essa afirmação. De todo modo, a fala dela denota uma pressuposição – e
talvez um preconceito – em relação a esses sujeitos: o de que eles são, em sua maior
parte, criminosos de outros tipos de crime. Tem-se que, nossa cultura jurídica (a que
prevalece), ao se referir a antecedentes criminais, de antemão, age com preconceito,
decorrente dessa própria cultura jurídica. Além disso, ela tem vontade de punir e, mais
ainda, o “diferente”.
Como visto no relatório de campo, o grafiteiro era Professor de graffiti em escola da
Prefeitura, ficando sem entender como o mesmo graffiti, feito por ele na rua, pôde ser
considerado crime.
65
O anúncio foi feito em agosto de 2010. Referida delegacia especializada não chegou a ser aberta no
Estado.
66
GONTIJO, 2012, p. 60.
63
5.2. Segundo relatório de campo: o graffiti como cultura
Far-se-á uma pequena apresentação do relatório de campo baseado em conversa
informal com o DJ Roger Dee, integrante da Família de Rua. Roger, Ele foi um dos
primeiros a grafitar em Belo Horizonte (1984) e aqui nos interessa, principalmente,
entender como a prática do graffiti se dava quando ele começou a grafitar.
Conversamos informalmente no dia 26 de outubro de 2011, em reunião feita para
tratar do estatuto da Família de Rua. A pesquisadora estava presente como advogada da
Família de Rua e estudiosa do graffiti, em mestrado na Faculdade de Direito.
Será colacionada abaixo a primeira parte do relatório de campo, pois, depois da
conversa informal, a pesquisadora realizou entrevista por telefone com Roger, que se
trata da segunda parte do relatório.
Roger contou que, quando começou, os grafiteiros, basicamente, copiavam o que
“rolava”67 lá fora, principalmente nos Estados Unidos, nos trens de Nova York. Falou de
uma pessoa que, segundo ele, era o maior grafiteiro da época. Ele se chamava Ângelo e
tinha o apelido de “AJ”. Roger relata que “o cara fedia spray, tinta” 68, pois andava o dia
inteiro grafitando.
Falou um pouco dele na escola, junto com outros meninos. Eles pintavam a escola,
e conta ainda que levavam um radinho e dançavam – acredita que a dança é o elemento
mais forte e coeso do hip hop. Relatou uma história dele, sobre quando grafitou com o
“AJ” no Carlos Prates, em um lugar onde passava um metrô ou trem, no viaduto de Santa
Quitéria. Disse que sentia muita emoção, que havia a adrenalina do trem que poderia vir a
qualquer momento.
Explicou-me que, nos anos 90, todos que grafitavam, andavam com livros, material
e, caso fossem abordados, mostravam o material, dizendo que estavam fazendo obra de
arte. Afirma que os policiais respeitavam, aceitavam, acreditando que “ah, aqueles
meninos ali, estão fazendo arte.”69.
67
Transcrição da gíria utilizada por Roger, que diz respeito à ação ou ocorrência no lugar definido. Sinônimo
de acontecimento.
68
Fala do informante, anotada no caderno de campo. Ressalte-se que informante é o termo utilizado na
antropologia para denominar o entrevistado do grupo cultural pesquisado ou de, alguma forma, ligado à
cultura investigada.
69
Roger referindo-se a fala dos policiais em relação a eles.
64
Vale aqui lembrar que na época não havia na legislação a exigência de autorização
para grafitar.70 Mas os grafiteiros, segundo Roger, algumas vezes, “elaboravam”
autorizações e andavam com elas.
Acredita que hoje os pixadores estão fazendo aquilo que faziam. Destaca,
entretanto, que, naquela época, eles copiavam, e, hoje, os pixadores têm um processo
mais autônomo de aprendizagem, de ver aquilo que já foi feito e, de repente, depois de
muito fazer, seguir aperfeiçoando suas práticas. Pelo que entendi, Roger acredita que os
pixadores estão fazendo algo mais interessante, e diz, exatamente: “não é cópia, é a
evolução dos traços.”71.
Posteriormente, conversando ao telefone com Roger para confirmar sua fala e
solicitar sua autorização para incluí-la neste relato – no dia 24 de junho de 2012 –, ele
afirmou que a pichação é uma tag, no sentido de assinatura de um nome, a qual pode
talvez, com o tempo, evoluir para outra história (tipografia ou pintura) parecida com o
graffiti no Brasil. Menciona que eles – pixadores – podem tomar como base tanto o graffiti
já feito aqui, como outras referências.
Pensando que, nos Estados Unidos e na Europa, nos lugares onde a palavra
“graffiti” refere-se a todos os tipos de escrita urbana, a tag é tida como o primeiro estilo
praticado – a partir do qual houve a evolução para os estilos robustos, cheio de formas,
tais como o throw-up, os bombs e outros –, a pichação poderia ser tomada como sendo
um graffiti72, sem qualquer diferença. E seria um graffiti realizado, por enquanto, só por
meio de tags.
Ocorre que no Brasil, onde já existe a tradição do que seja grafitti (como
pensamos, geralmente a escrita de rua com grandes formas), qual seja, aquele que teve
início com as formas praticadas nos Estados Unidos nos anos 60-70 (estilo mais visual,
icônico), houve a diferenciação entre graffiti e pixação. E poderíamos pensar se a pixação
não é algo genuinamente brasileiro, da forma que ocorre aqui.
Questionando-o se a pixação seria arte no Brasil, Roger respondeu-me,
veementemente, que não, que a pichação é, para ele, contestação, não necessariamente
política. Aliás, para ele, ela não é política, mas tem um caráter de contestação pessoal de
70
A Lei de Crimes Ambientais é de 1998 e, também, não exigia a autorização antes da alteração feita em
seu texto pela Lei 12.408/11. Porém, após a promulgação da Lei de Crimes Ambientais, que tipificou o
grafite como crime, a autorização passou a ser exigida administrativamente, sem regras claras.
71
Citando o caderno de campo.
72
Utilizando o termo em inglês, da forma pensada fora do Brasil.
65
seu autor, uma vontade de ser reconhecido ou ter visibilidade, aparecer. Concorda que os
pixadores podem acabar “pegando carona” na ideia de ser uma contestação política.
Entende que hoje a pichação é apenas uma criação tipográfica que se exterioriza através
de uma tag. E diz, ainda, que muitos pixadores justificam suas práticas por meio do
argumento de que essas são, também, graffitis, o que Roger não concorda, pois graffiti,
no Brasil, é diferente de pixação, destaca.
Voltando-se ao relato da conversa realizada em 2011, Roger me contou ali,
naquela reunião, a história dos grupos de graffiti em Belo Horizonte, cronologicamente, a
partir da sua época. Ele conhece bem a história do graffiti na cidade e de forma geral.
Conta que, depois de um tempo, deixou um pouco a rua e virou DJ. Mas, pela sua
fala, ele ainda tem uma relação forte com a pintura. Nesse momento, a pesquisadora
percebeu um pouco como foi sendo construído o seu modo de vida. Hoje, Roger é DJ,
produtor cultural e compositor, conforme entrevista por ele dada ao Jornal O TEMPO,
publicada no dia 1° de maio 201173.
Em seguida, contou-me de seu encontro com osgêmeos74, nos anos 80. Relata que
são amigos. Disse-me que costumava ir a São Paulo e ficava com eles, pintando. Na
realidade, dançavam e pintavam. Segundo Roger, Os Gêmeos conheceram, nos anos 90,
um “cara”75 chamado “Twister”, que ensinou uma técnica de grafitti para eles e, a partir
daí, eles decidiram que não iriam mais estudar, ir para a faculdade, mas só fazer graffiti, e
que havia uma preocupação dos dois quanto àquela empreitada dar certo.
Após esse primeiro contato com osgêmeos, ressaltou que houve muitas trocas
entre os grafiteiros daqui com eles e outros artistas de São Paulo, e que eles foram
transmitindo algumas técnicas para o pessoal daqui, de forma que acha que o graffiti
daqui também evoluiu, ficou “legal”76.
No meio da conversa, houve algumas interrupções, outros assuntos com todos
presentes, tendo Roger se manifestado no sentido de que a Família de Rua faz hip hop, e
não rap. E, então, questionei o porquê. Roger respondeu que o rap é algo que foca mais
73
BARBOSA, Daniel. Entrevista: A Voz do Hip Hop Reverbera. Belo Horizonte, Jornal O TEMPO, 1 mai.
2011.
Entrevista.
Disponível
em:
<http://www.otempo.com.br/otempo/acervo/?IdEdicao=2017&IdNoticia=169926>. Acesso em: 25 jun. 2012.
74
Os irmãos gêmeos idênticos Otávio e Gustavo Pandolfo, conhecidos pela assinatura osgemeos, artistas
de São Paulo, consagrados no mundo. Informação obtida em: Dois é demais. Revista O GLOBO, Rio de
Janeiro, nº 369, p. 34-39, 21 de agosto de 2011.
75
Mantendo a fala coloquial do informante. Segundo Roger o “cara” se chama “Twister”.
76
Destacando e trazendo para o texto a expressão utilizada pelo informante, no intuito de manter o sentido
e a naturalidade da conversa.
66
no mercado hoje em dia. Ele pode não ter qualquer relação com o hip hop, pois esse tem
a ver com atitude, com o jeito de vestir, com um estilo de vida. Tal como no graffiti existem
artistas que não têm qualquer relação com o hip hop, o mesmo ocorreria no rap. Segundo
ele, o nome “hip hop” não tem muita explicação, em termos de conceito. Afirma que um
grupo, um pessoal, se reuniu, colocou música, pinturas e chamou aquele encontro, aquela
festa, de hip hop, “do nada”, sem qualquer motivo. E diz Roger: “ele poderia ter qualquer
outro nome.”.
Hip hop é um jeito de pensar, refleti. Para Roger, o estilo nasceu no Bronx 77, assim
como o graffiti. E afirmou que, antes, dialogavam com a pichação. Acha que hoje não dá
para dialogar com a pichação. Disse que, nos anos 90, “pichador era pichador, não era
bandido.”78, 79 (grifamos)
Querendo entender essa última afirmação de meu informante, decidi perguntá-lo,
por telefone, de que forma expressava sua opinião sobre os pixadores, ao falar que hoje
eles eram bandidos. Queria entender o que ele realmente pensava sobre a pixação. A
conversa ao telefone, realizada no dia 24 de junho de 2012, pode ser encarada como uma
entrevista não estruturada que, embora não planejada previamente, em muito contribuiu
para esclarecer as dúvidas existentes, brindando-nos – e fortalecendo80 – com outros
pontos acerca da cultura de rua.
Ela está contida nessa segunda parte do relatório de campo:
Primeiramente, falarei da pergunta feita a Roger sobre a pichação.
No fundo, a pesquisadora suspeitava que Roger referia-se à opinião da sociedade
acerca do pichador. Ele esclareceu que hoje a sociedade é quem trata o pichador como
bandido e que, em sua opinião, poucos deles estariam envolvidos na “bandidagem”81,
aproximadamente 5% (cinco por cento) deles. Outros 80% (oitenta por cento), ou a
maioria, ele acredita que picha para aparecer, e os outros 15% (quinze por cento)
77
Bairro de Nova York, onde havia muita criminalidade e ocorreram encontros de dançarinos de break, DJs
e MC’s em festas de rua, encontros estes que foram chamados de hip hop e que, na sua origem, já tinham
um tom político, contestatório. Ver em: LODI, 2003, p. 99; e ROCHA, Janaína; DOMENICH, Mirella;
CASSEANO, Patrícia. Hip hop: A periferia grita. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2001, p. 17-18.
78
Fala de Roger, anotada após a reunião.
79
GONTIJO, 2012, p. 36-38.
80
Palavra muito usada no hip hop, visando designar uma contribuição, um ensino, uma valorização da
cultura hip hop. O uso da expressão expande-se hoje para toda arte e cultura de rua.
81
Bandidagem no sentido de envolvimento com a criminalidade.
67
estariam, talvez, viciados na adrenalina. Acha, portanto, que o problema para os
pichadores é que alguns deles estão envolvidos com a criminalidade, com outros crimes
mais graves, juntamente com o crime de pichação.
Assim, tal como mencionado acima e no item anterior, Roger conclui que, na sua
opinião, eles não agem politicamente, mas para ganhar notoriedade; e salienta que a
maioria não está envolvida em crimes mais graves, o que o Estado tenta generalizar.
Querem pichar, sujar, não tão preocupados com tantas outras coisas, diz Roger. Acredita
que há realmente, em alguns casos, um vício de realizar aquela prática, pois ela gera
muita adrenalina, o que vicia.
Conta que, quando grafitavam na sua época, também pichavam. No caminho para
fazer um graffiti, deixavam suas tags. E acrescenta que todo grafiteiro foi pichador.
(...)
(...) Tratam-se ambos de uma prática em que se escreve (grafita ou picha) em um
lugar que não é seu. Um lugar público ou privado. Há uma apropriação daquele espaço.
E, dessa maneira, menciona que poderíamos dizer que ambos são crimes – e são
realmente. Mas conversamos muito sobre o grafite e a pichação como crime, o que seria
arte e sobre a criminalização dos dois.
No que se refere ao graffiti, ao final da conversa, Roger concorda que ele deveria
ser descriminalizado, pois entende que ou o Estado deveria permitir o grafite, ou não. Não
dá para ficar em um meio termo, em sua opinião. Já sobre a pichação, concorda que é
algo mais complexo e, para ele, como já relatado no item anterior, não é arte ou cultura.
Apontou a contradição entre o fato de o grafite ser crime e, por outro lado, ser
ensinado pelo Estado em oficinas, como forma de prevenir a prática de crimes pelos
meninos. Citou o Programa “Fica Vivo!”, já mencionado no presente trabalho. O
programa, como se pode verificar no site oficial da Secretaria de Estado de Defesa Social
– SEDS –, do Governo de Minas Gerais, oferece oficinas culturais, esportivas e
profissionalizantes para jovens de 12 (doze) a 24 (vinte e quatro anos).
Disse-me que lá fora, na Europa, fazer um mural é crime. Que grafiteiro vai preso
se fizer um mural na rua. Discutimos sobre a diferença entre ir para prisão aqui e na
Europa.
Na realidade, refletindo bem, ir para prisão no Brasil por fazer um graffiti é um
pouco paradoxal, pensando na situação do sistema carcerário brasileiro. Por esse motivo,
68
provavelmente, é que o graffiti e a pichação no Brasil têm a pena máxima de 1 (um) ano,
o que possibilita que os processos sejam julgados nos Juizados Especiais Criminais,
podendo ser realizados acordos, substituindo-se a pena privativa de liberdade por penas
restritivas de direito ou multa (art. 76, da Lei 9.099/95). Além disso, nos crimes com pena
mínima igual ou inferior a 1 (um) ano, faz-se possível a suspensão condicional do
processo por dois a quatro anos, nos termos do art. 89 da Lei 9.099/95, observados os
requisitos nele previstos.
Porém, existe outro problema em relação ao Brasil: a nossa polícia, que é arcaica e
repressiva. Arcaica no sentido de parecer estar em um regime ditatorial até o momento. E
por, em grande medida, atuar abusivamente e com uso da violência, em especial contra
negros, pobres e minorias vulneráveis. Fala-se aqui, principalmente, da Polícia Militar, que
realiza o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública.
Além disso, o Poder Judiciário, ou melhor, o Direito, até há pouco tempo não fazia
distinção entre grafite e pichação e tratava as duas práticas da mesma maneira. O fato de
a lei não diferenciar as duas práticas, sem dúvida, influenciava a visão do Judiciário sobre
o tema, o que, também, acabaria influenciando a atuação das polícias. (...)
(...)
Retomando a conversa com Roger, lembrei-me de uma discussão importante sobre
a pichação, em que questionávamos a possibilidade dessa ser arte e cultura. Roger bem
destacou: “ela é contracultura”82. (grifamos)
Talvez possamos dizer que
a
pixação
configura-se como
uma cultura
provocativamente nova e diferente, que traz uma gama de significados que ainda estamos
buscando compreender. Sabe-se que sua prática é mais contra-hegemônica que a prática
do graffiti atualmente e, portanto, seu embate com o direito formal e com o Estado é
maior.
5.3. Reflexões sobre a cultura da pixação e o direito formal
Não há como se falar em graffiti sem considerar a pixação e, tampouco, trabalhar
tais culturas juridicamente, politicamente e sociologicamente sem considerar a realização
de uma e outra, e o tratamento jurídico-normativo dado a elas (graffiti e pichação). Vale,
82
GONTIJO, 2012, p. 39-41
69
inclusive, aventar a hipótese, a ser investigada posteriormente, de que a definição de
ambos os termos (graffiti e pixação) esteja relacionada a um estado de interdependência
que une, separa e hierarquiza indivíduos e grupos sociais pertencentes a essas culturas
de rua, conforme analisado por Norbert Elias e James Scotson, num contexto urbano
distinto, relacionado à estigmatização de parte específica de um bairro por parte dos
moradores mais antigos do mesmo (Elias & Scotson, 2000).
Nesse momento, gostar-se-ía apenas de trazer um pouco da experiência da
pesquisadora na pesquisa-ação que vem sendo feita pelo Grupo desde meados de 2012,
em parceria com a Divisão de Assistência Judiciária – DAJ, da Faculdade de Direito da
UFMG. Destaca-se que a pesquisa-ação é método usado na pesquisa do Grupo e aqui se
está falando de parte específica da nossa pesquisa-ação, na qual se coloca o
acompanhamento jurídico como uma possibilidade aos sujeitos pesquisados. Aqueles
que, de forma autônoma, buscam, por meio da pesquisa, orientação e acompanhamento,
têm sido acompanhados pelos advogados do Grupo e por um estagiário do DAJ em
conexão permanente com a pesquisa.
A pesquisadora atua, portanto, também, como advogada nos casos em que os
sujeitos pesquisados procuram o acompanhamento. Sua atuação, até então, se dá mais
no acompanhamento dos trâmites dos processos, na realização das audiências e na
orientação e trabalho em conjunto com o estagiário do DAJ, pois, desde o princípio,
entendeu-se necessária a participação na pesquisa de um advogado criminalista. As
peças processuais dos processos em andamento foram elaboradas, portanto, por um
parceiro na pesquisa83, advogado criminalista e doutorando da Faculdade de Direito.
A experiência de pesquisa com o grupo cultural da pixação é o que tem dado maior
sentido à pesquisa-ação da cultura de rua, pois, além de o tema e a prática pesquisada
serem desafiadores por si só, o grupo cultural, a partir do momento em que sente sua
legitimidade existencial enxergada pela pesquisa, caminha junto no desejo de conhecer e
reconhecer seus direitos, apesar de este ser um ponto de questionamento crucial da
própria pesquisa: o embate das culturas de rua investigadas com o direito, o Poder
83
Fernando Nogueira Martins Júnior, advogado penalista, parceiro na pesquisa, desde quando foram
realizados encontros da pesquisa com alguns pixadores na Faculdade de Direito, no intuito de propiciar
discussões não só jurídicas, mas também teóricas acerca de seus direitos fundamentais, direito à cidade à
cultura de rua.
70
Público. E, no caso da pixação, o embate, ao que parece, está no cerne da ação dos
pixadores, faz parte da relação que eles traçam com a cidade.
Endossando as asserções quanto aos adolescentes que deviam cumprir medidas
socioeducativas84, verifica-se que entre os pixadores que não se enquadram na faixa
etária atendida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, alguns buscam resolver seus
problemas com a Justiça, outros não. Alguns buscam defesa, mas são negligentes no
cumprimento das determinações simples da Justiça, tais como assinar mensalmente em
Juízo caderneta em suspensão condicional do processo.
Geralmente, pelo que se pode observar ao longo das investigações, os pixadores
têm um sentido de grupo, de união, muito maior do que se vê no graffiti. Nas audiências
de conciliação e, também, de instrução e julgamento, nos processos penais relativos ao
crime de pixação em que estive com eles no Juizado Especial Criminal de Belo Horizonte,
pude perceber o quanto sabem se defender, o quanto são ativos em relação às suas
defesas. Porém, reconhecem de imediato a diferença entre ter um advogado os
acompanhando e irem sozinhos às audiências ou a convocações de comparecimento às
delegacias. A autodefesa que realizam de forma quase imediata nas audiências está
relacionada, a nosso ver, com o próprio embate vivido cotidianamente com a lei, com a
polícia, com o Poder Público e a própria sociedade.
A relação com o Poder Público está clara ali também no Judiciário, de forma que,
na ausência do advogado que atue em seu favor, eles estão sujeitos a não serem ouvidos
e, ainda, a serem estigmatizados como pixadores, vândalos e potenciais criminosos, tal
como os tem visto o “Movimento Respeito por BH”, da Prefeitura de Belo Horizonte, já
mencionado, que atua em conjunto com as polícias (Civil e Militar), com o Ministério
Público Estadual e outros órgãos.
Esclarece-se que há a figura do Defensor Público, que pode atuar garantindo os
direitos fundamentais desses jovens. Porém, por se tratar de cultura estigmatizada em
nossa sociedade, pode não ocorrer uma defesa a contento e, além do mais, a tendência é
não se reconhecer a pixação nesse sentido cultural, estético, com características muito
próprias, tal como temos observado em nossa pesquisa.
Sobre a política de combate à pixação, que ganhou corpo na cidade desde a
criação do “Movimento Respeito por BH”, é importante pontuar como as ações e atitudes
84
Conforme trabalhado no item 4.3, quarto capítulo do presente relatório de pesquisa.
71
desta política aparecem, claramente, nos processos judiciais acompanhados pela
pesquisa, em especial em um processo, que aqui se passa a relatar, no qual foram
convocadas diversas “vítimas” como testemunhas em audiência de instrução e
julgamento.
Vítimas entre aspas, pois estas pessoas não procuraram espontaneamente o
caminho do sistema penal (delegacia, justiça) para solicitar a reparação de danos.
Diferente disso, elas foram convencidas pelos policiais a assinar solicitações de
reparação de danos previamente elaboradas pela Polícia Civil.
Muitas dessas pessoas sequer eram proprietárias dos imóveis, como se verificou
no processo, constando no modelo do termo de solicitação de reparação de danos
elaborado pela Polícia Civil esta qualificação para todos os solicitantes. Ressalte-se que a
maioria das supostas vítimas – foram 12 solicitações assinadas e quase todas elas foram
ouvidas na audiência de instrução e julgamento – eram inquilinos ou moravam de favor no
imóvel. Uma delas sequer morava em um imóvel pixado, mas trabalhava em loja próxima
e fora convencida pela Delegada da Polícia Civil a fornecer seus dados e assinar o termo
de solicitação. Não ficou nem um pouco satisfeita – ficou indignada – com o fato de ter
sido convocada para estar presente naquela audiência de instrução e julgamento e pediu
para constar no processo sua insatisfação.
Verificou-se, ao longo da audiência, a ocorrência de verdadeiro assédio por parte
da Polícia Civil em relação aos supostos solicitantes. Tem-se que a Polícia atuou além da
sua prerrogativa de investigação, “‘forçando’ uma ficcional lesividade penal de
condutas”85. Assim, a pixação, que se trata de crime de menor potencial ofensivo, ganha
um grau de lesividade muito superior à realidade dos fatos, exatamente como a política
municipal de combate à pixação, em parceria com o Estado de Minas Gerais e seus
órgãos, pretende classificá-la.
Tal atuação por parte da Polícia Civil ficou evidente nos autos, tendo dois dos
declarantes afirmado, em resposta às perguntas da defesa, que a pixação não os havia
incomodado. Confira-se um dos depoimentos:
1. Depoimento de Leonardo Jorge, suposta vítima, fl. 168 dos autos: “quando
alugou o imóvel localizado na Av. Barão Homem de Melo, nº 700, a pichação
já existia; (...) a assinatura que consta do documento de fl. 29 pertence ao
85
Argumento usado nas alegações finais da defesa, nos autos do processo nº 2482468-27.2011.8.13.0024,
da Justiça Estadual de Minas Gerais.
72
declarante; (...) o policial civil em uma viatura foi até o local e perguntou ao
declarante se o mesmo sabia quem tinha feito a pichação, se havia muito
tempo, e se o declarante sabia o significado da pichação , não orientando o
declarante a fazer representação; o declarante já havia visto a pichação, mas
não se sentia incomodado porque a pichação foi feita nos fundos do imóvel.”
Ou seja: o Sr. Leonardo não é proprietário do imóvel, não se incomodava com
o pixo em sua residência, e mesmo assim foi “convencido” a assinar uma
solicitação que não expressava nem sua vontade, nem mesmo sua situação
de inquilino (a Polícia Civil forjava fraudulentamente a caracterização do sr.
86
Leonardo Jorge como proprietário); (...)
Os demais depoimentos das supostas vítimas demonstraram a insistência da
Delegada da Polícia Civil em colher as solicitações de reparação de danos, tendo a douta
Autoridade Policial ido pessoalmente nos imóveis pixados.
Deixar-se-á para citar as defesas e discussões processuais mais fortemente no
relatório final, mas o que se pode afirmar, desde já, é que trabalha-se com a tese (de
defesa) de que há uma hipercriminalização da conduta do pixador, prescrita como crime
ambiental de pixação, e diga-se novamente, de menor potencial ofensivo.
Entende-se que a pixação e o grafite não devem ser considerados casos de polícia
no Brasil e, portanto, crime. A proposição inicial, nesse sentido, é de que a pixação seja
unicamente um ilícito civil, descriminalizando, a partir daí, a conduta praticada por uma
parte significativa da juventude no Brasil – especialmente daquela pobre e de periferia.
CAPÍTULO 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS: INSCRIÇÕES NOS MUROS, DEMOCRACIA
E DIREITO À CIDADE
Pretendeu-se neste relatório parcial apresentar contribuições à compreensão dos
fenômenos do pixo e do grafite no contexto sócio-político atual, mais especificamente na
cidade de Belo Horizonte, a partir de reflexões que remetem e se dão num contexto mais
amplo de conformação da cidade e do acesso e direito à cidade.
Para atingir esse objetivo identificou-se como fundamental compreender tais
fenômenos enquanto questões identitárias que dialogam, mas não são subsumidas por
definições no âmbito jurídico.
Ou seja, do ponto de vista identitário, grupos e indivíduos envolvidos com o pixo e
com o grafite possuem dinâmicas e conformações identitárias múltiplas, a partir de
86
Trecho das alegações finais nos mesmos autos.
73
concepções variadas sobre ética, moral, estética e justiça, o que torna inadequada uma
concepção unívoca do que sejam “os pixadores” e “os grafiteiros”. O foco na agência
destes atores permite desnaturalizar concepções do senso comum e do próprio direito a
respeito das fronteiras identitárias entre eles, e permite aprofundar a compreensão de
como as dinâmicas identitárias e os modos de sociabilidade operam nas práticas desses
atores da cultura de rua.
Por outro lado, a partir da ótica jurídica, constata-se que o Direito se posiciona de
modo claramente distinto em relação aos atores aqui enfocados, compreendendo o
caráter artístico e cultural de um em detrimento do outro. A cristalização no direito de tal
distinção, temporal e sociologicamente situada, embora recente, remete a questões que
dizem respeito à modernidade e a um padrão estético que vem se consolidando ao longo
do tempo, mas que encontra oposições e que constitui apenas uma das versões da
realidade social – e da estética social.
Assim, sendo hermenêutico, o debate de fundo aqui proposto implica em
reconhecer a pluralidade de vozes que conforma e produz a “cultura de rua”, suas
congruências, dissenções, continuidades e descontinuidades; e, simultaneamente,
compreender como esses atores estão situados, do ponto de vista do direito formal. Ainda
que o próprio Estado aja com frequência fora dos limites ou, ao menos, flexibilizando os
limites da legalidade (Holston, 1993; Telles, 2010), ele consiste em peça fundamental
para compreender como os atores da cultura de rua se reconhecem e se situam na
cidade.
Observar, de um lado, o processo de consolidação no direito da legalidade ou
ilegalidade de atos praticados por esses atores da cultura de rua (incluindo agentes do
poder público) e, por outro, o processo de conformação desses indivíduos e grupos
enquanto agentes sociais, que não se definem apenas por uma resistência ou
conformação ao que é legal ou ao que é ilegal, permite refletir sobre democracia, direito à
cidade, Estado (Democrático) de Direito e pluralismo jurídico.
Desse modo, sugere-se a partir dos dados preliminares levantados, a
descriminalização total do graffiti – e não apenas sua descriminalização parcial, como
feito pela Lei 12.408/11. Tem-se por certo, na concepção de “práticas estéticas”, ser o
graffiti arte que deve ser protegida e contemplada pelo direito, extrajudicialmente e
judicialmente, considerando-se o caráter identitário, artístico e cultural de suas práticas.
74
Não se nega, entretanto, o respeito que deve haver à propriedade privada e aos
bens de propriedade do Estado e, em especial, os protegidos pelo Estado – monumentos,
bens tombados e outros -, não se vendo, frequentemente, por parte dos autores de
graffiti, ofensa a bens privados e tutelados, tal como já destacado. Por outro lado, não há
como exigir que a prática do graffiti, em todas as situações em que ela ocorre, tenha o
objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado, tal como fez a Lei Federal nº
12.408/11 ao alterar a Lei de Crimes Ambientais.
Assim, a descriminalização proposta não exclui a regulamentação necessária a
nível civil e administrativo. Sabe-se da pouca vontade política do Executivo em trabalhar o
tema, assim como outros temas ligados à cultura no sentido abstrato acima mencionado.
Porém, uma mudança real do tratamento das práticas do graffiti só poderá ocorrer a partir
da regulamentação de políticas realizadas a nível local, estadual e federal.
O graffiti deve ser trabalhado como política cultural e urbana, como já se
mencionou, fazendo valer a democratização cultural conquistada constitucionalmente no
Brasil, a partir de 1988. A Constituição de 1988 avançou nesse sentido, pois permitiu a
abertura na formação do patrimônio cultural brasileiro. Conforme destacou Mariana
Gontijo em sua dissertação:
A arte do graffiti, sua cultura, modo de vida, pode e deve ser tomada como bem
cultural imaterial a partir dos valores de referência ligados à identidade e à ação
de grupos formadores da sociedade brasileira, tal como dispõe o art. 216, da
nossa Constituição.
Ressalta-se, (..), que, sendo o direito ao patrimônio cultural – ou o direito à cultura
– um direito fundamental previsto na Constituição de 1988, a qual prevê, em seu
art. 215, caput e § 1°, a garantia do pleno exercício dos direitos culturais, bem
como o incentivo e a valorização das manifestações culturais, verifica-se um
conflito entre esse dispositivo constitucional – e os seguintes do mesmo capítulo
intitulado “Da Cultura” – e a Lei Federal 9.605/98.
Assim, como o direito fundamental à cultura é norma de hierarquia superior à Lei
de Crimes Ambientais e indica, além disso, que a seleção dos bens merecedores
de tutela deve ser feita via interação Estado-sociedade, tem-se que a sociedade
passa a ter papel ativo e participativo na formação do patrimônio cultural brasileiro,
já que tem o poder de conferir valores culturais a bens ainda não selecionados e
87
tutelados pelo Poder Público.
Finalmente, sabe-se que, anteriormente à Lei de Crimes Ambientais, o graffiti
poderia ser considerado como crime de dano, mas, geralmente, apenas a pixação, à
época, enquadrava-se nesse tipo penal. Não havia, como se pôde depreender de relatos
dos atores de cultura de rua, uma preocupação em relação à prática do graffiti, que era,
87
GONTIJO, 2012, p. 66.
75
ainda, desconhecida pelo sistema jurídico e era relativamente pequena, comparando-se
com sua frequência e amplitude nos dias de hoje.
Nada impede que hoje se aplique o crime de dano, na forma prevista no Código
Penal, a práticas lesivas que possam decorrer da grafitagem. Mas esta em si, a nosso
ver, não deve permanecer criminalizada no País, afastando-se a sua subsunção ao
sistema penal.
Com relação à pixação, o embate com o direito, o Estado e a cidade é bem mais
elevado. Há ofensas a bens protegidos e à propriedade privada, mas busca-se, também,
sua descriminalização, mantendo o ato como ilícito civil. A prática no Brasil continuaria
ilegal, mas apenas no âmbito civil, pois a entendemos como fenômeno estético, cultural e
social (em especial no Brasil). A pixação é prática realizada pela juventude mais excluída
socialmente, dos bairros afastados do centro, das periferias, da “cidade ilegal”.
Muito ainda se pretende avançar na análise da relação entre as culturas do graffiti
e da pixação, o Poder Público e o direito formal. Mas desde já, afirma-se a importância da
proteção das culturas que se expressam em nosso ordenamento e, antes de tudo, para
nós do direito, a necessidade de conhecer as dinâmicas desses grupos culturais, de ir à
realidade social antes de aplicar, sem maiores reflexões, a força da lei.
Márcia Tiburi, no texto em que questiona a estética da fachada, aborda a relação
entre a pixação e a democracia:
Não é possível negar o direito ao muro branco ou liso em uma sociedade
democrática, na qual está sempre em jogo a convivência das diferenças. O direito
ao muro branco é efeito da democracia. Mas a questão é bem mais séria do que a
sustentação de uma aparência ou de um padrão do gosto. A pixação é também
um efeito da democracia, mas apenas no momento à ela inerente em que ela
nega a si mesma. Ela é efeito do mutismo nascido no cerne da democracia e por
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ela negado ao fingir a inexistência de combates intestinos e velados (Tiburi) .
O que dizer da tal “educação patrimonial” que, além de toda a marginalização
exercida, incentiva o denuncismo anônimo? O respeito imposto não parece constituir uma
ética. Como pensar em democracia onde o que incomoda ou é polêmico deve ser banido?
Onde nos levará a obsessão pelo ordenamento e regulamentação? Qual, nesse contexto,
será o espaço para o outro, para a convivência urbana, a multiplicidade de pessoas,
88
TIBURI, Marcia. “Pensamento Pixação - Para questionar a estética da fachada”. Revista Cult Uol, Edição
135. Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/pensamento-pixacao/. Acessado em:
22/02/2013.
76
culturas e discursos presentes na cidade? Onde nos levará a obsessão pelo consenso
definitivamente harmonioso dessa democracia que querem nos empurrar goela abaixo?
No dicionário Aurélio, a transgressão está definida como o “ato ou efeito de
transgredir, infracionar, violar”. Dentre as definições, existe a transgressão marinha, que é
o movimento das águas do mar ao invadirem um trecho de continente. O mar é uma força
incontrolável, assim como o pixo. O que fazer com eles?
Falar do pixo, ou tentar desvendá-lo, seria como colocar um pouco de água do mar
na garrafa: aquilo é água do mar, mas não é a mesma coisa enquanto contida ali, naquela
garrafa. Essa talvez seja a verdadeira ou a primeira transgressão do pixo, a invasão que o
pixo faz na vida do pixador (“sei lá”, “num dá nem pra explicar” “é mais que um
sentimento”). Tentar definir o pixo em um só signo, aprisioná-lo numa tela, é inviável.
Como o Estado e a sociedade se posicionam em relação ao pixo ou ao graffiti,
entretanto, embora faça referência às próprias expressões mencionadas, diz muito mais
dos que o condenam ao banimento ou à exclusão, os que traçam as linhas classificatórias
– sempre de cunho hierarquizante – entre o que é belo e permitido e o que é feio e deve
ser excluído. Ainda que no presente relatório nosso foco tenha sido nas manifestações
dos muros, essa segregação hierarquizante é mais geral e perversa. São justamente
essas situações de construção de muros e exclusões que o projeto Cidade e Alteridade
pretende estudar e, naturalmente, denunciar.
77
CAPÍTULO 7. EPÍLOGO FOTOGRÁFICO DOS MUROS DO ENTORNO DO DUELO DE
MCS: INTERAÇÕES ENTRE PIXO E GRAFFITI
Grafitte Hyper
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Parte do graffite de Sérgio Anjo (reprodução do espaço sob o viaduto, em torno ao Duelo de MC’s
Serginho Anjo, Wera, Tiago Dequete, Hyper, Ed Mun, Surto, Nilo Zack, Musa,
Viber, Dagson Silva, Raison Silva (todos graffitiiros), foram encarregados pela Família de
rua a renovar o muro do fundão. Ali onde não há banheiro para os moradores de rua,
nem para os frequentadores do Duelo. Onde é escuro e onde, por vezes, pela ausência
ou omissão total da polícia, acontece uso e compra, venda de drogas. Ainda que a
Família de Rua lute para ter ajuda com tais contingências e prosseguir com seu intuito
cultural e político.
Sérgio Anjo, graffitiiro das primeiras gerações, inserido na cultura Hip Hop, ocupou
boa parte do muro reproduzindo o lugar onde o duelo acontece, inclusive os muros, a
base do viaduto e o próprio muro do fundão. A ideia foi chamar o pixo pra interagir.
José (pixador) foi chamado pra coordenar os outros.
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Nunca vi tanta fissura por um ato!!! Impulso quase irrefreável de riscar a parede.
José mandou logo as presas dos que morreram, seus amigos, integrantes do mesmo
bonde. Perguntou a grafia de outros pixos, dos que soltos, ainda não estavam ali. Foi um
tumulto tão grande que até ele, pixador, começou a achar ruim a falta de limite dos outros.
Foi muito engraçado isso. E a admiração e o respeito que ele ainda sustentava com a
moçada insaciável.
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Na foto, jovens marcam sua presa. Impressionante como muitos pixadores que já
morreram tiveram presas deles por lá. Um pixador chegava e, em alguns casos, ía
mandando vários pixos, de pixadores do mesmo bonde que o seu ou não.
A propósito do descontrole dos pixadores, evidenciado nesse convite à interação
com o graffite, inédito até então por ali, vemos, na foto que virá a seguir, na réplica do
espaço do Duelo, feita pelo Sérgio Anjo, os vidros das janelas, sob o viaduto, pixadas. Foi
pedido inúmeras vezes, aos que chegavam, pra não ocuparem esse espaço do desenho.
Esforço vão, que desanimou até os pixadores mais antigos no pixo, que ficaram na
liderança.
Por fim, alguns passaram em pequenos pedaços dos graffitis. Mesmo sendo
poucos espaços, um graffitiiro se manifestou na rede. Posição depreciadora do pixo,
entendido ali não como interação, mas como atropelo. Mas, pra nós que víamos, a ideia,
o foco, era interagir.
Também chama atenção o efeito plástico da interação das escritas, pinturas da rua
entre si.
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O viaduto de Santa Tereza, o Duelo de MC’s, local de encontro dos pixadores, local
de alta concentração de pixos na cidade. Algumas imagens:
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“Nossos sonhos não cabem em suas urnas” –
Canditada à eleição, no período eleitoral do ano de 2012, colocou um cavalete de
campanha no meio do “Point” dos pixadores. Logo estava tudo pixado à caneta. Essa é
uma frase, pixada entre os detonos dos jovens.
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A marquise acima, do Nelson Bordello, na Aarão Reis, em frente ao lugar onde
acontece o Duelo, foi feita por um graffitiiro, Pedro Ninja, a pedido da casa. O graffitiiro
queria um pixo em seu trabalho. Pediu um pixo GOMA ao lado de sua figura.
Abaixo, mais uma foto do Bordello. Observa-se os outros graffites da parede e o
pixo, esse feito sem convite de ninguém. Ainda sim, a interação acontece. O pixador é
das primeiras gerações do pixo na cidade.
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https://boitempoeditorial.wordpress.com/2011/12/. Acessado em 23/12/2011
da
Boitempo:
Referências complementares
Documentários
Complexo: Universo paralelo. Direção: Mario Patrocínio. Portugal, 2011.
Elas da Favela. Direção: Dafne Capella. Brasil, 2008.
Falcão: meninos do tráfico. Direção: MV Bill e Celso Athayde. Brasil, 2006.
Favela On blast (Favela Bolada). Direção: Leandro Hbl e Wesley Pentz. Brasil, 2008.
Funk Zona Leste. Documentário produzido pela ONG Favela É Isso Aí no Fundo da Infância e da
Adolescência
(FIA).
Direção:
Artur
Senra.
Brasil,
2011.
http://www.youtube.com/watch?v=oT1OwBg5AnM
Notícias de uma guerra particular. Direção: João Moreira Salles. Brasil, 1999.
O prisioneiro da grade de ferro: Autorretratos. Direção: Paulo Sacramento.
95
Brasil,
2003
Referências para a pesquisa sobre pixo e graffiti
- Notícia: Pichador se exibe em fotos na internet
Polícia investiga vários suspeitos na capital
Data: 10/07/12
http://noticias.r7.com/minas-gerais/noticias/pichador-se-exibe-em-fotos-nainternet-20120710.html
- Revista O Viés
A pixação e a ordem das aparências
Data: 06/07/12
http://www.revistaovies.com/reportagens/2012/07/a-pixacao-e-a-ordem-dasaparencias/
- Blog Filosofia Cinza
Luz, Câmera, Pixação!
http://filosofiacinza.wordpress.com/2012/04/30/luz-camera-pichacao/
- Blog Olho-de-Corvo
Agenda Juventude e Pichação (1): lançamento
http://olhodecorvo.redezero.org/agenda-juventude-e-pixacao-1-lancamento/
- Blog Olho-de-Corvo
Agenda Juventude e Pichação (2): equívocos do movimento Respeito por BH
http://olhodecorvo.redezero.org/agenda-juventude-e-pixacao-2-equivocos-domovimento-respeito-por-bh/
- “Pichação na Bienal de Berlim: arte ou crime?”, site da Folha de São Paulo, Página Para
Entender
Direito,
do
dia
14/06/2012).
Disponível
em:
http://direito.folha.uol.com.br/1/post/2012/06/pichao-na-bienal-de-berlim-arteou-crime.html
Outros endereços eletrônicos (notícia sobre pixo e graffiti)
POLÍCIA APREENDE MATERIAIS DE PICHAÇÃO EM BH – GP1. DISPONÍVEL EM:
http://www.gp1.com.br/noticias/policia-apreende-materiais-de-pichacao-em-bh-219453.html.
Acesso
10
Novembro
2011.
“Justiça
está
mais
severa
com
pichadores
de
BH”.
Disponível
em:
http://www.uai.com.br/htmls/app/noticia173/2010/08/24/noticia_minas,i=175804/JUSTICA+EST
A+MAIS+SEVERA+COM+PICHADORES+DE+BH.shtml.
Acesso
20
setembro
2010
“Palácio
das
Artes
amanhece
pichado”.
Disponível
em:
http://correiobrasileiro.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=
887&catid=47&Itemid=71. Acesso 28 abril 2012.
Cidade Democrática – Movimento Respeito por BH – Combate à pichação. Disponível em:
http://www.cidadedemocratica.org.br/topico/1847-movimento-respeito-por-bh-combate-apichacao. Acesso em 10 fevereiro de 2011
Altar com pintura em graffiti surpreende fiéis na Igreja de Padre Eustáquio. Disponível em:
http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2012/04/16/interna_gerais,288986/altar-com-pinturaem-graffiti-surpreende-fieis-na-igreja-do-padre-eustaquio.shtml. Acesso em: 16 abril de 2012.
“Agora é lei: graffiti não pode ser considerado crime.” Disponível em:
http://www.favelaeissoai.com.br/noticias.php?cod=102. Acesso em
96
fevereiro
de
2012.
“Acontece, em Belo Horizonte, a exposição graffiti sem limite. Trabalhos ficarão expostos entre
os dias 16 e 25 de janeiro.” Disponível em:
http://culturahiphop.uol.com.br/noticia/582/acontece-em-belo-horizonte-a-exposicao-graffitisem-limite-trabalhos-ficarao-expostos-entre-os-dias-16-e-25-de-janeiro. Acesso em 25 de
janeiro de 2011.
http://www.dcs.pucminas.br/coreu/omundo/index.php?page=noticias/bienal-graffiti. Acesso em:
16 abril de 2012.
https://www.seds.mg.gov.br/index.php?option=com_content&amp;task=view&amp;id=1162&am
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VIANA, Maria Luiza e BAGNARIOL, Piero. História recente do graffiti, in BAGNARIOL, Piero e
outros. Guia ilustrado de Grafitti e Quadrinhos. Belo Horizonte: 2004, p.155-185. Disponível
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http://midia-radical.blogspot.com.br/2008/11/histria-recente-do-graffiti.html. Acesso em 20 de
março de 2011.
“Ministro
dos
Direitos
Humanos
defende
pichadora
da
Bienal”
.
Disponível
em:
http://www.youtube.com/watch?v=8nDuRh8GORo. Acesso 01 agosto 2012.
“Pichadores narram intervenção na Bienal de Berlim”. Disponível em:
http://carosamigos.terra.com.br/index/index.php/cultura/noticias/2317-a-artecomo-crime-em-uma-bienal-cuja-proposta-era-esquecer-o-medo. Acesso 05 de
agosto de 2012.
“Galeria
de
Pixação
Art
Attack”
Disponível
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http://www.flickr.com/photos/pixoartatack/. Acesso em 19 de julho de 2012.
“Pixação e as aves de rapina”. Disponível em:
http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=821&PHPSESSID=099cbc670a7e
8a6c998a4f532aaf76c9&fb_source=message. Acesso 22 de junho de 2012.
CALDEIRA, Tereza. “Mundos separados”. Disponível em:
http://v0.urbanage.net/0_downloads/archive/_SA/15_NewsPaper_Essay_Caldeira_por.pdf .
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“Pichação na Bienal de Berlim: Arte ou crime?”. Disponível em:
http://direito.folha.uol.com.br/1/post/2012/06/pichao-na-bienal-de-berlim-arteou-crime.html. Acesso em 22 de junho de 2012.
“A pichação e a ordem das aparências.” Disponível em:
http://www.revistaovies.com/reportagens/2012/07/a-pixacao-e-a-ordem-dasaparencias/ Acesso em 8 de julho de 2012.
“Pensamento Pixação – Para questionar a estética da fachada”. Disponível em:
http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/pensamento-pixacao/ Acesso em 27 de
dezembro de 2010.
LINKS (textos vídeos)
http://www.youtube.com/watch?feature=player_detailpage&v=MmYVbXG1urI
http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=821&PHPSESSID=099cbc670a7e
8a6c998a4f532aaf76c9&fb_source=message
97
http://v0.urbanage.net/0_downloads/archive/_SA/15_NewsPaper_Essay_Caldeira_por.pdf
http://direito.folha.uol.com.br/1/post/2012/06/pichao-na-bienal-de-berlim-arteou-crime.html
http://www.revistaovies.com/reportagens/2012/07/a-pixacao-e-a-ordem-dasaparencias/
http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/pensamento-pixacao/
Vídeo graffiti na Praça da Estação
http://www.youtube.com/watch?v=MmYVbXG1urI
Sites de referência para a pesquisa sobre Hip Hop
http://rap.about.com/od/hiphop101/a/hiphoptimeline.htm
http://www.youtube.com/watch?v=Ze4DM4HbJ04&feature=plcp (The History of Hip
Hop – documentário)
http://www.mrwiggles.biz/hip_hop_influences.htm
http://www.daveyd.com/raphist1.html
http://www.noticiario-periferico.com/2007/08/histria-do-hip-hop.html
http://www.zulunation.com/
http://hiphop.sh/afrika
http://hiphop.sh/koolherc
http://en.wikipedia.org/wiki/DJ_Kool_Herc#1520_Sedgwick_Avenue
http://en.wikipedia.org/wiki/Afrika_Bambaataa
http://www.overmundo.com.br/overblog/historia-da-cultura-hip-hop
http://www.youtube.com/watch?v=bj1r6u8zLPo (Scratch – documentário)
ARTIGOS DE JORNAL
https://www.seds.mg.gov.br/index.php?option=com_content&amp;task=view&amp;id=707&amp
;Itemid=71
http://noticias.r7.com/cidades/noticias/pichadores-de-bh-terao-que-pagar-multa-20100910.html.
http://www.gp1.com.br/noticias/policia-apreende-materiais-de-pichacao-em-bh-219453.html
http://www.uai.com.br/htmls/app/noticia173/2010/08/24/noticia_minas,i=175804/JUSTICA+EST
A+MAIS+SEVERA+COM+PICHADORES+DE+BH.shtml
98
http://www.uai.com.br/htmls/app/noticia173/2010/08/24/noticia_minas,i=175804/JUSTICA+EST
A+MAIS+SEVERA+COM+PICHADORES+DE+BH.shtml
http://www.hojeemdia.com.br/minas/palacio-das-artes-amanhece-pichado-1.439008
http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2012/04/28/interna_gerais,291540/vandalos-pichamfachada-do-palacio-das-artes.shtml
http://www.cidadedemocratica.org.br/topico/1847-movimento-respeito-por-bh-combate-apichacao
http://www.cidadedemocratica.org.br/topico/1847-movimento-respeito-por-bh-combate-apichacao
http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2012/04/16/interna_gerais,288986/altar-com-pinturaem-graffiti-surpreende-fieis-na-igreja-do-padre-eustaquio.shtml
http://www.divirtase.uai.com.br/html/sessao_13/2008/10/27/ficha_ragga_noticia/id_sessao=13&amp;id_noticia=4
287/ficha_ragga_noticia.shtml
http://www.favelaeissoai.com.br/noticias.php?cod=102
http://culturahiphop.uol.com.br/noticia/582/acontece-em-belo-horizonte-a-exposicao-graffitisem-limite-trabalhos-ficarao-expostos-entre-os-dias-16-e-25-de-janeiro
http://www.dcs.pucminas.br/coreu/omundo/index.php?page=noticias/bienal-graffiti
https://www.seds.mg.gov.br/index.php?option=com_content&amp;task=view&amp;id=1162&am
p;Itemid=71
http://midia-radical.blogspot.com.br/2008/11/histria-recente-do-graffiti.html
ANEXOS
Roteiro semi-estruturado aplicado aos graffitiiros
1)
2)
3)
4)
5)
6)
7)
8)
9)
10)
11)
12)
Onde mora?
Com o que trabalha?
Como entrou no hip hop?
O que o hip hop representa pra vc?
O que seus pais fazem?
Até quando estudou?
Como você começou a grafitar? O que te levou a grafitar, ao graffiti?
Você tinha ou tem hoje ligação com a cultura hip hop de Belo
Horizonte?
Você acredita em luta política (através da arte)? Tem algo forte neste
sentido no seu trabalho?
Em que medida você diferencia o político e o artístico no seu trabalho?
O que você acha do tratamento dado pelo ordenamento jurídico ao
graffiti e à pixação? E pelo poder público? Esclarecer a mudança na lei.
Como vocês veem a pixação?
99
13) Vcs acham que o pixo ou o grafiti são arte? – o que eles tem de
artístico?
14) Qual a diferença de mandar um pixo ou um grafitti em local autorizado e
não autorizado? O que preferem? Por que?
15) Qual sua experiência com a policia e com a justiça até hoje?
16) O pixo ou o graffiti querem embelezar a cidade?
17) Tem alguma diferença grafitar em lugar autorizado e grafitar em local
não autorizado?
18) Você sempre fez seu graffiti em local autorizado? (se a resposta for
não, perguntar porque) Por que?
19) Houve a descriminalização do graffiti desde que haja autorização. O
que vocês acharam dessa alteração? Tem diferença?
20) Geralmente, vocês pedem autorização? Antigamente, antes da
alteração na lei pediam? E antes da lei de crimes ambientais (antes de
1998), vocês lembram como era? Já grafitavam?
21) O que distingue o seu graffiti dos outros? Qual é o seu traço
específico?
22) O graffiti pra você quer dizer alguma coisa pra cidade? É um modo de
dizer algo pra cidade? Ou você não quer dizer nada, quer apenas
curtir, usufruir de uma coisa bonita, bem desenhada?
23) A tendência é se tornar um trabalho. Você já pensou nele como
trabalho /cadastro formalização? Como nas escolas. Algo
regulamentado? Ou é mais interessante ser um artista independente,
artista, artista de rua, como um artista plástico?
24) Você vê o graffiti mais como uma profissão ou como um lazer?
100
Roteiro semi-estruturado a ser aplicado aos pixadores
1)
2)
3)
4)
5)
6)
7)
8)
9)
Onde mora?
Com o que trabalha?
Como entrou no hip hop?
O que o hip hop representa pra vc?
O que seus pais fazem?
Até quando estudou?
Como você começou a grafitar? O que te levou a grafitar, ao graffiti?
Você tinha ou tem hoje ligação com a cultura hip hop de Belo Horizonte?
Você acredita em luta política (através da arte)? Tem algo forte neste
sentido no seu trabalho?
10) Em que medida você diferencia o político e o artístico no seu trabalho?
11) O que você acha do tratamento dado pelo ordenamento jurídico ao
graffiti e à pixação? E pelo poder público? (Esclarecer a mudança na lei)
12) Vcs acham que o pixo ou o grafiti são arte? – o que eles tem de
artístico?
13) Qual a diferença de mandar um pixo ou um grafitti em local autorizado e
não autorizado? O que preferem? Por que?
14) Qual sua experiência com a policia e com a justiça até hoje?
15) O pixo ou o graffiti querem embelezar a cidade?
16) Gostariam de ser vistos pela sociedade como vândalos mesmo ou de
outro modo?
17) Técnicas e conteúdo
18) História de vida. Como e porque começou a pixar
19) Economia do Pixo
20) História da tag
21) Locais: como são selecionados, onde são, por que
22) Rotina do Pixo – sistemática/ rotina de vida
23) Relação com a família (algum artista na família? Moralidade, ética,
valores)
24) Economia/relação dinheiro e pixo
25) Relação com a lei, com a transgressão e com a criminalidade
26) Endereçamento da pixação
27) O que seria um mundo e uma cidade mais justas? Sonhos
28) O que é arte?
29) Drogas
30) Crítica política/social
101
Lei 12.408/11:
o
o
1 Esta Lei altera o art. 65 da Lei n 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, dispondo sobre
a proibição de comercialização de tintas em embalagens do tipo aerossol a menores de 18
(dezoito) anos, e dá outras providências.
o
Art. 2 Fica proibida a comercialização de tintas em embalagens do tipo aerossol em
todo o território nacional a menores de 18 (dezoito) anos.
o
o
Art. 3 O material citado no art. 2 desta Lei só poderá ser vendido a maiores de 18
(dezoito) anos, mediante apresentação de documento de identidade.
Parágrafo único. Toda nota fiscal lançada sobre a venda desse produto deve possuir
identificação do comprador.
o
o
Art. 4 As embalagens dos produtos citados no art. 2 desta Lei deverão conter, de
forma legível e destacada, as expressões “PICHAÇÃO É CRIME (ART. 65 DA LEI Nº
9.605/98). PROIBIDA A VENDA A MENORES DE 18 ANOS.”
Art. 5
o
Independentemente de outras cominações legais, o descumprimento do
disposto nesta Lei sujeita o infrator às sanções previstas no art. 72 da Lei nº 9.605, de 12 de
fevereiro de 1998.
o
o
Art. 6 O art. 65 da Lei n 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, passa a vigorar com a
seguinte redação:
“Art. 65. Pichar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.
o
§ 1 Se o ato for realizado em monumento ou coisa tombada em virtude do seu valor
artístico, arqueológico ou histórico, a pena é de 6 (seis) meses a 1 (um) ano de detenção e
multa.
o
§ 2 Não constitui crime a prática de graffiti realizada com o objetivo de valorizar o
patrimônio público ou privado mediante manifestação artística, desde que consentida pelo
proprietário e, quando couber, pelo locatário ou arrendatário do bem privado e, no caso de bem
público, com a autorização do órgão competente e a observância das posturas municipais e
das normas editadas pelos órgãos governamentais responsáveis pela preservação e
conservação do patrimônio histórico e artístico nacional.” (NR)
o
Art. 7 Os fabricantes, importadores ou distribuidores dos produtos terão um prazo de
180 (cento e oitenta) dias, após a regulamentação desta Lei, para fazer as alterações nas
o
embalagens mencionadas no art. 2 desta Lei.
o
o
Art. 8 Os produtos envasados dentro do prazo constante no art. 7 desta Lei poderão
permanecer com seus rótulos sem as modificações aqui estabelecidas, podendo ser
comercializados até o final do prazo de sua validade.
o
Art. 9 Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
89
89
BRASIL. Lei 12.408, de 25 de maio de 2011. Altera o art. 65, da Lei 9.605, de 12 de fevereiro
de 1998, para descriminalizar o ato de grafitar, e dispõe sobre a proibição de comercialização
de tintas em embalagens do tipo aerossol a menores de 18 (dezoito) anos. Diário Oficial [da
República Federativa do Brasil], Brasília, Distrito Federal, 26 mai. 2011. Disponível em:
102
Transcrição de algumas frases pixadas pela cidade:
o sistema tem que xorar
o sistema abala mas não intimida
viva o crack
o juiz soltou o deputado e prendeu o pixador pé rapado
prenda-me se for capaz
odeio político, a única campanha que faço é pelo ensino
enfia a copa no cú
eles só querem controlar mas estão todos descontrolados
a sociedade entra em choque
dê lírios
nada volta
chupa burguesia!
Estarei ao lado de todos que estão contra o Márcio. Ass: Délio Malheiros
Fume Maconha
Coma bagulho
Foda-se o sistema
Pode por 1000 watts
O que é pior o pixo ou o crack?
Anti copa
Tempo rei
Copa=despejo
Pilantras traiçoeiros
não vote em sujão
a ocasião faz o político.
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12408.htm>.
julho 2011. (grifo do autor) (grifo nosso em negrito)
103
Acesso
em:
1
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6. Relatório Parcial do Eixo Temático Cultura de Rua