Na quebrada, a parceria é mais forte - Juventude hip-hop: relacionamento e estratégias contra a discriminação na periferia do Distrito Federal Breitner Luiz Tavares SUMÁRIO INTRODUÇÃO: VELHAS E NOVAS JUVENTUDES 1 CAPÍTULO 1 GERAÇÕES: POR UMA TEORIA DO TEMPO EM MOVIMENTO 1.1 O conceito de Gerações: alguns aportes 1.2 O problema das gerações enquanto sociologia da mudança social 1.3 6 Noções de geração e habitus: movimentos sociais como formas de estilos de vida e gosto CAPITULO 2 ESTUDOS E TEORIAS SOBRE A JUVENTUDE NO SÉCULO XX E NO PRESENTE: UMA BREVE REVISÃO 2.1 As velhas teorias: Escola de Chicago (1920-1940) e Teorias Funcionalistas (1950-1960) 2.2 Estudos Culturais (anos 1970) 2.2.1 Subculturas jovens sob uma perspectiva crítica 2.2.2 Mercado de bens culturais, estilo e autenticidade 2.2.3 Sexo ou classes 2.2.3 Abordagens qualitativas no âmbito do CCCS 2.3 Juventude enquanto categoria social no Brasil 2.3.1 Um novo paradigma da juventude nos anos 90: violência e criminalização – Uma abordagem sobre os estudos da UNESCO Breitner Tavares 16 2.3.2 Para as juventudes do presente CAPÍTULO 3 O MÉTODO DOCUMENTÁRIO COMO REFERÊNCIA PARA O ESTUDO DAS ORIENTAÇÕES COLETIVAS DA JUVENTUDE HIP-HOP 38 3.1 Sociologia compreensiva e o método documentário CAPITULO 4 CIDADE E DINAMIZAÇÃO E PERIFERIZAÇÃO: UMA SOCIOLOGIA URBANA DE BRASÍLIA 46 4.1 Segregação Sócio Espacial: A Invensão da periferia 4.2 Ceilândia-DF: o projeto da invasão erradicada CAPÍTULO 5 HIP-HOP COMO PENSAMENTO DESCOLONIAL E PÓS COLONIAL 55 CAPíTULO 6 ETNOGRAFIA URBANA: JUVENTUDE HIP-HOP NO DISTRITO FEDERAL 61 CAPÍTULO 7 ORIENTAÇÕES COLETIVAS E GERACIONAIS DE JOVENS RAPPERS NO DISTRITO FEDERAL 7.1 Orientações Coletivas e Geracionais: estilo de vida hip-hop e o envolvimento com trabalho social 7.2 Grupos Revolução MCs e Resistência Periférica: estilo de vida e configuração urbana 7.3 Sobre as orientações coletivas dos jovens dos grupos analisados: algumas considerações conclusivas CAPÍTULO 8 ESTILO E RELACIONAMENTO: Breitner Tavares II 73 DEMARCADORES COLETIVOS EM TORNO DO TEMA SEXUALIDADE 140 8.1 Grupos Rap Comando e BR45: Ficar, namorar e projeções de futuro 8.2 Masculinidade e misoginia: a construção social do namoro e a monogamia-Grupos Revolução MCs e Resistência Periférica 8.3 Algumas considerações gerais sobre relacionamento e sexualidade nos grupos hip-hop CAPÍTULO 9 EXPERIÊNCIAS DISCRIMINATÓRIAS E ESTRATÉGIAS ENFRENTAMENTO CRIADAS PELOS JOVENS RAPPERS COMUNICATIVAS DE 171 9.1 No shopping assim, o segurança me olhando me seguindo. Seria por causa da minha cor ou das minhas vestes? -Grupos BR45 e Revolução MCs 9.2 Configuração urbana e estratégias de enfrentamento da discriminação-Grupos Rap Comando e Resistência Periférica 9.3 Algumas considerações gerais sobre as experiências discriminatórias e estratégias de enfrentamento dos jovens 10 CONSIDERAÇÕES FINAIS 205 11 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 210 Breitner Tavares III Introdução: velhas e novas juventudes Meu interesse pela sociologia urbana de fato, surgiu durante graduação em Sociologia na Universidade de Brasília-UnB em 1999. Diante dessa influência, eu passei a me dedicar aos fenômenos da cultura e sociabilidades urbanas, quando decidi em 2003 iniciar o curso de mestrado sob orientação da professora Barbara Freitag, pelo Programa de Pós Graduação Sociologia – PPSOL-UnB. Naquela ocasião, eu havia decidido realizar um estudo de caso sobre mercados informais, como feiras livres. Nesse caso, o tema das representações sociais e da segregação sócio espacial adquiriram um novo viés pelo aspecto simultaneamente lúdico e controvertido, em relação a um espaço social como uma feira poderia ser. Dessa investigação resultou a dissertação defendida em 2005, intitulada: Feira do Rolo: Na pedagogia da malandragem: Memória e representações sociais no espaço urbano de Ceilândia-DF. A pesquisa de mestrado me permitiu desenvolver algumas reflexões acerca da configuração do espaço urbano de Brasília pelo viés da realidade fora do Plano Piloto, em áreas segregadas e incompletas em termos de infra estrutura urbana. De fato, Brasília hoje próxima do seu cinquentenário encontra o reflexo de seus problemas e possibilidades nas outras cidades do Distrito Federal, anteriormente denominadas “cidades satélites”, e a região do Entorno. Nesse caso, o estudo sobre juventude permitiu observar, como a vida na cidade implica na percepção de manifestações de diferentes gerações estruturadas em diversos espaços de socialização e fluxos contínuos. Antes mesmo de ingressar no curso de doutorado pelo PPSOL-UnB, eu já havia iniciado o esboço daquilo que se tornaria mais adiante meu projeto de tese sob orientação do professor Brasilmar Ferreira Nunes. Eu desejava realizar um estudo sobre sociologia da juventude com ênfase no estilo de vida hip hop na periferia urbana do Distrito Federal. Nessa ocasião estabeleci contato com a professora Wivian Weller, que já havia produzido um estudo comparativo entre jovens rappers em São Paulo e Berlin. Desde então, eu pude acompanhar boa parte de seu trabalho o que colaborou de modo significativo para novas abordagens em pesquisas sobre juventude. Durante o trabalho de pesquisa de campo entre 2006 e 2007 realizado em algumas cidades do Distrito Federal e especialmente na Ceilândia, em alguns momentos, a minha experiência como morador e professor, bem como, membro de algumas entidades sócio culturais da cidade contribuiu significativamente para minha aproximação dos jovens. Ao longo desta tese há várias fotos obtidas durante esse trabalho, contudo essas fotos são apresentadas intensionalmente sem legendas. Elas não pretendem ilustrar os argumentos do texto. Por fim, elas são simplesmente um convite para um passeio, por uma rua não linear pavimentada por imagens. Essa pesquisa foi capaz de revelar o quanto Ceilândia expressa diferentes hierarquias sociais vistas a partir das relações de classe social, gênero e sexualidade, raça e etnia. Alem disso pude Breitner Tavares acompanhar brevemente como a juventude redefine, sob uma nova ótica, a própria maneira de compreender o que significa ser “ser urbano” na contemporaneidade. Ao se remeter à categoria juventude, objeto de diversas conotações, faz-se necessário discuti-la a partir de alguns postulados, os quais ajudarão a se aproximar da configuração de um campo temático para o estudo sociológico da juventude, tais como o conceito de gerações, a teoria funcionalista sobre juventude, os estudos culturais. Além disso, serão apresentados nos capítulos 1 e 2 alguns elementos que serão a base para os primeiros estudos sobre a juventude no Brasil, no final dos anos sessenta e setenta, e as contribuições da atual configuração do campo de estudos sobre a juventude influenciado pela Unesco nos anos de 1990. Cabe destacar que essa abordagem não pretende ser simplesmente uma “revisão da literatura”, mas uma possibilidade de reflexão de como esses eixos demarcadores cunharam uma variedade de sentidos para a juventude, ora superexpondo certos eventos e características, ora omitindo certas assimetrias internas ao fenômeno da juventude. Inicialmente, cabe ressaltar que, dentre as abordagens sobre juventude, a mais difundida se faz através do conceito de gerações, desenvolvido por Mannheim (1952), o qual se refere de uma maneira geral a uma noção qualitativa de tempo e como esse tempo está voltado para um processo incessante de mudança social. Assim, a juventude inserida num processo de formação de uma unidade geracional diversa, frente à subjetividade de seus atores, realiza-se na busca de suas metas íntimas, do espírito de seu próprio tempo. Nesse caso, o que importa é analisar nos tempos atuais quais são as reações e intenções desses grupos, em especial na contemporaneidade. A juventude exprime reações diferentes frente a problemas semelhantes, observáveis nos diferenciados estilos de vida manifestos. Esses estilos, por sua vez, estão voltados para a busca pela participação de espaços políticos na tentativa de reconhecimento social. Essa mobilização social a partir de uma posição de classe da juventude constitui um fator indicativo de sua posição geracional. Ainda no capítulo 2, discute-se como os estudos empíricos pioneiros, desenvolvidos por alguns pesquisadores vinculados à Escola de Chicago, na primeira metade do século XX, trataram de questões como a negação dos valores morais dominantes, a delinquência ou mesmo a criminalidade, ligando os jovens ao desvio do processo de integração do jovem na estrutura social. Pode-se, de fato, inferir que houve certa ênfase em estudos sobre jovens das “classes baixas” nos primeiros estudos empíricos, como os desenvolvidos nas décadas de 30 e 40 pela Escola de Chicago, por autores como Whyte (2005), Thrasher (1927) e Shaw (1930). As hipóteses implícitas daqueles estudos se referiam ao problema da delinquência como resultante do processo de urbanização, o qual será abordado mais adiante. Há aqui várias perspectivas que remetem à elucidação da violência juvenil. Algumas delas são apegadas às explicações centradas no indivíduo, segundo as quais aspectos biopsicossociais influenciam a construção de personalidades desviantes, como aquelas abordagens de caráter funcional-estruturalista (MERTOM, 1949). O desenvolvimento econômico desigual numa sociedade extremamente competitiva exige uma maior preparação para o mundo do trabalho e uma maior escolarização que, entre outros Breitner Tavares 2 fatores, prolongam a transição do jovem ao mundo adulto. Como consequência disso, surgem menores oportunidades. Posteriormente, nos anos sessenta, haverá uma grande ênfase nos estudos sobre a juventude de classe média, em especial sobre estudantes universitários. Aqui as hipóteses serão voltadas, sobretudo, para o potencial transformador do jovem em função da assimilação de valores políticos esquerdistas. Aliás, como será visto adiante, esse será o referencial analítico e empírico do surgimento da sociologia das juventudes no Brasil: o “jovem revoltado” (IANI, 1968), engajado politicamente, mas incapaz de realizar a transformação social que o sentido de missão, construído nos movimentos estudantis, traduzia (FORACCHI, 1972). Em contrapartida, os jovens de classe trabalhadora são colocados em plano secundário nas análises, tipificados como desinteressados em política ou incapazes de se organizarem politicamente em função, justamente, de sua condição de classe trabalhadora. Os estudos culturais representados pelo Centre for Contemporary Culture Studies (CCCS), criado na Inglaterra, especificamente na Universidade de Birmingham, no final dos anos sessenta do século XX, constituirão um marco na renovação dos estudos sobre a juventude. Sua formação multidisciplinar com apelo marxista retoma os estudos sobre juventude sob a ótica das classes sociais. Metodologicamente, retoma-se a pesquisa qualitativa, em especial a observação participante e a pesquisa etnográfica. O CCCS foi responsável pela difusão dos estudos da juventude sob a perspectiva da subcultura. O posicionamento crítico do grupo de estudos em relação à influência neopositivista nas ciências sociais motivará uma série de controvérsias em relação à legitimidade do CCCS, bem como em relação a limites de sua proposta intelectual. No final dos anos 90, a Unesco será responsável pela retomada dos estudos sobre juventude no Brasil. Nesse caso a juventude, enquanto categoria social, é redefinida não a partir da perspectiva de classe, mas pela abordagem de categorias, tais como violência, cidadania e protagonismo social. A Unesco, com seu ímpeto intervencionista, mobilizou pesquisadores, bem como o campo político institucional, e definiu novos parâmetros em relação à juventude. Essa deixa de ser “desviante” e passa a agente social, vítima e causadora da violência, o que a inclui numa perspectiva de vulnerabilidade social. Além da Unesco, enquanto intituição que irá motivar a redefinição dos estudos sobre juventude no Brasil, nos anos noventa, observa-se o surgimento de novas abordagens sobre gerações e juventude que se posicionam de um modo crítico em relação a outras abordagens mais tradicionais de cunho linear. Autoras como Sposito (1994) e Pais (2005) discutem uma abordagem teórica e metodológica definida como “pós-linear”. Esses estudos questionam as perspectivas mais tradicionais sobre os estudos da juventude, para isso as autoras se voltam para a complexidade intrínseca dos modos de vida dos jovens definidos como “culturas juvenis”. Essa pluralidade cria possibilidades para novas pesquisas sobre um campo de estudos a respeito da juventude ainda em estruturação no Brasil. Aspectos como o consumo dos jovens pobres das classes trabalhadoras, bem como dimensões relativas à construção de um sistema de distinções sociais, pautados em categorias como raça-etnia, gênero e sexualidade, desafiam a construção de uma metodologia explicativa desses fenômenos presentes nas orientações coletivas das juventudes. Breitner Tavares 3 Em relação aos aspectos metodológicos da pesquisa, no capítulo 3, serão apresentados alguns aspectos sobre o método documentário de interpretação, o qual foi criado pelo sociólogo húngaro Karl Mannheim como uma forma de análise das visões de mundo. Essa metodologia de cunho qualitativo permite a organização dos dados de pesquisa obtidos mediante a observação participante das entrevistas com os grupos de discussão e a análise de materiais iconográficos. No capítulo 4 são discutidos algus aspectos sócios históriocos da configuração urbana de Brasília bem como o processo segregação sócio espacial que deu origem a uma periferia urbana representada por cidades como Ceilândia-DF. Algumas discussões sobre as origens e dinâmicas em relação ao hip-hop são apresentadas no capítulo 5, com o objetivo de estabelecer um norte entre certas perspectivas teóricas do pensamento póscolonial (GILROY, 2001) e pensamento fronteiriço (GROSFOGUEL, 2005). A ideia central passa pela crítica ao reducionismo imposto pela ideia de globalização da cultura como algo assimilado em termos de uma hierarquia centro-periferia (SANSONE, 2004). Aspectos relacionados à raça/etnia e gênero permitem uma elaboração sobre sistemas de distinção social pautados em vínculos discriminatórios, bem como em algumas alternativas estabelecidas pelos jovens para isso. Por fim, no capítulo 6 faz-se uma explanação geral sobre o hip-hop no Distrito Federal e sua relação com a luta pelo reconhecimento social da juventude negra das periferias, a partir da luta concorrencial de um mercado fonográfico que envolve o estilo musical rap. O trabalho de campo realizado em Ceilândia, incluindo as observações participantes e as descrições dos grupos analisados, é parte integrante do capítulo 7. Esse capítulo é fundamental, pois apresenta diversos elementos relacionados as orientações coletivas dos jovens em relação a sua identificação com o estilo hip-hop, bem como, sobre a formação dos grupos de rap. A relação intergeracional com pessoas mais velhas dentro do universo familiar ou da Escola expressa parte da percepção juvenil do espaço urbano. A cidade se apresenta para o jovem ao mesmo tempo com um espaço precário e como um espaço mutável a partir da construção de valores de pertencimento coletivo como a amizade. Em seguida, no capítulo 8, a sexualidade dos jovens é discutida a partir da ótica da afetividade e da constituição dos vínculos afetivos. A fugacidade dos relacionamentos ou a perspectiva de futuro monogâmico são dilemas enfrentados pelos jovens. Em relação a isso, há o enfrentamento de aspectos relacionados à construção de um sentido de masculinidade que não é unívoco, mas frequentemente sexista. No capítulo 9, os jovens apresentam suas narrativas em relação às experiências discriminatórias. Eles elegem, de modo, às vezes, fragmentário, diversas situações que envolvem desde constrangimentos cometidos por professoras na escola primária até mesmo, a violência policial, nas ocasiões em que são abordados na região onde vivem. Diante disso, os jovens elaboram, a partir de um conjunto complexo de variáveis, as explicações para a discriminação que sofrem no seu cotidiano. Essas explicações passam invariavelmente pela condição geracional, da identificação dos jovem com o estilo estilo hip-hop. Além disso, o constrangimento decorrentes da pobreza e do racismo são outros agravantes desse quadro vivido por jovens negros e pobres em Ceilândia. Em relação à postura dos jovens frente às situações Breitner Tavares 4 discriminatórias, eles apresentam suas alternativas de enfrentamento que, em geral, estão voltadas para o diálogo com os agentes diretos causadores da discriminação. De um modo geral, a estrutura da tese, no que se refere a disposição dos seus capítulos visa expor diversas abordagens sobre o problema da juventude no espaço urbano. No capítulos 1 e 2 há uma ênfase nas escolhas teóricas para os estudos da juventude como apresentado na discussão sobre gerações, bem como, nos conceitos de estilo de vida e habitus. Mais adiante, percorresse-se algumas escolas representativas para esses estudos com a dupla função informativa e crítica desses postulados desenvolvidos pela Escola de Chicago, a teoria funcional-estruturalista e os estudos culturais. Além disso, os primeiros estudos sobre juventude, em especial advinda dos meios universitários como ocorre nos anos 60 e sua influência nos primeiros estudos são apresentados de modo a delinear a preferência pelos estudos das camadas médias da sociedade, como “os universitários” e uma certa ausência de pesquisas sobre juventude de classe trabalhadora. Os estudos da UNESCO no final dos anos noventa assume uma demanda social por estudos sobre juventude e de certa forma reimpulsiona esse campo de pesquisa que atualmente assume um possição multudisciplinar, “pós linear” em abordagens que visam incluir diversas categorias de análise anteriormente invisibilisadas ou estudades de maneira distinta como é ocorria nos estudos de gênero\ sexualidade, raça\etnia e classe social. O capitulo 3 de cunho teórico-metodológico retoma a discussão do método documetário de Mannheim, bem como suas contribuições para a pesquisa qualitativa atual. O capítulo 4 cumpre a função de introduzir a discussão sobre a sociologia urbana de Brasília a fim de localizar a cidade com espaço dessas múltiplas interações sobre jovens especialmente para os menos familiarizados com as especificidades da configuração da cidade modernista. O capítulo 5 , sobre hip hop e diáspora negra, cumpre a função de dicutir em termos de bem cultural enquanto fenômeno mundial capaz de interconectar diferentes hierarquisas sociais a aprtir de uma estética que suerge no espaço público na luta por reconhecimento social. A história do hip hop e mais precisamente do rap no Distrito Federal é apresentada no capítulo 6, de modo a enfatizar sua relevância enquanto parte relevante da estrutura da produção cultural nacional. Finalmente os capítulos 7, 8 e 9 discutem alguns aspectos relacionados as orientações coletivas dos jovens em termos da constituição dos grupos de rap, da mamneira como os jovens lidam com sua sexualidade e como enfrentam determinadas experiências dicriminatórias na periferia urbana onde vivem. Breitner Tavares 5 CAPÍTULO 1 GERAÇÕES: POR UMA TEORIA DO TEMPO EM MOVIMENTO The emergences of disciplines have often led to forgetting of their impetus in living human subjects and their crucial role in both the maintenance and transformation of knowledge - producing practices. The results are special kind of decadence. One such kind of disciplinary decadence. Disciplinary decadence is the anthologizing or reification of a discipline as thought it was never born and has always existed and will never change or, in some cases, die. Lewis R. Gordon – Disciplinary Decadence (2006) Como um dos principais conceitos para a elaboração de uma teoria sobre a juventude, o conceito de gerações de Mannheim1 persiste enquanto referencial teórico e metodológico de grande importância sociológica. Apesar de ser considerado um “autor clássico”, até hoje parte de sua obra continua sem tradução em língua portuguesa, além disso, já foram observadas deturpações em traduções para línguas latinas 1 Mannheim, nascido em 1893, na Hungria, de família judia, assimilou diversas influências intelectuais, especialmente das ciências sociais. Teve seus primeiros contatos com estudos sobre filosofia em Budapeste, em 1915, sendo orientado por Georg Lukács. Mais tarde, vai a Berlim, onde ouviu as preleções de G. Simmel. Além disso, em Heidelberg, em 1921, foi aluno de Alfred Weber, irmão de Max Weber. Em 1930, se tornou professor na Universidade de Frankfurt, onde teve como assistente Nobert Elias. Em 1933, já com a ascensão do nazi-fascismo, Mannheim deixa a Alemanha para viver na Inglaterra, onde lecionou na London School of Economics, onde falece, em 1947 ( KETTLER, 1984). Breitner Tavares 6 (WELLER, 2005b). Isso poderia ter prejudicado uma maior difusão do autor. Mannheim foi considerado para alguns autores como um humanista reformador, devido a algumas de suas considerações, como a intelligentsia e as possíveis alternativas ao totalitarismo, chamado de o “terceiro caminho” ou “terceira via”. Isso consistiria na intervenção pragmática de uma filosofia pautada em princípios científicos que deveriam substituir as técnicas tradicionais e manipulativas, ou seja, pautada em princípios formais do planejamento (FERNADES, 1960). Por outro lado, outras autoras, posteriormente, seguem assinalando a relevância e o problema de uma subteorização frente à obra de Mannheim (DOMINGUES, 2002), especialmente em relação a algumas de suas contribuições como os conceitos teóricos metodológicos: geração e o método documentário, os quais serão discutidos oportunamente. 1.1 O conceito de Gerações: alguns aportes O problema das gerações, como perspectiva sociológica, constituiu um dos marcos da sociologia, dados os estudos que propõem investigar processos de mudança social e estudos sobre juventude, que estão interligados à construção de uma “visão de mundo”. Mannheim, em seu famoso ensaio O problema das gerações, publicado inicialmente em 1928, analisa a categoria gerações, realizando primeiramente uma análise comparativa de algumas assimetrias e alguns encaixes existentes nas abordagens positivistas francesas, que primavam pela quantificação, em termos lineares, dos eventos sociais e da natureza humana e, por outro lado, pelo pensamento romântico alemão que valorizava uma perspectiva de cunho qualitativo. Partindo da perspectiva positivista, a contagem do tempo em termos cronológicos determinaria a sucessão da vida e da morte, em relação à realização humana do progresso, que segue uma lógica mais ou menos estável. Alterações nas relações humanas são a base para o processo de dinâmica social, no que se refere a aspectos ligados à cultura e à tradição, que são consequentes na duração desse processo de natureza biológica. Nesse tipo de abordagem, Mannheim também observou outras generalizações improváveis em relação às gerações, como a natureza intrinsecamente conservadora dos pais e, por sua vez, a posição contestadora dos filhos; contudo, suas considerações em relação à juventude nazi-fascista (MANNHEIM, 1993) buscaram demonstrar que essas prerrogativas nem sempre correspondiam às diferentes configurações geracionais criadas historicamente. Esses estudos estavam voltados para hipóteses que se empenhavam em determinar quais períodos de idade seriam determinantes no “processo de substituição da vida”, para o ingresso ou o abandono dos indivíduos na vida social, em termos de faixa etária. A observação de diferentes instituições permitiria constatar dinâmicas sociais diversas, algumas “moderadas”, como os militares, e outras mais “livres”, como intelectuais e artistas (MANNHEIM, 1993, p. Apud WELLER, 2005b). Por outro lado, o postulado do pensamento romântico alemão, de grande influência de Dilthey, postula que, para além do tempo mensurável, há o tempo que é vivido numa dimensão intersubjetiva pelos sujeitos sociais. Essa perspectiva está basicamente vinculada à noção qualitativa de tempo. Um tempo que é Breitner Tavares 7 experienciado para além de um tempo cartesiano, naquilo que se pode denominar como “compreensão intuitiva”. Los individuos que crecen como contemporáneos experimentan –tanto en los años de gran receptividad como después – las mismas influencias directrices de la cultura intelectual que les moldea y de la situación político-social. Constituyen una generación, una contemporaneidad, porque esas influencias son unitarias. Se produce así un vuelco: se pasa a considerar que, en lugar de ser un simple dato cronológico, la contemporaneidad significa, en la historia del espíritu, la existencia de influencias similares (MANNHEIM, 1993, p. 199)2. Como menciona Dilthey (MANNHEIM, 1993, p. 199), as interações subjetivas dos vários atores sociais são fundamentais para se definir uma geração, pois a mesma é consequência de múltiplas influências vivenciadas por indivíduos de uma mesma época. Essas experiências compartilhadas são definidas por fatores como: o período específico do nascimento e as condições socioeconômicas dos sujeitos sociais que irão contribuir para a formação de uma mentalidade específica. Esses elementos, para Mannheim, definem o que seria uma “situação de classe”. A contraposição de uma proposta positivista de cunho matemático com a abordagem de âmbito qualitativo deixa a quantificação e imerge na experimentação. A questão apontada anteriormente em relação à sucessão das gerações é posta nos termos das vivências e dos riscos dos múltiplos atores sociais na contemporaneidade. Contudo, neste mesmo turbilhão de sentimentos e estimas com os quais os indivíduos se confrontam, se associam e se realizam, há supostamente variações na constituição de gerações dentro de um mesmo tempo histórico. “El poder del ‘destino colectivo’ se libera ante todo en la comunicación y en la lucha. Lo que constituye el propio acontecer cabal del ‘ser ahí’ es el ‘destino común’ individualmente destinado del ‘ser ahí’ en y junto a su generación’ (MANNHEIM, 1993, p. 200). 2 As traduções dos textos de Mannheim já foram objeto de várias críticas, como considera Weller (2005) e Ros (1993). No caso das versões existentes em língua portuguesa, a portuguesa (Editora Rés) e a brasileira (Editora Zahar, 1967) foram feitas a partir da versão inglesa publicada em 1952, em uma coletânea com textos de Karl Mannheim – Essays on the Sociology of Knowledge – organizada por Paul Kecskemeti (Editora Routledge & Kegan Paul, p. 276-322), que teria como objetivo tornar a obra mais acessível ao leitor anglo-saxônico, provocando, assim, uma mudança do vocabulário teórico. Essa seria uma provável explicação das incorreções quanto aos conceitos empregados originalmente pelo autor. Em função disso, a versão mais próxima do sentido original da obra seria a versão espanhola, versão do artigo produzido por Ignacio Sánchez de la Yncera, publicada em 1993, na Revista Española de Investigaciones Sociológicas, traduzida diretamente do alemão, REIS, n. 62, p. 147-192, abr/jun. 1993. Breitner Tavares 8 A convivência entre múltiplos indivíduos em termos de idade e localização, dentre outras variáveis, estabelece diferentes tempos para uma mesma época ou seja, uma experimentação da vida que tende a unir aqueles que têm idades mais aproximadas num “destino comum”. Mannheim observou essa possibilidade do convívio de diversas gerações numa mesma época em Pinder em sua perspectiva “da não contemporaneidade dos contemporâneos”. Em outros termos, dentro de uma mesma cronologia, pode-se encontrar mais de uma realidade que trás consigo uma carga multidimensional pela diversidade de níveis de maturação e desenvolvimento de cada geração. “Cada uno vive con gente de su edad y con gente de edades distintas en una plenitud de posibilidades contemporáneas. Para cada uno el mismo tiempo es un tiempo distinto; a saber: una época distinta y propia de él, que sólo comparte con sus coetâneos” (MANNHEIM, 1993, p. 200). Outro conceito de Pinder chamado enteléquia está relacionado à maneira como uma geração expressa um sentido de unidade, aquilo a distingue de outros grupos sociais em função de seu propósito, de sua maneira de “experimentar a vida no mundo”, “suas metas íntimas”. Dessa forma, não há no mundo experiência que seja homogênea frente à complexidade da vida social. La unidad de una época no tiene impulso dinamizador alguno, no cuenta con ningún principio formativo unitario; carece, por lo tanto, de entelequia. Su unidad consiste, a lo sumo, en una situación de afinidad en cuando a los medios que un mismo momento de tiempo pone a disposición de la generación para las distintas tareas (MANNHEIM, 1993, p. 202). Uma geração possui configurações diversas que independem de laços sociais relacionados a um “grupo concreto”, como, por exemplo: a família, a tribo ou a seita assim como as associações de cunho comunitário ou qualquer instituição que se organiza deliberadamente em função de um fim específico. Essa perspectiva dispensa a necessidade de uma espacialização para a configuração de uma geração, pois muitos indivíduos podem compartilhar de uma mesma conexão geracional sem que necessariamente se encontrem ou se conheçam para estarem conectados. Por outro lado, isso não implica um total desprezo da espacialização, pois, conforme discutiremos mais adiante, são os movimentos sociais materializados num tempo e espaço construídos dentro de sua existência social e enquanto intelectuais contemporâneos que irão clamar por um reconhecimento social dentro de um sistema de múltiplas associações sociais. La conexión generacional es un ser los individuos unos con otros en el que se está vinculado por algo; pero de esta adhesión no se deriva aún, de forma inmediata, ningún grupo concreto. Con todo, la conexión generacional es un fenómeno social cuyas propiedades tienen que ser descritas y comprendidas (MANNHEIM, 1993, p. 207). A identificação de uma geração é feita através da observação da ligação de laços de solidariedade, determinada em função de sua posição de classe e sua dinâmica, que, por sua vez, está Breitner Tavares 9 associada ao ritmo biológico das sucessões de vida e morte. Os indivíduos que compartilham a mesma posição social em termos de classe e nascimento serão submetidos ao mesmo conjunto de experiências frequentes e naturalizantes da ação social condicionante de hábitos e gostos. Por outro lado, uma excessiva ênfase nos fatores econômicos da categoria “posição de classe” pode comprometer estudos sobre juventude ao não levar em conta outras dimensões da vida social que se articulam em outros níveis, como os raciais e os relacionados ao gênero. Num determinado contexto sociohistórico, os sujeitos sociais que pertencerem ao mesmo “grupo de idade” definirão a dinâmica de entrada e saída de novos participantes dos sistemas sociais. Essa dinâmica é determinada pelo sistema etário e limitada a um tempo histórico. Dessa forma, justifica-se a transmissão de valores a uma nova geração que se incumbirá de ressignificá-los continuamente em novos sistemas de tradição. Além disso, um indivíduo é limitado a participar de uma única configuração geracional, dada a limitação de tempo associada a suas experiências com outros indivíduos na construção de uma identidade. La situación de clase se fundamentaba en la correlativa existencia, en la sociedad, de una estructura económica y de poder que está en transformación. Por su parte, la posición generacional (die generationslagerung) se fundamenta en la existencia del ritmo biológico en el “ser ahí” del hombre: en los hechos de la vida y de la muerte y en el hecho de la edad (MANNHEIM, 1993, p. 208). O conceito de geração é distribuído em três importantes subdivisões que devem ser consideradas enquanto um conjunto: posição geracional, conexão geracional e unidade geracional. A posição geracional relaciona-se à possibilidade dos indivíduos, enquanto grupos, vivenciarem certas experiências em comum. A conexão geracional está relacionada à experiência propriamente dita da vida coletiva, estabelecida através de vínculos concretos ou mesmo virtuais da vida social para além do sentido de uma posição geracional que está relacionada a certas potencialidades de experiência coletiva. Em relação à unidade geracional, apesar de alguns autores defenderem a ideia de que há uma conexão geracional unificada, Weller considera que diferentes grupos sociais podem constituir unidades geracionais distintas, isso porque diferentes unidades geracionais como os jovens podem apresentar diferentes respostas frente as questões que lhes foram apresentadas no seu tempo histórico, resultando em diferentes estilos de vida, mesmo compartilhando do mesmo ‘meio social’(WELLER, 2005b, p. 11). Além disso, demonstram-se como as unidades de geração são os elementos mais próximos dos grupos sociais propriamente ditos. Contudo, seu enfoque está voltado para a interpretação das ações sociais dos grupos em sua dimensão mais expressiva, no contexto de uma geração determinada pelo Breitner Tavares 10 conjunto de intenções e práticas vivenciadas pelos grupos sociais em seu processo de socialização. 1.2 O problema das gerações enquanto sociologia da mudança social A discussão de Mannheim sobre o problema geracional se constitui numa referência fundamental para a compreensão de uma sociologia contemporânea (YNCERA, 1993). A terceira via teórica frente ao positivismo e ao romantismo alemão permite observar a construção de um problema verdadeiramente sociológico, que deve passar pela revisão de abordagens teóricas de caráter fixo, que visam a definição de ritmos e leis gerais para dinâmica geracional. Mannheim, ao lançar uma avaliação crítica às proposições em diferentes contextos sobre o conceito de gerações, oferece um significativo exemplo de uma sociologia do conhecimento, que observa as diferentes formas de se pensar o mesmo problema num determinado período histórico. Além disso, o autor demonstra as dinâmicas que alteram as concepções sobre o mundo social em cada país em função de vários fatores, tais como os políticos. Portanto, as diferentes definições encontradas sobre o conceito de geração expressam simplesmente mais um evento num processo de competição social. Mannheim defende a perspectiva de que cada tempo definirá de modo polifônico quais serão os elementos constitutivos de uma geração (YNCERA, 1993, p. 154). Para o autor, uma das principais discussões que perpassam o problema geracional é a questão da mudança social (cultural) pensada a partir da questão geral da construção identitária no âmbito das estruturas sociais. Uma identidade social é construída a partir de interações sociais no “ser com o outro”. Essa capacidade social para a interação entre múltiplos indivíduos permite a manutenção das conexões geracionais que são reveladas simultaneamente pelas posições de classe e tempo de nascimento. Observa-se em Mannheim a influência de múltiplas abordagens em seu construto teórico, assim como em Simmel (1973) em relação às dinâmicas da socialização e dos indivíduos no interior dos grupos sociais. A cultura para Mannheim (1993) é apresentada como elemento estruturador da vida social, conforme definido por Weber (1999) e os problemas relacionados à consciência de classe, como no pensamento marxista. Além disso, para Mannheim sua abordagem interpretativa dos fenômenos sociais parte de um plano macroscópico, que implica a influência do pensamento hegeliano, que pensa a história a partir de um sentido estrutural. Essa perspectiva visa à sistematização de múltiplos fatores, o que uma abordagem em nível micro não seria capaz de evidenciar. Desta forma, o autor aponta para a relevância de pequenos eventos na vida cotidiana que podem ser incluídos numa reflexão sistemática, como já demonstrava a psicanálise (YNCERA, 1993, p. 160). Breitner Tavares 11 A perspectiva sistêmica como abordagem de problemas sociológicos de base hegeliana aponta para o universo como uma estrutura compreensível a razão e completa enquanto uma totalidade. Contudo, para Mannheim, em sua “concepção de mundo”, não há uma estrutura unívoca, completa, disponível para a compreensão racional, mas, de fato, um conjunto de sistemas não totalmente estruturados, como se demonstra nos conceitos de “espírito do tempo” e da “enteléquia geracional” em que temos ordens incompletas que não partem de perspectivas apriorísticas de uma “estruturação global, que tampouco se encerra nela” (YNCERA, 1993, p. 165). Portanto, um mundo precariamente estruturado altera-se em função de suas especificidades históricas que demandarão diferentes modelos teóricos para sua interpretação, ou seja, “estruturas sistêmicas” com seus níveis de “variação”. Frente a isso, afirma-se que são as situações concretas vividas pelos indivíduos coletivamente que determinarão o sentido dialético da história. Uma geração, entendida enquanto dinâmica de mudança social, se desenvolve a partir do conjunto concreto de alternativas que geram uma configuração, um sistema de padrões de comportamento social. Além disso, pode ser entendida como o sistema social e alterada por múltiplas interferências, tensões na totalidade social. Dessa forma, os sentidos das ações individuais devem ser concebidos dentro de um sistema organizado. Descobrir continuidade onde os outros veem somente descontinuidades, essa é a missão do sociólogo. Este é o ponto definidor da sociologia da cultura relevante para se entender o valor sociológico do “problema das gerações”. 1.3 Noções de geração e habitus: movimentos sociais como formas de estilos de vida e gosto O problema teórico das gerações se torna visível através de sua manifestação em termos dos movimentos sociais, que propiciam outro nível de reflexão sobre aportes teóricos e metodológicos da sociologia, conforme discutiremos adiante. Além disso, os movimentos sociais, especialmente os movimentos juvenis, são relevantes para se entender a configuração de uma geração, pois evidenciam, a partir de sua conduta enquanto sujeitos sociais, que participam de vínculos de solidariedade e competição social, dentro de uma unidade geracional. Os movimentos sociais, portanto, constituem um importante elemento de autoorganização social dada a importância das características concretas de cada conjuntura histórica de grupos de idade que estão tentando redefinir seu papel social em termos de estilos de vida que eventualmente se lançam num conflito geracional. Os movimentos sociais, como os de classes trabalhadoras e/ou os de mulheres, são exemplos de mobilização social de grupos que buscam, a partir de seu autorreconhecimento, uma visibilidade, um reconhecimento social redefinindo o sentido de intelectualidade. Como já referido, uma geração pode ser analisada empiricamente a partir de suas manifestações em termos dos diversos movimentos sociais, em especial aqueles organizados em torno da juventude. Breitner Tavares 12 Portanto, cabe evidenciar que a juventude enquanto uma configuração, uma categoria social se materializa a partir de diferenciados estilos de vida num determinado espaço social. Bourdieu (2007), nesse contexto, traz importantes aportes em relação ao conceito de estilo de vida, o qual é definido a partir do conceito de habitus3, que consiste num sistema de disposições mais ou menos duráveis e que possui um potencial para a mudança e que, além disso, se expressa a partir de necessidades e desejos definidos dentro de um sistema objetivo de práticas e representações sociais. Essas “estruturas estruturadas que organizam as práticas, o habitus é também estrutura estruturante: o princípio de divisão de classes lógicas que organiza a percepção do mundo social é, por sua vez, o produto da incorporação da divisão em classes sociais” (BOURDIEU, 1987, p. 191). Essa topologia social proposta pelo conceito de habitus localiza as posições dos indivíduos sociais a partir de determinados estilos de vida. (...) o habitus, enquanto disposição geral e transponível, realiza uma aplicação sistemática e universal, estendida para além dos limites do que foi diretamente adquirido, da necessidade inerente às condições de aprendizagem: é o que faz com que o conjunto de práticas de um agente – ou um conjunto de agentes que são sistemáticas por serem o produto da aplicação de esquemas idênticos – ou mutuamete convertíveis – e ao mesmo tempo, sistematicamente distintas das práticas constitutivas de um outro estilo de vida (BOURDIEU, 2007, p. 163). Para identificar, interpretar e avaliar aqueles traços que funcionam como estilos de vida, considera-se que os mesmos foram submetidos a diferentes processos de socialização. Isso ocorre de acordo com diversos condicionantes, como classe, gênero e raça/etnia, entre outros. Eles estabelecerão variados sistemas de distinção e separação social frente a outros grupos. Além disso, os agentes sociais definem sua identidade enquanto um grupo específico com sua dinâmica de transformação ou acomodação, de acordo com a configuração ou nível de interrelação social com outros grupos. Também aí se encontram afinidades de estilo que são intercambiáveis entre diferentes grupos, como exemplo um estilo musical característico que é apropriado em diferentes circunstâncias por outros grupos de músicos, como o sampler de um trecho de uma música rock que pode ser redefinido para uma batida rap. O estilo de vida torna-se evidente por tudo aquilo que nos rodeia em termos materiais e, além disso, pelas práticas sociais em função de recursos disponíveis. Esses dois níveis do opus operantum 3 Segundo Wacquant, o conceito de habitus é originariamente utilizado por Aristóteles [hexis] e pela escolástica medieval por Thomas de Aquino. Posteriormente, o conceito de habitus é utilizado em diversos enfoques pela fenomenologia ocidental [Hussel , Merlau-Ponty]. Para Wacquant, encontra-se em Bourdieu “a mais completa renovação do conceito” desenvolvido a partir de seus estudos sobre sociedades camponesas, na França e comunidades cabilas, na Argélia, no seu Esquisse d’une Théorie de La Pratique . WACQUANT, Loic. Notas para esclarecer a noção de habitus. In: RBSE 6(16), 2007 [http://www.cchla.ufpb.br/rbse/WacquantArt.pdf]. Breitner Tavares 13 (conjunto das propriedades) e do modus operandi (conjunto de práticas) definirão o habitus como “unificador de todas as práticas”. Esses dois aspectos dos hábitos são essenciais para a compreensão de um elemento essencial na constituição de um estilo de vida: “o gosto”. O gosto, propensão e aptidão para apropriação – material e/ou simbólica – de determinada classe de objetos ou de práticas classificadas e classificantes é a fórmula geradora que se encontra na origem do estilo de vida, conjunto unitário de preferências distintivas que exprimem, na lógica específica de cada um dos subespaços simbólicos – mobiliário, vestuário, linguagem ou hexis corporal - a mesma intenção expressiva (BOURDIEU, 2007, p. 165). Aqui se evidencia a definição do gosto como um sistema de status social, definidor de um estilo de vida que, assim como em Weber (2002, p. 191), revela um sistema de classificação social hierárquico e seletivo em termos de acesso a bens materiais e/ou simbólicos adquiridos por indivíduos que ocupam diferentes lugares dentro do sistema de classe e prática social. A autovalorização que um grupo atribui a si mesmo ou a outrem está direta ou indiretamente ligada ao impacto que o gosto compartilhado definido em termos de obtenção de algum lucro econômico ou simbólico. Goffman (1989) atribuiu importância sociológica à “fachada social” como elemento fundamental para participar da encenação social. Portanto, valores distintivos baseados numa relação de classe estabelecem diferentes experiências em termos do acesso a experiências de vida, além disso, esses valores irão definir diferentes formas de consumo cultural expressos em diferentes espaços de diferenciação social. Os diferentes espaços sociais, articulados por seus respectivos estilos de vida, determinarão um sistema de gosto. Além disso, a conformação dos agentes sociais, suas atitudes, também irá configurar um tipo de corporeidade. Isso implica, no sentido social atribuído a corpo, algo para além da pretensa conformação biológica e, às vezes, desumanizada de corpo. A partir de uma cosmética ou vestuário, o corpo gradualmente se materializa com “traços distintivos”: body piercings, tatuagens, penteados, modificações por próteses, entre outras, irão “esculpir” o corpo, vão demarcá-lo em algum lugar das infinitas fronteiras da existência social. Trata-se do corpo como propriedade, como limite individual dentro de uma estilística. Essas configurações estão em jogo em função dos recursos econômicos e do meio cultural no qual se está inserido. Produto social, o corpo – única manifestação sensível da “pessoa” – é comumente percebido como a expressão mais natural da natureza profunda: não há sinais propriamente “físicos”; deste modo, a cor, a espessura do batom ou a configuração de uma mímica, assim como a forma do rosto ou da boca, são imediatamente lidas como índices de uma fisionomia “moral”, socialmente caracterizada, ou seja, estados de ânimo “vulgares” ou “distintos”, naturalmente “naturais” ou naturalmente “cultivados”. Os sinais constitutivos do corpo percebido, produtos de uma fabricação propriamente Breitner Tavares 14 cultural, cujo efeito consiste em distinguir os grupos de uma fabricação propriamente cultural, ou seja, de distância à natureza, parecem estar baseados na natureza (BOURDIEU, 2007, p. 183). Apesar de Bourdieu não ter se dedicado a uma reflexão mais sistemática em relação às implicações do conceito de geração, traz algumas considerações relevantes sobre a juventude e estilo de vida no espaço social. Contudo, ao tratar do tema juventude, baseado no conceito de habitus, o autor se limita a mencionar alguns aspectos relacionados à faixa etária como simplesmente “divisões arbitrárias” e “manipuladas socialmente”. Além disso, ele incorre em certos estereótipos ao considerar o “estado de juventude” como mero “estado de irresponsabilidades”. Por outro lado, é de extrema relevância a conclusão obtida a partir de sua consideração da juventude como um construto social, que deverá ser posto diante de outro, como os velhos, para que desta forma se obtenha um contraste em termos de sistemas de identificações. Todavia, cabe chamar a atenção para os riscos do exagero sociológico da aplicabilidade da teoria dos campos de batalha social entre os grupos sociais que vivem em diferentes ritmos de tempo social. “A juventude e a velhice não são dados, mas construídos socialmente na luta entre os jovens e velhos. As relações entre idade social e a idade biológica são muito complexas” (BOURDIEU, 1983, p. 113). Sentidos de oposições entre diferentes posições em termos de tempo cronológico-biológico devem ser analisados dentro de suas demandas específicas para que se possa definir que nível de “competição social” está em jogo. O exercício intelectual de se lançar numa análise da juventude implica na num esforço redobrado para relativizar o olhar do “mundo adulto” às vezes carregado de estereótipos construídos em relação ao “outro”, nesse caso, o “jovem”. Além disso, notam-se algumas semelhanças entre a categoria “condição de classe”, em Mannheim, e o habitus, em Bourdieu. De um modo geral, ambos tratam, à maneira marxista, dos impedimentos materiais que determinarão, cada um ao seu modo, uma geração para o primeiro e um habitus de classe para o segundo. Breitner Tavares 15 CAPITULO 2 ESTUDOS E TEORIAS SOBRE A JUVENTUDE NO SÉCULO XX E NO PRESENTE: UMA BREVE REVISÃO Discutir alguns dos parâmetros formadores de um “campo” das pesquisas sociológicas sobre a juventude é, sem dúvida, uma tarefa complexa. Contudo, é relevante expor de maneira breve alguns marcos definidores dos estudos sobre a juventude. Os primeiros esforços dentro de um empirismo sociológico para realizar estudos sobre a juventude datam dos séculos XVIII. A função social da juventude era se integrar à sociedade maior, de modo a solidificá-la dentro de um sistema de valores prescritos. Isso implicava conhecer os limites das regras sociais que deveriam ser inculcadas desde o início da vida, dados pela psicologia e dos primeiros estudos que tentavam seguir uma sistematicidade dita científica (FLITNER, 1968). A violência, fruto de um mundo em franca transformação, em função do industrialismo, acirrou problemas como a violência urbana nas suas diversas formas. A criminalidade juvenil, portanto, superava as marcas anteriores à modernidade. As principais hipóteses eram centradas nas camadas pobres. Diversas perspectivas de cunho psicologizantes eram aplicadas no sentido de se reidentificar as causas da delinquência jovem e as possíveis alternativas para sua superação (FLITNER, 1968, p. 41). Entretanto, no início do século XX, quando Staley Hall publica sua obra Adolescense (1904), passa-se a uma abordagem de cunho psicogenético sobre a juventude. Sua tese aferia que aspectos biológicos seriam definidores da construção de uma personalidade jovem, para isso recorria a técnicas probabilísticas e estatísticas para suas generalizações. Contudo, suas posições foram duramente criticadas por não admitir a relevância da cultura como elemento na conformação das personalidades juvenis. Nos anos vinte, delineiam-se algumas reflexões fenomenológicas que propiciarão o surgimento do conceito de gerações. A princípio, destaca-se Eduard Spranger (1924), baseado nos estudos sobre hermenêutica de Wilhem Dilthey, que considera que os aspectos do comportamento psíquico do jovem Breitner Tavares 16 deve ser articulado entre as pulsões internas de natureza biológica em conjunto com fatores de cunho social objetivos (FLITNER, 1968). Mais adiante, Mannheim publica sua obra sobre gerações, em 1928, que constituirá um marco decisivo na constituição de um campo de estudos sobre a sociologia da juventude como parte de suas reflexões sobre sociologia do conhecimento e dos fatos culturais. 2.1 As velhas teorias: Escola de Chicago (1920-1940) e Teorias Funcionalistas (1950-1960) No contexto norte-americano, em especial aqueles relacionados à Escola de Chicago, destacamse alguns autores Thrasher (1927) e Shaw (1930), de Whyte (2005) cautor de A Sociedade de Esquina obra que se refere ao estudo da juventude urbana, nos anos 30 do século XX. Nessa obra, que foi realizada através do convívio com gangues de jovens filhos de imigrantes italianos em uma região segregada de Boston, o autor pôde desenvolver uma análise distinta das abordagens quantitativas, realizadas até então sobre os processos de urbanização. Willian Foote Whyte foi um pesquisador que trouxe uma significativa contribuição à chamada pesquisa qualitativa em ciências sociais, sobretudo, no que ficou conhecido no campo dos métodos e técnicas como "observação participante". O ímpeto reformista – desenvolvido ainda no período acadêmico – leva Whyte a desejar pesquisar uma "comunidade pobre e degradada", a partir de sua vaga idéia do que isso poderia representar em termos sociológicos. A reigião escolhida por Whyte numa região pobre de Bosto foi denominada por ele com Cornerville, lugar onde se materializaria a Sociedade de Esquina. O autor buscou em suas observações definir a região estudada em dois grupos de jovens de Cornerville, dividindo-a em rapazes da esquina e rapazes formados. Esses atores sociais revelam, ao longo de seus percursos, aspectos relevantes para a compreensão de sistemas de status e diferenciação sociais no espaço urbano. Sua análise trouxe diversos elementos que permitiriam analisar a juventude em dimensões relacionadas à classe, bem como problemáticas de gênero e etnia para se entender outros níveis da exclusão e marginalização por jovens imigrantes de ascendência italiana. Ao se referir às relações de gênero, expõe vários traços do contexto sexista que regulavam esses encontros entre os jovens, como, por exemplo, a afetividade típica do amor romântico interage em outros momentos com o tom misógino de alguns garotos. Aspectos relacionados à cultura e identidade italiana os lançavam na tensão racializante norte-americana, o que os levava a ser identificados como uma “raça” distinta dos outros americanos em geral. Em relação ao problema da transição para o mundo adulto, Whyte considera que esse fator tende a levar à desintegração da gangue. O autor acompanhou vários jovens membros de gangues para compreender como o fato de não se ter dinheiro e emprego intensifica o estigma da pobreza, associado à vida na esquina, além da pouca instrução escolar. Dessa forma, os jovens têm que se submeter aos Breitner Tavares 17 empregos temporários pouco remunerados. Os rapazes formados, por sua vez, constituem uma minoria que superou o nível de “rapaz de esquina” por meio de uma educação universitária. Esses jovens estão voltados para o imaginário de ascensão e mobilidade social do típico imaginário da classe média norteamericana. Whyte se refere a algumas regularidades encontradas no cotidiano dos jovens. Para ele, as gangues resultam de relações habituais já presentes na vida de seus integrantes, desde os primeiros contatos sociais na infância, quando viviam próximos uns dos outros. A interação social, desta forma, é vista a partir de sua experiência de campo. Para ele, os clubes e as gangues possuem um equilíbrio que se estabelece no momento em que seus membros, a partir da interação, internalizam os padrões costumeiros de organização de suas atividades4. Posteriormente, outras abordagens, como Parsons (1969), apostam no caráter de ordem estrutural. O desenvolvimento econômico desigual numa sociedade extremamente competitiva exige uma maior preparação para o mundo do trabalho e uma maior escolarização que, entre outros fatores, prolongam a transição do jovem ao mundo adulto. Diante disso, podem ocorrer consequências como a redução de oportunidades no sistema produtivo e, portanto, o surgimento de tipos sociais não integrados, considerados “desviantes”. Teóricos como Merton (1949) consideram a “crise e a falência” de marcos institucionais e normativos da sociedade moderna, em que as metas prescritas não são alcançadas por certos indivíduos. Esse fracasso social ocorreria em função das restrições de acesso aos mecanismos intitucionais de promoção social como a Escola e o trabalho, causadoras da delinquência. Assim, as instituições, como a família, a Escola, a Igreja e a comunidade, responsáveis pela formação e sociabilização do jovem e por sua adaptação às normas de convivência social frente à exclusão social geram a crise de valores e, consequentemente, a perda do idealismo frente aos obstáculos do sistema. S. N. Eisenstadt foi responsável pela implementação de várias pesquisas de cunho teórico e empírico sobre as gerações e juventude, além disso, ele foi influenciado pelo funcional estruturalismo norte-americano de T. Parsons e R. Merton. O autor interessado em problemas intergeracionais, discutido em seu trabalho mais conhecido sobre o tema From Generation to Generation (1971), considera que o surgimento da juventude, enquanto um grupo social específico, ocorre quando não há um perfeito ajustamento entre as regras sociais articuladas no interior da família. Age groups in general and youth groups in particular tend to arise under conditions of non-familial division of labor(...) in those societes whose main integrative principles are different from the particularistic principles 4 TAVARES, B. Gangsterismo jovem: observação participante e a Escola de Chicago. In Sociedade e Estado. Brasília, v. 21, n. 3, p. 781-791, set./dez. 2006. Breitner Tavares 18 governing family and kinship relations (EISENSTADT, 1971, p. X). Desta forma, considera-se que cada indivíduo atravessa diferentes gerações durante o seu tempo de vida. Essa premissa relacionada ao tempo de vida e à definição de determinados estágios geracionais serão debatidas exaustivamente pelo autor em sua obra. Em cada estágio da vida, há determinadas regras a serem seguidas dentro de papéis sociais específicos, como a criança, o adulto e o velho. Para o autor, apesar de não apresentar dados empíricos suficientes, esses estágios em termos biológicos seriam praticamente os mesmos em todas as sociedades, contudo, eles seriam diversos, exatamente por serem definidos culturalmente. “In every society the basic and commom biological facts are market by a set of cultural definition which ascribe to each age grouping” (EISENSTADT, 1971, p. 23). Na relação face a face, os indivíduos assimilam seus papéis de comportamentos a ser desempenhados a cada geração, portanto, em termos de socialização, a criança aprende com o adulto as regras de conformação que a levam, mais adiante, a negar a sua condição de criança. O adulto, dessa mesma forma, irá assimilar o lugar de velho, com o passar do tempo (EISENSTADT, 1971, p. 24). É interessante frisar que esse processo está sempre baseado na lógica da aceitação das regras sociais pelo viés do adulto pela criança no ambiente interno à família. Há expectativas, portanto, de que o jovem assimile dentro de um processo social difuso os valores correspondentes às funções sociais que se espera que este desempenhe. Ou nos termos do autor: “Age groups may constitute a basic institucional focus as far as the continuity and stability of the social system are concerned, and one of the main channels for the transmition of the social heritage” (EISENSTADT, 1971, p. 270). Por outro lado, dentro de uma lógica social competitiva, quando os valores transmitidos pela família não permitem ao jovem alcançar plenamente o status social pretendido, ele passa a se articular dentro de grupos específicos de geração (age groups). Consequentemente, todas as condições que lhe permitiriam o perfeito ajuste na estrutura social seriam consideradas como parte do processo de surgimento de grupos jovens articulados em torno de demandas específicas, tais como econômicas (trabalho, emprego, consumo). Alem disso as restrições sociais estabelecido o autoritarismo político e a interdição e o controle do comportamento sexual dos jovens (EISENSTADT, 1971). De acordo com o que foi apresentado, a mudança geracional, como dinâmica social e fator de sua integração, nem sempre ocorre de modo ‘harmônico’ conforme se pode observar. Desta forma, Eisenstadt considera que a falta de realização do jovem, no conjunto de possibilidades de inserção social definidas como viáveis, gera a criação de grupos de geração específicos. Dentro dessas coletividades, o jovem encontra a possibilidade de compartilhar e minimizar suas frustrações com outros indivíduos que sofreram a mesma “segregação social”, por não terem sido admitidos numa geração ascendente, ou seja, Breitner Tavares 19 “mais adulta”. Essa organização pode permitir que o mesmo encontre o caminho da superação de suas perdas e a consequente preparação para a “maturidade do mundo adulto”, ou seja, a semi-integração no sistema social (EISENSTADT, 1971, p. 293). O enfraquecimento das relações de solidariedade no âmbito familiar seria, portanto, a base para o conflito geracional que pode ser administrado no sentido de sua superação ou pode gerar o surgimento de “grupos desviantes”, ou seja, aqueles grupos engajados de modo a romper o legado secular transmitido dentro da esfera familiar. Os grupos desviantes se posicionam de modo a contrapor o comportamento esperado pelo mundo adulto que estrutura o sistema social. Ao não serem incluídos num sistema de valores e oportunidades, eles recriam suas demandas no sentido de marcarem uma oposição ante as instituições oficiais voltadas para a juventude, como escolas, igrejas, programas juvenis desportivos, entre outros. A referência de imagem social, outrora baseada no “mais velho”, passa a ser negada numa relação de direta oposição. O autor classifica algumas categorias em relação ao comportamento jovem desviante, das quais podemos destacar três: • Grupos de jovens delinquentes surgindo no contexto de cultura de contato (culture contact). Consequente de uma desestrutura familiar que não viabilizou os elementos necessários para a transmissão de valores, que possibilitariam a maturação dos indivíduos. • Grupos de delinquentes com diferentes níveis de graduação, coesão e organização. Grupos que criticam alguns significados dos valores sociais, mas não propõem uma ruptura. Como exemplo, cita-se a situação do jovem que migra de áreas rurais para áreas metropolitanas e com isso sofreria de algumas consequências sociopsicológicas adaptativas ou os estudantes que rejeitam a escola (EISENSTADT, 1971, p. 308). • Movimentos rebeldes e organizações jovens de movimentos revolucionários e partidos. Desenvolvem uma ideologia jovem específica com fins a uma revolução conta a “velha ordem” pelo rejuvenescimento da ordem social (EISENSTADT, 1971, p. 311). De fato a abordagem de Eisenstadt, apesar de seu apelo heurístico no sentido de demarcar diferentes categorias dos “grupos de geração”, trouxe uma importante contribuição para a construção da juventude enquanto categoria sociológica. Além disso, ampliou os horizontes da sociologia nos termos de observar determinadas relações de conflitos, parte integrante das estruturas sociais. Por outro lado, podese observar que ele fez arriscadas generalizações a partir de um conjunto restrito de estudos comparativos de sociedades consideradas “primitivas” pela antropologia clássica face as sociedades ditas “civilizadas” (EISENSTADT, 1971, p. 60), suas generalizações induzem a pensar que sociedades como a juventude dos Kibutz sejam mais organizadas, “desenvolvidas” em relação aos considerados primitivos membros da tribo Neur da África. Além disso, questões relacionadas ao gênero, que adquirem importância posterior nos processos sociais, passam despercebidas ao longo do texto, o que permite deduzir que se está tratando de um universo masculino heterossexual. Breitner Tavares 20 O autor se dedica também a estabelecer certas assimetrias entre o comportamento de classe entre a juventude alemã e israelense dos Kibutz. Segundo Eisenstadt, os jovens, no caso os rapazes, compõem estes grupos “informais”. Eles estão mais voltados às relações vicinais ou do convívio no ambiente escolar. A transitoriedade de uma etapa geracional para outra terá diferentes tempos em função da classe social. Nesse caso, os jovens pobres tenderam a entrar no mundo adulto devido à precoce iniciação sexual e o consequente interesse pelo casamento. Novamente, o autor parte de hipóteses que reforçam um lugar comum com relação à juventude de classe operária, ao considerá-la mais propensa à desorganização e a atividades delinquentes (EISENSTADT, 1968, p. 65). Por outro lado, os jovens de classe média, por sua vez, já tenderão a ter um posicionamento mais “organizado”, com vistas a planejar um futuro e se inserir no sistema de papéis sociais previsto. Para os jovens do kibutz, a institucionalização e regulamentação representam valores relevantes ao lado do senso de hierarquia dentro da organização (EISENSTADT, 1971). 2.2 Estudos Culturais (anos 1970) No contexto europeu, o Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS), na Universidade de Birmingham, na Inglaterra, tornou-se uma referência naquilo que ficou conhecido como estudos culturais nos anos 70 do século passado. Stuart Hall participou da criação do centro, em 1964, que também foi integrado por outros intelectuais, tais como Edward P. Thompson, Raymond Williams e o primeiro diretor do Centro, Richard Hoggart. O Centro se dedicava aos estudos relacionados à teoria da cultura, associada em alguns momentos ao compromisso político-democrático. Os campos de estudos do centro se constituíram de forma interdisciplinar e incluíam diversas abordagens teóricas. Estudavam-se questões relacionadas à televisão e consumo associado a questões de gênero, raça/etnia e classe social. Havia combinações entre estudos de literatura comparada e etnografia. Nesse contexto, os estudos sobre a juventude e as subculturas britânicas, realizados por Paul Willis, foram bastante difundidos (WILLIS, 2004). Paul Willis foi o membro do CCCS que se destacou no que se refere aos estudos sobre a juventude e sua inserção nos processos de mudança social. Sua obra mais conhecida nos estudos culturais e na sociologia foi Learning to labour (1977), Aprendendo a ser trabalhador (1991), que destaca a transição, da escola para o mundo do trabalho, da juventude de origem operária. Willis observou em seu trabalho etnográfico como a escola inserida num sistema de dominação voltado para a formação de trabalhadores não era persuasiva. Os jovens, nesse contexto, assumiam um comportamento de “oposição” marcado pelo desprezo pela escola. Portanto, eles se voltam ao culto de seus grupos de afinidade pessoal definido num estilo de vida peculiar, isso como consequência de o jovem reconhecer as desigualdades como parte de um sistema econômico capitalista, que não oferece condições iguais de mobilidade social. Breitner Tavares 21 Willis combina, em seu estudo sobre educação jovem, aspectos relacionados à estrutura social e cultura a partir de uma abordagem etnográfica. Sobre os estudos do CCCS, pode-se afirmar que o mesmo era pautado em duas diferentes escolas. A mais velha delas, de cunho psicológico, estava centrada em discutir como os indivíduos fazem a transição da infância para a maioridade na vida adulta. O jovem era pensado enquanto adolescente envolvido no processo de maturação sexual e assimilação das obrigações relativas ao mundo adulto (emprego e casamento). A segunda tradição, de abordagem sociológica, estava voltada para a função social da fase da juventude com ênfase nos movimentos jovens, que seguiam o mesmo sistema de status (peer groups) e gangues. O foco desses estudos estava relacionado normas, valores e crenças poderiam ser pertinentes para se analisar estabilidade e mudança social (ABMA, 1991). 2.2.1 Subculturas jovens sob uma perspectiva crítica Na segunda metade dos anos 70, no Reino Unido, surge uma nova abordagem que não incluía as tradicionais abordagens de cunho psicológico e sociológico da juventude. Ao invés disso, essa nova abordagem deriva de uma historiografia de inspiração marxista combinada com uma antropologia cultural. Em termos históricos, essa nova perspectiva de estudos das subculturas advém primeiramente de uma tradição dos estudos culturais promovidos pelo CCCS e, em segundo lugar, de uma criminologia crítica produzida pela Conferência Nacional sobre Desvio (Social) (National Deviance Conference), que combinava marxismo, “abordagens americanas” e uma “teoria da reação social” (Howard Becker), além de uma influência do interacionismo e da etnometodologia. Para desenvolver o conceito de estilo, diversos autores como Willis (1977), Brake (1985), Murdock (1976) e Hebdige (1979) estudaram a antiga teoria da subcultura da Escola de Chicago, bem como a etnografia. Outros autores, tais como Clarke, Hall e Jefferson (1976) focaram-se mais nas questões sobre as aplicabilidades da teoria marxista. Portanto, cabe assinalar que havia uma intensa discussão entre culturalistas e estruturalistas. Durante os anos 50 e 60, a “cultura jovem” era definida pela perspectiva do ser adolescente e gradualmente passa a ser definida em termos de outras especificidades. A “juventude” passa a ser considerada a partir dos seguintes atributos: idioma, estilo social e tipos de diversão e lazer. Amparadas por políticas do bem-estar social, a chamada generation gap transformou o sentido de classe social anteriormente baseado em fatores econômicos. A juventude passaria supostamente a se posicionar enquanto uma nova classe em oposição ao mundo adulto (FRIEDENBERG, 1969; ROWNTREEW & ROWNTREEW, 1968). Por outro lado, outros autores (CLARKE et al., citados por ABMA, 1991, p. 100) consideraram essa perspectiva como um mito, porque por trás do estado do bem-estar social os conflitos de classe continuavam presentes de modo muito evidentes na juventude. Os jovens continuavam se agrupando em Breitner Tavares 22 torno de valores de classe, o que os define como algo mais específico em uma subcultura. Essa dinâmica de grupos de jovens de classe trabalhadora se evidencia por dois fatores: primeiro, pelo fim de formas tradicionais de sociedade com o advento do capitalismo moderno, segundo, pelo surgimento de uma indústria jovem (teenage industry) voltada para compreender como o jovem gastava seu tempo livre em atividades de lazer. Tudo isso gerou um segmento para jovens de classe trabalhadora, incluindo-se a criação de espaços, como discotecas, clubes jovens, concertos de rock, entre outras atividades de lazer. Esses elementos compuseram a criação de uma autoconsciência da geração jovem. Essa consciência da nova geração expressava-se numa variedade de subculturas, dependendo do grau de proximidade com os tradicionais padrões de cultura parental. Essas subculturas, por um lado, criavam uma ponte, imaginária e simbólica, entre tradição e modernidade. Além disso, elas resistiam à infiltração e à supressão de cultura da classe trabalhadora pela cultura dominante. Sua cultura de protesto não era verbal, tampouco política, contudo, era manifestada em rituais pelo idioma e aparência da juventude. Nesses termos, um estilo pode ser considerado como uma mistura de elementos advindos da cultura do lazer para a juventude nos termos de uma indústria jovem. Como forma para descrever isso, Clarke (1976a) recorreu ao termo bricolage, do estruturalismo de Levis Strauss, que se refere originariamente como formas mágicas utilizadas por “povos primitivos” podem ser vistas intrinsecamente de modo coerente, “recobrindo” seu usuário de significados. Os objetos e as práticas nesse contexto são capazes de promover uma infinita extensão, porque elementos básicos podem ser utilizados numa variedade de combinações improvisadas, fonte geradora de novos significados (CLARKE, 1975) que serão contrastados na relação face a face com outros estilos culturais. Cohen (1972), por sua vez, menciona quatro componentes essenciais para o desenvolvimento do estilo subcultural: vestimenta, música, ritual e linguagem. Apesar da influência de uma indústria cultural, havia a possibilidade de ressignificação desses bens materiais por parte dos seus consumidores para além da cultura dominante. Cabe assinalar que nem todas as subculturas estavam alinhadas como uma perspectiva de classe operária, mas se definiam também por sua capacidade de criação de grupos específicos. 2.2.2 Mercado de bens culturais, estilo e autenticidade Marcadamente, o CCCS era alvo de avaliações quanto a supostas limitações de suas propostas pelos seus críticos (MURDOCK, 1967). Uma das principais críticas diz respeito à preferência do CCCS por pesquisar estilos e subculturas “autênticos” da classe trabalhadora. Clarke (1976) era de fato Breitner Tavares 23 consciente do limite do conceito de subcultura como algo “autêntico” devido à experiência realizada em pesquisas sobre teddy boys, os mods, the rockers, os skinheads etc. Além disso, a idéia de subcultura remetia a algo à parte da cultura em geral que não tivesse participação em outros níveis da estrutura social. Sob essa perspectiva, a maioria da juventude de classe trabalhadora está além do escopo da abordagem da categoria “subcultura”. Essa juventude possuiria também outras formas de resistência através da delinquência. Outra crítica recorrente era (MURDOCK & Mc CRON, citados por ABMA, 1991, p. 102) que, apesar da definição de cultura como um “meio de vida total”, primeiramente se localizava subcultura no domínio do lazer, o que estabelece uma situação incongruente, já que cultura de classe do jovem repercute em outros espaços, como na escola e no trabalho, conforme demonstrou Willis (1977). O sentido atribuído ao conceito de subcultura pelo CCCS consistiu na busca de estilos juvenis “distintos e autênticos”, à revelia de um mercado produtor de bens simbólicos obtidos por específicos grupos juvenis da classe trabalhadora, durante a realização de atividades no tempo disponível para o lazer. Segundo o CCCS, as autênticas subculturas se mobilizariam para manter a distância desse processo de assimilação mercadológica (CLARKE et al., 1976). Contudo, uma série de autores questiona essa posição, pois os teds, mods, rockers, skinheads, subculturas consideradas autênticas, não foram de fato pesquisadas até que seus estilos fossem descobertos pelo mercado. Portanto, aquele tipo de assertiva não encontrava sustentação empírica, haja vista que a maioria das atividades de lazer considera, implicitamente, que em geral o tempo de lazer consumido pela juventude de classe trabalhadora já era influenciado pela indústria desprovida de elementos de protestos, ou seja, já estava inserido numa cultura de massa que não era “distinta”, tampouco “autêntica” (MURDOCK, 1976). Logo, isso levava à conclusão de que não há autenticidade na cultura de massa, porque o mercado está presente, interferindo na construção dessa imagem de juventude nas diversas subculturas desde seu princípio. Esse tipo de interpretação é resultado da confrontação entre diferentes posições marxistas. Para alguns, a noção de conflito de classes é algo que se encontra desatualizado. Nesse caso, acredita-se numa idéia romântica em que a juventude da classe trabalhadora representa uma subcultura revolucionária. Aqui a diferença entre a moda apresentada pelo mercado de bens simbólicos e a autenticidade seria observável através de categorias advindas do estruturalismo de Lévi-Strauss como: homologia que consiste na identificação do grupo por aqueles elementos distintivos criados numa combinação específica, definida como bricolagem. Essas categorias que podem ser visualizadas pelo seu discurso, estética corporal, entre outros elementos criados internamente pelo grupo. Essas categorias, por outro lado, serão objeto de interesses dos empreendedores do mercado de bens de consumo para a juventude. 2.2.3 Sexo ou classes Breitner Tavares 24 Outra lacuna no quadro Teórico do CCCS consiste no lugar das “garotas” no sentido das relações de Gênero. Críticas feministas apontam que nas publicações do Centro como resistência pensada enquanto ideais nos estudos de Willis lidam exclusivamente com o lado masculino das subculturas. Em verdade, sabe-se que há vários traços de cultura sexista na juventude proletária, contudo, há várias questões sobre como as garotas participam nas subculturas jovens criando suas próprias manifestações, que não foram discutidas mais profundamente. Clarke (1976) relaciona essas questões com outro tema pouco abordado pelo CCCS, que diz respeito à sexualidade e à paixão juvenis. A paixão cria a possibilidade imaginária de lidar com questões contraditórias na cultura parental, algo que pode se manifestar na forma de uma subcultura. Isso de certa forma envolve garotos e garotas. Enquanto o estilo específico escolhido tem aparentemente suas raízes na tradição da cultura dos pais, o verdadeiro motivo para os rapazes da classe trabalhadora se vestirem e se comportarem de determinada forma tende a expressar aspirações jovens tais como, “estar com os amigos” e para impressionar o sexo oposto (ABMA, 1991). Pode-se afirmar que há diversos autores, como Whitt, (1985), Mcrobbie (1991), Levinson (1996) e Arnot (2002), que demonstram uma cegueira para os estudos do CCCS sobre as relações de gênero, sexblind, estabelecida desde que se considerou a juventude da classe operária como algo internamente homogêneo. O foco nos jovens de sexo masculino ignorou as formas particulares de sexismo na construção da masculinidade. Segundo Arnot (2002), ocorre uma maior frequência de estudos sobre socialização e gênero nos Estados Unidos que no Reino Unido, país de origem dos estudos culturais. Há uma resistência quanto à investigação da área de gênero e raça nos estudos culturais britânicos, apesar de outras estruturas de desigualdades serem incluídas como algo afetado pelo exagero dos efeitos da divisão de classe. Consequentemente, os estudos de gênero se desenvolveram separadamente aos estudos que priorizavam as classes sociais. Ainda hoje, não se observa um impacto considerável desses estudos sobre as abordagens de cunho universalista como feito sobre classe social. O próprio CCCS, que aparentemente rompeu com uma série de tradições nas pesquisas das ciências sociais, argumentando em favor de uma nova abordagem para além da família e da economia, pouco pesquisou sobre as suas correspondentes implicações de gênero. A vantagem em se estabelecer uma perspectiva alternativa, em que a política econômica seja inversa a teorias culturais, está na possibilidade de se revelar a diversidade social no interior de uma mesma classe. Além disso, torna-se relevante a análise da natureza da hegemonia da classe ao se discutir questões educacionais (LEVINSON, 1996). De fato, o que passa a ficar mais evidente é que os garotos e garotas da classe operária compartilham algumas experiências na escola, como os valores da disciplina e conformidade, e estranhamento da cultura escolar, bem como, o ceticismo quanto à possibilidade de mobilidade individual e social prescrito pela escola. Alguns pesquisadores têm em comum a preocupação em demonstrar que tipos de relação podem ser estabelecidas entre teorias sobre reprodução da classe social e as divisões de gênero. O cerne de Breitner Tavares 25 pesquisas com ênfase marxista e feminista está em se desenvolver uma reflexão sobre uma economia política da educação da mulher, que seja capaz de superar as limitações de uma simples teoria cultural de gênero. Para isso, alguns estudos sofreram influência de Althusser (1998), no que se refere a sua discussão dos aparelhos ideológicos de estado e sua relação com a reprodução da força de trabalho e as relações sociais de produção (ARNOT, 2001). Para os estudos feministas, enfatizou-se a escolarização como parte do processo da divisão sexual do trabalho, que segrega homens e mulheres. Contudo, internamente à classe explorada é mantida uma hierarquia masculina que se manifesta no ambiente de trabalho, bem como na vida doméstica. Esses espaços expressam de modo direto formas de opressão e exploração e, da mesma forma, criam culturas de resistência em ambos os lados, para homens e mulheres. 2.2.3 Abordagens qualitativas no âmbito do CCCS Apesar de o CCCS ter, por um lado, desenvolvido diversas pesquisas empíricas, ele é criticado por ter desenvolvido um quadro teórico mal estruturado para uma análise das subculturas atuais. Contudo, a relação do CCCS com a produção de um quadro teórico analítico está pautada basicamente na pesquisa qualitativa, fortemente influenciada pela Escola de Chicago, com observação participante e entrevistas abertas. A influência da tradição hermenêutica leva adiante a perspectiva de que mais do que simplesmente “testar” uma teoria, o cerne de uma pesquisa está em demonstrar seu valor heurístico. A identificação de classe com as culturas definidas como produto da ação humana aliada à preferência pela etnografia e observação participante são traços distintivos do CCCS. Além disso, o engajamento em correntes de esquerda marxista que marcaram sua política científica estava contra tradições de pesquisas da pedagogia social e da sociologia da juventude, que estavam sob influência de abordagens funcionais estruturalistas nos anos 60 pautadas em pesquisas amostrais quantitativas. Portanto, segundo os críticos dessas abordagens, isso levava o pesquisador a uma “perda do tato” com seus objetos de estudo, ou seja, não havia um contato mais aproximado com os sujeitos sociais pesquisados. Diante disso, o CCCS postulou uma nova abordagem da subcultura, que incorporou um “retorno para o mundo da vida do jovem”, como, por exemplo, através da observação participante (ABMA, 1991, p. 108). O CCCS se posicionava intelectualmente de modo a negar o moralismo intrínseco nas políticas de bem-estar social para moldar e ajustar a juventude. Por outro lado, a excessiva ênfase à classe social e o recorte das pesquisas centradas nas subculturas, tidas como grupos “autênticos”, frente ao sistema econômico, limitaram o alcance dessas abordagens em relação a outras juventudes que não necessariamente se constroem nessa relação de oposição ao mercado ou à moda. Em outros termos, o Breitner Tavares 26 CCCS enfatizou seus primeiros estudos nas juventudes “espetaculares”, em seus traços marcantes de distinção social, deixando de fora um largo segmento daqueles jovens ditos “normais”. Apesar da dificuldade do CCCS de demarcação de um campo teórico de pesquisa e da resistência que alguns setores acadêmicos têm em relação à aplicabilidade de uma metodologia marxista, pode-se afirmar que as pesquisas sobre juventude continuam sendo norteadas pelas contribuições dos Estados Unidos e do CCCS. Além disso, o CCCS ficou conhecido por uma nova abordagem crítica iniciada no debate e com correntes dominantes de uma sociologia e psicologia do adolescente. Essa posição foi baseada num criticismo reunido em torno da promessa de uma nova perspectiva de teoria e pesquisa “antiburguesa” e “antipositivista”, que se opunha à generalização de uma imagem negativa da juventude. Breitner Tavares 27 2.3 Juventude enquanto categoria social no Brasil Já nos idos dos anos 50 e 60, quando o Brasil já supunha estar em pleno desenvolvimentismo econômico, com um setor industrial em expansão, cresce a noção de que o Brasil, assim como a América Latina, teria se inserido numa ordem capitalista. Ao mesmo tempo, surgem diversas críticas, que evidenciavam, apesar do franco desenvolvimento, que o Brasil continuava com uma grande parcela de “destituídos sociais”, conforme Fernandes (1967). Assim, o Brasil, em vias de sua modernização, deveria sob o novo discurso hegemônico avançar em seu processo de democratização das instituições sociais. Nesse contexto, a juventude universitária, identificada com perspectivas políticas de esquerda, busca um envolvimento com os movimentos sociais das classes trabalhadoras. Desta forma, caberia a esse grupo estruturado nos movimentos sociais e nas universidades “[…]falando ao povo (a respeito dos problemas do povo), o intelectual passava a ser “povo” e, por conseguinte, se tornava seu “porta-voz” e então intelectual da sociedade, não intelectual da anti-sociedade” (ORTIZ, 1985, p. 72). A busca dos “sentimentos das massas”, assim como “agir em nome dos interesses do povo”, passou a ser a nova abordagem das questões sociais da época. Breitner Tavares 28 [...] Ir por todos os meios, ao encontro do povo, ensiná-lo e deixar-se ensinar por ele, fundir-se com ele e, ao mesmo tempo, oferecer-lhe um espelho onde pudesse descobrir a imagem do que era, apesar de ainda não o saber: a própria nação. Tudo o que pretendiam os “pensadores” do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros, criado por decreto em 1955) era formular o “sentimento das massas” (PÉCAUT, 1990, p. 108). Diversos movimentos sociais passaram a ser identificados como movimentos de uma juventude, tida às vezes como inconformada ou rebelde. Nos Estados Unidos, estudantes se organizam num movimento pela liberdade de expressão, Free Speech, em 1964, e, segundo alguns intelectuais, chegam a influenciar posteriormente os referenciais para o movimento estudantil, em 1968, na Europa (SEARLE, 2008). Mais adiante, a luta pelos direitos civis contra o regime racista baseado na leis da era Jim Crow5 e o movimento pacifista contra a guerra do Vietnã levaram milhares de estudantes a se associar e a se unir a outros ativistas, como os afroamericanos e latinos, para ocuparem as ruas, bem como o espaço das universidades. Na Europa, o movimento dos estudantes parisienses de maio de 1968, em Sorbonne, irrompeu uma série de manifestações de protestos por mudanças no sistema estudantil, bem como nos valores dá época, como questões geracionais associadas à relação de classe, gênero e raça/etnia. Posteriormente, os estudantes obtiveram apoio de diversas instâncias dos movimentos sociais franceses, com especial ênfase do movimento operário, que na ocasião iniciou um movimento grevista em função de sua pauta reivindicatória (HOBSBAWM, 1994). De fato, com influência direta ou não das “barricadas francesas”, diversos países europeus tiveram manifestações de cunho reivindicatório estudantil, tais como: na Alemanha Ocidental, influenciada por movimentos ambientalistas e novas correntes do feminismo, na Itália, pelo movimento 5 A era Jim Crow trata de um conjunto de leis estaduais, instituídas nos estados do sul dos Estados Unidos, de base racista, que separavam diversos grupos étnicos, como negros, latinos e asiáticos, da população branca. Dentre as várias determinações da lei, estavam aquelas que exigiam a criação de escola e de outros espaços públicos, como trens e ônibus, separados para brancos e negros. Posteriormente, essas leis foram consideradas inconstitucionais pela Suprema Corte Americana, em 1954, e mais adiante foram combatidas pelos movimentos pelos direitos civis norte-americanos. Para maiores detalhes, veja-se McMillen, Neil, Dark Journey, Black Mississippians in the age of Jim Crow. Illinois Books, 1990. Breitner Tavares 29 maggio rampante, com a adesão do operariado, na ex-Tchecoslováquia, com a “Primavera de Praga”, movimento conhecido pela defesa de mudanças políticas contra o recrudescimento do socialismo (HOBSBAWM, 1994). Os ecos desse ativismo político, que estão relacionados a eventos em níveis transnacionais, eclodiram todo um sentimento de missão e de mudancismo nas estruturas sociais latino-americanas, inclusive na sociedade brasileira, expresso pelo setor universitário, em especial pela adesão dos jovens aos Centros Populares de Cultura – CPCs, ligados à União Nacional de Estudantes – UNE. Toda essa efervescência política e intelectual vivida pelo Brasil atinge diversos níveis (HOLLANDA, 1982). Esses movimentos em geral defendiam ideais revolucionários e contrários ao regime militar iniciado em 1964. Diversas manifestações estudantis levaram à ocupação do espaço universitário, com especial destaque para as Universidades de São Paulo e de Brasília, que foram ocupadas e sofreram com a reação da polícia da época. Diante disso, em termos sociológicos, o surgimento da categoria juventude ocorreu de modo diverso da tendência da época, voltada para outros estudos relacionados à condição de classe no Brasil, como fazia o ISEB. O jovem no Brasil apareceria, inicialmente, a partir de uma sociologia das elites especificamente centrada nos estudos sobre a classe média universitária. Ocorre, naquele caso, a construção generalizada do jovem universitário, como assinalou Bourdieu (1968), onde há um enfoque das representações sociais dessa juventude em relação a uma cultura hedonista e idílica. As regras sociais seriam frouxas em detrimento da ênfase no lazer. Para esse jovem fora das limitações impostas pelo ritmo das jornadas de trabalho, que estabelecem um controle preciso do tempo típico do mundo adulto, não há datas nem horários rígidos a serem cumpridos. Esse jovem se lança na recusa do mundo adulto de se submeter ao processo socializador que o mundo do trabalho lhe reserva. Em diversos artigos dessa geração de autores, além de criar certos estereótipos em relação ao suposto desinteresse pela política do jovem das classes trabalhadoras, também invisibilizava-se toda uma densidade das relações sociais orientadas por dinâmicas relacionadas, como as questões de gênero e raça. Iani (1968)6 também abordou o jovem universitário, sob a perspectiva das classes médias. Geralmente esses estudos chegavam a conclusões em que se considerava o jovem universitário “mais politizado”, ou por ter acesso a mais informação, ou pelo próprio contexto acadêmico, que suscita a reflexão da questão política de uma maneira mais “profunda” em relação ao operário semialfabetizado das fábricas. No caso brasileiro, parte dessa juventude tratada nas análises assumiu, em contextos autoritários como o do regime militar da segunda metade do século XX, a “missão” por realizar a transformação do país, por meio do movimento estudantil de caráter revolucionário. Esses “radicais” normalmente advindos 6 Veja-se IANNI, O. O jovem radical. In: BRITO, S. (Org.). Sociologia da juventude, I. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, p. 225-242. Breitner Tavares 30 das ciências humanas, que seguiam de maneira intensa seus ideais de transformação social, não o faziam por sofrerem as consequências objetivas do sistema econômico, das quais são críticos, mas por serem influenciados por uma ideologia esquerdista que circulava nos meios universitários. Isso é preponderante para se manter um sistema de distinção social. Por um lado, uma elite intelectual universitária, que chamava para si a responsabilidade de liderança pautada em perspectivas universalizantes de transformação social de um marxismo europeu. Por outro, havia o povo semialfabetizado, proletário, composto de uma massa homogênea e considerado incapaz de se organizar politicamente (IANNI, 1968, p. 180). O jovem universitário, conforme priorizado nos primeiros estudos sobre juventude no Brasil, será em estudos pesquisadoras como Marialice Foracchi (1972). A autora pioneira nos estudos sobre juventude no país traz uma série de contribuições em termos de análise dos processos de socialização e inclusão da juventude no mundo adulto, bem como mostra como esse processo pode ser conflituoso em função da rebelião que compõe o comportamento jovem. Foracchi (1972) analisou, baseando-se na perspectiva de Mannheim, como uma mesma situação de classe propicia uma geração com valores semelhantes, como no caso dos estudantes universitários. Além disso, a autora considera que a relativa condição de liberdade pelo desprendimento do mundo do trabalho garantido pelo apoio financeiro advindo de suas famílias de classe média os fazia mais “livres” para se dedicarem a questões como a militância política. Foracchi identifica uma “nova crise” como consequência de uma suposta “marginalização temporária”, dada a condição de crise vivida pelo estudante, ou seja, não ser mais adolescente e tampouco adulto, aquele que enfrenta de frente a vida imposta pelo sistema (FORACCHI, 1972, p. 30). A “recusa pelo sistema” está relacionada à possibilidade de realização de metas ainda não alcançadas previamente pelas gerações anteriores, que pode passar até pela destruição do sistema atual. A autora considera o jovem universitário como o “mais sensibilizado”, porém o “menos preparado” para realizar as mudanças que propõe. Por outro lado, ela reforça ainda estereótipos sobre o suposto baixo nível de envolvimento que os jovens de origem trabalhadora demonstram pelo pelo interesse no engajamento político, já que os mesmos advêm de um ambiente de “pobreza cultural” (FORACCHI, 1972, p. 44). Durante as décadas de 50 e 60 do século XX, o desenvolvimentismo como discurso político do Estado brasileiro, perante uma grande parcela da população de excluídos, leva os setores universitários, ocupados por jovens das camadas médias e identificados com ideologias políticas de esquerda da época, a assumir um posicionamento de atores políticos, que deveriam estar envolvidos nos movimentos sociais da época. Diante disso, cria-se um sentimento de “missão política” do jovem universitário, voltado para as transformações das estruturas sociais como já ocorria nas manifestações estudantis em outros países da Europa e América. Esses processos influenciaram o enfoque dado pelos primeiros estudos sobre uma sociologia da juventude no exterior (BRITO, 1968) e no Brasil, em virtude da ênfase numa juventude dos setores médios. Contudo, esses mesmos estudos, conforme Ianni (1968) e Marialice (1972), reproduziram uma Breitner Tavares 31 abordagem universalista, na qual jovens de outros estratos sociais, como aqueles da juventude da classe trabalhadora, eram invisibilizados enquanto sujeitos políticos mediante hipóteses que apontavam para um suposto desinteresse ou mesmo uma incapacidade dos mesmos no sentido de alguma mobilização de cunho político reivindicatório. 2.3.1 Um novo paradigma da juventude nos anos 90: violência e criminalização – Uma abordagem sobre os estudos da Unesco Após os estudos de Foracchi (1972) e Ianni (1968), pode-se considerar, de um modo geral, que houve uma lacuna no que se refere “a estruturação de um campo consolida de estudos sobre juventude apesar da produção de teses e dissertações no âmbito da pós graduação brasileira. Durante os anos oitenta e noventa, foram publicados alguns trabalhos baseados na perspectiva dos estudos culturais e, por conseguinte, sobre subculturas, com destaque para algumas publicações como nos estudos sobre o movimento punk no Rio de Janeiro (CAIAFA, 1985) e São Paulo (ABRAMO, 1994) e da cultura da festa funk, no Rio de Janeiro (VIANNA, 1988). Contudo, a retomada da juventude enquanto temática de estudos num nível mais abrangente ocorrerá pela inserção dos estudos desenvolvidos pela Unesco no final dos anos 90. Essa instituição alocada no Brasil estabelecerá uma articulação no que se refere ao campo institucional de pesquisas sobre juventude, bem como no que se refere à criação e implementação de políticas públicas voltadas para o jovem, que culminarão na criação de aparatos institucionais como a Secretaria Nacional de Juventude, em 2005 (CASTRO, 2005). A intervenção da Unesco, enquanto agente internacional polarizador, na esfera intelectual e política, será catalisada a partir da redefinição da categoria juventude, passando pela perspectiva da violência e cidadania e do protagonismo jovem. De fato, a Unesco historicamente vem desenvolvendo atividades que assimilam aspectos das pesquisas com vistas a definir planos de ação intervencionista. Dessa forma, ela objetiva conhecer e intervir no contexto no qual está inserida para a difusão daquilo que se consideram valores democráticos, a partir da instauração de “uma cultura de paz e não violência”. Esses valores seriam difundidos a partir de programas em parceria com o Governo Federal e os Estados, como o “Abrindo Espaços: construção de uma cultura de paz” (CASTRO, 2005, p. 58). A entidade realizou também vários eventos em torno da temática da juventude, o que permitiu uma articulação entre membros da elite política, tanto em níveis locais como nacionais, e a aproximação da esfera acadêmica. Esses campos político-acadêmicos, ao serem articulados, foram capazes de colaborar com a construção para um novo sentido de juventude, a exemplo da divulgação da Unesco de alguns resultados de suas pesquisas sobre o tema, como feito nas publicações: Jovens Acontecendo na Trilha das Políticas Públicas e Juventude, Violência e Cidadania (CASTRO, 2005). Além disso, a Unesco financiou Breitner Tavares 32 diversas pesquisas em nível regional nos anos subsequentes7. Essas publicações, em geral, seguiram a mesma orientação teórico-metodológica durante a realização das pesquisas, a única ressalva fica para o Mapa da Violência (1998b), uma pesquisa quantitativa de abrangência nacional, que se tornará uma referência para muitos estudos posteriores sobre o tema. Esse montante de publicações expressa o sentido de uma mobilização de um grupo de intelectuais no caminho da (re)definição de um campo de pesquisa, difusor de imagens e conceitos em relação à juventude enquanto categoria social e enquanto objeto de pesquisa, que ultrapassa o campo intelectual em direção à luta política pelo reconhecimento dessas novas abordagens. Associada a essa mobilização, estava a intenção da Unesco de implementar ações intervencionistas na esfera das políticas públicas para a juventude. Essas publicações foram ainda decisivas no que se refere à consolidação da Unesco enquanto entidade de pesquisa, que, por sua vez, propiciaram que a mesma adquirisse uma posterior inserção no campo da elaboração e execução de políticas de intervenção, baseada em seus conceitos de juventude, violência e cidadania. Nesse contexto, a publicação Os jovens de Brasília (1998), de Júlio Waiselfisz, pode ser considerada uma publicação-piloto, que permitiu o estabelecimento de articulação entre diversas instituições, bem como uma reconstrução conceitual do que vem a ser juventude. De fato, a decisão de se pesquisar os jovens de Brasília se deu em função do marcante assassinato do índio pataxó, Galdino Jesus dos Santos, ocorrido na cidade, cometido por jovens de classe média alta. O livro propunha a quebra de visões do senso comum sobre a juventude, em especial das classes mais abastadas. Além disso, o autor discute como a violência juvenil vem sendo abordada pela perspectiva da juventude pobre e marginalizada. Era uma proposta que nos dava a oportunidade de refletir sobre muitos de nossos próprios estereótipos. Tínhamos nos acostumado a pensar a violência como resultado direto da miséria. Os perigos e inseguranças vinham dos “pobres” [...] o caso Galdino e este estudo posterior nos demonstram que a violência, em sua expressão atual, permeia o conjunto da vida social. [...] É uma questão global e globalizada que aparece como um dos sintomas da nossa modernidade [...] é nesse campo que a pesquisa juventude, violência e 7 As pesquisas da Unesco, iniciadas em 1996, se chamaram respectivamente Juventude, violência e cidadania: os jovens de Brasília (1998a), Mapa da Violência (1998b), ambos coordenados por Júlio Waiselfisz. Juventude, Violência e Cidadania: Gangues, galeras, chegados e rappers: juventude, violência e cidadania nas cidades da periferia de Brasília (2001), coordenado por Miriam Abramovay; Juventude, violência e cidadania na cidade de Fortaleza (1999), coordenado por César Barreira; Os jovens de Curitiba: esperanças e desencantos (1999), coordenado por Ana Luisa Fayet Sallas; Fala galera: juventude, violência e cidadania na cidade do Rio de Janeiro (1999), coordenado por Maria Cecília de Souza Minayo. Breitner Tavares 33 cidadania objetiva contribuir: melhorar nosso entendimento da juventude atual, no marco das mudanças e transformações que a vida moderna está a impor (WAISELFISZ, 1998a, p. 7-8). Waiselfisz (1998) realiza uma pesquisa qualitativa com jovens oriundos do Plano Piloto e cidadessatélites, na qual são discutidas questões relacionadas à cidade de Brasília, à vida familiar, bem como respostas sobre valores como cidadania e violência. O autor, além disso, busca outros subsídios em índices de homicídios para definir a violência causada pelo jovem a partir de organizações criminosas e subculturas juvenis. Essas seriam as razões para o “sentimento de medo” e “fatores de risco”. A definição de violência é feita de maneira ampla e difícil (CASTRO, 2005). O autor define a violência enquanto um problema de teoria social e da prática política. Para efeito desta pesquisa, considera-se violência como parte da própria condição humana, aparecendo de forma peculiar de acordo com os arranjos societários de onde emergem. Ainda que existam dificuldades e diferenças naquilo que se nomeia como violência, alguns elementos consensuais sobre o tema podem ser delimitados: noção de coerção ou força; dano que se produz em indivíduos ou grupo social pertencente a determinada classe ou categoria social, gênero ou etnia (WAISELFISZ, 1998a, p. 145). As pesquisas da Unesco reforçam uma cultura acadêmica que mantém o enfoque de pesquisas sobre juventude sob uma perspectiva quantitativa, como se observa em Abramovay (1999), bem como em outras instituições, como a Perseu Abramo (2003). Nessas pesquisas, tornam-se evidentes questões que não priorizam aspectos das representações coletivas produzidas pelos jovens no contexto de sua vida cotidiana. Da mesma maneira, não se consideram aspectos relacionados a gênero, raça/etnia. O resultado é que, ao se omitirem questões dessa natureza, ocorre uma invisibilidade de certos atores sociais. Alguns trabalhos que normalmente chegam à conclusão de uma “sensação de derrota” sentida pelo jovem, em especial o de grupos pobres, geram consequências diretas no que se refere à sua cultura política. Essas pesquisas estão vinculadas normalmente a uma orientação teórica que não contempla aspectos vivenciais dessa juventude. Para a Unesco, o principal argumento no sentido da construção da juventude se assemelha às abordagens baseadas na noção de papel social e função social desviante. Dessa forma, a violência é resultado da desintegração do jovem na estrutura social. A falta de integração, e pessimismo são consideradas como as princiais fatores que propiciam o surgimento de novas formas subculturais. Além disso, Castro (2005) menciona fatores para o avanço de práticas criminosas, como o desenvolvimento das sociedades modernas, o acelerado ritmo de urbanização, dentre outros. A pobreza segue como fator gerador de desigualdades e do não acesso à educação ou emprego, entre outros. Portanto, a busca da emancipação pela oposição ao mundo adulto é contrabalanceada por movimentos estudantis reivindicatórios e delinquência, que leva a associação da categoria jovem, ao mesmo tempo, à condição de autor e vítima da violência. Breitner Tavares 34 Quando a definição de juventude e de jovem se interpenetra com os fenômenos da violência, observa-se um esquema diferente. O jovem deixa de ser pensado como um segmento em “transição” e é identificado a partir de seus comportamentos e práticas, passando a ser considerado vítima ou agressor de atos de violência e tornando-se, portanto, um sujeito político importante. O ator da violência – que não havia ainda sido definido, como visto no eixo violência – encontra no eixo juventude a sua materialidade (CASTRO, 2005, p. 154). Possivelmente um país como o Brasil sofreria mais com essa crise, dada a profunda desigualdade econômica, resultado perverso de seu rápido desenvolvimento observado nas últimas décadas. Desta maneira, no que se refere à retomada de estudos sobre a juventude, nos anos 90, pode-se afirmar que a mesma esteve associada à participação da Unesco na formação de uma nova expertise que desenvolve uma série de abordagens no campo da pesquisa social, com vistas a propor ações intervencionistas no campo das políticas públicas para a juventude (CASTRO, 2005). A idéia era redefinir o jovem e a juventude num campo discursivo, de modo a produzi-lo enquanto um “protagonista”, ou seja, um ator social capaz de apresentar respostas aos problemas de violência sofridos e cometidos pelos jovens na contemporaneidade. O protagonismo é construído então como uma pedagogia democrática e pacificadora, como nos lembra a continuidade da epígrafe: “Nessa concepção, educar é criar espaços reais para que os jovens possam empreender a construção do seu ser em termos pessoais e sociais” (CASTRO, 2005, p. 310). A Unesco protagonizou, portanto, a retomada da juventude como uma temática sociológica, dialogando com distintas esferas, desde político-governamentais até setores relacionados à produção de pesquisas e, por conseguinte, de discursos sobre a juventude. Tentando apontar para o problema da violência num nível pluriclassista, de um modo geral, a questão da violência, sofrida e cometida pela juventude, enquanto um reflexo das condições de classe, continuará a permear os discursos dos estudos subsequentes. Breitner Tavares 35 2.3.2 Para as juventudes do presente Apesar dos números crescentes de publicações e do surgimento de grupos de trabalhos que enfatizam de alguma maneira a categoria juventude como um referencial para se pensar em processos de socialização e geracionais, ainda não representam além da constituição de um campo estruturado de pesquisadores em relação ao tema (SPOSITO, 2000). Além disso, muitos desses estudos ainda trabalham com abordagens lineares que se restringem a uma descrição superficial dos estilos de vida jovem. Poucas são as abordagens que tentam reconstruir trajetórias “pós-lineares” juvenis a partir do discurso dos próprios jovens, como salientam Dayrell (2005) e Pais (2005). Breitner Tavares 36 Atualmente, algumas publicações têm chamado atenção para a juventude para além de dicotomias entre economia e cultura, para isso, observa-se alguns trabalhos que relacionam à juventude e trabalho e práticas estéticas, com especial ênfase para a juventude pobre e trabalhadora e seu envolvimento com a cultura urbana, como o hip-hop (SPOSITO, 1994). Ademais, abordagens em relação ao consumo e à sociabilidade urbana de jovens de periferia têm contribuído sobremaneira para a redefinição dos estudos geracionais sobre juventude, outrora centrados numa ótica da juventude de classe média (NUNES, 2007). Diante da busca pela compreensão das novas formas de vida que uma geração imprime através da materialização de uma juventude, verifica-se, a existência de uma pluralidade de sujeitos sociais por vezes invisibilizados numa condição subalterna, mas que estabelecem suas estratégias criadas na fronteira da instabilidade desse mundo precário, em termos das velhas expectativas mobilidade e controle social, descritas nas abordagens mais tradicionais do funcionalismo. A tensão do mundo contemporâneo exige a criatividade para a compreensão das culturas juvenis (PAIS, 2005). Apesar de seu potencial analítico, a categoria juventude seguiu uma tradição “universalista”, em termos de suas abordagens empíricas. Os estudos sobre juventude pouco foram empregados em estudos relativos à raça/etnia e gênero. Desta forma, é recorrente uma invisibilidade de atores sociais, tais como mulheres e negros. Weller (2005) argumenta que uma maior inserção de várias áreas de estudos sobre as culturas juvenis contemporâneas permitiria uma reavaliação da noção de juventude para uma superação de uma compreensão “pré-social”. Essa compreensão se refere a uma interpretação restrita, de base biológica, um fator determinante de uma “crise” no processo de transição da juventude para o mundo adulto. Se quisermos entender o que vem a ser juventude e como ela é vivida de fato pelos adolescentes e jovens de ambos os sexos, será necessário dedicar maior importância às descrições e narrativas dos atores envolvidos associada à reflexão teórico-metodológica e à análise rigorosa dos dados empíricos (WELLER, 2005, p. 7). Em outros termos, para uma ampliação da capacidade explicativa da categoria juventude, se faz necessária a superação de certos estereótipos analíticos, localizados unicamente na juventude européia, branca, heterossexual, das classes abastadas. Assim, paralelamente à apresentação desses vários postulados, observa-se que a categoria juventude se constitui de um modo diverso como aqui se apresentou, numa pequena amostra dessa diversidade. Por outro lado, pode-se afirmar que, nas perspectivas mais predominantes, o sentido de juventude ainda é definido pelo sentido de “ser desviante”, “rebelde”, alvo de programas oficias de “inclusão” ou “ressocialização” ou, em outras abordagens, como “protagonista” transformado em Breitner Tavares 37 “agente” de transformação de programas sociais definidos sob a perspectiva do mundo adulto. Além disso, houve tradicionalmente uma ênfase nos estilos juvenis “espetaculares”, membros de subculturas, o que estabelece um sentido de juventude como um sujeito social “exótico”, em permanente conflito com as gerações mais velhas. Dessa forma, nesta década, observa-se o retorno do tema Educação, mas com ênfase na juventude de ensino médio ou que esteja fora da escola e do mercado de trabalho. Há também um foco na diversidade ao se abordarem identitárias, de gênero e étnico-raciais. CAPÍTULO 3 O MÉTODO DOCUMENTÁRIO COMO REFERÊNCIA PARA O ESTUDO DAS ORIENTAÇÕES COLETIVAS DA JUVENTUDE HIP-HOP Breitner Tavares 38 Para o desenvolvimento da problemática sobre a cultura jovem hip-hop em Ceilândia foram enfocados aspectos da história e da trajetória de alguns grupos de jovens que se reúnem em função do rap. A interação social dos jovens no espaço urbano foi analisada a partir do método documentário de interpretação, criado pelo sociólogo húngaro Karl Mannheim. Essa proposta terá um referencial teórico metodológico na avaliação dos dados empíricos produzidos mediante entrevistas, observação participante, bem como a partir de produção e coleta de materiais audiovisuais. O método documentário de interpretação foi desenvolvido por Mannheim (1990), para a análise da categoria weltanschauung, “visão de mundo”8. Trata-se de um esforço teórico para se desenvolver uma sociologia da cultura que vai atribuir uma importante ênfase aos aspectos qualitativos das orientações coletivas dos grupos sociais. A weltanschauung resulta de “uma série de vivências ou de experiências ligadas a uma mesma estrutura que, por sua vez, constitui-se como base comum das experiências que perpassam a vida em múltiplos indivíduos” (MANNHEIM apud WELLER, 2005, p. 264). Mannheim (1990) objetivava estabelecer um método interpretativo influenciado pela “hermenêutica romântica”, de Wilhem Dilthey, produzida entre o final do século XIX e início do século XX, que distinguisse a lógica do conhecimento entre as ciências naturais e ciências humanas. Ele considerava que compreender (Verstehen) para as ciências sociais e a história implicaria um “trabalho de leitura da situação de análise do contexto ao qual a ação ou crença pertencem, compreendendo-as sob a ótica de outras ações e crenças historicamente construídas” (SCOCUGLIA, 2002, p. 251). Outras abordagens de cunho compreensivo nas ciências sociais ocorrem na obra de autores como Max Weber, na fenomenologia de Alfred Schutz, na dramaturgia de Erving Goffman, entre outros. Weller (2002) analisa o conceito de “visão de mundo”, em Mannheim, como instrumento para compreensão das ações dos indivíduos de um determinado grupo. As visões de mundo não podem ser construídas aleatoriamente como teorias dessa forma essas práticas são constituídas a partir do conhecimento ateórico”. Dessa forma, a conceitualização teórica se constitui em instrumento para a compreensão das ações coletivas que produzem esse conhecimento ateórico. Para o autor, as experiências do mundo da cultura devem ser entendidas a partir de categorias próprias, mas distintas da teoria enquanto tal. Refletir teoricamente, ou seja, traduzir em teoria um fenômeno de natureza sui generis, como expressões da subjetividade de uma juventude, significa voltarse para dimensões pré-teóricas, ao nível da existência cotidiana. Nesse contexto, há uma clara tentativa de superação da dicotomia entre a reflexão de caráter eminentemente teórico e da pesquisa que seria simplesmente “empírica”. Isso se sustenta quando se admite que a teorização não se inicia com a ciência, mas sim no âmbito da experiência cotidiana. 8 A categoria “visão de mundo” (weltanschauung) pode eventualmente ser associada a outras expressões como, representações ou representações coletivas, entre outras categorias, que remetam a conceitos e explicações advindas da vida diária no processo dinâmico das interações individuais. Breitner Tavares 39 A teorização, pois, não começa com a ciência; a experiência quotidiana précientífica é, portanto, recolhida com pedaços da teoria. A vida na mente é um fluxo constante, oscilando entre o pólo teórico e a-teórico. Assim a teoria tem o seu lugar próprio, a sua justificação e o seu sentido mesmo no domínio da experiência imediata, concreta – no domínio do a-teórico (MANNHEIM, 1986, p. 59). Dessa forma, a visão de mundo como uma síntese, como meio para se traduzir representações de uma coletividade, de uma geração é uma entidade ainda não contituida, localizada além do teórico. De outra forma, as ações sociais, como modo de expressão de múltiplos sentidos, advêm do âmbito racional, embora de natureza a-teórica. A compreensão teórica dessas ações a partir da categoria de “visão de mundo” está além de todas as realizações de sentido, embora seja de algum modo obtida através delas. Assim, os jovens ceilandenses, na medida de suas realizações na vida cotidiana constroem visões de mundo a partir das ações práticas. Contudo, esses jovens se compreendem mutuamente em função de sua convivência pré-reflexiva, tácita, sem empregarem necdessáriamente uma interpretação de suas ações. As representações coletivas ou orientações coletivas, segundo Manhheim, derivam da experiência conjuntiva de um grupo que possui traços de generalidade. Elas são objetivas porque estabelecem o sentido para as possíveis experiências de um grupo, para além da psique individual. Elas não são extraindividuais para todos os possíveis sujeitos, mas somente em relação ao grupo que está de fato presente num “fato social”. Nesse contexto, “fato social” é definido como “experiência” em detrimento de “coisa”, num sentido durkheimiano9. Uma “coisa” existe no espaço e está restrita a sua 9 A categoria representação possui um amplo espectro conceitual nas ciências sociais. Inicialmente, as representações coletivas enquanto categoria criada por Durkheim (1989) se referem a um caráter coletivo sui generis, um substrato da sociedade. Elas são exteriores às consciências individuais, assim como um fato social; ou seja, é tudo aquilo que, afetando a mente ou emanando dela, é capaz de fixar-se com menor ou maior grau de estabilidade. As representações coletivas em Durkheim (1989), mais adiante nos anos 60 do século XX, tornam-se um referencial para o desenvolvimento dos estudos das representações sociais a partir de Moscovici (1961) e aprimoradas por Denise Jodelet, que irão adquirir maior popularidade no meio acadêmico nos anos 80. Moscovici (1961) considerava as limitações das representações coletivas frente às representações individuais. Para o autor, representações sociais são as formas de consciência que são associadas à concepção contemporânea de senso comum, ou seja, indicam um conjunto de conceitos, explicações e afirmações advindas da vida diária no curso de comunicações entre indivíduos. Diante do amplo escopo de definições da categoria de representações sociais, a mais recorrente é a de Denise Jodelet (2002, p. 22): “As representações sociais são uma forma de conhecimento socialmente elaborado e compartilhado, com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social”. A dispersão de definições que atravessam os estudos das representações sociais prejudica a formação de propostas metodológicas mais precisas. Breitner Tavares 40 existência, a um específico período de tempo e espaço. Uma “coisa” não muda sua essência por si só, como ocorre com as representações coletivas. Uma representação coletiva incorpora a situação externa a sua funcionalidade para uma comunidade em particular, no sentido que isso contém. Nem todos os indivíduos podem ler essa funcionalidade. Contudo, qualquer um pode entender suas ligações concernentes da situação original da representação coletiva junto com o sentido que isso contém. Para as mesmas razões todos os conceitos e representações coletivas possuem um caráter expressivo, assim como um sentido documentário com respeito a sujeitos individuais ou coletivos que os produzem (MANNHEIM, 1982, p. 208, tradução do autor). Dessa forma, Mannheim (1982) argumenta que nenhum indivíduo num grupo comanda tudo que é conhecido, que pode já estar disponível para o grupo no que se refere à forma das partes do grupo, na sua produção de valores e conhecimento. A totalidade do que pode ser conhecido é dividido entre vários indivíduos, cada um dos quais se envolve num segmento em particular da possível representação do espaço de experimentação coletiva. Entretanto, a totalidade desses segmentos forma um todo orgânico que não existe na cabeça de ninguém como um todo, mas de certa forma “suspenso” sobre o grupo. Exemplifica-se que todo culto é uma totalidade na qual cada indivíduo tem sua função e regra, mas onde a totalidade é algo que depende de si mesmo para a atualização e pluralidade de indivíduos que, nesta perspectiva, alcançam algo além de uma psique individual. 3.1 Sociologia compreensiva e o método documentário Mannheim (1986), de fato, propõe um sofisticado sistema para sua metodologia hermenêutica, vinculado à perspectiva de uma sociologia compreensiva. Nela são estipulados três aspectos a serem considerados no processo de interpretação do sentido das ações sociais. Para Mannheim (1986), os fenômenos da cultura só podem ser compreendidos plenamente se observados como uma coisa em si mesma. A observação se torna viável ao se considerar que as ações sociais revelam três “estratos de sentido”: objetivo, expressivo e documentário. Dessa forma, o hip-hop, ao ser definido como um fenômeno de âmbito cultural, poderá ser compreendido a partir da observação de seus estratos de sentido que, em um primeiro contato, serão caracterizados pela objetividade para que em etapas posteriores seu significado expressivo e documentário permita que se obtenha seu “significado total”. Breitner Tavares 41 Essa tripla diferenciação dos estratos de sentido da “visão de mundo” será considerada no contexto dos grupos juvenis vinculados ao hip-hop na Ceilândia. Isso será viável a partir do momento em que a configuração social for conhecida por meio da observação. O conhecimento da configuração objetiva será fundamental para que se oriente o processo de compreensão dos significados construídos por essa juventude ceilandense, na medida em que ocorrerá a interação do pesquisador no ambiente onde são construídas essas significações. Quando se está diante de interlocutores ou de um bem simbólico, como uma letra de música, é possível que haja intencionalidades distintas daquelas apresentadas no primeiro contato observado ao nível objetivo. Assim, para além do significado objetivo, o ato observado poderá conter um significado inesperado, às vezes, até contraditório. Nesse caso, o observador terá que recorrer a novas categorias para aquilo que se apresenta de maneira dinâmica para além de sua mera “aparência”; para cada significado novo será necessária uma categoria nova capaz de explicar a expressividade da ação definida pelos sujeitos sociais. O significado expressivo é relevante, pois permite observar o sentido íntimo que os indivíduos atribuem a suas ações, sem separá-los do mundo da experiência. Dessa forma, o estilo musical rap permite a construção de todo um meio expressivo por parte de seus interlocutores, que fazem alusão a categorias como a pobreza, a vida na periferia urbana ou a sua identidade racial. O observador deve perceber esse “universo íntimo” em um primeiro momento, a partir do sentido atribuído por esses jovens. Este conteúdo expressivo, apesar do fato de não possuirmos dele um conhecimento teórico-refletido, mas somente uma experiência direta, concreta, pré-teórica, é ainda significante, isto é, de alguma forma interpretável, mais do que algo meramente físico, um estado difusamente endurecido. Pode-se compreender o significado das ações pela interpretação sem recorrer-se ao que é subjetivamente pretendido (MANNHEIM, 1986, p. 67). Segundo o autor, o pesquisador, ao se posicionar como “testemunha” que observa e interpreta a cena, está em condições de partir do significado expressivo para o significado documentário, que se refere à compreensão daquilo que é expresso pelos indivíduos de modo inconsciente, não intencional. No caso em que se pretende documentar as representações coletivas de jovens ceilandenses vinculadas à cultura hip-hop é relevante atentar-se, inclusive, para aspectos não verbais, como gestos, expressões faciais, o modo de conversar. Isso porque, enquanto ocorre uma conversa entre jovens e pesquisador, em alguns casos, o pesquisador pode perceber ou constatar a assimetria entre o que é dito e o que é expresso, tanto no jogo corporal, como no contato ambiental do lugar. A observação desses múltiplos aspectos expressivos dos jovens permitirá ao pesquisador uma visão mais abrangente da ação social. Isso se torna Breitner Tavares 42 relevante para se promover uma análise documentária, ou seja, para que se compreenda a ação social além da intencionalidade dos atores sociais. Uma reconstrução desse nível documentário parte do sentido da ação no contexto em que ela ocorre e em que está inserida. Aquilo que foi denominado por Bohnsack (apud WELLER, 2005) como observação de segunda ordem, o acesso ao conhecimento pré-reflexivo dessa juventude. Como considera Weller (2005c), essa reconstrução interpretativa parte de algumas questões estipuladas diante do nível objetivo das representações dos sujeitos sociais. Nessa etapa de reconstrução documentária, o pesquisador deve analisar que determinados sinais de linguagem inscritos em gestos estereotipados não encerram simplesmente uma “gramática universal”. A atenção, nesse caso, deve estar voltada para outros possíveis gestos que possuam uma carga expressivasignificativa para os jovens. Esses gestos individuais demandam uma interpretação, o que elimina a tentativa de sua generalização apressada. Contudo, observar a expressividade de gestos individuais não implica meramente uma abordagem psicológica das representações da juventude. De fato, o nível de interpretação documentária parte da experiência psíquica dessa juventude. O sentido documentário não demanda, necessariamente, conhecer toda a trajetória dos indivíduos, para que se possa compreendê-los num determinado contexto das representações coletivas. O que se faz relevante no sentido documentário não é explicar o que significa o hip-hop em termos essenciais, mas compreender como se opera a construção de identidades; como, a partir do hiphop, uma juventude como a localizada na cidade de Ceilândia orienta suas práticas sociais. Nesse caso, mais importante que perguntar “o quê” é perguntar “como” se operam essas construções de sentidos dessa juventude em questão. A maneira como os assuntos são tratados em uma conversa, bem como o tipo de seleção dada a esses assuntos em determinado contexto pode ser mais uma pista para a construção desse sentido compreensivo. Weller considera que, no âmbito analítico, a postura sociogenética do pesquisador corresponde em colocar “entre parênteses o caráter de validade dos fatos sociais” (WELLER, 2005, p. 270). A vontade de verdade reivindicada pelo discurso do informante, sua índole, não podem, nesse caso, ser um fator impeditivo para o questionamento do pesquisador sobre as falas apresentadas pelos entrevistados em relação às suas práticas sociais. O sentido documentário, diferentemente do sentido expressivo, pode recorrer aspecto parcial da representação coletiva tais como depoimentos de jovens sobre suas ações ou mesmo informações de outra natureza como documentos produzidos anteriorment sobre essas ações como letras de música. Informações parciais podem contribuir para a recosntrução das orientações coletivas em termos documentáios. Nesse caso, o sentido objetivo, ou seja, o contato imediato com a juventude e suas falas podem-se constituir aspecto relevante e explicativo, no que se refere à realização de um trabalho analítico. Dessa forma, a interpretação documentária da juventude em Ceilândia é influenciada pelo seu contexto, pela sua localização histórica sociogenética. Essa condição demanda ainda uma contínua renovação da interpretação documentária. A tradução, em termos teóricos, desse conjunto de Breitner Tavares 43 significações da vida cotidiana a-teórica ocorrerá mediante certos aspectos significativos que prevalecem em relação a outros. Ainda em relação às influências sobre a representatividade da interpretação, está em jogo a posição ocupada pelo pesquisador, que tem uma afiliação teórica. O lugar de onde fala não corresponde à neutralidade. As experiências cotidianas, bem como o reconhecimento de uma posição de classe, raça, gênero, entre outras, não se excluem num processo de análise. Em relação ao aspecto da objetividade, Bohnsack (apud WELLER, 2005) propõe que o método comparativo dos dados seja uma forma de controle dessas subjetividades. Dito de outra forma, a reconstrução teórica do conhecimento a-teórico se dá pela perspectiva comparativa de outros casos, que acaba por deixar em segundo plano o “conhecimento teórico do pesquisador”. A análise comparativa desempenha, assim, um papel de controle metodológico da compreensão da realidade estranha ou distante do universo do(a) pesquisador(a) – ‘methodisch kontrolliertes remdverstehen’ –, ou seja, de controle das afirmações ou generalizações realizadas sobre a realidade observada (WELLER, 2005, p. 23). Na pesquisa sobre jovens da cidade de Ceilândia foram relaiados grupos de discussões. Essa abordagem foi difundida pelos integrantes da Escola de Frankfurt, nos anos 50 do século passado, principalmente por Pollok (apud WELLER, 2006). Mais adiante, nos anos 70, recebe influências teóricas do interacionismo simbólico, da fenomenologia e da etnometodologia. A abordagem teórica dessa técnica de pesquisa eleva o status dos grupos de discussão para um método de pesquisa. Mangold e Bohnsack (apud WELLER, 2006) consideram que os grupos, ao se posicionarem perante certas questões trazidas pelo pesquisador, não formulam suas respostas simplesmente pela ocasião de uma interação; essas opiniões constituem reflexos das orientações coletivas ou visões de mundo referentes ao contexto social dos entrevistados. Nesse caso, torna-se relevante conhecer vivências coletivas, o habitus dos jovens. Portanto, a noção sociológica de grupo é definida pela relação de interdependência, na qual se compartilham valores numa dinâmica que, eventualmente, enfatiza aspectos harmônicos ou conflitantes, que são intrínsecos a um grupo estruturado (VANDENBERGHE, 2005, p. 115). De fato, na medida em que os costumes e regras compartilhados por um grupo se tornam peculiares, observa-se sua relativa separação de outros grupos sociais em função do estilo de vida. O método de pesquisa dos grupos de discussão, segundo Ralf Bohnsack (1989, 1999 e 2004, apud WELLER, 2006), permite observar aspectos estruturais da sociedade. Estes “modelos” são orientadores das experiências individuais e coletivas num determinado meio social, como é o caso da juventude. Isso associado à perspectiva do método documentário de interpretação de Mannheim (1990) permite dois modos de observação: um “interno”, relacionado ao sentido da ação atribuída a partir dos indivíduos no contexto de sua interação, e outro “externo,” orientado para a representação das interações num contexto estrutural. Breitner Tavares 44 Ao ser retomado nos anos 80, o método dos grupos de discussão passou a ser empregado especialmente em pesquisas sobre juventude. Os enfoques dessas pesquisas eram variados. Havia interesse em estudos sobre desenvolvimento, gerações, formação educacional, gênero, meio social, entre outras tipologias. Nesse sentido, o método de grupos de discussão será relevante para que o pesquisador se aproxime do contexto relacional dessa juventude ceilandense, expresso através de seus discursos e gestos, de modo que se possa reconstruir teoricamente aspectos do seu meio social, histórias e trajetórias desses grupos e o enfrentamento do racismo no contexto de uma segregação socioespacial imposta pela lógica urbana do Distrito Federal. Será enfatizada a análise do habitus dos grupos hip-hop, com enfoque em sua manifestação social resultante da condição geracional dessa juventude. Para a operacionalização das entrevistas no método de grupo de discussões, foi produzido um tópico-guia10 que tem a finalidade de combinar certas leituras relevantes com a temática da juventude hiphop em Ceilândia. Esse tópico-guia é resultante de conversações preliminares com sujeitos sociais relevantes e tem a função de organizar o encaminhamento do grupo de discussão, bem como das informações obtidas nesse contexto. As perguntas apresentadas em seu corpo foram direcionadas para as representações sociais; pergunta-se sempre “como” as ações se constituem. Essas perguntas têm a finalidade de se constituir como um ponto inicial para a construção das falas. As terminologias empregadas são simples e direcionadas para as práticas cotidianas de jovens que, em muitos casos, não tiveram acesso à escolarização. A flexibilidade é um fator importante nesse tipo de planejamento, uma vez que muitas questões, às vezes, complexas no contexto da entrevista podem se tornar secundárias ou irrelevantes. Esse tópico-guia, de fato, estará sujeito a inovações em função das situações vivenciadas no contexto de sua aplicação, por outro lado, a análise das orientações coletivas dos grupos não seguiu necessáriamente a sequência das questões elaboradas. Portanto, as mudanças e situações novas devem sempre ser registradas. Também será aplicado um questionário com objetivo de se ter acesso a mais informações complementares das trajetórias histórico-biográficas dos entrevistados. Em relação à quantidade de entrevistas a serem produzidas numa pesquisa de cunho qualitativo, alguns aspectos que a caracterizam devem ser considerados. Em primeiro lugar, a seleção das entrevistas, diferentemente de uma pesquisa amostral quantitativa, está voltada para a descoberta de uma variedade de posicionamentos frente a uma questão. No método documentário de interpretação, a análise das interpretações, ou versões da realidade, mesmo que as experiências pareçam únicas nas mentes dos indivíduos, será, em termos estruturais, resultado de processos sociais. Num primeiro momento elas são surpreendentes; posteriormente, temas comuns começam a surgir e as surpresas tornam-se mais infrequentes em função do processo comparativo dos dados. Durante a pesquisa foram realizados quinze grupos de discussão com aproximadamente cinquenta e cinco jovens, organizados em grupos de rap e street dance. Os jovens em geral se identificavam com o hip-hop e com os grupos dos quais fazem parte e, em geral, estavam habituados a realizar apresentações 10 Vide anexo I. Breitner Tavares 45 públicas em escolas, casas de festas ou boates. Durante o trabalho de campo, alguns jovens criaram a expectativa de que se trataria de uma reportagem jornalística ou promocional. Essas situações exigiram que fossem esclarecidas as devidas circunstâncias que envolviam a pesquisa em questão. Em relação aos aspectos metodológicos, a interpretação documentária permite compreender a partir do hip-hop e suas manifestações artísticas como a música a partir dos sentidos das ações coletivas produzidas por esses grupos jovens em suas narrativas, bem como permite observar as representações sociais, no gestual, não escrito naquilo que está imanente à ação. Em relação ao critério de seleção dos grupos, levou-se em conta a qualidade das respostas apresentadas durantes as discussões dos grupos, obtida a partir da demonstração do conhecimento dos grupos sobre as questões apresentadas, como discute a teoria fundamentada ou ground theory (STRAUSS, 1967, apud WELLER, 2006). Durante o trabalho de campo, a cada entrevista era feita uma avaliação em relação aos grupos entrevistados, de modo a construir uma amostra representativa em função dos interesses teóricos da pesquisa. Nesse caso, foram selecionados quatro grupos de jovens que se reúnem pelo interesse musical no rap. Além disso, os grupos apresentaram em suas respostas aspectos que permitiram a análise de suas orientações coletivas em torno da formação geracional, relacionamento e sexualidade, bem como em torno de suas experiências frente à discriminação e suas estratégias. Apesar de algumas exceções, os jovens, em geral, têm entre 17 e 27 anos, são homens, se identificam como negros e vivem nos setores considerados mais pobres em Ceilândia-DF. Os procedimentos de coleta de dados por meio da observação participante, bem como a ênfase na história de vida dos atores sociais entrevistados, foram utilizados para se reconstruir as visões de mundo presentes em suas ações coletivas. Nesse caso, o método documentário de interpretação encontra operacionalidade de diversas formas. Materiais como imagens fotográficas, documentos e a prática da observação participante, incluindo-se a realização de entrevistas, podem constituir referenciais para o processo de compreensão da visão de mundo dos sujeitos sociais. Essa triangulação de métodos ou de técnicas de coleta de dados será de grande relevância para uma maior abrangência da análise das entrevistas de grupo. Em atenção a aspectos éticos, os nomes dos respondentes, bem como o nome dos setores onde vivem, grupos e organizações receberão pseudônimos com vistas a garantir o anonimato, bem como para preservar sua integridade. Portanto, pseudônimos serão utilizados para todos aqueles que participaram dos grupos de discussão, a exceção será para depoimentos obtidos no contexto de eventos públicos. Além disso, instituições como organizações assistenciais e movimentos sociais terão o mesmo tratamento, a não ser que não haja a possibilidade de identificação dos respondentes. Breitner Tavares 46 CAPITULO 4 CIDADE E DINAMIZAÇÃO E PERIFERIZAÇÃO: UMA SOCIOLOGIA URBANA DE BRASÍLIA Confronto A suntuosa Brasília, a esquálida Ceilândia contemplam-se. Qual delas falará primeiro? Que tem a dizer ou a esconder uma em face da outra? Que mágoas, que ressentimentos prestes a saltar da goela coletiva e não se exprimem? Por que Ceilândia fere o majestoso orgulho da flórea Capital? Por que Brasília resplandece ante a pobreza exposta dos casebres de Ceilândia, filhos da majestade de Brasília? E pensam-se, remiram-se em silêncio as gêmeas criações do gênio brasileiro. C. D. Andrade. Favelário Nacional In: Corpo, 1984 Enfim, o filme acabou pra você A bala não é de festimaqui não tem dublê Para os manos da Baixada Fluminense à Ceilândia Eu sei, as ruas não são como a Disneylândia. Racionais MC’s- 1998 Sobrevivendo no Inferno Um dos debates que adquire cada vez mais relevância no contexto das novas dinâmicas do mundo moderno diz respeito à Cidade e como este espaço apresenta novos fenômenos, muitos dos quais são de interesse das Ciências Sociais. A cidade é expressa como um espaço heterogêneo, e pode ser entendida pelo prisma weberiano, no qual uma relação social ou uma interação de pessoas, dá origem a sistemas complexos de relações como a família, o Estado, uma Economia de Mercado, uma fortificação, entre outras, que por sua configuração, só poderiam ocorrer no contexto ocidental. A cidade é um assentamento relativamente fechado diferente de um pequeno povoado fundada em uma sede senhorialBreitner Tavares 47 territorial, especialmente uma sede principesca abastecida de um centro econômico e político como o mercado para o comércio e aquisição de bens. Weber (1864-1920) ao se referir as cidades medievais européias cita as feiras, como formas de mercados que não possuem a capacidade de transformar um lugarejo em cidade. A realização da troca de bens não apenas ocasional mas regular na localidade, como componente essencial das atividades aquisitivas e da satisfação das necessidades dos moradores a existência de um mercado. Tradicionalmente a categoria metropolização foi empregada para a descrição e compreensão dos processos de socialização e desenvolvimento do espaço urbano em múltiplas frentes como a econômica, política e cultural. O termo metrópole é derivativo de metr- (‘útero’, mãe); polis –‘cidade’. Este espaço, que “abriga a todos”, deve ser compreendido sob aspectos multirrelacionais, sejam eles de estrutura física ou organizacional, como os feitos por Mumford ( The culture of Cities- 1938), que abordam a metrópole a partir de suas dinâmicas tecnológicas, comunicacionais e arquitetônicas. Outros autores, como Simmel, estão mais voltados para aspectos mais psicossociais que se perguntam como a metrópole estabelece novas relações sociais e promove uma nova “intensificação da vida intelectual como a reação do indivíduo às forças urbanas despersonalizantes” (Simmel, In: O Fenômeno Urbano, 1973, 22). A cidade de Simmel (1859-1918) é a tragédia moderna, movida pela experiência esquizóide do indivíduo que estabelece como mediação das relações sociais a cultura do dinheiro. A grande diferenciação social promovida pela vida metropolitana e a multiplicidade de ocupações diferem do ambiente da pequena cidade no que se refere à vida psíquica. Relações de impessoalidade diante do grande grupo, que representa a cidade dispersa os indivíduos assumem a atitude blasé que se caracteriza por uma ansiedade recorrente pelo novo e um sentimento de incompletude e melancolia, que leva à atitude reservada, quase indiferente. Nas relações de mercado da pequena cidade os produtores e consumidores se conhecem; na grande metrópole, movida pela produção de mercado, compradores e vendedores são anônimos. Simmel (1973) observa que esse anonimato estabelece relações prosaicas e às vezes extremamente egoístas no plano econômico. A economia do dinheiro domina a metrópole e elimina as relações diretas de troca de mercadorias. Portanto, a vida urbana repousa sobre uma complexa trama de hierarquias de simpatias, aversões, indiferenças efêmeras ou mais duradouras. A influência de autores como Simmel e Weber se torna perceptível em grupos como o da Escola de Chicago que empreendeu várias pesquisas com grande ênfase no aspecto do trabalho empírico frente à grande urbanização sofrida nos Estados Unidos a partir da Segunda metade do Século XIX. Aqui o desenvolvimento comercial atraiu um grande contingente humano que levou a cidade a ultrapassar a cifra de um milhão de habitantes até a década de 1890. Questões relativas à migração e aos conflitos entre minorias étnicas, raciais e de gênero foram abordadas extensivamente. A cidade seria um grande “laboratório de comportamento coletivo”. Apesar da reconhecida influência européia, em especial a alemã, no que tange a conversão do historicismo para a sociologia, etnologia e psicologia popular, a Escola de Chicago obteve o mérito de criar um quadro teórico americano centrado na filosofia social do pragmatismo (JOAS:1999, 217). Atualmente a perspectiva de análise das cidades, centrada na idéia da metropolização (como abordada nas escolas do passado) se depara com uma nova densidade dos fatos que dificulta uma real Breitner Tavares 48 compreensão de tais fenômenos. Um dos processos observados em meio a esse novo tipo de urbanização foi denominado, de “megalopolização”. Freitag(2002), fez uma definição distintiva entre as categorias da “megalopolização” e “metropolização”. A primeira refere-se, “a uma noção não apenas quantitativa da vida urbana mas a uma dimensão qualitativa, ou seja, uma forma específica da vida societária em cidades gigantescas, típicas para este final de século XX.”. Essa perspectiva engloba aspectos ligados à dimensão das cidades, em termos populacionais (acima de 10.000.000 de habitantes), crescimento acelerado da urbanização, a constante migração de grandes contingentes populacionais que constituirá uma civilização de subculturas em si homogêneas, mas entre si divergentes. Nesse contexto, Brasília não constitui ainda uma megalópole em termos quantitativos– com sua população estimada em 2 milhões de habitantes–, mas diante do ritmo de crescimento pela qual perpassa, dos vários conflitos entre Estado e outros grupos sociais no que diz respeito à ocupação de seu solo urbano, indaga-se se essa cidade não estaria num franco processo de megalopolização. Modernismo e aventura em Brasília Brasília é tida como uma aventura (SILVA, 97) que tenta dar um sentido a vida, a um ideal de modernidade que se dirige ao “futuro mas com o olhar voltado para o passado”, uma mudança extraordinária. Brasília é o resultado de um esforço simbólico, a materialização de uma utopia, que se exprime em todo mudancismo dos anos cinqüenta do século vinte. O desenvolvimento difundido pela agencia estatal Instituto de Estudos Brasileiros (ISEB), grupo de intelectuais articulados Hélio Jaguaribe que formulou um discurso neobismarkiano de desenvolvimento econômico para o país, que deveria se efetivar a qualquer preço. O Brasil só seria Brasil quando o litoral se encontrasse com o sertão- “o despertar do gigante adormecido”. Por fim, Brasília deveria salvar o Brasil- “a capital da esperança”- das forma arcaicas de civilização, do atraso do modelo colonial centrado em relações pessoais para uma ordem impessoal e democrática. Dessa forma, Brasília é o resultado de todo um desenvolvimentismo que dinamizou processos de urbanização no Brasil a partir do anos 50 de acordo com Santos(1996). Já no bojo da elaboração do projeto da nova capital ficaram evidenciadas influências de um formalismo positivista (CARPINTERO, 1998) que não levava em conta outros elementos que sustentam aspectos relacionados à vida da cidade e seus habitantes por instituições como a NOVACAP. Tratava-se simplesmente de tomar posse do lugar: “a concepção urbanística da cidade não será decorrência do planejamento regional, mas causa dele: a sua fundação é que dará ensejo ao ulterior desenvolvimento planejado da região. Trata-se de um ato deliberado de posse, de um gesto ainda desbravador”.(Costa, Relatório, Preâmbulo-citado em Carpintero:1998-72). No próprio projeto de Lúcio Costa, já havia uma preocupação com os aspectos relacionados à população que não eram enunciados por ocasião do concursos que escolheria o projeto para a nova capital. “Ela deve ser concebida não como simples organismo capaz de preencher satisfatoriamente e sem esforço as funções vitais próprias de uma cidade moderna qualquer, não apenas como URBES mas como Breitner Tavares 49 CIVITAS, possuidora dos atributos a uma capital, (COSTA, Relatório, Preâmbulo - citado em Carpintero:1998-72). A idéia de urbes pode ser atribuída aos aspectos relacionados à materialidade urbana, seus edifícios , vias de acesso, equipamentos públicos, civitas se refere a imaterialidade dos aspectos subjetivos: a idéia de cidadania e pertencimento da vida coletiva da cidade passando pela esfera da política e da cultura. Em termos teóricos se evidencia que existiam diferenças entre o posicionamento frente aos técnicos da NOVACAP que se detinham a uma perspectiva formalista de se erguer uma cidade estética e funcional, enquanto, os aspectos relacionados à população e à vida urbana estariam em segundo plano. A construção Brasília, acirrou um espírito de aventura extraordinária e trouxe vários grupos sociais advindos de diversas regiões do país– em especial, do Nordeste(43% em 1958/IBGE). No período da construção da nova capital, os acampamentos teriam um caráter provisório, ou seja, após o término da obra deveriam ser desfeitos. A própria NOVACAP (Houston, 1993) elaborou uma estratégia em que um terço dos operários seria encaminhado de volta a seus locais de origem, um terço seria realocado numa área de desenvolvimento agrícola para a criação e um “cinturão verde” e o restante seria absorvido na própria cidade no setor de serviços, contudo em 1958 esse plano foi revogado em função de um novo plano: a criação das “cidades satélites”. No contexto dos acampamentos improvisados de lona e madeira, abrigavam-se os operários, os “candangos”, palavra de origem africana (quinbundo) utilizada pejorativamente na designação que os portugueses davam aos negros no período colonial. Posteriormente, esta designação é utilizada para se referir aos operários, no período da construção de Brasília. Contudo a conotação do termo candango sofre uma alteração, do seu sentido original sendo empregada, no caso de Brasília, como uma referência honrosa aos pioneiros construtores da nova capital. Há relatos de ex-operários, como no filme Conterrâneos de Velhos de Guerra de Vladimir de Carvalho, que faz referência a uma história ligada ao Palácio do Catetinho, no período em que aí ficava Juscelino Kubitschek segundo a qual havia um cão vira-lata, mascote dos operários, que era chamado “candango”. Os operários às vezes se utilizavam do termo para se referir aos colegas. Mais tarde Juscelino Kubitschek teria sabido do termo e o utilizou com uma conotação diferente em que candango seria o cidadão operário especialmente o nordestino. Há também outra análise (LARAIA, 96) que discute alguns mecanismos de distinção social, estabelecidos no período da construção. Havia os termos “pioneiro” e “Candango” o primeiro foi utilizado para se referir à elite de técnicos, engenheiros, arquitetos, autoridades políticas o segundo, era referido aos operários submetidos às vezes a condições subumanas em longas jornadas de trabalho. Diante das condições históricas que lhes foram impostas, reuniram-se e “passaram a interelacionar-se criativamente, formando uma especificidade de um ambiente social (SILVA:1999, 79)”. Estes diversos grupos migrantes, nômades, aventureiros construíram a cidade e, frente à mudança social que esta lhes impôs, reconstituíram seus diversos valores, referenciais de identificação, muitos dos quais entraram em sérios conflitos com aquilo que se considerou como referencial de modernidade e transformação da sociedade brasileira. A constituição de Brasília em termos sócio-arquitetônicos deveria ser um modelo, um referencial de progresso e brasilidade um contraponto a uma urbanização sem planejamento prévio e sistemático. Seria uma alternativa para o modelo do “semeador” que lança suas semente ao ar aleatoriamente sobre o Breitner Tavares 50 solo fértil, de que fala Sérgio Buarque de Holanda (1978). Este era o tipo urbanização promovida pelos portugueses que tiveram pouco interesse em realizar um planejamento das primeiras cidades brasileiras. “A cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental, não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha da paisagem. Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma providência, sempre esse significativo abandono que exprime a palavra desleixo”(HOLANDA, 1978: 76). Com o objetivo, de se fazer jus à proposta conceitual de cidade jardim e cidade linear, o plano de Lúcio Costa incluía a necessidade de impedir a “enquistação de favelas” tanto na periferia urbana quanto na rural”. Caberia à NOVACAP estabelecer diretrizes para assentamentos para que o Plano Piloto de Brasília fosse preservado em suas características originais inclusive sobre os aspectos sanitários, provendo “acomodações decentes e econômicas para a totalidade da população”. Mais adiante se inclui o termo “cidade satélite” em substituição à idéia mais tarde reiterada em que se passa a afirmar que as cidades satélites deveriam surgir após a total ocupação do plano piloto. (Costa, Relatório, Preâmbulocitado em Carpintero:1998-72). A obra que estabeleceu um dos primeiros marcos de um processo de exclusão sócio espacial foi a construção de uma estrada que contorna o plano piloto em função da bacia hidrográfica do rio Paranoá, com o objetivo de estabelecer um fronteira, um limite físico para que se mediasse sua preservação (CARPINTERO, 1997). Esta estrada conhecida como “Estrada Parque do Contorno” estabelecia a função de anel sanitário em que só seriam permitidas as construções de casas isoladas com grandes distâncias de mais de 1Km entre cada uma como previu Lúcio Costa. Esta obra deliberada pela NOVACAP estabeleceu um referencial de preservação ambiental e norteou a expansão urbana. Esse sistema viaário forçou a retirada de várias ocupações de favelados que ocupavam sua área geográfica, viabilizando o surgimento de cidades como Gama, Ceilândia entre outras. Contudo, observou-se mais tarde que tal prerrogativa ambiental não foi suficiente para impedir a inserção da classe média, que foi beneficiada com a criação de áreas habitacionais como o Guará, Lago Sul, a ocupação da península do Lago Norte. Portanto, o Estado assume a frente de um processo de exclusão social do espaço a partir de mecanismos urbanísticos e ambientais como a EPCT11 que se constituiu em anel sanitário um limite da capital administrativa do país, condição de defesa do Estado. 4.1 Segregação Sócio Espacial: A Invensão da periferia A categoria segregação sócioespacial, foi originada pela Escola de Chicago (Park e Thomas) e foi empregada para a descrição dos processos de urbanização no início do século vinte (anos 30 e 40). Ela exprime uma tendência da organização do espaço com zonas de grande homogeneidade social que se distribuem em função de critérios da diferença de classe econômica gerando “racismos espaciais”. O 11 Breitner Tavares Estrada Parque do Contorno. 51 princípio essencial que influencia esta separação é a distribuição da moradia e locais de circulação no espaço urbano . Lo que es socialmente significativo no es hecho de la pobreza o de la discriminación en si, sino la fusión de ciertas situaciones sociales y de una localización particular en la estructura urbana. Es de esta manera com se constituye la segregación urbana en tanto que fenomeno específico, y no tan sólo como reflejo de la estratificación social general (CASTELLS, 1979: 207). De fato a segregação urbana não é simplesmente a projeção direta no espaço do sistema de estratificação, mas uma conseqüência da distribuição de renda e acesso ao espaço urbano. No que concerne o caso de Brasília, a segregação espacial ou periferização foi estudada por diversos autores como Paviani (1996), Sousa (1983). Estes estudos destacam o distanciamento das populações que são removidas das localidades próximas dos serviços coletivos (públicos e privados) como escolas, hospitais, do trabalho, do lazer entre outros e acentuam, o nível de exclusão social. A erradicação das ocupações definidas como invasões pelo então Governo do Distrito Federal no final dos anos 60 eliminou as favelas, do IAPI, as vilas Tenório, Esperança, Bernardo Saião e o Morro do Querosene, para a criação de Ceilândia. No que concerne a América Latina (PORTES & BROWING: 1976, p. 12) o processo de urbanização, em especial a divisão do solo urbano, expressa níveis de desigualdade como o de classe social. Esse processo incentiva, determinados grupos a se perpetuarem, apropriando-se dos benefícios da urbanização deixados por outros segmentos marginalizados nos assentamentos sem infra estrutura. Por outro lado, ocorre a invasão de terras por grupos de estratos sociais mais elevados e mobilizados, como atualmente acontece nos enclaves-fortificados de vários condomínios distribuídos no Distrito Federal. A idéia de se promoverem erradicações de favelas para instauração de assentamentos planejados, já era recorrente na América Latina, para a solução de problemas relacionados com a imigração e o crescimento populacional nas grande metrópoles, desde os anos 60 e 70. Na cidade do México (MONTAÑO: 1983) foi problematizado o sentido dos “pobres de la ciudad”, como sendo as massas de trabalhadores migrantes de característica heterogênea em termos de cultura e orientação geográfica. Aqui as classes sociais pobres são predominantemente vislumbrados como alvos da “Campaña de erradicación de ciudades perdidas en la ciudad de México” promovida, pelo Estado. Nesta campanha onde são tratados aspectos políticos de assentamentos urbanos para classes populares desde os anos 70 para se eliminar “los asentamientos urbanos espontáneos”(as favelas). No Brasil concomitante ao mesmo período (KOVARICK: 1973) são instituídos programas de remoção de favelados sob o autoritarismo do regime militar, exemplificadas pela a Cidade de Deus no Rio de Janeiros e as Cidades Satélites como Ceilândia no Distrito Federal. Em Brasília agentes imobiliários como bancos empresas construtoras bem como o próprio governo local se articulam em torno da população definida como “agente-paciente”(PAVIANI, 1997) categoria de sentido ambíguo que remete à situação em que a mesma população que é agente por ser trabalhadora, consumidora e construtora de suas moradias é, por outro, lado paciente ao se curvar diante das ações do Estado e de empresas que atuam no mercado imobiliário. Por um lado, se expandem as distâncias das Breitner Tavares 52 novas cidades sem infra estrutura, com grandes contigentes populacionais, com baixo poder aquisitivo e por outro lado, se concentram as atividade de alto poder financeiro e tecnológico. A periferização planejada de Brasília estabeleceu o sentido de “cidade dormitório”. Trata-se de espaços segregados, com precários equipamentos urbanos insuficientes para o suprimento das necessidades locais. Isso reforçou a secundarização da vida dessas cidades que dependem da oferta de empregos e serviços, do núcleo central representado pelo Plano Piloto. Nesta condição há um adensamento multifamiliar por moradias divididas até por dez famílias, como nas “cabeças de porcos”, cortiços insalubres no Brasil do século XIX. Segundo esta perspectiva de dinâmica urbana, centrada na especulação do solo urbano e na segregação de grandes contingentes de pobres, que têm diminuído seu direito à cidade ao serem lançados a grandes distâncias dos centros irradiadores do capital financeiro e do trabalho, Brasília não transcendeu o ritmo das demais cidades brasileiras. Em outra abordagem, apresentada por Nunes (1997: 14) a pobreza na forma da segregação sócioespacial seria o processo por meio do qual se originou uma urbanização periférica, que constituiu vários problemas, tais como, a “má qualidade dos serviços coletivos e problemas sócio-psicológicos decorrentes das dificuldades de adaptação dos migrantes a um novo espaço”, como saúde, educação, lazer, trabalho. No que tange os aspectos de urbanização, com periferização, no Distrito Federal é idêntico ao que ocorre nas demais metrópoles do país, demonstrando estarem as soluções numa escala mais ampla, a nacional. 4.2 Ceilândia-DF: o projeto da invasão erradicada Ceilândia, cidade fundada em 1971 tem seu nome resultante da sigla CEF Campanha de Erradicação de Favelas, posteriormente denominada de CEI, “Campanha de Erradicação de Invasões”. Esse projeto urbanístico tinha como propósito a remoção de invasões, termo aferido às ocupações das várias vilas que se formaram dos acampamentos próximos à cidade do Núcleo Bandeirante (antiga Cidade Livre). A justificativa do então governo do Distrito Federal, implementado em 1969, era a de que não seria possível a permanência das vilas, pois elas estariam invadindo a área do chamado “anel sanitário”12, o que poria em risco as condições de saneamento básico da nova capital. De fato, nestas vilas havia uma situação de insalubridade séria. Não havia uma urbanização ou qualquer planejamento, essas ocupações, mantiveram o mesmo caráter provisório dos acampamentos no período da construção de Brasília. Nas vilas segundo levantamento feito em 1969, pela Secretaria de Serviço Social, revelou que neste contexto, existiam quase 15 mil barracos com uma população de superior a 80 mil pessoas, sendo que 71,98% dessas famílias tinham a renda familiar entre 0 e 2 salários mínimos (Codeplan-1969). Havia, no entanto, uma estrutura social estabelecida. Cada vila tinha seu nome: Vila do IAPI, Vila Tenório, Morro do Urubu, Morro do Querosene, caracterizando o lugar onde as pessoas recriavam aspectos de suas origens, 12 Área de proximidades com rios e nascentes, que abastecem o lago Paranoá que deve ser preservada para se garantir a qualidade do saneamento básico das populações que vivem em sua proximidade. Breitner Tavares 53 encontravam-se em barracões para dançar o forró, plantavam árvores em seus quintais e tinham seus mercados, as feiras. A proposta inicial, que cooptou os moradores das vilas no sentido de sua remoção, foi a de que os próprios moradores construiriam, num sistema de mutirão, sua própria cidade. A Terracap determinou que a “habitação provisória”( barraco de madeira) deveria ser erguida ao fundo do terreno possibilitando que, oportunamente, na parte frente, fosse construída a casa de alvenaria definitiva, seja através do trabalho comunitário da própria população, seja através do financiamento pelo BNH- Banco Nacional de Habitação. Essa estratégia possibilitaria que as famílias construíssem futuramente moradias de alvenaria na parte dianteira do lote obstruindo a visão “indesejada” dos barracos de madeira. A Comissão de Erradicação de Favelas- CEF leva nove anos para organizar um plano e um projeto, prevendo a remoção assim como toda estrutura e implantação dos 17 mil lotes previstos. A perspectiva para o assentamento estabelecido em Ceilândia levaria além da questão de distribuição dos lotes e casas, idéias de remoção, uma participação de todo núcleo familiar(...)num ambiente dotado de discurso de convencimento da população no que concerne a construção de uma cidade que se daria ao longo de um processo de “adesão de equipamentos comunitários básicos, que posteriormente, seriam ampliados” (VASCONCELOS1988:59). A Ceilândia nos anos 70 constituía uma materialização espacial injusta pois estava distante da oferta de trabalho que era basicamente na construção civil (aproximadamente 30 Km de Brasília) antes mais acessível a partir das vilas. Exceção constituíam as atividades construtivas de moradias, às vezes sob a forma de mutirão, um tipo de sobretrabalho, no próprio espaço de Ceilândia. Transferidos para Ceilândia, viram desestruturar-se o mercado de trabalho, que passou a demandar demorados percursos de mais de uma hora, além de gastos com o deslocamento que antes era feito a pé ou de bicicleta. Outra desestruturação foi a da vizinhança, a do lazer, das feiras e das escolas. Em razão do volume de habitantes com que conta a Ceilândia, hoje poder-se-ia afirmar que se trata da maior metrópole dormitório do Centro Sul. (Paviani:1991). Estudos como de Ammann (1978) relativizam o perfil social do ceilandense definindo-o como pluriclassista. Além de fatores de cunho econômico, há laços de identidade, de sentimento comuns contraídos no local de moradia nas relações de vizinhança que levam o morador a reivindicar o direito de participar da vida na cidade. A cidade adquiriu visibilidade nos idos de 1978 pelo movimento dos Incansáveis Moradores de Ceilândia, quando tomam corpo as mobilizações de cunho contestatório e reivindicativo, quando as associações de moradores de Brasília constituíram um fato, um contraponto à política habitacional que refletia a segregação espacial. Atualmente, como já se notava no período da construção de Brasília, seus habitantes como em Ceilândia são oriundos de diversas localidades do país com um predominância da região nordeste (42,6% CODEPLAN (1997). Ceilândia é resultante da desocupação de vilas de operários, próximas a Brasília. Hoje, aos 38 anos de existência, já possui aspectos de uma cidade densa e heterogênea (WIRTH, 1974), possui cerca de 332.445 mil habitantes (CENSO/IBGE-2000), concentrando a maior população do Distrito Federal, sendo que, desse total, 72.521 (21,8%) são jovens entre 15 e 24 anos. Essa cidade concentra, segundo a CODEPLAN, uma das menores rendas por chefes de domicílio do DF, 57% desses chefes de domicílio recebiam até dois salários mínimos, em 2004. Breitner Tavares 54 Em 1980, Ceilândia possuía 286.147 habitantes, dos quais 65,3% tinham até 29 anos, ou seja, 186.854 crianças e jovens aproximadamente (CODEPLAN). Nesse mesmo período, a renda per capita em termos de salário mínimo era de 0,51 salário para famílias com aproximadamente 5,27 pessoas. Portanto, é possível se considerar que Ceilândia, aos 10 anos de existência, era uma cidade com a maioria de sua população jovem, migrante e de classe econômica pobre, situada num espaço pauperizado. Essas diferenças sociais estabeleceram diferenciadas expectativas de vida, que por sua vez geraram um grande impacto na formação da juventude distante do poder aquisitivo da juventude branca de classe média do Plano Piloto. Outro detalhe a respeito da configuração urbana de Ceilândia está sob influência do sistema de nomenclatura das diferentes regiões da cidade, que são definidas por setores identificados por um sistema alfanumérico, à maneira de Brasília. Portanto, não há bairros em Ceilândia, há setores com nomenclaturas, como QNM, QNP, QNQ, QNR asociados a números que indicam as quadras dos setores como QNO 8 ou QNM 10, como indica o mapa a seguir. Esse fato não impediu que a cidade se tornasse estratificada e com um razoável nível de diferenciação social expresso por diversas relações de vizinhança, assimilação e competição social que imprimiram o sentido de pertencimento e exclusão interna de seus habitantes (PARK, 1980). Outro detalhe relevante é que, segundo o DIEESE (2000), o Distrito Federal concentra a terceira maior população negra do país em termos percentuais (63,7%), precedida por Salvador-BA (81%) e Recife-PE (64%). Essa caracterização racial de Brasília pode ser mais um indício para a compreensão de tais processos de segregação socioespacial. Ainda referente a esse aspecto da distribuição racial, em termos geográficos, na medida em que a população possui uma configuração racial mais concentradamente negra, outras variáveis como renda ou índices demarcadores da violência são maiores. Em relação ao processo de segregação socioespacial, movido pela especulação imobiliária do solo urbano em Brasília, observa-se a proporcionalidade entre variáveis como raça e violência. Como exemplo disso, observa-se que Brasília possui 25,2%13 de sua população autodeclarada negra (ou seja, pretos e pardos) e um índice de 12,9 mortes por homicídio por 100.000 habitantes14. Em contrapartida, Ceilândia, com 54,2% de sua população negra, acumula um índice de 43 mortes a cada 100.000 habitantes. Essa proporcionalidade entre concentração de população negra e pobre com a violência é observada em diversas cidades próximas a Brasília. Ainda em relação aos aspectos metodológicos da pesquisa, no caso dos setores de Ceilândia, onde foram realizadas os grupos de discussão bem como boa parte do trabalho etnográfico, foi utilizada uma nomenclatura diferente da original para se remeter aos espaços de circulação dos jovens, como indica o quadro “Ceilândia Imaginada” abaixo: 13 Fonte: Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílio – PDAD – em 2004. 14 Fonte: Ministério da Saúde, sistema de informações sobre mortalidade, Cd-Rom, 2002 e IBGE, Censo demográfico em 2000. Breitner Tavares 55 CAPÍTULO 5 HIP-HOP COMO PENSAMENTO DESCOLONIAL E PÓS COLONIAL As reflexões sobre os posicionamentos da juventude hip-hop desafiam certos reducionismos no que se refere à separação entre cultura e política. Em relação a isso, os estudos sobre subalternos são, em geral, mais proeminentes em relação àquelas abordagens a partir de suas próprias perspectivas e estratégias de enfrentamento de um sistema de diferentes hierarquias sociais. Esse enfrentamento, o qual será discutido a partir das narrativas dos próprios jovens, permite a reconstrução documentária de suas novas formas de saber e conhecimentos definidos por alguns autores contemporâneos com pensamento descolonial15. 15 Em relação à discussão sobre pensamento descolonial e colonialidade, bem como sua crítica a categorias como modernidade pós-colonial ver Walter Mignolo (2003) e, mais recentemente, a tese de doutorado de Joaze Costa-Bernardino (2007). Breitner Tavares 56 Isso implica, dentre outros aspectos, refletir sobre os fenômenos da cultura em uma perspectiva transdiciplinar, que permita observar que tipos de hierarquias sociais estão configuradas de modo heterodoxo num determinado sistema de poder (GROSFOGUEL, 2005), assim como refletir criticamente sobre a práxis social dos sujeitos submetidos à condição da colonialidade para além dos discursos de modernidade pós-colonial, que são impostos num sistema de dominação dos povos não ocidentais periféricos que estão dentro e fora do primeiro mundo (MIGNOLO, 2003). Historicamente, o hip-hop se refere ao movimento cultural, produzido por jovens negros e latinos, surgido em espaços segregados de grandes metrópoles nos Estados Unidos, Inglaterra, no final dos anos sessenta por intermédio da influência dub16 da cultura caribenha que chegava aos EUA trazida por imigrantes. Naquele período havia uma profusão de estilos subculturais que se estruturavam gradualmente sob a ótica de uma cultura transnacional, globalizada, como ocorria com o rock, o reggae, entre outros. Como uma dessas práticas culturais difundidas mundialmente, o hip-hop é um fenômeno cultural que engloba estéticas artísticas, como o break ou street17 dance (dança de rua), o grafite (pintura aerográfica), o DJ (como produção musical) e o rap18 (como a combinação de ritmo e poesia cantada). De fato, cabe ressaltar que essas diferentes manifestações estéticas foram difundidas de modo heterogêneo, nesse caso, o rap foi o que se tornou mais difundido como uma cultura popular de uma juventude 16 Música instrumental combinada com efeitos eletrônicos. 17 Street dance ou dança de rua é um termo amplo que inclui diversos ritmos e performances corporais, que se originaram em espaços informais, como as ruas, escolas ou boates das grandes cidades em franca metropolização, com fluxo de imigrantes de diversas localidades que trouxeram seus ritmos tradicionais e populares, os quais se recombinaram em novas modalidades. Em geral, street dance é associada ao hiphop criado nos Estados Unidos já nos anos 70, a partir do soul, funk, break e uma grande variedade de ritmos (TOOP, 1984). A permanente criação de novos passos em função da interação que ocorre entre os seus participantes promove encontros em que se formam “rodas” onde os participantes, organizados em grupos “crews”, realizam suas performances num clima de amizade e disputa chamado “batalhas”. Em Brasília, o grupo DF Zulu Breakers, formado em Ceilândia-DF, desde os anos 80, se destaca em competições nacionais e internacionais. De fato, o street dance associado ao break nos anos 80 representava enormemente o hip-hop antes do surgimento e da popularização do rap, que atualmente é predominante em relação a outras manifestações do hip-hop, como o grafite e o break, que eram enfatizados nos videoclipes e filmes a exemplo do clássico Wild Stile (1983), que retrata a juventude porto-riquenha e negra em bairros pobres de Nova Iorque, a qual se envolve com a pintura do grafite, retratado como o grande referencial do hip-hop. 18 Estilo musical integrante do hip-hop que implica cantar uma letra de maneira rítmica. Rap é um termo originário do inglês que significa rhythm and poetry. O cantor de rap é chamado rapper ou MC (master of cerimony). O rap é normalmente acompanhado de bases rítmicas eletrônicas chamadas bases coordenadas pelo DJ. Breitner Tavares 57 globalizada. O hip-hop, desde sua origem, tem sido associado a uma arte voltada para segmentos excluídos no espaço urbano, como jovens, imigrantes, negros, mulheres, entre outros. Paul Gilroy (2001), intelectual negro e britânico, se remete à categoria diáspora como uma proposta para os estudos culturais, com o objetivo de explicar a formação de uma cultura vernacular do Atlântico Negro. Em sua obra, o autor analisa o estabelecimento de mecanismos de distinção cultural adaptado às novas circunstâncias do Reino Unido, manifestações que atuam em separado e, ao mesmo tempo, em convergência. Gilroy (2001) atesta que o povo negro se recria enquanto grupo conglomerado, ao reinventar sua própria etnia. A retórica do poder negro foi desvinculada de seus marcadores étnicos e diante de sua condição de explorado, passa a redifinição de seus projetos sociais frente a suas necessidades locais e políticas, a suas histórias de lutas. O povo negro estabeleceu novas linguagens políticas de cidadania voltadas para a justiça racial e a igualdade. Essas linguagens ultrapassaram a esfera da tradicional luta pelo trabalho e passaram também a se articular através do lazer. A diáspora permitiu a “transferência” de formas culturais e estruturas de sentimentos, o que Gilroy (2001) chamou de “historicismo popular”. O autor recorre à contribuição histórica da música negra para reconstruir essa trajetória estética e política da modernidade. Dessa mesma história se originará o hip-hop e suas respectivas manifestações. De certa forma, essa manifestação cultural corresponde a esse processo diaspórico de ressignificação, de agenciamento da luta, da inserção social do negro por meio da ludicidade e da estética. Contudo, segundo a discussão que associa a diáspora do Atlântico negro de Gilroy com a formação do hip-hop, praticamente não se consideraram aspectos espaço-temporais presentes numa configuração geracional (WELLER, 2009, p. 20). Além disso, o Atlântico negro do autor se refere basicamente a experiências do Atlântico do hemisfério norte, algo que desconsidera outras especificidades do processo diaspórico da colonialidade sul-americana, na formação de uma população afrolatina. Em outros termos, isso significa que jovens negros afrolatinos, como no Brasil, em função de outros movimentos migratórios e acesso a bens culturais simbólicos, como o hip-hop e o rap norteamericano, estabelecerão outros elementos constituidores de uma identidade geracional em torno do hiphop nas grandes metrópoles brasileiras. Portanto, a formação de geração jovem em torno do hip-hop não ocorre simplesmente num processo de assimilação de novos valores numa perspectiva de centro e periferia. O hip-hop produzido de modo diverso sofrerá influência em sua composição, inclusive pela combinação de elementos musicais advindos de outros estilos musicais já existentes e consumidos pelos jovens (SANSONE, 2004, p. 169). O sentido atribuído à modernidade, enquanto apreciação da racionalidade técnica de valores universais eurocêntricos, influenciou através de um sistema mundial toda cultura existente através da colonialidade (QUIJANO, 2000). Dito de outra forma, esse projeto monolítico de modernidade ocidental imprimiu valores que se relacionam às outras culturas e povos a partir de uma posição de superioridade e incapaz de perceber através de cosmologias e epistemologias de um mundo não ocidental Breitner Tavares 58 (GROSFOGUEL, 2007). Diante disso, o hip-hop produzido por uma juventude negra da diáspora em grandes centros urbanos, em regiões com na América Latina, apresenta respostas a partir da subalternidade imposta pela colonialidade de um sistema mundial de valores e produtos simbólicos centrado numa modernidade ocidental. Essa resposta se materializa através da recriação de estilos e novas formas de pensamentos e estratégias de ação nas esferas simbólicas, políticas e econômicas de um sistema em escala mundial. Portanto, esse conjunto de práticas constituídas pela juventude contemporânea remete a uma forma de pensamento fronteiriço, que é em parte influenciado pelas condições de opressão estruturadas historicamente. Contudo, essa mesma situação permite uma reflexão e criação de novas estratégias e lutas pela liberação (DUSSEL, 2008) e redefinição do próprio sentido de humanidade, estruturado hierarquicamente a partir de categorias, como gênero, raça, classe, entre outras. Mecanismos simbólicos de inserção: luta por reconhecimento Como observa Amorim (1997), o hip hop tradicionalmente se restringia a idéia de movimento político à esfera de grupos e instituições ligados às classes trabalhadoras, à ação social de adultos. Movimentos étnicos e de minorias seriam considerados “pré-políticos” ou “pseudopolíticos”. O hip-hop também acaba sendo marginalizado sob essa perspectiva da racionalidade ocidental ou da política estratégica de cunho universalista e eurocêntrica. Contudo, nova forma de agenciamento promovida no campo simbólico pela juventude tem um potencial de mobilização da sociedade civil, na luta pelo reconhecimento no espaço público. A população negra aglomerada nas periferias urbanas tem apresentado novas possibilidades de reagir a essas dificuldades, uma vez que está em contato com as transformações acarretadas pelo desenvolvimento da indústria cultural e do capitalismo ocidental. Enfrentar a discussão relativa às origens do hip-hop significa ir além da “realidade mítica” de uma música que nasceu nos guetos negros dos territórios dos Estados Unidos, pois esse estilo musical já se encontra difundido tanto no Brasil, como em outras localidades, na forma de um produto da indústria cultural globalizada. O hip-hop, expresso pelos jovens rappers costuma veicular através da música a construção de uma consciência política. Eles falam em nome de uma geração sem voz, periférica, estigmatizada. Nesse caso, a prática cultural do rap propicia a emergência de uma consciência social dos indivíduos em termos de diversas perspectivas, relacionadas a gênero, raça/etnia. Essa postura combativa definine um sentimento de pertencimento coletivo em termos de uma espacialidade injusta materializada na periferia urbana. Isso significa que, mesmo estando em diferentes países ou cidades, a juventude hip-hop poderá redefinir suas questões geracionais estabelecendo semelhanças e contrastes em relação ao seu envolvimento com os grupos de rap, bem como ao enfrentamento de situações discriminatórias, como observado entre jovens rappers de São Paulo e Berlim (WELLER, 2009). Breitner Tavares 59 O rap é um estilo musical que é relativamente acessível aos jovens que não dispõem de muitos recursos para investir numa produção musical. Isso ocorre em função dos artifícios tecnológicos que simplificam sua elaboração e difusão. Esse conjunto de possibilidades expressos pelo rap enquanto um estilo proveniente da música eletrônica o torna mais popular à juventude . Isso é menos frequente em outros estilos, que demandam maior conhecimento técnico ou a aquisição de equipamentos, como instrumentos musicais, estúdio, entre outros. No caso brasileiro, em relação a outros gêneros de música popular de identidade negra, como o samba, o pagode, o axé, entre outros, o rap assume um discurso ao mesmo tempo de orgulho do povo negro e de crítica ao racismo, denunciando, num tom autobiográfico, sua revolta contra a ordem estabelecida e contra um “destino” de contínua exclusão (CARVALHO, 1994, p. 32). Esses grupos, portanto, aparecem como uma alternativa aos grupos juvenis; constituem uma nova forma de rebelião, na qual se reúnem em “galeras” que não possuem a organização própria das gangues. Ao contrário, podem servir como uma opção efetiva para o jovem situar-se no espaço público no debate sobre a sociedade e conferem um caráter de visibilidade às aspirações dos diferentes grupos que englobam. Esses movimentos geralmente são conhecidos por movimentos alternativos, contraculturais, subculturais ou marginais, ou ainda movimentos underground. São caracterizados por uma luta travada no campo da representação simbólica, da significação e da estética. Grupos sociais que não detêm o poder, nem cultural nem econômico, desafiam a ordem hegemônica, expressando-se, geralmente, por meio da música, da dança, das vestimentas, das artes visuais e da linguagem escrita. O “movimento” hiphop seria um movimento dessa natureza, com a característica de assumir também uma atitude de repúdio à discriminação e à exclusão social na qual se encontram os jovens negros e imigrantes que vivem nas periferias urbanas. O hip-hop, de fato, reúne em suas manifestações alguns aspectos que o aproximam daquilo que passou a se definir como “novos movimentos sociais”. Esses movimentos “mais soltos”, a que se refere Gohn (2004), são flexíveis, abertos em termos de valores e ideologias. Gohn (2004) observa que os movimentos sociais na atualidade se articulam mediante redes estabelecidas por pequenos grupos, que numa relação de compreensão mútua constroem suas demandas na vida cotidiana, em que a afetividade e a identificação pessoal passam a ser a base para práticas inovadoras da cultura. Contudo, o hip-hop não pode ser definido enquanto um movimento social unívoco, pois na medida em que ele se organiza no sentido de suas demandas de reivindicações, para ações específicas, seus membros passam a articular e veicular suas falas a partir de redes externas, como instituições vinculadas ao local geográfico: os “movimentos da periferia”, ONGs (CUFA –Central Única das Favelas, MH2O – Movimento Hip-hop Organizado, Grupo Atitude, entre outras), pequenas e médias empresas, como gravadoras de vários segmentos da indústria fonográfica, Igreja, escola, entre outros setores. Os interesses são diversos dependendo do grupo social, da mesma forma, as estratégias de agenciamento dos atores sociais são diversas. Aparentemente, esses jovens ligados ao hip-hop reagem à marginalidade estabelecendo meios de integração de modo específico, convertendo a falta de perspectiva, Breitner Tavares 60 a falta de utopia em elemento de identidade e a utilização ostensiva e violenta desta como forma de conquistar respeito no espaço de discussão política propiciado pela indústria cultural e pelos veículos da mídia. O hip-hop revela um tipo de alternativa de inserção pelo viés simbólico, em que uma estetização da política abre um novo campo de possibilidades para a materialização da cidadania. O jovem pode apontar para novos caminhos além do tradicional mandonismo do mundo adulto. Gênero e Raça e hip-hop O hip-hop representa, a partir de sua estética, propostas políticas, um tipo de arte social, com apelos frente à questão da exclusão social (classes), da marginalização no espaço urbano expressa através da construção de um imaginário da periferia (FORMAN, 2002), frente à questão da segregação racial e, mais recentemente, à questão de gênero (POUGH, 2004). No hip-hop, e em especial no rap, há um discurso voltado ao jovem das classes sociais populares e, em especial ao negro, configurando um meio de expressão afirmativa. Contudo, mesmo os estudos pós-coloniais, como os enunciados por Gilroy (2001), atestam a conotação misógina e masculinista que expressa uma relação de conflito entre homens e mulheres (negros e negras) no contexto norte-americano, como discutidos por Ferguson (2007) e Rosa (2006). O discurso originário da emancipação racial negra tem entrado em certas ocasiões em dissonância devido à construção conflitante da sexualidade. Parece cada vez mais inviável uma separação destas questões raciais e de gênero, presentes nas articulações estratégicas advindas do repertório de procedimentos enunciativos do rap. Os estudos multiculturais historicamente lidaram com a desconstrução da categoria “classe” de aspecto generalizante, ao afirmar que essa só poderia ser vivenciada por indivíduos dotados de “raça”. A questão do conflito instaurado por um masculinismo no hip-hop chama atenção para outro aspecto a ser problematizado: “o gênero é a modalidade na qual a raça é vivida” (GILROY, 2001, p. 180), em outros termos, o corpo é fator significante que dá lugar a conteúdos variados, portanto ao considerar questões de gênero desvinculadas dos aspectos de racialidade corre-se o risco de outro tipo de universalismo. A diferença estabelecida pela raça constrói novas variantes simbólicas nas relações masculino e feminino, as quais são naturalizadas no interior da vida familiar patriarcal e da mesma forma reproduzem referências de identidades raciais, consideradas estáveis. Essas identidades de gênero passam a exemplificar diferenças culturais que aparentemente brotam da diferença étnica absoluta. Questioná-las e questionar sua constituição da subjetividade racial é imediatamente ficar sem Breitner Tavares 61 gênero e colocar-se fora do grupo de parentesco racial (GILROY, 2001, p.180) . O hip-hop permite a circulação em termos planetários do discurso de uma identidade racial como manifestação proveniente da diáspora africana, que é agora reinterpretada sob configurações de gênero e sexualidade. O hip-hop, enquanto um bem simbólico produzido no contexto da produção estética da juventude negra na modernidade, trouxe aspectos de reconstrução e positivação dos negros e excluídos. A questão de gênero e especificamente da misoginia presente em relações desiguais da juventude, estabelece novas frentes por uma mobilização que contemple respectivamente as demandas de atores sociais contrários ao racismo e ao sexismo. CAPíTULO 6 ETNOGRAFIA URBANA: JUVENTUDE HIP-HOP NO DISTRITO FEDERAL O hip-hop como um fenômeno global está associado historicamente a um imaginário social de grupos subalternizados, como negros e latinos de grandes metrópoles americanas, como Nova Iorque ou Los Angeles (FORMAN, 2002). A segregação racial e espacial teria criado condições para uma nova conformação cultural desses sujeitos sociais submetidos à diáspora africana que cruza o Atlântico em diversos níveis, inclusive no musical (GILROY, 2001). Breitner Tavares 62 O hip-hop se posiciona de modo divergente à perspectiva dos estudos culturais que enfatizaram os estudos de subculturas nas gerações jovens com posicionamento de vanguarda frente ao mercado de consumo da indústria cultural. Em relação a isso, o hip-hop no Brasil , especificamente em Brasília, sempre esteve inserido num mercado de bens simbólicos e materiais, como discos, roupas e acessórios veiculados pelos meios de comunicação de massa. A exemplo disso, observou-se toda uma série de programações em rádios especializadas em Brasília ou programas de entretenimento na TV com videoclipes em cadeia nacional. Em geral eram musicas e vídeos de grupos norteamericaneos que que delinearam toda a construção de um gosto pelo consumo de bens culturais da juventude que passa a se identificar o hip-hop em grandes metrópoles brasileiras. DJ Antigas [:normalmente, os lançamentos do Michael Jackson paravam tudo, o clipe do Michel Jackson, naquele tempo até que com o tempo começou a passar o Break na TV mesmo existia um Programa, era de um camarada chamado Jota Silvestre lá de São Paulo, aí tinha um concurso de break em 1982, a gente ficava louco assistindo aquilo ali, e as paradas e os caras fazendo as ondas assim, e as músicas, e a gente enlouquecia porque não tinha acesso, a gente assistia direto19. O hip-hop surge em Brasília concomitantemente a outras metrópoles brasileiras, como Rio de Janeiro e São Paulo. Contudo, Brasília devido às suas especificidades de capital federal, bem como pela presença massiva das embaixadas, propiciou um intercâmbio entre jovens de uma classe média alta com acesso a viagens internacionais, ao consumo de discos, videoclipes, bem como ao acesso a tecnologias de produção musical que inexistiam no país até aquele momento. O consumo de discos de funk e rap por jovens da classe média brasiliense trouxe os primeiros materiais para suprir as rádios. Filhos de artistas ou servidores públicos, esses jovens estavam mais próximos das inovações tecnológicas e estéticas já no início dos anos oitenta. Pode-se afirmar que Brasília, devido ao seu projeto de abrigar uma classe burocrática dirigente, estava mais voltada paras as questões nacionais (NUNES, 2004). Sua dinâmica urbana era restrita ao Plano Piloto. A sociabilidade urbana com as demais cidades do Distrito federal se dava mais em função da oferta de mão-de-obra para prestação de serviços domésticos e para a construção civil. As cidades do Distrito Federal eram invisibilizadas no que se refere a sua produção local de cultura e outros bens simbólicos. 19 Nesta seção, parte da visão de mundo da juventude hip-hop será recuperada a partir de fragmentos retirados de duas entrevistas com dois DJs dos anos oitenta, apresentados com nomes fictícios. DJ Antigas tem 40 anos e é morador de Ceilândia, atuou em diversos grupos de rap nos anos noventa, é casado e vive do seu trabalho como DJ. O DJ Virada tem 39 anos, é morador do Plano Piloto de Brasília e pertence à classe média que introduziu o hip-hop como bem de consumo na cidade, na forma de discos e gravações. Ele é casado e trabalha como produtor musical. Breitner Tavares 63 Pensar o surgimento do hip-hop no Distrito Federal significa, dentre outras coisas, se lançar no movimento pendular das migrações diárias que inscrevem, física e metaforicamente, o sentido de centro e periferia do espaço urbano. Contudo, o caminho de desenvolvimento seguido pelas cidades cria espaços cada vez mais heterogêneos e, portanto, complexos. Aquivos jornalísticos e a imagem da juventude no Distrito federal Durante a realização da pesquisa, foi feito um levantamento junto a arquivos jornalísticos em Brasília, especificamente do jornal Correio Braziliense. Foram pesquisados arquivos das edições diárias de 1985 a 1994. A seleção esteve voltada para artigos que tratassem de temas relacionados à juventude, lazer nas cidades-satélites, em especial, em Ceilândia-DF. De fato, as dezenas de horas de trabalho permitiram a constatação de que, até os anos oitenta, as atividades de lazer, bem como a produção cultural do Distrito Federal se restringiam ao Plano Piloto de Brasília. O jornal possuía um caderno chamado “Brasília”, no qual eram reportados fatos da cidade, incluindo-se as atividades de lazer. Havia também o caderno “Dois”, relacionado a uma escassa programação cultural também concentrada em Brasília, o caderno “Cidades” só seria criado no início dos anos noventa. Nesse período, os acontecimentos relacionados às demais cidades-satélites e à sua juventude se restringiam aos cadernos policiais e esportivos. Os artigos tratavam basicamente de fatos envolvendo tráfico de drogas, acertos de contas, homicídios, dentre outros crimes, que, em sua maioria eram cometidos ou sofridos por jovens. Além disso, havia a associação de diversos grupos de jovens ligados a manifestações culturais nas cidadessatélites com a violência e a formação de gangues. A juventude envolvida no hip-hop, especialmente em grupos de break, era criminalizada a partir da perspectiva das gangues e tribos urbanas. As matérias utilizavam-se de um jargão técnico para descrever as terminologias dos grupos, bem como aspectos relacionados aos estereótipos da indumentária, como cabelos e/ou roupas. Contudo, as trajetórias sociais e orientações coletivas dos jovens eram suprimidas, em seu lugar generalizações de cunho policialesco associavam todos os jovens à delinquência e referenciais de um imaginário de “gangues nova-iorquinas”. A própria constituição das imagens das matérias referentes as figuras 2 e 3 já induzem a uma visão criminosa dos jovens, que são apresentados com uma tarja preta sobre seus rostos. Algo bastante utilizado para se referir aos menores infratores. Além disso, ao lado da matéria há um ícone de um personagem com uma tarja preta e um revólver. Paralelamente à invisibilidade e criminalização da juventude negra das periferias de Brasília pela mídia jornalística, surgiram, nos anos oitenta, alguns programas de rádio que se tornaram um veículo representativo das atividades relacionadas ao lazer da juventude das cidades-satélites. Essas rádios Breitner Tavares 64 promoviam programas especializados em ritmos como o funk e rap, relacionados ao estilo hip-hop, e eventos como festas, “sons”20, em diversas localidades. Além disso, essas rádios promoviam concursos de gravações de mixagens que eram produzidas por pequenas equipes de sonorização espalhadas pelas cidades e responsáveis por pequenas festas locais. DJ Antigas: Mais do início do esquema aqui em Brasília era as rádios FM que é a Antena 01 hoje da 93.7, Atlântida FM tinha um programa que chamava dance night. Ele era sexta-feira de 23h A 00h e dia de sábado de 00h a 1h da manhã.(...) Então o que chegavam pra gente era o que os caras falavam era o que a gente entendia. Dentre esses vários programas, o “Mix Mania”, do DJ locutor Celsão, era um dos mais ouvidos. Celsão, além de locutor de rádio, era DJ de várias festas que aconteciam à noite, nas boates, ou durante o dia, conhecidas como “ruas de lazer” ou simplesmente “lazer”. Nestas festas, diversos grupos organizados apresentavam performance de break em concursos que ofereciam premiações. A organização dos jovens em grupos que disputavam através da dança o reconhecimento dos seus interlocutores era associada genericamente a gangues. Os primeiros espaços representativos para as festas com música funk e rap ocorriam em Brasília, em bairros nobres como o Lago Sul, num espaço conhecido como “Gilbertinho” e na “Fonte do Bom Paladar”, onde ocorreram os primeiros encontros em torno do break e rap, que eram reproduzidos nas rádios. Jovens de diversas cidades como Ceilândia, Gama, Guará, entre outras, se encontravam e estabeleciam contatos e criavam grupos por afinidade em relação ao estilo hip-hop. Até o final dos anos oitenta, o rap enquanto gênero musical internacional não tinha a carga crítica que iria adquirir a partir dos anos noventa, como visto em grupos americanos, como o Fat Boys. As letras em geral tratavam de temas lúdicos, desprovidos de carga crítica, conhecidas no Brasil como “melô”21. Essa perspectiva mais lúdica sem um discurso politizado influenciava o Brasil, que chegava a se utilizar do gênero como recurso publicitário ou humorístico. Já havia algumas propagandas que se utilizavam do rap como meio comercial em São Paulo e no Rio de Janeiro, mas o primeiro grupo de rap a produzir um disco no Brasil foi o grupo DJ Raffa e os Magrelos, formado por jovens do Plano Piloto e Guará. Em 20 Sons era o termo atribuído a festas informais, familiares, que ocorriam em casa de particulares nas cidades-satélites nos anos 80. Em geral, eram festas locais em que tocavam ritmos como funk, rap ou outros gêneros musicais. Os sons devido ao seu caráter local eram ferquentados pela vizinhança e normalmente não havia a necessidade de um convite formal para participar. 21 Os melôs eram músicas que tomavam uma base de um ritmo funk norte-americano e sobrepunham sobre a melodia e ritmo uma letra em português que tratava de temas simples do cotidiano e, em geral, remetiam ao sentido cômico. Um dos pioneiros desse gênero foi o “melô do tagarela”, de Miéle. Os melôs também são associados a um hip-hop acrítico, que será posto em cheque pelo “rap consciência” (CARVALHO, 1994), mais conhecido posteriormente como “rap nacional”. Breitner Tavares 65 seguida, surgiram outros grupos em São Paulo, como o do Thaide e DJ Hum e Pepeu, dentre outros. DJ Antigas: Foi daí que começou o esquema e a galera ficou conhecendo o primeiro movimento forte, forte assim onde todo mundo de Brasília se encontrou. Foi ali que todo mundo começou ver a cara um do outro, uma foi no Gilbertinho numa boate que chama Legróbio lá, o primeiro encontro Hip-hop passou até na rádio! “Caraca véio” tenho que ir lá, lá era uma boatezinha pequeninha estava Rap, estava Wave, estava galera que antigamente era da banda do ( ) que era ( ) o Kid, os Ventanias, a galera toda, o Jony que... eu nunca tinha visto alguém fazer scratch, estava lá o Leandro arranhando o aparelho de scratch, tá ligado, foi o primeiro cara que eu vi fazendo scratch. Nesse contexto, a criação dos primeiros espaços para encontro de jovens envolvidos no hip-hop através do break e do rap ocorreu no Plano Piloto de Brasília, bem como o pioneirismo dos grupos do DJ Raffa e os Magrelos demarcam um momento relevante para pensar o hip-hop brasiliense como um fenômeno de classe média. Por outro lado, seu público era majoritariamente da periferia das cidadessatélites que iam em busca de entretenimento e das inovações musicais que a cidade passa a ofertar. Nesse período muitos jovens formaram grupos de break e rap e muitos jovens das cidadessatélites passaram a interagir com os jovens de Brasília interessados em break e rap. Em meio à “capital do rock”, como Brasília era conhecida, por seu grande número de bandas, os poucos jovens do Plano Piloto que se interessavam por hip-hop decidiram frequentar festas, “sons” nas cidades-satélites. Em geral, esses jovens se identificavam mais com os jovens das periferias. Portanto, isso interferiria em sua sociabilidade local no conjunto das Superquadras de Brasília, onde seus melhores amigos passaram a ser os “filhos dos porteiros”, que também tinham o mesmo tipo de afinidade musical. DJ Virado: De repente eu comecei a me sentir muito mais em casa nesses lugares, era muito mais bem recebido, não tinha frescura, eu me identificava com as pessoas. Estranhamente a minha vida toda começou ir pra lá, praticamente eu só morava aqui, mas eu não tinha praticamente amigos. Pra você ter uma idéia, você pode até achar engraçado, mas os meus melhores amigos aqui na quadra eram filhos de porteiro e a minha mãe confirma isso. Então, não sei o que que acontecia, a minha afinidade social era diferente. A interação entre os jovens de famílias mais abastadas do Plano Piloto e dos jovens pobres de periferia das cidades-satélites gerou uma polarização de um campo de produção do hip-hop que uniu DJ, b-boys, rappers e grafiteiros no sentido de estabelescer contatos com um circuito mais estruturado. Isso ocorreu primeiramente nas boates em Brasília, como a Kremelin (Cruzeiro), o Galpão Dezessete (Sobradinho), Paradão e City (Taguatinga), o Primão e o Quarentão (Ceilândia). Posteriormente, após um Breitner Tavares 66 circuito estruturado de boates e meios de divulgação, como as rádios, as produções do rap brasiliense passam a polarizar, em nível nacional, a partir de grupos como gravadoras fonográficas, nesse caso, localizadas em São Paulo, através da Equipe Cascatas. Essa associação entre diversos jovens permitiu a inserção de alguns grupos que irão posteriormente estabelecer outro centro geográfico da produção de música popular como o rap para além do Plano Piloto. Portanto, gradualmente, os espaços representativos do hip-hop no Distrito Federal irão se voltar mais para as cidades-satélites, como foi o caso de Ceilândia, representada pelos grupos de break como Reforços, DF Zulu Breakers, grafiteiros e rappers, como os do grupo Câmbio Negro. Essa nova dimensão do movimento hip-hop no Distrito Federal, agora articulada nas cidadessatélites, em especial em Ceilândia, cria uma situação inusitada no campo da produção cultural do Distrito Federal, já no final dos anos oitenta e no início da década de noventa. Ceilândia se torna uma cidade representativa em termos de um circuito de produção do rap nacional que lançará diversos grupos como GOG, Câmbio Negro, Álibi, Cirurgia Moral, Viela 17, Tropa de Elite, entre outros. Diversos grupos que iriam definir um campo de produção do rap nacional, como os Racionais MC ou Thaide passaram por Ceilândia. Essa diversidade de grupos desenvolveu uma cadeia de produção realizada por jovens da própria cidade que contatavam os grupos de outros estados que vinham se apresentar no Distrito Federal, às vezes, sem passar pelos espaços da cultura oficial de Brasília. Essa relativa autonomia de Ceilândia, constituída no campo da produção do rap, representa um esforço coletivo de diversos grupos do Distrito Federal no sentido de mobilização de jovens da periferia que se identificavam com o estilo hip-hop. Inicialmente, o Distrito Federal não contava com gravadoras e produtores profissionais, o que levava os grupos inicialmente a se dirigir a São Paulo para uma carreira profissional. Posteriormente, surgem algumas gravadoras em Brasília, como a Discovery. Contudo, em geral os jovens envolvidos no rap tinham a criatividade, mas pouca experiência como empreendedores, de fato não há dados precisos disponíveis sobre tiragem de discos, apesar de mais de vinte grupos que gravaram nos anos noventa. Entretanto, poucos realmente lograram o sucesso financeiro correspondente. DJ Antigas: Ele (o proprietário) vendeu a gravadora para um cara, ele abriu mão de tudo em vez de dispensar os artistas, não, ele deixou tudo na mão do cara e está na mão do cara até hoje os direitos, está tudo lá na mão do bicho. Aí o cara continua fazendo e ganhando, a gente não tem direito a nada, ele fez a gente assinar documento pra sair da gravadora, a gente tinha que assinar documento, a gente assinou, veio, aí estava lá constando que a gente não recebia nada, que a gente não recebe mais dele. Trajetórias Juvenis/Marcos Geracionais: Fúria Funk na Periferia de Ceilândia -DF Breitner Tavares 67 Nos anos 80, as cidades do Distrito Federal possuíam poucos recursos destinados às atividades de lazer para a juventude, dessa forma a cidade de Ceilândia se destacava como um referencial para a compreensão da juventude que frequentava os chamados “sons”, que ocorriam normalmente em casas de particulares aos sábados. Estas festas familiares reuniam a vizinhança. Dificilmente alguém buscava diversão fora da cidade22. Nas tardes de domingo, ocorria sempre o que se chamava rua de lazer ou simplesmente lazer, como preferiam os mais assíduos. Esse tipo de festa pode ser considerado como prática estética organizadora de formas de sociabilidade e experiência constitutiva de uma base subjetiva nas sociedades urbanas contemporâneas. De fato, esses encontros ocorriam em diversos espaços urbanos, Em cidades como Nova Iorque ou São Paulo, jovens de diversos bairros se encontravam para dançar break e funk23. Nessas cidades, os encontros normalmente ocorriam no centro metropolitano, próximo a estações rodoviárias ou de metrô (FERGUSON, 2007; VIANNA, 1988). No Distrito Federal, os jovens se encontravam em boates ou próximos a espaços comerciais, como o Conic e o Conjunto Nacional (AMORIM, 1997). Em cidades como Ceilândia ocorriam festas, normalmente, em áreas, às vezes sem qualquer pavimentação, próximas ao comércio local, onde se reuniam muitas galeras (grupos de jovens) de várias localidades. Os mais virtuosos se revezavam dançando o break e o funk. Havia as chamadas ‘equipes de som’; compostas por DJs e alguns auxiliares, que eram verdadeiros técnicos em sonorização. Havia desde a pequena “Vôo Livre” até a famosa “Smurfs Disco Dance”, considerada a maior equipe de som de Brasília, desde os anos 80, cuja administração é realizada por ‘Marquinhos’. Era comum uma disputa entre as equipes, o reconhecimento da melhor equipe era mediado pelo critério do tamanho e qualidade do equipamento, em termos de equalização, volume, bem como a seleção das faixas pelos DJs. No cenário funk, existiam regras que definiam o lugar de cada um no contexto da festa. Os funkeiros, como eram denominados genericamente, buscavam elaborar uma resposta diferenciada daquelas disponíveis no mercado. Esses jovens se apropriaram de forma peculiar dos objetivos providos pelo mercado, pela indústria cultural, imprimindo neles novos significados, pela inversão de uso ou pela reunião de diferentes objetos num conjunto inusitado, criando assim um estilo subcultural peculiar. O lazer pode ser considerado como um tipo de festividade carnavalesca: “forma primeira, marcante, de civilização humana [...] onde há uma abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras ou tabus” (BAKHTIN, 1999, p. 17). A categoria hibridismo tem sido utilizada para definir as culturas diaspóricas dentro da lógica da tradução com considera Bhabha (2003). 22 Ceilândia contava com poucas opções de lazer, contando com apenas dois cinemas. As escolas dispunham de livros em suas bibliotecas e eventualmente ocorria o Projeto Platéia, destinado à população estudantil das cidades-satélites, envolvendo música, teatro, dança, folclore e literatura. O que, guardadas as devidas proporções, continua sendo regra até os tempos atuais. 23 Estilo musical definido pela combinação de vários elementos rítmicos e melódicos, a partir de um instrumental tecnológico que passou a ser disponibilizado a partir dos anos 70, principalmente pela juventude negra norte-americana. Breitner Tavares 68 Não é simplesmente apropriação ou adaptação; é um processo através do qual se demanda das culturas uma revisão dos seus próprios sistemas de referência, normas e valores, pelo distanciamento de suas regras habituais ou “inerentes” de transformação (BHABHA apud HALL, 2003, p. 74-75). O Quarentão foi um dos espaços mais representativos da cultura hip-hop existente nos anos 80 em Ceilândia. Tratava-se de um prédio que pertence à Administração Regional. Localizado na parte central da cidade, ao lado do comércio regular e cercado pelo comércio informal dos camelôs nos anos 80, era uma espécie de salão de múltiplas funções, utilizado para vários fins sociais. Aos domingos, à noite, aconteciam os “sons” animados pelo DJ Gersom. Por sua posição central, tornou-se um pólo irradiador dos funkeiros de todos os bairros de Ceilândia, bem como de outras localidades fora da cidade. Só era permitida a entrada de jovens acima de 18 anos. O local era famoso por ser uma das únicas opções da juventude, geralmente oriunda de classes sociais populares, e por ser espaço de confronto entre jovens de diferentes localidades. DJ Antigas: Quarentão era um esquema, é lógico que rolava o rap, mas o esquema do Quarentão era da galera, dos bandidão velho24, o quarentão era dos bandidão doido, era por isso que o Quarentão era muito louco, era por isso que os bandidos tudinho iam, curtiam no Quarentão velho, lá dentro quase não tinham desavenças, as paradas eram lá fora mesmo, muita gente que morreu e tal, mas lá dentro era tenso, mas era prazeroso estar ali no meio. O Quarentão foi um dos responsáveis pelo surgimento de um cenário artístico hip-hop em Ceilândia. Logo à frente do local onde se localizava o Quarentão, existia uma espécie de anfiteatro onde jovens se reuniam para treinar coreografias de break, o que era promovido pela entidade social DF Zulu Breakers. Havia o desenvolvimento de projetos relacionados ao grafite, como realizados por artistas como o Satão e o Supla e “S”; também compareciam alguns músicos como DJ Jamaica, ‘X’, Japão, Gog, entre outros que, nos anos 90, foram referências do rap dentro e fora do Distrito Federal. DJ Antigas: Tipo assim velho, o Quarentão, os grandes nomes do rap já passaram por lá, já passou o Racionais, o Câmbio Negro já tocou lá, Thaide (( 24 )). Jackson na época era rap e a “Velho” é um termo utilizado para se referir a uma pessoa qualquer, algo como “cara”, “sujeito” ou “meu caro”. Breitner Tavares 69 gente estava a fim de curtir os metralhas e assim uma galera mesmo.(( )) Os caras tudinho, era massa velho, mas todo mundo conhecia todo mundo, então era só os caras de novo, a galera não queria ver não, a galera queria ver era bagaceira, o som velho era as rodas de show, isso é que era onda de doida, não era nem roda de (( )) era roda de soul. Atualmente o Quarentão, então convertido em uma das unidades dos Restaurantes Comunitários do Governo, não representa mais esse espaço para a juventude; existe apenas como um fragmento na memória de uma geração que vivenciou a experiência de ser jovem nos anos oitenta em Ceilândia. Nos anos noventa, inicia-se uma estruturação de vários grupos de rap que deixaram de lado as letras cômicas, como as presentes no melôs, e passaram a aderir a narrativas que abordavam problemas sociais, usando um tom ao mesmo tempo de denúncia e de reivindicação de mudanças sociais. No Distrito Federal, surgem vários grupos de rap com letras que abordam questões como o racismo e o problema da violência nas periferias urbanas entre os jovens. Apesar de não haver uma vinculação direta de um movimento hip-hop envolvido diretamente com os movimentos sociais, há alguns grupos e/ou indivíduos envolvidos em participações com ONGs, como MH2O (Movimento Hip-hop Organizado), Grupo Azulin, CUFA (Central Única das Favelas). Portanto, a música nesse contexto possui uma conotação de discurso conscientizador. Nesse período, o Câmbio Negro liderado por jovens de Ceilândia foi um dos grupos a alcançar maior repercussão frente à juventude. Contudo, antes do sucesso comercial do grupo, bem como do seu reconhecimento pela juventude do Distrito Federal, o Câmbio Negro, assim como alguns grupos de break, como o DF Zulu Breakers e Reforços, é citado na mídia como uma dentre várias gangues de delinquentes, que estariam “espalhando o terror” no Distrito Federal25 (FERREIRA, 2002, p. 24). Na matéria, há um mapa em que grupos de rap e break aparecem ao lado de outros grupos de jovens acusados de prática de crimes no Distrito Federal. 25 No ano de 1993, ocorre em Brasília a morte do jovem Marco Antonio Velasco por uma gangue de lutadores de artes marciais do Plano Piloto, chamada Falange Satânica. O caso revela a existência de gangues de jovens de classe média envolvidos em atos de violência e crimes. Diante disso, a impressa local cria um estereótipo em que todos os grupos de jovens existentes no Distrito Federal passam a ser tratados como disseminadores de violência. Breitner Tavares 70 O grupo Câmbio Negro marca o período de estruturação do rap produzido no Distrito Federal e no país, junto com outros grupos, como Racionais Mc, de São Paulo, e MV Bill, do Rio de Janeiro. Tal grupo, criado por jovens negros de Ceilândia, produziu um rap que atingiu diversas camadas sociais, inclusive as classes médias, especialmente a partir da música Sub-Raça, 8a faixa do 1º álbum, relevante para definir a entrada de uma linha discursiva sobre a exclusão racial em Brasília. Trata-se da construção do imaginário da periferia da capital do país, que reproduz todo um quadro de exclusão social, objeto do discurso crítico frente a toda segregação social típica das grandes metrópoles, como ocorrido no Distrito Federal ao longo de sua trajetória. A música Sub-Raça discute a questão da exclusão sob a ótica da segregação racial e sugere uma “consciência negra”. Sub-Raça (1994) Câmbio Negro Agora irmão vou falar a verdade, A crueldade que fazem com a gente, Só por nossa cor ser diferente. Somos constantemente assediados pelo racismo cruel, Bem pior que fél, é o amargo de engolir um “sapo”, só por ser preto, isso é fato. O valor da própria cor não se aprende em faculdades ou colégios que ser negro nunca foi um defeito será sempre um privilégio. Privilégio de pertencer a uma raça, Que com o próprio sangue construiu o Brasil... Sub Raça é a puta que pariu!!!(...) Breitner Tavares 71 Sub-raça, sim é como nos chamam aqueles que não respeitam as caras, dos filhos dos pais, dos ancestrais deles, não sabem que seu bisavô como eu era escuro, e obscuro: será o seu futuro se não agir direito,talvez seja encontrado em esgoto da CEILÂNDIA com três tiros no peito. O papo é esse “mermo”; a realidade é foda”. Não dê um bote mal dado se não CÂMBIO te “boda”, fique esperto racistas se “liga na fita”, Somos “animais” “mermo” se “foda” quem não acredita. Sub-raça é a puta que pariu!!! (Refrão). Na letra de Sub-Raça há um trecho em que se afirma: “Não se aprende em faculdades ou colégios que ser negro nunca foi um defeito”. Nesse verso apresenta-se a falta de referencial de identificação racial por parte de instituições como a Escola, resultante de um racismo que não vislumbra a categoria raça como resultado de uma construção política e social. “É a categoria discursiva em torno da qual se organiza um sistema de poder socioeconômico, de exploração e exclusão – ou seja, o racismo” (HALL, 2003, p. 69). A letra se posiciona de maneira contrária ao discurso de inferioridade racial negra. Sub Raça reage à condição subalterna da diferença em um jogo que supera o tradicional binarismo dominador/dominado. Apesar de a afirmação em relação a uma negritude ser freqüente, isso não significa que essa juventude como um todo se reconheça ou mesmo se afirme “negra”. A categoria negro, na verdade, não é homogênea, mas resultado de construções que podem apresentar certas ambigüidades, como discutem Carvalho (1996), Fanon (2008) e Sansone (2004). No ano de 1994, a inserção do grupo Câmbio Negro chega ao público do Plano Piloto com apresentações nos espaços mais representativos do campo musical de Brasília. Isso permite uma redefinição da imagem social do grupo junto aos meios de comunicação. O grupo, que outrora era citado nas páginas policiais do caderno “Cidades”, passa à matéria de capa dos cadernos de cultura, o “Caderno Dois”. Numa dessas edições, há uma matéria em que o vocalista do Câmbio Negro, “X” (Equis), junto com outros rappers do Distrito Federal, como GOG e Dino Black, intitulado “Sem papas na língua”, na qual os rappers falam de suas expectativas de futuro sobre a política nacional com a eleição do novo presidente, em ano de campanha eleitoral. Em outras matérias, os jovens lançam comentários antirracistas e contra a segregação socioespacial de Brasília. Além disso, alguns deles assumem suas posições políticopartidárias. Geralmente, o rap procura manter uma posição de arte social a serviço de uma conscientização da juventude excluída; observa-se quase que permanentemente o apelo à “periferia negra de Brasília”. O estigma do lugar perpassa todo o imaginário hip-hop como o lugar onde se materializam todos os males da modernidade, desde a violência urbana às drogas, assim como a falta de perspectiva e o racismo. Até o final dos anos oitenta, a representação das cidades do Distrito Federal através dos meios de comunicação de massa partia exclusivamente de um princípio de negatividade das cidades-satélites, tendo Ceilândia como um referencial de um imaginário urbano e estigmatizado que criminalizava a juventude através de estereótipos da formação de gangues de delinquentes. Diante disso, o hip-hop especificamente através do rap, no início dos anos noventa, permitiu a formação de grupos de jovens em torno do estilo de Breitner Tavares 72 vida hip-hop, que assume uma luta concorrencial pelos espaços de difusão da cultura local. Gradualmente, esses grupos adquirem relevância no campo artístico regional e nacional, que lhes conferiu um status diferenciado, de artistas produtores de cultura. Essa inserção da juventude de Ceilândia no início dos anos noventa permitiu que através de um movimento cultural se polarizassem questões numa esfera política. Os jovens passaram a denunciar, através de um discurso antirracista, diversos aspectos da segregação socioespacial vivida pela juventude, não apenas de Ceilândia, mas de qualquer periferia urbana que tivesse suas características. Dessa forma a juventude negra redefine a imagem criminalizada de uma das cidades satélites que sob essa nova perpectiva de autoafirmação aquirem o sentido de “centros” difusores de um novo sentido para a música popular e, ao mesmo tempo, constituiu uma liderança representativa da juventude. Esse processo de inserção política de uma juventude em busca de reconhecimento social para suas questões através do rap possibilitará, dentre outras coisas, a inclusão de questões relacionadas à juventude da classe trabalhadora, bem como o lançamento de alguns candidatos ao parlamento local oriundos do hip-hop ou que se utilizam dessa indumentária para a construção de sua plataforma política, como ocorreu com X (Câmbio Negro), pelo PPS, em 2002, e Flávio Rap, pelo PP, em 2006, os quais concorreram a uma vaga na Câmara Legislativa do DF. Novas configurações geracionais no rap no Distrito Federal No final da década de 90, com a popularização de novas tecnologias informacionais, que substituíram os antigos discos de vinil pelo CD, associada à prática da pirataria geraram-se impactos decisivos na produção e difusão de novos grupos. Novos programas de informática permitiram a criação de estúdios de gravação mais simples e econômicos. Diversos grupos passaram a produzir seus próprios trabalhos, construindo redes de distribuição em toda parte. Comunidades virtuais como Orkut ou My Space, dentre vários outras, se tornaram fóruns de divulgação e discussão do rap como música independente. Em feiras livres, como na Feira do Rolo, em Ceilândia, é possível encontrar produtores locais vendendo CDs com bases rítmicas prontas, criadas com baterias eletrônicas e samplers digitais, dessa forma, com um aparelho de som doméstico e algumas letras, pode-se criar um estúdio de ensaio e criar novos grupos de rap. Com a relativa popularização de câmeras digitais, os novos jovens cineastas do hiphop já produzem seus próprios videoclipes. A distribuição fica a encargo de espaços de divulgação, como o sítio de internet You Tube, para vídeos digitais. A exemplo da configuração desse campo em que grupos produzem seus próprios clipes que são divulgados em meios como You Tube, o sucesso “Carro de malandro”, do grupo Tribo da Periferia26, com quase dois milhões de acessos de ouvintes do clipe na página do You Tube, é um grupo desconhecido dos grandes circuitos comerciais do rap nacional, mas se 26 Link para o clipe “Carro de malandro” na internet: http://www.youtube.com/watch?v=X7FE1RQ-ueg Breitner Tavares 73 constitui com um referencial para juventude pobre que frequanta as lan houses para compartilhar sua produção independente. A facilitação dos meios tecnológicos de produção e a pirataria, de fato, não eliminaram a grande indústria fonográfica, mas sem dúvida a tornaram mais heterogênea e complexa. No Distrito Federal, ainda há a influência de produtores, chamados por alguns de “padrinhos”, que dispõem de prestígio social junto aos meios de divulgação tradicionais, bem como junto ao atores que fomentam a cultura, como o Estado e empresários das grandes gravadoras. Entretanto, atualmente há muitos grupos que produzem rap em suas comunidades, utilizam a Escola, ONGs e outros espaços públicos para divulgar seus trabalhos, bem como apresentar seus trabalhos. Esses jovens vinculados ao estilo hip-hop produzem seu rap e criam grupos, as “famílias”. Os jovens, dessa forma, estão relativamente envolvidos enquanto lideranças nas questões locais das cidades que vivem. Eles participam de movimentos sociais ou de trabalhos sociais em ONGs. O habitus constituído em torno do seu estilo de vida irá configurar suas estratégias de denúncias e propostas para o enfrentamento de problemas sociais, como a violência urbana e o racismo. DJ Antigas: Tipo assim, antigamente pra você gravar um disco no DF só tinha dois caras que produziam: um era o Raffa, o outro era o Leandrônico. O Leandrônico largou de mão o esquema, casou e tal, aí sobrou pro Raffa, aí o Raffa montou na égua, lavou a égua, todo mundo que queria produzir tinha que ser com o Raffa. Aí ele cobrava o que ele queria cobrar, ele ganhou dinheiro demais da galera. Aí cerca de 10 anos pra cá, a parada mudou, porque a galera foi tendo acesso a computador, acesso a software. Antigamente ??? era uma paradas pra fazer num era ??? tinha que ter tudo, era tudo externo. Hoje não, você compra ??? todos os teclados do computador, as baterias do mundo inteiro, qualquer tipo de bateria você tem dentro do computador, e tudo, vai a orquestra inteira dentro de um computador. Aí quer dizer, acabou, se ele cobrava mil reais por música, hoje ele cobra trezentos, entendeu? DJ Virada: Eu fui começando a entender que a técnica não era importante mais pra essa geração, o importante era mostrar o trabalho, era mostrar as músicas, era cantar, era mostrar as letras e que eles não tinham acesso a bons produtores e à informação pra fazer boas músicas de qualidade. Antigamente a própria periferia não dava valor aos artistas locais, só para os grandes, e hoje eles dão valor ao artista local muito mais do que antigamente, principalmente no Rap. Em relação ao gosto musical dos jovens, apesar dos mesmos reiterarem sua predileção pelo rap, em conversas informais eles admitem frequentar outros ambientes, especialmente rodas de pagode e, eventualmente, forró, quando querem se divertir e encontrar outras pessoas. No que se refere à influência de ritmos diferenciados, como samba ou maracatu, apesar de serem considerados referenciais de uma negritude, são menos difundidos entre os jovens pobres da periferia. De fato, há grupos de rap, como o GOG, que realizam parcerias com músicos associados ao conceito mais geral de música popular brasileira Breitner Tavares 74 (MPB), como Maria Rita ou Lenine, contudo, esse tipo de parceria leva o rap para o público consumidor universitário de classe média, mas não populariza necessariamente esses estilos em meio à juventude de classe popular. O hip-hop, enquanto uma escolha existencial, permite a construção de uma linha narrativa sobre suas expectativas de futuro, o amor e a sexualidade. Esse estilo de vida expresso a partir de uma subcultura apresenta uma configuração específica de relacionamento entre os jovens em que o sexismo, às vezes, é desafiado. Nos últimos anos, desde, o reconhecimento da participação feminina no hip-hop tem sido mais enfatizado a partir de grupos, como Vera Verônica, Atitude Feminina, BsB Girls, entre outros, que tematizam a questão da mulher no hip-hop, denunciando a misoginia que atravessa a relação entre jovens nesse estilo de vida. CAPÍTULO 7 ORIENTAÇÕES COLETIVAS E GERACIONAIS DE JOVENS RAPPERS NO DISTRITO FEDERAL (...) Se tem problema, aqui não tem esquema, aí eu te pergunto pra você, qual é o seu dilema: morrer na ambição sem dó e nem perdão, se entregar tão fácil assim? Escuta aí irmão! Não sou poeta, mas dou a idéia certa Não sou doutor, mas eu vou te falar quem eu sou Breitner Tavares 75 Eu sou igual a você aí daquele jeito, ódio e a maldade guardada no peito É com rancor. Assim não se segue a vida. Eu sei como é que é ter que conter a ira: de detonar, de espalhar o terror na favela Aí eu me lembro o quanto a vida é bela. (...) Não vai dar nada, se der, é pouca coisa. Rei – Cirurgia Moral 2007. 7.1 Orientações Coletivas e Geracionais: estilo de vida hip-hop e o envolvimento com trabalho social Grupos BR45 e Rap Comando Para a construção de um tipo analítico das orientações coletivas dos grupos selecionados, serão enfocados aspectos relacionados às questões de sua estrutura familiar e sua vivência na região onde vivem. Esse enfoque permitirá que se observe como a família e as relações interpessoais de amizade são relevantes para a construção de um sentido de pertencimento, observado a partir das orientações coletivas dos jovens em torno do estilo hip-hop, em especial pela apreciação do rap como forma de expressão estética. O espaço urbano em sua complexidade, bem como as semelhanças no que se refere à condição de classe dos grupos, permitiram que os jovens se identificassem numa experiência intersubjetiva geracional. As orientações coletivas em relação ao estilo hip-hop revelam que, em geral, os grupos tentam definir sua identidade em oposição a outros grupos. Isso ocorre a partir da indumentária que constrói um corpo com seus aparatos e gestos, além de um discurso no sentido de um movimento de protesto e denúncia, que caracteriza o sentido de “missão” que esses grupos pretendem para suas ações. Os jovens em diversos momentos se voltam para estereótipos criados por eles como meios distintivos de outros grupos subculturais, como “pagodeiros” ou “roqueiros”. Contudo, informalmente, observa-se que nos espaços de sociabilidade, como escolas, festas ou o setor onde vivem, esses jovens rappers interagem com outros grupos e estabelecem vínculos de socialização que ultrapassam o sentido sectário observado em alguns momentos de seu discurso. O sentido das orientações coletivas dos grupos de jovens envolvidos com o rap se situa no contexto comparativo realizado entre outros grupos selecionados. Os resultados encontrados sobre suas Breitner Tavares 76 orientações geracionais, portanto, correspondem à sua visão de mundo frente a questões relativas às suas práticas culturais em relação à musicalidade do rap e outros componentes do hip-hop27. Grupo BR45: trajetórias familiares e envolvimento com o trabalho social Resumo do trabalho de campo na QNZ28 com o grupo BR4529 Após as festas de fim de ano de 2006, voltei a ligar para Augusto, o instrutor de rap do grupo Amarras, com o qual eu já havia feito contato anteriormente para tentarmos remarcar um encontro para a entrevista do seu grupo: o BR45. Augusto havia me perguntado anteriormente se poderíamos produzir umas fotos para a produção do novo álbum de seu grupo, imediatamente eu aceitei a proposta. Então, combinamos um encontro para o sábado seguinte, no período da tarde. Nessa ocasião, nós faríamos a entrevista e, logo após, realizaríamos um ensaio fotográfico. No dia combinado, eu organizei meu material e fui à QNZ. Chegando lá, adentrei as ruas estreitas onde quase não havia espaço para calçadas, além disso, reparei que todas as casas eram fortemente gradeadas, de modo irregular. Na rua, não havia espaço para árvores ou plantas. A árida paisagem era composta pelo asfalto, paredes sem pintura e ferro de cor zarcão. Apesar de ser a segunda vez que eu ia à casa de Augusto, me perdi durante o percurso e tive que ligar para ele para poder me localizar. Ele me informou que sua casa era no conjunto 101 e foi muito gentil ao me oferecer várias referências para chegar até lá, percebi que ele demonstrava ter um amplo domínio sobre o espaço local. Ao chegar à casa de Augusto, esperei um pouco na entrada até que me convidaram para entrar. Atravessei uma pequena área coberta, que servia de garagem e de área livre. Ao lado dessa área ficava a sala, onde entrei em seguida. Num ambiente com pouca iluminação, ali estavam uma prima e uma irmã de Augusto. Elas assistiam ao programa “Caldeirão do Huck” que acabava de iniciar. Faço menção ao programa, pois, coincidentemente, a primeira atração era justamente os rappers cariocas da Cidade de Deus (RJ), MV Bill e Kmilla, que cantaram a música Estilo vagabundo. Augusto e 27 As respostas relacionadas às orientações geracionais dos jovens rappers, apesar de serem definidoras de seus próprios estilos de vida, por outro lado não são algo que seja necessariamente exclusivo desse tipo de subcultura. Em outros termos, grupos de jovens envolvidos com o samba ou rock podem apresentar elementos comparativamente semelhantes às orientações coletivas de jovens rappers, apesar da diferença expressa pela superficialidade de sua indumentária. 28 Todos os nomes dos setores ou bairros onde os jovens habitam foram modificados por pseudônimos ao longo do texto. A única exceção ocorre com Ceilândia, que é abordada enquanto uma totalidade. 29 Todos os nomes dos grupos ao longo do texto foram modificados por pseudônimos. Breitner Tavares 77 um de seus irmãos, Bantu, que chegou em seguida, ambos do BR45, assistiram a tudo, sempre elogiando a música de Bill. Eles observavam e comentavam sobre sua performance e roupas, dentre outras coisas. De vez em quando, Augusto me perguntava se eu estava com pressa. Eu lhe dizia que não havia problema e que eu mesmo queria assistir ao programa também. Como eu já conhecia de vista o irmão de Augusto, Bantu, devido a outras apresentações que já haviam feito no X Norte, simplesmente nos cumprimentamos e continuei acomodado no sofá assistindo ao programa. Nessa estreita e quente sala havia três sofás. Fiquei em um de frente para Bantu. Estávamos aguardando Elmo e um outro integrante chegarem. Na sala, estava também Duarte, sempre discreto, de poucas palavras. Enquanto aguardávamos as entrevistas, Bantu me perguntou sobre a câmera, sobre seu modelo e características em geral. Mas, a princípio, não demonstrou curiosidade sobre a entrevista que realizaríamos. Ele passou a conversar com Duarte sobre uma festa que ocorreria naquele sábado, num barracão na QNX e disse que lá não era lugar para levar namorada, pois o dono da festa só chamava piriga, piriguete30. Uma das primas de Bantu interveio na conversa e disse, num tom de gracejo, que isso era um absurdo. Além disso, enfatizou ainda com tom de gracejo que Duarte não deveria ir, pois era um rapaz casado. Todos riram com a situação. Pouco depois Bantu começou a se referir à sua prima, empregando palavras de duplo sentido, como sacudo31. Diante disso, sua prima passou a se mostrar constrangida com o que Bantu dizia, especialmente devido à minha presença, uma visita desconhecida, um observador. Bantu ainda fez outro gracejo dirigido a sua prima, quando chegou a insinuar que alguma mulher, naquela casa, estaria deixando absorvente íntimo no chão do banheiro, algo que lhe causava repulsa. Inicialmente, os pais dos jovens não estavam presentes na casa. Enquanto Bantu e sua prima continuavam a caçoar-se reciprocamente, eu me mantive quieto, como um bom ouvinte, eu só fazia alguns gestos indicando compreender a situação, eu chegava a expressar isso através, até mesmo, de alguns risos, risos amarelos (constrangidos). Isso porque eu realmente não ficaria à vontade zombando de alguém que não conhecia e, principalmente, para não prejudicar a entrevista em questão. Algum tempo depois, passados uns quinze minutos, chega Elmo, também irmão de Augusto e Bantu. Com olhar indireto, fala pausada e mais direta, ele adentra a sala observando minha presença. Ele me cumprimenta de forma breve e deixa a sala em direção à cozinha. Ainda não podíamos iniciar a discussão, pois aguardávamos Cenin. Desde a minha chegada, esperamos mais de uma hora, pois os rapazes ainda resolveram, sequencialmente, tomar banho e almoçar. Augusto chegou a me convidar para comer, agradeci o convite, mas recusei, até porque eu já havia almoçado e, portanto, estava sem fome. Enquanto esperávamos os outros, Augusto chegou a me pedir para irmos ao X Norte para buscar uns adereços como cordões e anéis 30 Piriguete significa mulher vulgar. Piriga é uma abreviação de piriguete. 31 Termo que é usado para se referir à genitália masculina, algo como “saco grande”. Breitner Tavares 78 de prata para seu irmão poder utilizar durante o ensaio fotográfico. Eu concordei, contudo sugeri que fizéssemos a entrevista primeiro. Elmo, que ouviu meu diálogo com Augusto, ficou um pouco reticente diante de minha resposta, porém não fez qualquer comentário. Ele deixou a sala e entrou em um dos dois quartos que a casa possuía para comportar uma família de, pelo menos, 12 integrantes, incluindo seus pais. Posteriormente, eu soube que, além da família de Elmo, sua casa era um espaço frequentado constantemente por vários outros jovens, que viviam nas redondezas da QNZ. Inclusive, eles dormiam costumeiramente por ali, às vezes, por alguns dias até voltarem para suas casas. Pouco depois, cada um dos membros do BR45 se apresentou com uma indumentária hip-hop. Eles exibiam seus chapéus, tênis, botas com pintura personalizada, jaquetas e blusões, cordões de prata e ouro, tudo aquilo que, por um lado, os representava enquanto um grupo de rap, por outro lado, aquele estilo era destoante ao mais comum naquela região, apesar dos adereços se remetem a idumentária hip hop. De fato, era visível que poucos eram os jovens ali naquela região que poderiam investir em tal elaboração estética. Para o BR45, essa indumentária carregada pela identificação do hip-hop era ao mesmo tempo bem arrojada e expressava algo acerca de sua autoimagem, o sentido de pertencimento daquela juventude, em especial, que buscava se distinguir de uma certa forma de outros grupos de jovens da mesma região. Augusto me convidou para irmos para a área externa da casa, pois estava muito quente dentro da pequena sala, além disso, suas irmãs assistiam a um programa de televisão. Bantu deu-se conta de que já era um pouco tarde e ainda reclamou sobre a organização das atividades para aquele dia. Ele questionou a escolha de se fazer uma entrevista antes da sessão fotográfica, que naturalmente passou a ser o mais importante. Nesse momento, eu tive que explicar de maneira enfática meus objetivos para podermos iniciar o grupo de discussão. Eu realmente temia pela dispersão do grupo, caso eu atendesse a todas as reivindicações. Contexto da entrevista com o grupo BR45 A entrevista com o grupo BR45 foi inusitada por diversos aspectos. A princípio, iríamos realizar a entrevista na escola local. Contudo, a direção da escola não foi localizada para a liberação do espaço, além disso, eu já havia realizado duas experiências anteriores em escolas e em ambas as situações eu tive problemas com a captação de áudio, pois havia eco nas salas, o que interferia na qualidade do som, portanto, decidimos realizar a entrevista na casa de Elmo. No momento esperado para a realização do grupo de discussão fomos, em alguns momentos, interrompidos por amigos, vizinhos e até carros de som de propaganda que passaram pela redondeza em frente à garagem onde estávamos. De fato, o que ocorria era que aquele espaço era um ponto intermediário entre estar em casa e estar na rua. Isso causava interrupções sucessivas. Além do mais, Bantu ora atendia ao telefone, ora se levantava para atender a Breitner Tavares 79 alguém que chegava ao portão. Apesar desses “ruídos” externos, pudemos realizar a conversa em torno das questões propostas, além disso, a qualidade do áudio ficou muito boa devido à acústica do local. No decorrer da entrevista, algumas das irmãs e amigas de Elmo chegaram e se juntaram ao grupo, mesmo sem participarem com considerações verbais. Elas se aproximavam e observavam silenciosamente a fala dos rapazes, de fato, às vezes ocorriam risos ou mudanças repentinas de olhares, mas como os rapazes estavam praticamente de costas para elas, eles notavam sua presença, mas não sofriam interferências do poder comunicador dos gestos. Considero isso relevante, pois como o grupo é formado apenas por homens, a presença das mulheres, mesmo que de forma silenciosa, impôs certo encaminhamento ao diálogo. A discussão era apresentada por homens e para outros homens, mas com uma presença latente das mulheres, que levavam a uma, mesmo que sutil, rearticulação das falas dos que ali estavam presentes. Em boa parte da conversação, pude observá-los rindo ou olhando de forma cabisbaixa para a audiência que estava a nossa volta. Bantu chegou a comentar, num tom de brincadeira, que sua casa parecia “boca de traficante”, pois toda hora havia alguém entrando e alguém saindo. Esse comentário foi realmente ilustrativo do ambiente dual vivido por uma família que, apesar das precárias condições materiais, objeto de uma estigmatização por parte da própria vizinhança, se mostrava receptiva e participava na vida daquela comunidade. Logo após a realização do grupo de discussão, os pais de Augusto chegaram. Sua mãe, dona Maria, vinha do restaurante onde ela trabalha como cozinheira, seu pai, seu Luis chegou de bicicleta. Ambos foram simpáticos e receptivos com minha presença. Eu os cumprimentei com apertos de mão, primeiramente a mãe e depois o pai. Após alguns instantes, ao conversar com seu Luis e Bantu, eu soube por acaso que seu Luis havia sido contemporâneo de Nelson Triunfo32, que teriam participado de rodas de 32 Nelson Triunfo é dançarino, coreógrafo, educador social, é considerado por muitos um dos fundadores do hip-hop no Brasil. De origem nordestina (Alto da Boa Vista - PE), cresceu envolto a uma atmosfera favorável à dança. Aprendeu vários ritmos tradicionais como frevo e maracatu, contudo, Nelson se destacou pela combinação do ritmo soul de origem norte-americana e o frevo. Essa combinação ficou conhecida como “original funk soul”. Nelson deixou Pernambuco e durante os anos 70 viveu na Bahia e, logo após, em Brasília, mais propriamente em Ceilândia e Sobradinho. Em Ceilândia, participa da equipe Super Som 2000, organizando vários eventos na cidade, onde permanece até 1977. Ao se mudar para São Paulo, fundou o grupo de dança Funk & Cia, resultado da seleção dos melhores dançarinos de soul da época. O Funk & Cia, no início dos anos 80, mesmo sob a tensão do regime militar que restringia manifestações culturais em praça pública, leva a dança dos salões de baile para o espaço da rua, promovendo as primeiras rodas de break dance na rua 24 de Maio, em São Paulo, um dos espaços que se tornaram representativos da cultura hip-hop nacional. Triunfo atualmente está desenvolvendo diversos projetos relacionados à dança popular e à educação de comunidades em periferias urbanas em São Paulo (DIP, junho de 2004, p. 13). Vejam-se alguns links abaixo para maiores informações: Breitner Tavares 80 dança em salões comunitários nos anos 70, como o Paradão33. A mãe de Augusto, por sua vez, estava sempre próxima. Sempre muito simpática, ela distribuiu entre os jovens algumas gomas de mascar e pastilhas como Halls. Estávamos no meio da rua, quando comecei a planejar umas fotos. Tirei algumas na rua e depois subimos no telhado de uma casa ao lado para fazermos fotos captando os telhados da QNZ. Em seguida, descemos e entramos, aproximadamente sete pessoas, num carro e fomos para uma quadra abaixo com um grafite, que, por sinal, é o único de toda a QNZ. Esse grafite possuía o nome do grupo, eles queriam um fundo personalizado com a arte do grafite para as fotos34. Após realizarmos algumas fotos, eu sugeri que fizéssemos outras dentro da casa de Augusto, mas observei nele certo desinteresse. Também sugeri que fizéssemos o mesmo em outro lugar como, por exemplo, a Ponte JK, o que fez com que eles se entusiasmassem. Ainda quando estávamos no paredão com o grafite começou uma chuva fina que nos levou de volta para o carro. Então, voltamos à casa de Bantu. Chegando lá, fomos descarregar as fotos no computador da casa, que ficava no quarto de Bantu, creio. Ali, como no resto da casa, não havia qualquer acabamento da construção. Tijolos expostos sem reboco e o contrapiso ainda no cimento bruto abrigavam duas camas e um velho guarda-roupas. Num canto, ao lado da cama, havia um velho vídeo de computador, que possuía conexão de internet banda larga. A conexão de internet rápida vinha por um cabo que chegava ao pequeno cômodo através de um misterioso furo na parede, provavelmente vindo da casa de um vizinho. Mais tarde constatei que essa conexão era compartilhada por vários vizinhos da redondeza. O computador era uma das atrações que mantinha a casa onde moravam os integrantes do http://dynamite.terra.com.br/arquivodohiphop/site/page.cfm/nelson-triunfo http://www.youtube.com/watch?v=wVK7Z0nnPa8&feature=related http://andreadip.files.wordpress.com/2006/06/otriunfoedonelson.pdf 33 Paradão era o nome de um galpão comunitário em Ceilândia onde ocorriam diversos bailes nos anos 70. 34 Isso é curioso, pois quando se fala em grafite como um elemento representativo do hip-hop, observa-se que o mesmo não é tão presente como se pode pensar baseado em estereótipos criados pela cena novaiorquina retratada no filme Wild Style (1982), em que o grafite é o principal elemento motivador da juventude negra e latina no South Bronx. De fato, observa-se que tanto no caso brasileiro, quanto no norte-americano, o rap se consolidou como o elemento mais representativo dessas juventudes. O grafite se tornou uma produção mais frequente em meio a uma juventude branca, de classe média das grandes metrópoles. Breitner Tavares 81 BR45 sempre cheia, funcionando como uma espécie de lan house35. Sempre havia algum amigo da vizinhança querendo checar as mensagens de e-mail ou seu perfil no Orkut36. Enquanto eu preparava a câmera para baixar as fotos, Bantu negociava com uma de suas irmãs que estava utilizando o computador. Ela estava na página do Orkut observando o perfil de outros amigos, todos da mesma vizinhança, agora digitalizada. Ela reclama e diz que ela tem sempre que dar preferência para Bantu e seus amigos. Assim que baixamos as fotos e todos puderam ver o resultado, houve um grande entusiasmo, o que provocou a troca de figurino de alguns presentes. Bantu enquanto se vestia, mencionava o valor da roupa que vestia, o quanto tinha sido cara (R$120,00). Enquanto isso, a chuva parou e então pudemos sair novamente. Fomos, desta vez, a uma parte nova da QNZ na qual havia uma ocupação de catadores de papel e carroceiros que haviam sido desalojados de uma outra ocupação, devido a um incêndio que destruiu vários barracos. Os barracos de madeira, plástico e papelão eram muito pequenos e se aglomeravam de forma quase orgânica em meio a um vazio urbano, antes destinado a uma praça ou à construção de uma escola. Ao nos aproximarmos, Augusto foi a uma casa que não fazia parte da invasão. Lá vivia um de seus amigos de outro grupo: o Rap Comando. Ao que me pareceu, esse jovem teria a função de nos guiar entre os barracos em segurança, pois como aquela ocupação era nova, não havia de fato sido estabelecidos vínculos de sociabilidade entre os moradores, pois ninguém se conhecia. Ao entrarmos no emaranhado de barracos, alguns moradores, homens, apareceram e passaram a observar à distância. Outros abriram as portas assustados com nossa presença e nos questionaram. A presença dos jovens do grupo BR45 e o fato de eu estar munido de uma câmera, ou seja, executando uma função de “fotógrafo oficial” me fez sentir autorizado a explicar àquelas pessoas o que ocorria. Eu me aproximei de uma família e então disse que se tratava da produção de fotos de um grupo de rap da cidade e que não tínhamos intenção de prejudicar ninguém da comunidade. Ninguém do BR45 disse uma só palavra. Então percebi que eles ou estavam assustados ou eram tão estranhos quanto eu naquele lugar, algo que evidenciava que num mesmo espaço segregado há diferentes formas de hierarquias sociais. Os moradores que perguntaram se sentiram satisfeitos com minha resposta e disseram que estava tudo certo. Contudo, isso não era garantia de que outros moradores não se sentiriam invadidos pela nossa presença, pois entre os barracos não havia uma “rua” no sentido de um espaço público, o que havia eram pequenos e estreitos becos, vielas, que permitiam somente o acesso a pé. Elas se 35 Espaço comercial onde se alugam computadores com conexão de rede de internet. Normalmente, os usuários pagam por pacotes que lhe garantem descontos na utilização dos computadores, que é cobrada por hora, além de terem acesso a outros serviços como impressão de documentos. As Lan Houses se tornaram um espaço relevante de encontro para as juventudes de classe popular digitalmente excluídas. 36 Orkut é um site de relacionamento público da empresa Google, que permite aos seus usuários criarem comunidades virtuais. Essa ferramenta é utilizada por pessoas de várias idades, sendo bem popular entre os jovens. Breitner Tavares 82 entrecruzavam dentro de áreas que eram ocupadas especificamente pelas famílias. Ali estavam alguns varais de roupa e utensílios de cozinha. Pelo chão ainda corria o esgoto, pois não havia qualquer infraestrutura para uma ocupação que tinha um caráter provisório e emergencial. Diante dessa imposição arquitetônica, os rappers preferiram sair do interior da favela e tirar fotos apenas com ela ao fundo, já “distanciada”. Enquanto fazíamos as fotos, um grupo de homens se formou novamente, um pouco distante, eles nos observavam atentos enquanto várias crianças brincavam ao nosso redor. Elas sorriam e tentavam se comunicar conosco, demonstravam um certo desejo em serem fotografadas, mas não me senti à vontade para fazer tal coisa, principalmente sem autorização de seus pais, que não estavam ali presentes para isso. Cheguei a expressar verbalmente essa minha posição para o pessoal do BR45, pois alguns deles também sugeriram que eu fotografasse algumas crianças pobres e sujas que estavam brincando ali. Eles não se opuseram à minha perspectiva. Ao terminar a atividade, voltamos para a casa de Augusto para ver o resultado. Durante nosso retorno, perguntei a eles se não haveria interesse de realizar um show para aquela comunidade. Alguns disseram que a idéia era interessante, mas Bantu foi taxativo ao dizer que ele era “um profissional” e tinha que ir onde seu público estava, portanto, para ele não seria conveniente tocar ali, já que aquele público não se identifica de fato com o seu trabalho. Apesar de o grupo BR 45 defender uma cumplicidade com a periferia e os excluídos sociais, nesse contexto, o grupo manifestou uma distinção em que se valoriza um público jovem, que tenha uma identificação específica com o hiphop, algo que não teria sido constatado naquela pequena comunidade de catadores de lixo. Quando voltamos à casa de Bantu, baixamos as fotos no computador e eles as viram e fizeram várias considerações sobre as imagens. Além disso, Bantu passou a me mostrar material sobre o BR45, nesse momento, sua mãe, dona Maria, entra no quarto e me pergunta que tipo de refrigerante eu gostava. Eu lhe disse que não precisava se incomodar comigo e que eu gostaria mesmo era de um pouco de água. Ela deixou o quarto e logo voltou com uma garrafa pet com água parcialmente congelada e me serviu um pouco num copo. Bantu aproveitou para mencionar que sua mãe ia a todos os shows do grupo, que gostava e procurava participar de tudo. Minutos depois, dona Maria volta com refrigerante sabor laranja e vários pães de sal e de queijo, então todos ali comeram. Enquanto eu agradecia à dona Maria, ela me pergunta se eu bebia cerveja, eu acenei positivamente e daí ela disse que eu não poderia sair até seu retorno. Após alguns instantes, ela volta com um copo de vidro, pois estávamos bebendo em copos descartáveis e uma garrafa de cerveja gelada. A cada gesto, ela expressava sua generosidade anfitriã. Antes que eu terminasse de beber o primeiro copo, ela retornava com a garrafa e punha mais cerveja, eu passei a recusar, mas não adiantou. Notei que só Duarte e eu, além, é claro, de dona Maria, estávamos bebendo. Tive a impressão de que seus filhos poderiam estar me reprovando, pois nenhum deles tinha o costume de ingerir bebidas alcoólicas. Bantu chegou até a dizer que “ela é assim mesmo!”, num tom depreciativo. Dona Maria voltava e passava a falar de suas dificuldades financeiras, mas que muitos rapazes naquela comunidade preferiam ficar em sua casa a ficarem nos seus lares de casas bem construídas. Ela estava fazendo alusão ao costume de ter sempre a casa cheia, independentemente das dificuldades financeiras que houvesse. Na verdade, eu percebi que isso realmente se sustentava. Em alguns momentos observei as pessoas fazendo uma vaquinha, arrecadando dinheiro para comprar bebida Breitner Tavares 83 ou algo pra comer. Era a efetiva aplicação do sistema de dádiva de prestações e contraprestações. Ao perceber isso, cheguei a me desculpar, pois naquela ocasião eu não trazia dinheiro comigo, mas dona Maria disse que isso era desnecessário, já que eu estava “fazendo um bem” para os filhos dela. Então chega seu Luis e se junta a ela. Maria falou de muitos jovens que ela conheceu que se perderam na criminalidade e que, graças a Deus, seus filhos seguiam outros caminhos. Ela expôs um pouco a luta por esse objetivo. Eu então comentei que os pais que lutam por seus filhos deveriam receber um prêmio por isso. Maria disse que isso seria bom, contudo, Raimundo disse que isso era desnecessário, pois o verdadeiro prêmio eram os próprios filhos. Eu realmente achei muito inteligente a resposta de seu Raimundo, apesar de ter me sentido um pouco constrangido, afinal eu tinha feito o comentário jocoso sobre a premiação dos pais. Sua resposta simplesmente reforçava a idéia do valor do sentido de comunidade e integração dentro da esfera familiar, tudo isso à revelia de qualquer precariedade material existente. Algum tempo se passou, quando Maria disse que eu seria convidado para um churrasco na casa dela. Eu lhe disse que ficaria satisfeito com o convite. Então, para minha surpresa, ela já havia decidido que o churrasco seria no dia seguinte para comemorar o trabalho que eu e o BR45 tínhamos feito. Nesse instante, descobri que dona Maria, como mãe, seria a melhor produtora que o BR45 poderia ter. Em relação ao convite, eu o recusei argumentando já ter compromisso para o domingo. Ainda assim, ela sugeriu que eu dormisse ali, naquela noite, já que segundo ela era tarde. Eu novamente recusei dizendo que minha família estava me esperando e que, de fato, não estava tão tarde assim, afinal eram só 8 horas da noite. Bantu concordou comigo, mas ela retrucou e disse que na próxima ocasião não poderia deixar de fazer isso. A conversa esfriou um pouco e algum tempo depois, eu fui mais incisivo em dizer que iria embora. Augusto ainda insistiu na minha permanência dizendo que eu estava “ruim” (bêbado). Eu de fato não estava “ruim”, eles só estavam tentando me persuadir, além disso, eu já estava decidido. Eu aleguei que minha família me aguardava. Bantu disse para sua mãe que eu tinha razão e que ela não deveria mais insistir. Depois disso, agradeci pela gentileza de todos e logo em seguida fui embora para casa naquela noite chuvosa de sábado. Breitner Tavares 84 O perfil dos jovens do grupo BR4537 Augusto (Am)38 é cantor e uma das principais lideranças ao lado de Bantu. Augusto trabalha como empresário do grupo e costuma atuar na produção de festas locais. Ele tem 20 anos, é negro e vive em Ceilândia com seus pais. Além disso, menciona possuir uma namorada, apesar de não ter declarado 37 Esses dados foram, em geral, obtidos mediante a aplicação de um questionário ao final dos grupos de discussão. Ocasionalmente algumas outras informações foram obtidas na observação participante durante o trabalho de campo. Para maiores informações, sugere-se consultar o apêndice. 38 Durante a transcrição das entrevistas, foi utilizado um sistema de identificação dos jovens por ordem alfabética em que a letra maiúscula representa a primeira letra do pseudônimo atribuído ao entrevistado(a) e a segunda se refere ao seu sexo, “m” para masculino e “f” para feminino. O entrevistador foi identificado pela letra “Y”. Breitner Tavares 85 isso no questionário. Antes dela, teve outro relacionamento de quatro anos que resultou num filho que tem um ano de idade. Augusto possui 7 irmãos, dentre eles, Bantu e Elmo, ambos do BR45. Possui ensino fundamental incompleto e não frequenta a escola atualmente. Trabalha como oficineiro, coordenando o grupo Rap Comando. Tem o rap como lazer preferido e está no grupo há 10 anos. Costuma se encontrar com os outros integrantes em casa e na escola onde formou o grupo. Seu pai veio do Piauí, possui ensino fundamental incompleto e trabalha como serralheiro. Sua mãe veio de Goiás e também possui o ensino fundamental incompleto. Ela trabalha como cozinheira e empregada doméstica. Bantu (Bm) é cantor e uma das lideranças do grupo. Ele tem 27 anos, é negro, sem religião e vive em Ceilândia com seus pais. É solteiro, não tem filhos, possui 7 irmãos, dentre eles Augusto e Elmo. Bantu possui o ensino médio incompleto e está fora da escola. Bantu realizou um curso profissionalizante em vigilância (reparador predial) e está desempregado. Ele estava desenvolvento há dois meses atividades comunitárias subsidiadas pelo Governo Federal no projeto Segundo Tempo, ministrando aulas de jiujitsu. Ele pretende cursar educação física. Seu lazer preferido é capoeira e jiu-jitsu e está no BR 45 há 10 anos. O grupo reúne-se 3 vezes por semana, em quadras de esporte. Bantu conheceu o rap e se motivou a formar o grupo na escola através de uma oficina de rap, oferecida por um projeto chamado Jovem Consciente, promovido por uma organização internacional. Cenin (Cm) é cantor. Ele é o mais jovem do grupo, tem 17 anos, é negro, católico e vive em Ceilandia com os pais. Ele é solteiro, não tem filhos e possui quatro irmãos. Possui o ensino médio incompleto e está fora da escola. Cenin está desempregado e pretende ser cineasta. Seu lazer preferido é praticar street ball (basquete de rua), está no grupo BR45 há dois meses e costuma se encontrar com o restante do grupo na quadra. Ele conheceu o grupo no centro comunitário e na vizinhança. Seu pai é de Belo Horizonte (MG), possui o ensino fundamental completo e trabalha como servidor público. Sua mãe também é de Belo Horizonte (MG), possui o ensino fundamental incompleto e atua como dona de casa. Duarte (Dm) cantor e um dos principais compositores do grupo, é o membro do grupo com maior conhecimento em informática, além disso compõe as bases eletrônicas do grupo. Ele tem 24 anos, é branco, católico e vive em Ceilândia com seus pais. É solteiro, sem filhos e possui quatro irmãs. Duarte possui ensino médio completo e trabalha em manutenção predial, já realizou curso de informática e pretende cursar sistemas de informação. Seu lazer preferido é cantar rap. Está no grupo BR45 há 11 anos, ele se encontra com o grupo nos fins de semana, na casa de Bantu. Conheceu o grupo numa oficina de rap, na escola, no projeto Se liga, Galera. Seu pai é de Caraíba (PB) e possui o ensino fundamental incompleto. Sua mãe é de Goiânia (GO) e também possui o ensino fundamental incompleto. Elmo (Em) cantor, 23 anos, é negro, católico, reside em Ceilândia com seus pais e tem 7 irmãos, dentre os quais Augusto e Bantu. Ele é solteiro, não possui filhos e está ficando com uma garota (namorando), apesar de não ter mencionado isso no questionário. Possui o ensino fundamental completo e está empregado como instrutor de basquete no programa Segundo Tempo. Elmo pretende cursar Educação Física, seu lazer predileto é jogar street ball. Além disso, ele participa de uma ONG há dois meses, chamada Lutadores. Costuma se encontrar com os membros do grupo em casa e nas quadras de Breitner Tavares 86 esporte locais, 3 vezes por semana. Ele entrou no grupo a partir de uma oficina para jovens num centro comuntário, através do grupo BR45. Figura 8 Sociograma do grupo BR45 A família contra o mundão: a formação do Grupo BR45 Durante a passagem inicial39 do grupo de discussão, foi lançada uma pergunta para o grupo para obter sua impressão sobre a formação do BR45. O grupo BR45 menciona com satisfação que se conhecem há quase dez anos através de uma oficina para jovens realizada na escola próxima as suas residências. Naquela ocasião, em 1999, já existia vários grupos de diferentes localidades, dos quais poucos seguem, atualmente, uma carreira profissional. O sentido de grupo é definido pela palavra “família”, que é agregada ao nome BR45, portanto, “Família BR45”. Am: (1)O BR45 é um dos poucos grupos que:::que teve o privelégio de nascer (.) de sair de uma escola né? Hoje a gente vê várias ONGs incentivando oficinas de rap nas escolas(1). E a gente tem o prazer de falar isso pra todo mundo: “o BR45 saiu de uma oficina de rap também”. Então:: é:::, o grupo é tipo uma família, vai ficando, né? Vai ficando, vai ficando a família, o grupo vai virando uma família (.) As pessoas que::: se dá mais certo umas com as otras é::: em relacionamento elas vão ficando. Aí: mexer com ser humano é embaçado, que nem o pessoal costuma dizer, é difícil mexer com ser humano e::: essa formação aqui foi, é, a que deu certo. 39 Para a transcrição das entrevistas foi utilizado um sistema de códigos que tem como objetivo valorizar a carga expressiva da entonação de voz, bem como aspectos não verbais e gestuais que, de alguma maneira, possam contribuir com o processo de análise dos dados qualitativos. Para facilitar a leitura dos trechos das entrevistas, é recomendável consultar as normas de transcrição localizadas no apêndice. Breitner Tavares 87 Em 2000 a gente(.), a gente formou(.), formou o grupo novamente e saímos da escola (.) agora, pras ruas, né. O emprego da palavra “família” serve para indicar uma relação que transcende a mera formação de um grupo que tenha o interesse musical. Aqui está em questão a intimidade, a natureza desses laços. A família é seletiva, portanto, ficam aqueles indivíduos que durante o processo de naturalização e ressignificação de suas práticas vão se consolidando em torno de uma ideia, mesmo que provisória, de uma unidade, de um grupo. Esse grupo é identificado através de um estilo que é pautado numa abstração do que vem a ser o hip-hop. Contudo, essa abstração é reconstruída cotidianamente de forma tão exclusiva quanto excludente a partir de suas práticas no que se refere ao gestual, aos trajes e ao tipo de rap que produzem. Isso se observa pela proximidade entre pessoas que se identificam, “se dá mais certo umas com as outras”. Para o grupo, isso representa um desafio definido pela ideia de que é difícil lidar com o ser humano, como indica o termo “é embaçado”. Portanto, a seletividade de diferentes indivíduos dentro de um sistema de gosto estabeleceu uma formação, que o grupo considera como a que deu certo. Algum tempo depois da primeira formação do BR45, a partir de um projeto educacional numa oficina para jovens em 1999, os jovens decidem deixar o projeto pedagógico, que era restrito ao espaço da escola, e passam a se apresentar em outros espaços, Eles vão “pras ruas”. O sentido pedagógico associado à formação de um grupo de rap e o desejo de uma autonomia no sentido de suas práticas criativas levam o grupo a assumir o discurso que os jovens, outrora alunos, não estão mais no espaço da escola, que representa duplamente um espaço seguro de amparo, mas também significa um espaço temporário num processo de socialização, de consolidação do jovem enquanto sujeito social. O sentido de se “formar” e “ir para as ruas” implica a ideia de maturação, resultado de uma seleção de pessoas que foi complexa, “embaçada”, mesmo que o grupo ainda mantenha uma estreita conexão com a escola, agora eles assumem uma outra posição para além da condição de alunos, o status de educadores comunitários constituídos dentro da “família”. De fato, o sentido de “família” é empregado frequentemente para designar diversos grupos de rap no Distrito Federal e em outras cidades. Esse termo teria o mesmo sentido de posse, de uma agremiação de pessoas em torno de algum projeto, seja meramente estético ou de cunho assistencial. O processo de interação social e criação do grupo se dá por escolhas individuais frente às dificuldades tidas como próprias dos seres humanos. Constrói-se uma imagem do passado em relação a outros grupos que participaram do grupo, mas que saíram por estarem envolvidos com o abuso de drogas, como a maconha, e com a pichação. Katula, Samado, Mec, @e vários Em: outros aí@. Aí ficou os cinco aqui, isso tinha mais porque a relação de ser humano é difícil. Uns Breitner Tavares 88 queriam tá na pichação, outros queriam tá na maconha, outros (.) por incrível que pareça assimila rap com droga ((ruído de carro de som)) pensa que rap e violência andam juntos, né? Que o rapper tem que fumar um pra ser o rapper muito louco. Pra tocar umas músicas mais (violentas). Muita gente fica indignado, só porque fuma um e o BR45 não. Tem até uma letra que eu falo isso que:: uns procuram a glória né? A glória escrevendo o nome na parede. Muitos chamam de pichação, outros falam que é arte. Eu não posso julgar, pichação é arte. Eu tenho meu modo de me aparecer. Eu me apareço através do rap, eu falo meu nome através do rap, me orgulho disso. E muita gente se orgulha também (.) né? Fazendo pichação, fazendo, outro se orgulha fazendo grafite, outros fazendo bleique, break, e assim vai, né? (.) O BR45 surgiu dessa maneira, e:::: através do nosso pensamento de fugir de drogas, muitos têm esse problema. Uns::: entraram, outros conseguiram sair, outros tão nas droga até hoje, e a gente tá no rap, né? A gente continua no rap e vamo ver o que vai dá (5). Para o grupo, o uso de drogas e a disseminação da violência são aspectos usados frequentemente para se definir uma imagem estereotipada do jovem, nesse caso, o rapper. Elmo considera que há uma imagem de que o rapper precisa usar drogas para parecer louco perante os outros e tocar músicas violentas. Entretanto, ele alega que o BR45 não tem essa postura, portanto, isso seria um fator que causaria repúdio e surpresa em outras pessoas, o que denota um aspecto distintivo em relação a outros grupos locais. O grupo alega que, como retratam algumas de suas letras, há pessoas que buscam ser reconhecidas através da pichação em muros, o que seria considerado arte para elas. Ele não discute se isso é ou deixa de ser arte, apenas reitera que seu modo de aparecer é através do rap, o que representa um motivo de seu orgulho. O pensamento do grupo está voltado para “fugir” das drogas, bem como de pessoas que têm esse problema. Os jovens afirmam que algumas das pessoas que conheceram conseguiram sair das drogas, contudo outros continuam envolvidos com esse problema. Paralelamente a tudo isso, eles continuam envolvidos com o rap, que lhes permite a criação de um espaço alternativo em relação àquilo que é visto como trivial e indesejável em relação a outros jovens que pertencem ao setor onde vivem. É relevante assinalar que, no grupo, os três irmãos, Augusto, Bantu e Elmo, todos se abstêm de usar drogas e têm em comum o mesmo pai, seu Luis. Ele, por sua vez, é um homem que vive um drama pessoal relacionado ao alcoolismo, motivo de constrangimentos na região onde moram. No entanto, muitos que frequentam sua casa vão ali, pois encontram um espaço de sociabilidade e, apesar do grupo não fazer apologia ao uso de bebidas alcoólicas, muitos de seus amigos o fazem. Portanto, para o grupo, o rap é definido de uma maneira essencialmente contrária ao abuso de drogas. O rap, nesse caso, seria um contraponto, aquilo que garante integridade e convicção de uma escolha, uma aposta no futuro, que, nesse caso, foi a abstinência. Elmo usa a expressão no final de uma de suas falas “vamu ver no que vai dar”, que está relacionada à possibilidade de escolhas que o rap propicia e o sentido de determinação de levar essas escolhas adiante, mesmo sem um conhecimento muito claro de suas implicações futuras. Breitner Tavares 89 Ao continuar a discussão, o grupo define o hip-hop como uma assimilação de várias culturas. Exemplifica-se essa condição através da capoeira, dado o seu status marginal no passado, teria passado à condição de cultura ao ser assimilada como um patrimônio imaterial. Nesse contexto, o grupo faz uma redefinição do sentido de cultura que consiste naquilo que é aceito em diversas escalas sociais, especialmente aquelas que historicamente têm tido o controle sobre a definição de tais categorias, como o mercado da indústria cultural ou o meio intelectual acadêmico, como já enunciavam os primeiros trabalhos dos estudos culturais (WILLIS, 1977). Além disso, o hip-hop para o grupo, assim como a capoeira, são postos num mesmo contexto em termos de status sociais. Ambas as manifestações estão associadas à ideia de ser negro ou simplesmente de negritude e, segundo o grupo, só adquirem status de cultura posteriormente. Nesse caso, não só para os negros ou pelo menos para parte deles, mas para uma grande margem de consumidores interessados em consumir bens simbólicos marcados por uma estética multicultural. Para o grupo, essas culturas são definidas como as mais fortes combinações no Brasil e no mundo. Y: Como vocês interpretam o hip-hop? (todos se põe a pensar )) (2). Bm: Eu interpreto o hip-hop como uma (2), como se diz(2), como a assimilação de várias culturas, né? Várias culturas. Por exemplo, a capoeira (2), ela era marginalizada (e) já virou cultura. Cultura né? A capoeira vem da cultura como a música é cultura também. Como isso aí. O hiphop juntou (.) é uma das combinações mais forte que tem no Brasil. No Brasil não. No mundo, né? No mundo porque o hip-hop é mundial, passa confiança. A combinação mais forte porque é a única que trata, mexe com projeto social, mexe com isso, aquilo outro. E pra mim o hip-hop passa confiança pra quem tá participando. Passa confiança né? O grupo redefine a sua maneira, os sentidos do surgimento do hip-hop ao longo do tempo como a combinação cultural mais “forte atualmente” e isso estaria associado a uma suposta relação desse estilo com a criação de projetos sociais capazes de envolver o jovem negro, localizado em comunidades pobres, em movimentos sociais no sentido de sua emancipação política. Augusto afirma que, entre os anos de 1997 e 2000, antes do sucesso do grupo Troops, o hip-hop era considerado como o break. Essa concepção seria algo cunhado pela elite que está aderindo ao estilo através dos seus mecanismos de mercado e difusão cultural. Hoje, por outro lado, o break teria deixado essa posição para que o rap cantado em inglês, chamado “rap gringo”, que tem letras que tratam, segundo o grupo, de temas considerados pelo grupo como levianos, “besteiras”, ocupasse essa posição. Ele, em verdade, considera isso como de pouca importância, pois ninguém no grupo sabe sequer inglês. Contudo, o grupo, independentemente disso, gosta de rap gringo, especialmente por que ele próprio não Breitner Tavares 90 compreende as letras, “ºeu não entendo mesmo, eu gostoº. Né?” como afirma Augusto em tom de sussurro. Am: E o engraçado que de 1997 até 2000 e::: essa época que a gente tá, agora que o Tropa de Elite estorou, antes de o Tropa de Elite estourar, o hip-hop era o break né? entre aspas na língua de: (.) da:: (.) elite né? Tudo bem, eles tão aderindo isso, é bom, a gente gosta disso. Só que antigamente o hip-hop era o break, né? Eles falavam. Hoje o hip-hop é aquela música gringa que eles gostam de ouvir (.) Os gringos falando um monte de besteira. Não que eu não goste, eu gosto bastante, ºeu não entendo mesmo, eu gostoº. Né? (1) Aí o povo achava que o hip-hop era a dança, hoje eles acham que o hip-hop é a música, o break e o grafite é o rap e o dj são quatro elemento que:: que::: formam essa cultura. E se você for prestar atenção, o hip-hop é uma das únicas culturas que se encontra no mundo todo, entendeu? Tem muita gente que fala que o hiphop não é organiza::do, mas como é que uma coisa desorganizada pode chegar a tal ponto?(2)Né? O hip-hop é uma cultura e a gente quer deixar bem cla:ro que o hip-hop não é música, o hip-hop não é dança, o hip-hop é uma cultura aonde tem quatro vértices: rap, DJ, break e grafite. De fato, para o grupo, o que está em jogo é uma redefinição desse hip-hop, que faz parte de um sistema de símbolos mundial, nos seus próprios termos. Isso se faz representativo para a autoidentificação do grupo enquanto tal. Assim, o grupo se identifica com o “rap”, que nesse caso implica o “rap nacional” em detrimento do “hip-hop” que possui um caráter mais fluido e está associado ao modismo que o grupo não assimila. Ao mesmo tempo, o hip-hop, mesmo adquirindo uma identidade local e sendo considerado como “não organizado”, consegue adquirir uma repercussão mundial, a partir de sua motivação para os movimentos sociais nas suas manifestações estéticas definidas pelos quatro elementos: rap, DJ, break e grafite. Ao ser questionado sobre seu cotidiano no setor QNZ, o grupo se posicionou de forma a generalizar os problemas que ali ocorrem. Para o grupo, em geral, não há na cidade condições para as crianças e jovens terem acesso ao lazer. Faltam equipamentos públicos para essa finalidade. Essa precariedade levaria crianças e até adolescentes a se envolverem com o crime, com as drogas e com o alcoolismo, por falta de ocupação, de atividades. Diante da constatação de que no bairro não havia nenhum projeto voltado para a juventude, o BR45 criou, por iniciativa própria, projetos sociais para a comunidade com atividades, como oficinas de rap, jiu-jitsu, basquete, entre outras. Y: Como é que vocês veem a vida aqui no setor QNZ? Como que é o QNZ? Bm: ((pigarro)) Bom, eu que eu vejo aqui na QNZ aqui, ou qualquer periferia X Norte, Setor Ø, Ampliados. A gente vê muito mais é (.) as crianças sem ter o que fazer e nisso sem ter o que Breitner Tavares 91 fazer, sem ter lazer. Não tem área de lazer aqui na QNZ aqui, eu acho que não tem muita área de lazer na Ampliados também no X Norte. Isso coloca as crianças, coloca (.) até um adolescente (.) coloca na vida do crime, na das drogas, do álcool. Entendeu? Não tem o que fazer. Por isso que a gente inventa de colocar algumas coisas aqui pra colocar tipo as crianças no caminho certo, no caminho correto. Como no. Colocar os projetos sociais, dá aula de jiu jitsu, street ball, é:: basquete, capoeira, vai indo, aula de rap, entendeu? Pra tirar. Pra ajudar a tirar essas crianças desse caminho aí. É aqui tá escasso, isso aí porque aqui o povo só::: eu acho que o povo tá investindo mais em droga (.) o pessoal ali pra baixo ali. O pessoal ali pra cima em álcool. O pessoal só tá investindo (em si mesmo), só qué saber de embelezar sua casa, embelezar o carro, comprar um carrim, deixar bunitim. Qué saber do deles. Que nem fala a Bíblia, só qué vem a nós, ao vosso reino nada. Não que não tá olhando pelo menor que tá(1) precisando de alguma coisa, que tá precisando de estrutura. Não querendo ajudar aquelas criança que tá precisando de atenção, de carinho, de esporte, de lazer, de uma cultura na vida delas. O povo daqui da QNX ou de qualquer tipo de periferia só qué tá querendo saber só mais (.) da vida deles, da vida deles, não tá procurando ajudar o próximo. Entendeu? E a gente tá querendo ajudar o próximo com o nosso jeito de agir. Colocando ONG, fazendo uma, uma combinação dos nossos talentos. Dm: Dando lazer, né? Essas atividades ajudam, segundo Bantu, a evitar que as crianças se envolvam no caminho da criminalidade e das drogas. Bantu alega que na QNZ há mais investimentos voltados para as drogas e o álcool. Além disso, as pessoas estão mais voltadas a investir nelas próprias, em termos individuais e de consumo, como comprar um carro, ou em valores estéticos, “andar bonitinho”. Bantu afirma que na QNZ não há um interesse da população em oferecer carinho e estrutura de lazer para as crianças. O grupo se afirma como uma entidade comunitária voltada para promover uma ação social em seu setor de moradia. Para isso, seus membros se utilizam de talentos individuais. De fato, ocorre aqui a tentativa do grupo em se engajar num trabalho social que tenta atingir uma frente relacionada ao direito à cidade pelo viés do lazer, do esporte e do entretenimento, que é definido como “colocar no caminho certo”. Essa postura reflete a própria história do grupo, que surgiu de um projeto assistencial há dez anos. Bantu intervém e exemplifica o tipo de trabalho que o grupo realiza através de oficinas de lazer, como de capoeira, street dance, rap e futebol. Isso deixa as crianças, adolescentes e até mesmo adultos “mais à vontade” na periferia onde moram, pois isso torna a comunidade mais “segura” para se viver. Estar “mais seguro” aqui implica um sentido mais amplo do que o policialesco. Esse tipo de medida teria a capacidade de resolver tensões sociais em torno da violência gerada pelo ócio materializado pela “falta de lazer”. Portanto, a Educação pautada em vínculos solidários é difundida por atores sociais que compartilham do mesmo espaço de sociabilidade. O BR45 retoma mais adiante a discussão sobre o que definiria um rapper, para além da exterioridade da indumentária e da música propriamente dita. De fato, ocorre que ser rapper implica ser Breitner Tavares 92 solidário, no sentido de compartilhar os valores de positividade para sua comunidade local. Algo que possa ser um meio de tirar as crianças do mundo das drogas, “do mundão”. Nesse caso, podemos utilizar o termo “mundão” em oposição à “família”. Enquanto “mundão” denota um distanciamento da relação de laços vicinais de amizade e cumplicidade, que levam o jovem a se envolver com aquilo que é considerado negativamente para aquele grupo, como as drogas e a criminalidade numa vida “mundana”, por outro lado, pertencer à família é fazer parte do grupo e participar de uma rede de apoio mútuo. O grupo considera que um rapper não canta a verdade porque isso pertence ao campo da relatividade da indefinição, pois “cada um tem a sua verdade” definida em função do que vive. Ele exemplifica ao dizer que não se pode cantar a periferia se não se vive na periferia. Isso não seria cantar rap. Elmo recorda de um outro grupo da QNZ, o Resistência Periférica, que define rapper como aquele que se envolve com as lutas de sua comunidade. Finalmente, ele diz que um rapper se define pelo que fala e faz, principalmente pelo que faz, pois, segundo o grupo, é com a ação que se mostra o verdadeiro caráter. Em: E essa preocupação nossa de passar o que a gente aprendeu, isso sim é ser rap. Ser rapper não é subir no palco e fazer peso(.) cantar a verdade, porque cada um que canta rap é o que vive, né? Exemplo ( ) ele não vai falar coisas da periferia se ele não vive na periferia? Isso não é cantar rap.Cantar não é falar o que você vive. Cantar (rap). Eu quero ver ser um rapper. Essa palavra foi dita pelo pessoal do SR e até hoje eu não esqueço disso. Eu quero ver você, (.) você bater a perna e dizer eu sou um rapper, quando o povo tiver derrubando uma escola na sua comunidade e voce tá lá no meio, não deixa (derrubar) eu não vô deixá. Entendeu? Fazê o mutirão, chegar com o pessoal. Eu não vô deixá. Eu quero ver você ser um rapper na hora de você passar pra ele algo que você sabe, algo que você entende, que você tem certeza, que vai, tira do caminho das drogas, do caminho que o mundão oferece na verdade, né? Ser rapper não é apenas você levar uma verdade apenas que você vive. Ser rapper é você agir, é você ajudar a comunidade, é você::: é você::: falar, fazer, né? Principalmente fazer. Porque o agir é o que mostra o seu caráter. Que você é um rapper ou não. Os membros do grupo BR45 consideram que, além de dinheiro e fama, é importante representar a comunidade. Ele diz que através do “microfone”, ou seja, através de argumentos pode-se “evangelizar” as pessoas. Isso implica em se reconhecerem enquanto atores políticos que podem, através da estética, imprimir novos valores na sua comunidade. O rap pode influenciar o uso das drogas, consideradas como o lado mal. Descreve-se essa situação ao mencionar letras que falam em ser bandidos ou o chefe da máfia, isso estimularia crianças a se identificar com a postura gângster, ou seja, daqueles identificados com a violência como mecanismo de interação social. Breitner Tavares 93 AM: É representar. Saber representar a comunidade né? Porque:: não adianta a gente:: (.) ficar cantando rap e representando e só querendo fama e dinheiro e não se preocupando com a comunidade, se preocupando com a área que a gente vive. E::: eu acho também que quem tá com o microfone na mão tem o poder de evangelizar as pessoas. Se a gente quiser levar o pessoal pro::: lado mal. A vida na periferia não é feita só de tristeza. Há os momentos de confraternização com a família e os amigos. Ali existe um tipo de política que está pautada simplesmente em ações pontuais em datas comemorativas. Para o grupo, essa é uma postura equivocada, pois se deve de fato “cuidar da periferia todo dia”, completa Augusto em um tom discreto. De fato, assumir um compromisso no sentido de uma missão permeia a fala do grupo, que mais adiante discute as possibilidades do que é viável a ser feito para ajudar a comunidade, mesmo sem dispor de recursos financeiros. Fala-se em “arrumar a rua”, torná-la mais “bonitinha” para se retirar a visão “velha e feia”. O grupo propõe ações como ajudar os vizinhos a capinar, ensinar capoeira, ligar um aparelho de som e realizar uma festa ou convidar as crianças para a realização de uma palestra, essas seriam, portanto, algumas possibilidades de se ajudar a periferia. Os jovens ainda mencionam que a aquelas pessoas que dispõem de recursos poderiam realizar doações para comprar material escolar para crianças necessitadas. Em: O rap também (é alegria), a vida na periferia não tem só tristeza, não tem só tristeza. A gente também tem nosso momento de alegria, o momento de confraternização com a família, com os amigos que nem a gente tá aqui reunido aqui. Bm: Tem a política é isso aí. Não tem só o momento da periferia que é estragada, só tem violência, droga rolando. Não(.). Tem o momento de alegria também. O momento de confraternização. Tipo o pessoal só se une pra se confraternizar, se une, pra tipo fazer caridade, tipo no natal, reveillón, dia das crianças, dessas coisas, só em datas: datas marcantes. Não. A gente tem que procurá cuidá da periferia(1) Am: ºtodo diaº. Bm: Todo dia. Todo dia. Oh. O que que eu posso fazer? Eu não tenho grana. Mas o que que eu posso fazer pra ajudar essa área, essa rua aqui? A gente pode fazer pra ajudar essa rua aqui. Que é fazer, pra ficar mais bonita, a rua, pra tirar essa visão, véia feia. Ajudá os vizinhos a capinar aquelas planta, faz um grafite aqui, ensina uma capoeirinha, põe um sonzinho aqui, faz uma festinha, ou então chama um monte de crianças, chama as crianças e dá uma palestra sadia. Isso é ajudar a periferia ajudar a comunidade, tem um monte de criança carente doida pra entrar na escola, nu tem condições de comprar material, a gente tem que ajudar. Ajuda oh, pô ele não tem, eu tenho condições, tá sobrando aqui em casa, vamos doar praquele pessoal ali. Breitner Tavares 94 Durante o diálogo, Bantu fez muitas intervenções e por isso passou a chamar a atenção dos outros para que também participassem do diálogo, diante disso, o grupo abordou outro aspecto no que se refere ao estilo rap. Elmo em seguida toma a palavra e faz um contraponto ao discurso assistencialista feito anteriormente, ao chamar a atenção para a necessidade das pessoas que vivem na periferia, diz que devem “valorizar o rapper”, especialmente aqueles envolvidos com suas comunidades. Ele argumenta que as pessoas que vivem na periferia só valorizam aqueles rappers que já estão inseridos na mídia. Isso remete ao problema do “modismo”. Há que haver uma contrapartida da comunidade em relação ao apoio ao rapper. Deve-se demonstrar um reconhecimento por suas ações em prol das comunidades. Am: @Né Em? (2), Bora Em vamos falar aí pô.@ ((bate palma)). Em: ºNãoº. Eu acho, no meu ver, também ((que)) a periferia também tem que dá valor nos rapper da (periferia) quem tá movimentando a periferia, entendeu? A periferia só dá valor quando você tá (.) você tá na mídia, você tá tocando Am: modismo. O reflexo do castelo no lago do guerreiro: a relação de jovens com a família e conexões intergeracionais Y lança uma pergunta sobre a relação com as pessoas mais velhas. De fato, o grupo considera que as pessoas mais velhas têm uma grande capacidade de influenciar as mais jovens. Bantu considera que as pessoas mais velhas podem influenciar sua visão de mundo positiva e negativamente a partir de suas referências, assim como “um espelho” elas têm maior experiência de vida em relação às dificuldades superadas, diante disso, elas já consolidaram uma visão de mundo daquilo que se pode chamar de “seu castelo”. Além disso, o grupo considera importante a contribuição das gerações mais velhas no sentido da construção de sua autoimagem enquanto jovens ao associar as pessoas aos professores. Nesse caso, os Breitner Tavares 95 jovens fazem menção à vida para além da esfera familiar no espaço que se considera como “mundão”. Para eles, a vida no “mundão” também já é por definição cheia de ensinamentos, definida como “professora”. Portanto, parte da valorização da companhia das pessoas adultas está no sentido de que elas detêm, segundo sua interpretação, o conhecimento acumulado das regras do mundo social. Apesar de o grupo estar em grande parte de seu tempo na companhia de outros jovens em sua vida diária, considera-se que aí ocorre uma maior propensão a influências indesejáveis, como o uso de drogas, definidos como “o caminho inverso”. Y: Como é que é o relacionamento com seus irmãos e irmãs? E eu aproveitaria também pra perguntar como é a relação de vocês com os mais velhos? Bm: Eu no meu ver eu vejo nos meus olhos assim que a pessoa mais velha é::: dependendo da pessoa é um espelho pra mim. Porque eu vejo a pessoa mais velha, aquela pessoa que sofreu a vida toda e fez o seu castelo, seu mundo cresceu e eles são mais experientes. Eles têm muita coisa boa pra passar pra gente, muita coisa ruim também, entendeu? Porque eles têm experiência. Eu vejo a pessoa mais velha como::: como professor, um professor. Porque a vida é professora. A vida, a gente já é professora. Porque quem vive já aprende tudo na vida no mundão. Mas a pessoa mais velha (tem experiência). Eu prefiro tá mais perto de pessoas mais velhas conversando com ela que eu aprendo muito, que das pessoas mais novas que ao invés de me guiar pro caminho mais certo, me guia pro caminho inverso né? Pro caminho contrário. Que deixa a gente ( ) tem a pessoa mais velha (.) Em relação ao relacionamento entre irmãos e irmãs, o grupo considera que o relacionamento é bom, o que indica um sentido de integração, mas que é ocasionalmente interferido por brigas e discussões entre seus membros. Bantu diz que há as discussões entre irmãos, especialmente com relação a Augusto, que é o mais novo e o único que já possui um filho. Contudo, o que prevalece é a amizade. Muitos dizem que quase não há brigas na família e que é chamada pelos amigos de a “família perfeita”. Nesse contexto, os laços parentais estendem o sentido de integração e família, pois o grupo menciona que, de fato, alguns amigos, mesmo não pertencendo à família, frequentam sua casa e são tratados com os mesmos vínculos de intimidade como de uma família comum. Eles comem, dormem, passam boa parte do tempo juntos. Eles recebem aquilo que ficou definido como “tratamento de irmão”. Y: E a relação entre irmãos e irmãs como é que se dá? Bm: Tem as discussão. Que a gente discute mais com esse cabeça dura aqui ó @(.)@. Cabeça dura aqui mas é tranquilo. A amizade aqui ( ) um monte de gente fala que::: ( ) sei lá nem parece que vocês brigam. Que nem o Cabeça quando chegou aqui, achou aqui em casa aqui. Achou que a gente era uma família perfeita. Nunca viu a gente discutindo nada. Ele chegou aqui em casa Breitner Tavares 96 aqui. Viu a gente brincando, brincando um com o outro, conversando. Aí quando chegou ali na feira, ele chegou ali na feira, ele viu eu e o Ronin((discutindo)). Ah sim até que enfim eu encontrei um defeito em vocês. Eu pensei que fossem uma família perfeita. @()@ BM: O Y: Chico aqui não foi? Chegou bem assim e comentou isso aí. Por que é difícil a gente brigar, a gente discutir aqui. Ainda mais () a gente como fala? A gente adotou esses dois aqui como irmãos também, família BR45, que esse aqui ( ) não sai daqui ele mora no X Norte e deixa de fazer a janta na casa deles pra jantar aqui, tratamento de irmão mesmo de fé, de coração mesmo de fé. (2) Normalmente tu que fala pra caramba, véi. Eu bebi água de chocalho mesmo. @( )@ Bantu, representando a fala do grupo, considera que deseja trabalhar muito, pois seus pais são “guerreiros”, especialmente seu pai, porque tem duas famílias, uma em Ceilândia e outra em Samambaia, uma com seis e a outra sete filhos respectivamente. Ele teria assumido as duas como um “guerreiro”. Ele menciona que seu pai sempre se mostrou receptivo com primos, amigos e vizinhos, ele teria “adotado” todos. Ele acrescenta ainda que sua casa era considerada como ponto de venda de drogas, devido ao fluxo contínuo de pessoas. Ele alega que, de fato, sua mãe sempre conviveu com a casa cheia de amigos, onde todos se ajudam mutuamente, numa rede de apoio. Ele considera que sua casa é humilde fisicamente e que isso lhe causa certo embaraço, mas pior que isso é tentar mostrar uma imagem que, segundo ele mesmo, não corresponda com o que ele é realmente. Bm: (retoma o tema família) no meu ver eu pretendo trabalhar muito porque meu pai é guerreiro pra caramba, minha mãe é guerreira, principalmente meu pai, porque meu pai tem duas famílias tem. Af: sete aqui. Bm: sete filhos aqui e::: Af: mais seis lá. Bm: [mais seis lá na Samamba, tem mais seis, pra mim esse cara é guerreiro mesmo, assumiu as duas famílias, sem tirar nem por, chegou, guerreou mesmo e eu não quero::: Am: E adotou mais um. Bm: E adotou mais um, fora de adotar os primo, os filho e adota os vizin também. Né Cm? @(.)@ Adota os vizinhos e colegas entendeu? Muita gente já chegou a falar que a gente tava traficando droga, que é um entra e sai direto, um entra e sai, aqui nunca fica vazio, aqui é um entra e sai direto, muita gente achou que a gente trafica droga. Por que? Minha mãe sempre conviveu com a casa sempre cheia, movimentada, e ensinou a gente, tipo assim, a ajudar o próximo mesmo que você não tenha, ajudar o próximo ali, sem egoísmo, a pessoa entra aqui em casa, óh a casa é humilde, a ponto de vez em quando chega um povo aqui, eu sinto até vergonha da casa, tá assim mas eu vou mostrar uma coisa que eu não sou pra eles? Eu prefiro mostrar o que eu sou do que::; mostrar coisa que eu não sou entendeu? Breitner Tavares 97 A escolha da casa de Bantu enquanto um espaço de encontro dos jovens no setor onde mora reflete aspectos de uma estrutura familiar não hegemônica. Por um lado, seu pai representa simbolicamente duas famílias, a partir da imagem de “guerreiro” patriarcal. Contudo, o mesmo não provém as condições materiais para uma habitação de acordo com as expectativas dos seus filhos, que se sentem constrangidos “numa casa humilde”, mas que é aberta e receptiva a todos os seus amigos, que a elegem como um lugar onde eles convivem em família, entre jovens e com pessoas mais velhas, como os pais de Bantu. Sobre o convívio familiar dos membros do grupo, aparentemente há certas descontinuidades em relação à assimilação de papéis atribuídos pelos pais aos seus filhos. Duarte, por exemplo, alega que sua mãe quer que ele imponha uma conduta moral a sua irmã, que segundo ele, “está naquela idade”, ou seja, entre 16 e 17 anos, idade que supostamente remete a um maior interesse em estabelecer relações afetivas, como: “ficar” e “namorar”. Apesar do bom relacionamento com sua irmã, ele considera que ela está começando a “dar trabalho para seus pais”. Ele alega que não tem interesse em atender ao pedido de sua mãe para que ele a “coloque na linha”, ou seja, para que ele imponha, enquanto irmão mais velho, o tipo de comportamento moral que se espera de uma jovem de 16 ou 17 anos, porque isso, segundo ele, caberia a seus pais. Nesse momento, Bantu faz um gracejo que deixa Elmo um pouco encabulado, todos riem e mencionam que sua irmã nunca se impôs sobre suas ações, mas o riso de seus amigos remete a uma ambiguidade, pois Duarte como irmão mais velho estaria abdicando de um papel patriarcal, ao não tentar “pôr sua irmã na linha’. Por outro lado, ele não questiona o sistema de status relacionado à sexualidade de sua irmã, pois ele admite que sua irmã causa “problemas” e que a disciplina em relação ao seu comportamento é responsabilidade de seus pais. Em: Na minha casa mesmo só sobrou eu também, eu e minha irmã, meus outro irmão meu já casaram tudo. Aí só tá eu e minha, mas o relacionamento da gente é bom, mas ela tá naquela idade. Bm: @(2)@. Dm: ((Minha irmã já tem)) 16, 17 anos já começando a dar trabalho e tal, meus pais já tão ;começando a brigar com ela e tal. Aí minha mãe chega ni mim, qué cobrar de mim “Tu não faz nada não? Você quer que eu chegue e fale?” Entendeu? Colocar ela na linha. Em: @Quando era tu ela não fazia nada@. Dm: Ela qué eu deixe minha irmã na linha. Eu não posso fazer nada. Eu não gosto de me intrometer na vida entendeu? ( ) Eu deixo pro meu pai e minha mãe, meu pai resolver. Mas o convívio meu é tranquilo lá em casa, com meus pais, meus irmão. Elmo também ri e faz um comentário em que considera importante aquela discussão que, segundo ele, revela que, ao contrário do que se pensa comumente, o grupo não se identifica com uma postura “rebelde”. Para isso, ele apresenta outro exemplo sobre sua família em que haveria uma certa Breitner Tavares 98 dificuldade em convencer sua mãe a não ir aos shows de rap, pois seus pais insistentemente procuram frequentar suas apresentações. O grupo alega que os shows são parte do trabalho que realiza, portanto, não há como conciliar as apresentações com a presença de seus pais. Em função disso, há discussões quando ela é impedida de estar presente, situação em que ela “fica estressada”, mas acaba aceitando a situação, ficando “tranquila”. Por outro lado, essa assertiva, apesar de remeter ao discurso de integração dos jovens, traz elementos que reivindicam a constituição de um ambiente específico para as práticas sociais dos jovens. Em outros termos, isso significa que há um esforço deles de constituírem um espaço à parte do espaço familiar. Em outros termos, as orientações coletivas se tornam uma performance profissional, ela se torna parte exclusiva das trajetórias juvenis expressas pelo estilo rap voltado para uma audiência específica, que não compactua necessariamente com a presença de adultos. Em: E por incrível que parece isso é importante né? É algo que o pessoal tem curiosidade pra saber mesmo. Como um músico de rap, né? Considerado, considerado vagabundo, marginalizado como eles convive, convívio com a família. É dez. Isso é bacana. Esse é um papo bacana de se discutir. Bm: Eu acho que eles deve pensar que tu não dá certo com seus pais, que não dá certo com seus pais. Em: Que você é um rebelde, a gente é aqueles rebelde. Né? Em: @Rebelde@. Cm: Pelo contrário ( Bm: Aqui em casa a gente briga com minha mãe, pra ela não ir assistir nosso show. Que todo show ). se deixa ela vai. Ela, meu pai. Todo show. Se deixar ela vai. Ela e meu pai. A gente fala: “Não mãe, a senhora tem que entender que isso é um modo de trabalho nosso. É nosso trampo. A senhora não vai levar a gente lá pra trabalhar no restaurante com a senhora, vai? Pra ficar lá atrapalhando a senhora, vai? Então quando der a senhora vai” aí ela fica estressada, tranquila. Por que ela gosta ( ) e a gente aqui em casa também ( ) totalmente unido, unido pra caramba. Tem nossas desavenças, certo. Todo ser humano é um animal domesticado que nem eu te falei aqui né? Tem momento que estora, tem otros que tem pavio curto, tem outros que é mais calmo, outros ficam só comendo pelas beradas. Ser humano pra mim todo mundo é legal. Durante o trabalho de campo, encontrei, de fato, a mãe de alguns dos integrantes do grupo BR45 em shows de rap. Ela estava normalmente bebendo cerveja e dançando, demonstrando estar bem à vontade enquanto os jovens estavam preocupados com os detalhes da apresentação e os contatos que desejavam fazer com o público e produtores para viabilizar sua participação em futuros shows, além disso, notei que às vezes ela era deixada sozinha, pois os jovens se deslocavam para falar com outros grupos e pessoas, num tipo de dispersão comum em festas desse tipo. O relacionamento entre os jovens do grupo BR45 e suas famílias indica que os mesmos possuem vínculos de proximidade resultantes do processo de socialização vivenciado por eles. Esse sentido de Breitner Tavares 99 proximidade é expresso pela ideia de “castelo” que remete à maturidade e a “espelho” que influencia indivíduos de gerações precedentes, mas que compartilham do mesmo espaço de convívio que, neste caso, é a família. No ambiente familiar, pais e filhos encontram certa estabilidade moral, que é uma alternativa a outros espaços sociais externos à família, definida como “mundão”, em que há múltiplas influências que podem encaminhar para o caminho inverso. A relação entre irmãos e irmãs é definida em termos formais por determinadas hierarquias. Elas podem variar em função da idade, em que os mais jovens, “cabeças dura”, são orientados pelos mais velhos, e em função do gênero, em que o irmão mais velho deveria intervir na conduta de suas irmãs mais novas, “colocá-las na linha”, especialmente em relação a sua vida amorosa e, por conseguinte, sua sexualidade. Contudo, essa assertiva é limitadora ao se observar que nas famílias dos jovens alguns dos mais novos já constituíram família ou tiveram filhos antes de seus irmãos mais velhos, além disso, apesar de um discurso patriarcal, de fato, as garotas têm mais possibilidades de interação frente a uma postura liberal de seus irmãos mais velhos. Uma estrutura familiar em que o patriarca, “guerreiro”, representa duas famílias, ambas numerosas, associadas a vínculos familiares heterodoxos, irá criar condições para um ambiente onde prevalecem laços de uma fraternidade que ultrapassam a unidade dos vínculos familiares, criando uma atmosfera aberta, em que todos os amigos e amigas são “tratados como irmãos e irmãs”. Essa fraternidade cria diversas possibilidades de comunicação entre as diferentes gerações em seus processos interativos. Pais e filhos compartilham das mesmas experiências dentro do estilo rap. Contudo, tal integração é provisória quando os jovens decidem estabelecer outros vínculos a fim de construir um espaço de interação de membros de mesma idade, sem a presença de pessoas mais velhas, especialmente em se tratando de seus pais. Grupo Rap Comando: Rap é resistência: a gente fala o que a gente vê Empreendedorismo social e estilo de vida Descrição do trabalho no bairro setor QNZ Desde o início de dezembro de 2006, eu estava decidido a retomar minha pesquisa, que havia interrompido a mais de um mês, em função de outras atividades acadêmicas. Então resolvi buscar informações sobre um grupo chamado BR45 do Setor QNZ da Ceilândia. Na verdade, eu já tinha algumas informações sobre o grupo que chegou a se apresentar numa escola em que trabalhei no X Norte. Na ocasião me aproximei do grupo e fiz contato, o que ocorreu por volta de 2004. Eu conheci um dos integrantes do grupo, conhecido como Thiago, um pouco antes como capoeirista de um grupo da cidade. Contudo, no meio hip-hop ele era chamado de Bantu. Eu cheguei a acompanhar as atividades desse grupo, oportunidade em que conheci muitos jovens também ligados ao rap. Breitner Tavares 100 Depois de conversar com várias pessoas em Ceilândia, eu cheguei à conclusão de que as rádios locais possuíam uma função importante na difusão de novos grupos que produziam na cidade. Portanto, eu resolvi começar a minha busca através da Doctor FM, a mais ouvida pelos jovens, com que tive contato através da capoeira e da escola de ensino médio local. Ao sintonizar a rádio, logo descobri o nome do seu radialista, Black Kart, bem como seu telefone. Ao ligar para Black Kart, apesar de ele não ter o telefone do grupo, ele me passou o contato de um rapper, chamado Lebre, que talvez pudesse me ajudar. Dessa forma, também liguei para Lebre, me apresentei como pesquisador e mencionei a figura do Black Kart. Ele foi gentil e se prontificou a colaborar, informando o número de Liba, um dos membros do Rap Comando; além disso, combinamos fazer uma entrevista, assim que fosse possível, pois Lebre alegou que naquele momento estava de mudança para outro endereço. Descrição do trabalho com o grupo Rap Comando Com o objetivo de encontrar o contato para a entrevista com o grupo de rap na QNZ, eu liguei para Liba. Eu me identifiquei como pesquisador e propus a realização da entrevista. Coincidentemente, Liba disse que haveria uma atividade promovida por uma ONG, chamada Juventude Negra, na qual ele trabalhava. Ele mencionou que poderíamos aproveitar o contexto da oficina para realizarmos a entrevista naquele mesmo dia; Liba era, além de rapper, uma liderança local que coordenava uma oficina em que se ensinavam rap e street dance para jovens da QNZ de 14 a 20 anos. De fato, fiquei surpreso, pois em alguns casos levei mais de um mês para conseguir agendar uma entrevista, e, nesse caso, tudo foi arranjado logo de imediato. Combinamos de nos encontrar às 14 horas, daquele sábado, dia 09 de dezembro de 2006. Durante nossa conversa ao telefone, notei algo curioso em sua fala ao dizer: “pode trazer a câmera e filmar. A rapaziada vai tá toda lá”. Na verdade, isso ocorria sempre quando pensavam que eu estava fazendo uma reportagem jornalística ou cinematográfica. Nesses casos, eu tinha que explicar a natureza “sociológica” da minha pesquisa e, inclusive, o anonimato em nome da ética na pesquisa. Nesses casos, alguns costumavam dizer que não haveria problema, outros já se sentiam mais à vontade para falarem de assuntos mais “delicados”. Notei que o interesse de alguns grupos de rap por jornalistas estava relacionado à sua tentativa de inserção no meio artístico, além da possibilidade de uma projeção social da Juventude Negra, que oferecia recursos para o trabalho de oficineiro de rap, coordenado por Liba. Às 14 horas, cheguei ao lugar combinado. Era um Centro de Ensino Fundamental, numa das regiões mais pobres de Ceilândia, que atuava como um centro de práticas educativas desenvolvidas por ONGs, como Juventude Negra e Juventude e Paz, envolvidas num projeto do Governo Federal, intitulado Breitner Tavares 101 Segundo Tempo. Na QNZ, bem como em outras localidades pobres do Distrito Federal, eram desenvolvidas atividades, tais como: artesanato de cestaria, pintura, capoeira, jiu-jitsu, rap e break. Ao entrar na escola, observei que alguns garotos estavam pelo pátio aguardando o início das atividades. Logo em seguida, um rapaz negro, de estatura média e robusto, 20 anos, se apresenta como “Liba”, ao seu lado estava outro rapaz, branco, filho de nordestinos, 19 anos, conhecido como Rubão, ambos coordenadores do grupo e membros de outro grupo de rap chamado Rap Comando. Havia alguns garotos próximos que também cumprimentei. Em poucos minutos, re-expliquei a natureza da pesquisa, disse que não se tratava de uma “filmagem”, como alguns esperavam, mas que eu havia trazido uma câmera fotográfica e que poderíamos tirar algumas fotos ao final da entrevista. Na escola, estavam ocorrendo algumas atividades ligadas a artesanato. O portão ficava aberto para que houvesse o acesso da comunidade ao evento. Liba estava esperando a presença de alguém da direção da escola para obter a autorização para ocupar uma das salas, pois a escola estava em meio a preparativos para uma atividade comunitária chamada Festa da Família. Após a chegada da coordenadora, imaginei que eu deveria me apresentar, mas ela nem sequer se deu ao trabalho de perguntar quem eu era ou o que eu estava fazendo ali, nas imediações da escola, com um grupo de jovens adolescentes40. Por fim, obtivemos uma chave para abrir uma das salas disponíveis. Além disso, a escola também cedeu um aparelho de som para os jovens ensaiarem uma apresentação que ocorreria na festa no domingo próximo. Entramos todos na sala e providenciamos um círculo com as cadeiras, para a realização do grupo de discussão, enquanto isso, outros jovens chegavam, ainda sem entender muito bem o que ocorreria ali naquela “quebra de rotina”. Liba, assumindo sua posição de liderança, solicitou que todos se sentassem e se apresentassem, eu fui o último a fazê-lo. Aproveitei a oportunidade para falar a todos de minhas intenções enquanto pesquisador. O grupo de treze pessoas era majoritariamente masculino, mas, no grupo, também havia uma garota chamada Amanda (Af), de 19 anos. Posteriormente, chegou outra garota, chamada Bruna (Bf), uma garota branca e punk-rocker41, que frequentava as oficinas, mas não pertencia à família42. Ela, moradora do Plano Piloto, era estudante no curso de Artes Plásticas da Universidade de Brasília (UnB) e desenvolvia um trabalho em umas das ramificações do projeto Escola Aberta. Durante o diálogo com o grupo, Bruna usou dessa distinção social para não responder às perguntas, ou simplesmente para se posicionar como “analista externa” ou “outsider” das respostas dos 40 De fato, em nenhuma das escolas em que estive presente, me foi solicitada qualquer identificação por parte dos funcionários ou mesmo da equipe pedagógica. 41 O estilo punk-rocker caracteriza-se pelas calças justas, ‘skinny’, com botas militares e roupas de cor preta com estampas com mensagens de protesto ou de bandas. Bruna estava usando um par de tênis Adidas, o que já induz a uma outra variação estilística, uma redefinição. O estilo punk em Brasília atrai mais jovens brancos das classes médias. 42 O termo família é utilizado de forma a se identificar o grupo. Por exemplo, Família Rap Comando. Em outros contextos também se utiliza o termo posse para representar a organização de um ou de vários grupos de jovens dentro do hip-hop. Breitner Tavares 102 outros jovens. Além de Amanda, havia outra garota pertencente ao grupo, Carla (Cf), namorada de Liba, mas ela não esteve presente durante a entrevista. Em relação às características desse grupo, ele foi o mais numeroso com que já trabalhei, aproximadamente 13 pessoas, e a maioria tinha menos de 18 anos. Havia alguns meninos, de dez a doze anos aproximadamente, que estavam ali apenas como observadores, como amigos dos membros oficiais do grupo Rap Comando. Apesar das respostas terem sido mais “curtas” em algumas situações, a discussão foi adquirindo força na medida em que todos foram adquirindo confiança na atividade desenvolvida. A princípio, Liba aparentou um certo nervosismo ao tentar manter a centralidade das respostas. Ele procurou por diversas vezes limitar a resposta em uma única frase e, em seguida, solicitar que eu apresentasse a pergunta seguinte de modo que os demais ficavam sem se pronunciar. Em outros momentos, Liba apontava para alguém solicitando sua consideração sobre a pergunta. Normalmente as respostas eram apresentadas sequencialmente, no sentido horário. Isso se alterou nas mudanças de foco, quando alguns quebravam a sequência tacitamente estabelecida e passavam a apresentar suas falas. Apesar de terem sido contados treze participantes no grupo Rap Comando, apenas sete integrantes responderam ao questionário. Os demais alegaram ser simplesmente amigos do grupo. A estudante da UnB alegou estar ali simplesmente para desenvolver uma oficina e, portanto, não gostaria de responder ao questionário. Descrição dos participantes dos grupos de discussão Rap Comando Liba (AM) líder do grupo, compõe as letras e organiza as apresentações, tem 20 anos, reside em Ceilândia, tem um filho, 5 irmãos, vive com os pais, está fora da Escola, é oficineiro de rap, possui ensino fundamental incompleto. Pai: mineiro, ensino fundamental incompleto, serralheiro. Mãe: mineira, ensino fundamental incompleto, empregada doméstica, cozinheira em restaurante. Bruna (Bf) observadora do grupo, tem aproximadamente entre 20 e 25 anos, mora no Plano Piloto, se identificou como estudante de Artes Plásticas da Universidade de Brasília, e, apesar de ter participado do grupo de discussão, não pertencia ao grupo Rap Comando. Ela apenas ministra oficinas para jovens como um trabalho relacionado à ONG brasiliense Resistência Negra. Além disso, ela se recusou a preencher o questionário de identificação dos jovens. Bruno (Bm) cantor, tem 16 anos, reside em Ceilândia, não tem filhos, três irmãs, nasceu Pernambuco (PE), vive com os pais, está fora da escola e desempregado, seu lazer preferido é hip-hop e bailes, faz parte de outro grupo há quatro meses. Conheceu o grupo na vizinhança, encontram-se nos sábados e domingos em casa. Mãe: ensino fundamental incompleto, doméstica, pernambucana; Pai: ensino fundamental incompleto, carpinteiro, pernambucano. Breitner Tavares 103 Carla (Cf) cantora tem 19 anos, mora em Ceilândia com os pais, tem dois irmãos, freqüenta a escola, cursa o ensino fundamental, desempregada. Participa de um grupo de dança – street dance – há 3 anos, está no Rap Comando há 3 meses, encontram-se duas vezes por semana (sábados e domingos) na escola. Conheceu o grupo na escola. Mãe: ensino fundamental incompleto, doméstica. Pai: ensino fundamental incompleto, pedreiro. Carlos (Cm) cantor e compositor, tem 19 anos, nasceu em Ceilândia, não tem filhos, possui 3 irmãos, vive em Ceilândia com os pais, está na escola, cursa o ensino médio, está desempregado. Aprecia aulas de rap, street ball, está no grupo há 6 meses, se encontra com o grupo duas vezes por semana, na escola. Conheceu o grupo na vizinhança, através de amigos. Mãe: ensino fundamental incompleto, dona de casa, cearense. Pai: ensino fundamental incompleto, aposentado, cearense. Manu (Mm) cantor, tem 17 anos, mora em Ceilândia, é solteiro, não tem filhos, tem uma irmã (Af), católico, brasiliense, mora com os pais, possui ensino fundamental incompleto, está desempregado. Pai: goiano, ensino fundamental incompleto. Mãe: goiana, ensino fundamental incompleto. Amanda (Af) cantora e dançarina de street dance (b-girl), tem 15 anos, mora em Ceilândia com os pais, é solteira, não tem filhos, tem um irmão (Fm), é católica, brasiliense, possui ensino fundamental incompleto, está desempregada e deseja cursar artes cênicas ou medicina veterinária. Participa de outro grupo de dança – street dance – há 3 anos, está no Rap Comando há 3 meses. Encontram-se duas vezes por semana na escola. Conheceu o grupo na escola. Pratica capoeira. Pai: goiano, ensino fundamental incompleto. Mãe: mineira, ensino fundamental incompleto, camareira. Galego (Gm) cantor e compositor tem 15 anos, mora em Ceilândia há 3 anos, é solteiro, não tem filhos, tem um irmão, é católico, gamense, possui ensino fundamental incompleto, deseja ser bombeiro militar. Gosta de futebol e cantar rap, reúne-se duas vezes por semana (Sab-dom) na escola, conheceu o grupo através do professor. Pai: tocantinense, ensino fundamental incompleto, pedreiro. Mãe: tocantinense, ensino fundamental incompleto, empregada doméstica. Rubão (Rm) cantor e disc jokey, alem de lidera o grupo junto com liba, tem 23 anos, é branco, católico, vive em Ceilândia com seus pais. É solteiro, não tem filhos, possui 2 irmãs. Rubão possui ensino médio completo e trabalha como pedreiro. Seu lazer preferido é cantar rap. Está no grupo há um ano, se encontra com este nos fins de semana, na casa de Liba. Conheceu-o numa oficina de rap na escola no projeto Juventude Negra. Tanto seu pai, como sua mãe possuem o ensino fundamental incompleto. Formação do Grupo Rap Comando: envolvimento com estilo e o movimento hip-hop Breitner Tavares 104 Y lança uma pergunta ao grupo sobre sua formação, ou seja, como os integrantes o compuseram. Os jovens mencionam que o grupo foi criado há seis meses, a partir de um trabalho social mantido por uma ONG local, chamada Resistência Negra. Os jovens, ao entrarem em contato com a ONG, apresentaram interesse em desenvolver um trabalho em torno dos elementos do hip-hop, mais especificamente em torno do rap. Eles definem a formação desse grupo, como menciona Liba (Am), como a realização de um “sonho”, o grupo deveria ser como um “comando militar” com seu propósito transformador, daí o nome Rap Comando. Am: O Rap Comando foi montado há seis meses, tudo começou assim, eu trabalho com o projeto social né, aí eu ganhei uma bolsa pra dar aulas de rap, ou o que seja, aí eu escolhi o rap, dar aula de rap eu sempre tive vontade, eu sempre tive um sonho de montar um verdadeiro exército que você tá vendo aqui. O exército não só eles que você tá vendo aqui, mas são os alunos que entram na aula, não é um grupo, é o verdadeiro Rap Comando, é isso aí. Y lança uma pergunta sobre o sentido de hip-hop para o grupo. Os jovens passam a apresentar sua versão para a formação do hip-hop, definem a idéia dos quatro elementos que são: DJ, o grafite, break e o MC. O grupo discute o que para ele representa um equívoco quanto à compreensão do hip-hop e do rap. O primeiro seria a conjunção de diversos elementos estéticos, mas que atualmente é confundindo como rap norte-americano. O rap teria ficado restrito ao sentido do que é cantado em português, ou seja, o “rap nacional”. Eles mencionam uma história em que um rapper norte-americano que teria vindo ao Brasil considerou o “rap nacional” como o rap mais autêntico, “verdadeiro”, devido ao seu apelo político de denúncia das desigualdades sociais. Cm: O rap faz parte do hip-hop, mas tem muita gente que chama o rap gringo de hip-hop. A própria música americana. Am: Tem muita gente que gosta de diferenciar o rap gringo do rap nacional. Teve um rapper gringo que chegou em São Paulo pra cantar e falou que hoje “eu conheci o verdadeiro rap, o rap brasileiro. Esse que é o verdadeiro rap pra mim”. Cm: Rap e hip-hop são duas coisas diferentes que não têm nada a ver. Y lança uma pergunta sobre como é o cotidiano no setor onde o grupo vive. O grupo está comprometido com a busca de seus objetivos, “correndo atrás”. Suas falas argumentam no sentido da configuração de um grupo que compartilha das mesmas experiências geracionais. Há aqueles que sofrem, mas o grupo tenta agir como uma família. Os jovens comentam que se algum integrante no grupo está “feliz”, todos se sentem “felizes” e, por outro lado, se alguém está “triste”, todos também sentirão “tristeza”. Para eles, independentemente das dificuldades, eles se mantêm unidos. Essa orientação que conduz o comportamento coletivo do grupo define um sentido mais abrangente para o rap, considerado por Liba como “resistência”. O sentido da resistência para o grupo é descrito a partir da potencialidade de mobilização que o rap propicia aos jovens como meio de expressão do que eles vêem. Breitner Tavares 105 Uma das razões para a mobilização do grupo está em se buscar estratégias para enfrentar a violência com a qual eles convivem na região em que moram. Essa violência, segundo eles, pode se manifestar de diversas formas, pode estar relacionada ao fato de serem negros ou não terem estudado, aspectos que explicariam situações de humilhação. Y: Como é o dia-a-dia aqui na QNZ? Am: O dia-a-dia aqui na QNZ é como todos os outros dias, todo mundo correndo atrás. Tem uns que sofrem, os sofredores, e a gente somos uma família. Um tenta ajudar o outro. Se você tá feliz, eu tô feliz com você, se você tá triste, eu tô triste com você e assim por diante. Gm: Não importa a dificuldade, mas a gente tá junto. Bm: Rap é resistência. Cm: Também através do rap a gente tenta dizer tudo o que a gente vê que a agente convive, a violência que a gente sofre às vezes por ser negro ou não ser bem estudado. Tem pessoa que que aproveita que a gente não tem estudos técnicos pra humilhar a gente. Na verdade pra gente que tá tentando fazer algo verdadeiro. A gente tá aqui lutando, buscando apoio. Eu tenho o meu grupo, mas eu tô aqui também ajudando o Rap Comando e ao mesmo tempo eu tenho ajudado todo mundo. (( )) A gente tá tentando mobilizar todo mundo aqui na periferia, pra ter mais gente no rap. Quanto mais gente tiver no rap melhor ainda vai ser pra gente. Para o grupo que compartilha da mesma situação de classe e experiência geográfica, o rap é um meio para arregimentar outros jovens para uma mobilização na periferia para a construção de algo autêntico, definido por eles como “verdadeiro”. O rap é instrumento que permite ao grupo avaliar as condições sob as quais estão submetidos e que tipo de agenciamento pode estabelecer no sentido de enfrentamento dessas condições. Os jovens narram em suas letras situações que envolvem a pobreza e a violência que os atinge na região onde vivem. Portanto, o rap é definido simultaneamente como diagnóstico, projeto e o próprio sentido da existência do grupo. Em grupo os jovens estabelecem suas estratégias, a partir da subjetividade e da dimensão lúdica que o rap lhes oferece como meio de inserção no espaço público e concorrencial. Isso implica agir enquanto jovens empreendedores, participar de shows em espaços públicos, além de tentar buscar algum patrocínio para a produção de um CD ou vídeo do grupo. O Rap Comando é estruturado por alguns jovens que, inclusive, advêm de outros grupos que estão engajados na formação de um coletivo maior, o “Comando”, que usa o rap para demonstrar o que há de negativo e positivo no contexto existencial do grupo e de sua comunidade local. Y lança uma pergunta sobre o relacionamento do grupo com seus pais. Liba quer saber se a pergunta é sobre a relação antes ou depois do envolvimento dos membros do grupo com o hip-hop. Y responde que os dois momentos são importantes. Diante disso, o grupo informa que, de modo geral, o relacionamento familiar não é afetado por seu envolvimento com o rap, contudo, os jovens admitem que houve inicialmente uma certa resistência e até mesmo uma interpretação negativa dessa escolha com Breitner Tavares 106 relação ao estilo hip-hop. Os pais dos jovens associavam o estilo hip-hop a um comportamento típico de bandidos, “coisa de bandido”. Para eles, quem cantava rap era bandido. Os jovens argumentam que, de fato, cada um tem seu estilo, “ninguém é parecido com ninguém”, e independentemente do estilo, seja “forró” ou “pagode”, qualquer um pode ser bandido. Os jovens associam estilo à crença religiosa, ao mencionar que deve-se ter dúvida até mesmo da igreja. Am: Graças a Deus, graças a Deus, meu relacionamento é ótimo com a minha família (1) no começo: tinha aquela né, meus pais olhavam rap como ((coisa)) de bandido, Quem cantava rap era bandido. Não tanto no rap quanto no pagode e no forró, seja lá qual for o estilo qualquer um pode ser bandido, até na igreja você tem que ter dúvida. Ninguém é parecido com ninguém, cada um tem seu estilo. No começo rapaz, eu nem queria cantar rap, eu subia no palco e queria cantar que nem o Michael Jackson, quebrava geral e só queria saber de agarrar as mulheres, sério. A partir de hoje (( )) eu comecei a entender o que que é rap, agora eu canto rap desde de 1994. Eu comecei a entender o que que era rap agora, agora eu posso virar pra você e falar “agora eu sei fazer rap” porque rap não é so subir no palco e falar que canta não. Rap é você correr atrás. Rap é você fazer uma parceria com os outros, montar um projeto com os meninos entendeu, rap não é subir no palco não, quem começou a cantar, quem lançou o rap no Brasil o rap é correr atrás, não é não, Rubão? O grupo redefine rap como uma forma de engajamento, alguns jovens consideram que só compreenderam o rap muito recentemente, eles consideram que no passado a única intenção era de promover entretenimento, de “dançar como o Michael Jackson”. O hedonismo era o elemento norteador do habitus juvenil do grupo. O que importava era o flerte e a paquera com as garotas. Por outro lado, o grupo busca outras referências para sua conduta social. O envolvimento com o rap ultrapassa o sentido do mero entretenimento ou a performance no palco. A estrutura de habitus do grupo é definida pela seu comportamento político voltado para a elaboração de estratégias de enfrentamento da pobreza urbana dentro de uma lógica comunitária definida pelos jovens como “correr atrás”. Os jovens, de um modo geral, relatam que suas famílias, apesar de manifestarem certa desconfiança em relação ao estilo escolhido por seus filhos, também depositam confiança e apoio a seu esforço para se tornarem cantores de rap. Carlos (Cm) menciona que sua família nunca o discriminou alegando que rap seria coisa de malandro. Ele admite que quando iniciou a cantar se sentiu “emocionado” pela aceitação de sua família em relação a sua escolha. Sua família lhe disse que se esse era seu desejo, ele deveria ir em busca de sua realização, além disso, todos queriam acompanhar cada detalhe de sua produção, como letras e apresentações públicas. Ele alega que o esforço para a mobilização dos jovens através do rap, chamado de “luta”, está voltado para o bem-estar deles mesmos e, além disso, é um indicativo de que a associação à malandragem não se sustenta, “coisa de malandro, isso não existe não”. Breitner Tavares 107 Segundo os jovens, há uma discussão entre eles e suas famílias sobre o envolvimento com a música e eventual possibilidade de inserção num circuito profissional do grupo de rap. Em relação a isso, alguns pais criticam a escolha de seus filhos sobre a remota possibilidade de sucesso profissional pela escolha de se trabalhar com o rap comercialmente, devido ao fato de o mesmo não obter a mesma visibilidade no mercado como outros ritmos musicais produzidos por jovens da classe trabalhadora, como o pagode. Contudo, os jovens contestam tais assertivas, alegando que gradualmente estão adquirindo notoriedade na região onde vivem, em meio a juventude, através dos trabalhos sociais realizados através do rap, definido pela expressão “pessoal chega na rua, pega na (nossa) mão e comprimenta”. Para os jovens do Rap Comando, apesar de não haver um reconhecimento na forma de capital econômico pelas apresentações que realizam em locais públicos, como escolas, há por outro lado o reconhecimento local de outros jovens que se identificam com a música do grupo. Isso, por sua vez, gera um prestígio social que mantém os vínculos de sociabilidade do grupo em função do estilo hip-hop. Diante dessa discussão, o grupo recorda-se de uma ocasião em que uma vizinha chamou a polícia para acabar com uma festa que os jovens estavam realizando em uma casa. Eles ficaram apreensivos, entretanto, comentam que os policiais ficaram a seu favor e que a festa poderia seguir em frente, ao menos até o horário permitido, 10 horas da noite. Quanto à mulher autora da denúncia, ela poderia reclamar o quanto quisesse, pois a polícia não faria qualquer intervenção até aquele horário. Esse comportamento da polícia foi interpretado como um indicativo de que as coisas haviam mudado no tratamento que costumava ser destinado a eles. Essa mudança no tratamento da polícia é definida por Rubão como um aumento da aceitação porque o rap tem se popularizado, “chegando com tudo”. Rm: Meu pai falava que rap não dava resultado porque era algo que não estava na mídia como pagode. Mas depois que a gente insistiu o pessoal passou a nos conhecer e quando chega na rua, chega, pega a mão e cumprimenta. Am: Teve um tempo que chamaram foi a polícia pra gente, barraram mesmo. Sabe que o PM falou? ((que nada até 10 horas ((da noite)) ela pode ficar reclamando à vontade passou ela (( uma vizinha descontente com o barulho da festa)) pode chamar a gente. Qué sabe a coisa hoje mudou totalmente. Rm: hoje em dia tá mais aceito. Por que o rap também tá chegando com tudo. Em relação a um reconhecimento positivo do grupo envolvido com hip-hop, não há um consenso absoluto dentro do próprio grupo. De fato, uma das metáforas de foco do grupo continuou a girar em torno da associação dos jovens com o estilo hip-hop. O próprio grupo reconhece que a aceitação da família em relação a sua escolha ocorre a partir de uma interpretação diferente do estilo, eles “vêem de um modo diferente”, porque “pegaram outro horizonte”. Rm: Na maioria das vezes, os pais incentivam muito. Eles veem de um modo diferente, mas por causa das roupas folgadas e tudo mais aí eles pegam o horizonte de que os caras é bandido e Breitner Tavares 108 tudo mais. Antigamente os malandros usavam roupa folgada, mas graças a Deus meus pais nunca me criticaram por andar com as pessoas que curte rap e tudo mais, mas tem sempre aquela desconfiança, será que eles vai fazê isso ou aquilo, eles sempre perguntam entendeu? Graças a Deus meus pais sempre apoiaram. O estilo hip-hop, compreendido no seu habitus corporal, com a forma de se vestir e gesticular, é um dos aspectos que geram uma rejeição por parte dos pais em relação à escolha dos filhos. As roupas folgadas, segundo o grupo, antigamente eram utilizadas por malandros e seriam, portanto, a principal razão para o preconceito. Além disso, apesar da concessão dos pais em relação ao envolvimento dos filhos em grupo de rap, permanece uma relação de desconfiança no que se refere às possíveis ações dos jovens, base para questionamentos constantes de suas atitudes. Sobre a construção da imagem do grupo construída e apresentada aos seus pais, os jovens argumentam, em primeiro lugar, que é importante se “passar uma boa impressão”. Dessa forma, um jovem pode conviver com outros que fazem coisas consideradas erradas. O que importa é demonstrar que apesar das companhias, o jovem não se envolve em tais “coisas erradas”, portanto, “passar uma boa imagem ajuda”. Cm: A coisa anda também, se você passa uma boa impressão pra eles, que pode ter, você pode até andá (.) com os cara que faz coisa errada e tudo, mas se você mostra pra eles que você andando mas não tá fazendo (.) com certeza eles vão te apoiar. Que nem lá em casa ((meu pai)) já ajuda, nunca discriminou. Eu penso assim né? Se você passa uma boa imagem, ajuda. Em contraposição a esse discurso da criação da “boa imagem”, o grupo afirma que alguém não pode simplesmente fazer o que quiser, “fazer o que ele faz”. Argumenta-se em favor de uma ética do trabalho, em que o jovem deve também estudar e produzir economicamente. O grupo desmistifica a idéia de um sucesso fácil como cantor de rap. Segundo ele, muita gente inicia uma nova atividade e abandona outras ainda em curso, pois muitos acham equivocadamente que o rap seja uma atividade rentável, mas isso não corresponde à verdade. Desta forma, deve-se encontrar o rap através do trabalho. Um trabalho à parte será responsável pelo financiamento da produção musical no rap, como, por exemplo, um videoclipe. Rm: O cara não pode parar de fazer o que ele faz, tem que trabalhar, estudar, entendeu? Porque muita gente começa fazer uma coisa e larga as outras entendeu? O cara para de estudar, de trabalhar só pra ficar no rap entendeu? Por achar que o rap dá dinheiro. ((Ele)) tem que encontrar o rap com Breitner Tavares 109 seu trabalho, com suas coisas. Fazer com que ele possa sustentar o rap, porque o rap você quer fazer uma música, um clipe, você tem que pagar né? Alguns membros do grupo aproveitam para se orgulhar de sua trajetória, pelo seu envolvimento com o rap que lhe provém o sustento. Liba ainda afirma que aquele que souber rap bem ganha dinheiro. Ele diz que está vivendo bem, mas que inicialmente é necessário algum investimento. Am: Hoje eu posso dizer valeu a pena olhar prá trás e dizer valeu a pena, porque vivo de rap. O rap, ele dá dinheiro pra quem sabe fazer rap. Graças a Deus eu tô vivendo bem, rap dá dinheiro dá, mas no começo você vai ter que gastar. De fato, no grupo Rap Comando há a estruturação de uma ética do trabalho, que tenta combinar aspectos de uma responsabilidade social de “lutar pela periferia”, com uma postura empreendedora no sentido de viabilizar a produção do rap, que passa inevitavelmente por aspectos econômicos, “gravar um cd”. Numa tentativa de reflexão sobre a dinâmica de reconhecimento e projeção social, o grupo considera que o rap tem dificuldade de inserção no mercado fonográfico devido ao seu apelo crítico contra os problemas sociais do mundo capitalista. Portanto, aqueles músicos que não cantam rap com essas temáticas seriam mais bem sucedidos. A partir de uma perspectiva de assumir essa posição num campo competitivo da produção artística, aliada à busca de uma autoimagem positiva, o grupo considera que rap não se restringe a “dizer palavrão”. Bm: Tentar influenciar os máximo as pessoas de dizer que o rap não é xingar aquilo, xingar palavrão,. ((Rap)) é mesmo poesia, é um protesto da periferia, às vezes o rap não vai pra mídia por causa disso, porque luta contra o capitalismo, fala muito sobre a desigualdade social e aí vai. O Marcelo D2 que fala coisas legais, o Gabriel Pensador que é pop que muitas vezes não fala o que é protesto mesmo igual Racionais. Durante a discussão, os jovens falaram sobre sua relação com o trabalho. Muitos no grupo não trabalham, mas eventualmente se envolvem em atividades informais com vistas a contribuir com o pagamento das despesas domésticas. Em relação a isso, a situação de Manu ganha destaque. Ele alega que está desempregado e trabalha só quando surge uma oportunidade de emprego temporário. Ele afirma que sua família está em Breitner Tavares 110 grandes dificuldades. Seu pai, em função do alcoolismo, já não trabalha há sete anos, portanto, todas as despesas em relação à família recaem sobre sua mãe. O jovem afirma que vai em busca de trabalhos eventuais para ajudar nos pagamentos das despesas. Manu ainda menciona uma experiência em que iniciou uma atividade numa fábrica de confecções de uniformes de policiais, que tinha que lidar com produtos químicos. Segundo ele, não foi possível aguentar trabalhar de pé todo o dia aspirando substâncias químicas, como cola e solventes. Manu continua procurando emprego. Diante do seu depoimento, Liba como uma liderança dentro do grupo aproveita para retomar a concepção de “sonho” dentro do grupo. Ele enfatiza o desejo de todos ali em trabalhar com o rap e o grafite e que, após o curso de formação, no qual estão inseridos, todos vão receber um diploma e serão readmitidos dentro do projeto mantido pela Juventude Negra. Ele promete ainda que todos sairão no final do curso num vídeo postado no You Tube43. De fato, o sentido de realização do “sonho” está voltado para uma ética do trabalho em que os jovens do grupo agem como empreendedores, ou seja, agem objetivamente no sentido de elaboração de uma apresentação que desperte interesse de outros jovens em se envolver com o trabalho da ONG na qual o grupo está associado ou em difundir sua produção musical. Para os jovens do Rap Comando, receber um “diploma” e ter a possibilidade de ser “readmitido” no projeto de uma ONG implica uma profissionalização com vistas a uma inserção num mercado de bens simbólicos de músicas, videoclipes e shows. A promessa de Liba em relação a produzir um vídeo para ser postado numa comunidade virtual, como o You Tube, significa dentre outras coisas a consolidação do grupo num espaço em que diversos outros grupos buscam o reconhecimento profissional, e além disso, implica inserir o grupo numa escala de luta pelo reconhecimento mais amplo, o global. Portanto, o estilo hip-hop assumido pelo grupo e recriado a partir de suas múltiplas interações nos espaços de sociabilidade do grupo envolve elementos de organização estética política, que dialoga com a luta concorrencial do mercado. Apesar da formação e consolidação do grupo perpassar diversas dinâmicas de socialização dos jovens por intermédio das relações vicinais, na escola ou áreas de lazer correlatas os jovens mencionam que os primeiros contatos com o rap enquanto um estilo musical ocorreu em casa por influência dos pais, tios ou irmãos mais velhos, algo que causa grande satisfação nos jovens do grupo. Bianca diz que não tem intrigas com seu irmão, pois ambos fazem a mesma coisa em termos de envolvimento com o rap. Bruno por sua vez reconhece que há uma relação de “passado e geração” em relação a seu tio, que escutava rap quando ele era criança, algo que, segundo ele, o influenciou, “até hoje eu curto”; por sua vez, ele influencia seu irmão mais novo, que gosta de rap, assim como sua mãe, “passando direto de geração a geração”, “Mó massa”. Carlos argumenta que passou a ouvir rap por influência de seu pai, que atualmente o apoia e acompanha seu trabalho como músico. Ele admira seu pai gostar de rap, “massa”. Galego admite que há momentos em que briga com seus irmãos, mas que em geral tudo acaba bem, “sem 43 You Tube é um sítio de internet que oferece uma ferramenta que permite a seus usuários inserirem imagens e criar fóruns de discussão sobre o material exposto. Vide: www.Youtube.com Breitner Tavares 111 muita treta”. Seus irmãos gostam de rap e sua irmã gosta de rock, informação que despertou o riso dos outros presentes. Em relação ao relacionamento com os mais velhos, em geral, o grupo considera importante o respeito mútuo em relação às escolhas de cada um. 7.2 Grupos Revolução MCs e Resistência Periférica: estilo de vida e configuração urbana Grupo Revolução MCs – Mudar de atitude sem mudar o jeito: orientações coletivas da amizade e o rap como formas de resgate No mês de junho de 2006, dediquei-me a fazer contato com diversos grupos. Nesse caso, o grupo foi encontrado por intermédio de um produtor musical de Ceilândia. Personalidade marcante dentro do rap em Brasília, Ruanda me sugeriu que eu contatasse o grupo Revolução MCs do Setor QNY de Ceilândia, liderado por Amaro. Ruanda o definiu como “a pessoa com mais revolta de que já havia conhecido”, mas que seria uma boa entrevistá-lo, pois ele tinha boas idéias, seria uma pessoa ativa no movimento em termos musicais. De fato essa foi a minha primeira entrevista com jovens durante o trabalho de campo, também foi a primeira utilizando um gravador digital. Ao chegar à QNY numa quanrta feira a tarde, notei um silêncio típico de cidade do interior, poucos carros, algumas pessoas andando pelas ruas, praticamente todas pavimentadas. Ambiente quase bucólico e o imaginário de violência naturalizado por muitos criava um tom ambíguo referente ao apelido do setor, chamado de “Fazendinha”, em alusão à favela carioca Rocinha ou ao clima interiorano. De fato, tratava-se da última parte da cidade, a mais distante dos recursos que uma cidade costuma oferecer, salvo pela presença de um posto de saúde e uma escola de ensino fundamental. A entrevista foi marcada na casa de Amaro (Am). Tínhamos marcado a entrevista para as 3 horas da tarde, cheguei no horário e fui recebido por Blink (Bm) que, logo no início, foi muito simpático e atencioso. Era uma casa simples, construída nos fundos do terreno, no quintal havia árvores, tais como, mangueiras, espadas de São Jorge, ervas medicinais e alguns arbustos. Na casa estavam suas irmãs e, logo em seguida, chegou sua mãe. Eu necessitava de pilhas para meu gravador, daí Blink resolveu me levar ao supermercado local, oportunidade em que aproveitamos para conversar um pouco. Ele tinha a pele clara e um semblante meio abatido, mas era só aparência, pois ele demonstrava atenção a tudo o que eu lhe dizia. Ele aproveitou para perguntar sobre a pesquisa e quem eu era. Eu lhe expliquei sobre o financiamento da bolsa que me permitia a dedicação exclusiva aos estudos e ao trabalho de pesquisa. Blink chegou a me fazer elogios, Breitner Tavares 112 “vejo que você é inteligente”. Blink também considerou que até a sétima série costumava tirar boas notas, contudo, logo em seguida, ponderou, ao explicar sua apatia e afastamento do mundo da escola: “É, depois que eu levei um tiro no ombro, tive que me afastar dos estudos; eu não conseguia escrever. Isso foi muito difícil”. Em seguida, ele muda de assunto, apontando a direção do caminho que deveríamos percorrer até o comércio local. A princípio fiquei estarrecido, mas procurei não insistir no assunto, pois teríamos o momento da entrevista, o qual poderia ser oportuno para retomar a questão. De fato, mais tarde surgiram as condições para um maior detalhamento do incidente que, ao que parece, foi decisivo para o afastamento de Blink da escola e da Fazendinha, pois ele já estava vivendo há um ano em outra parte de Ceilândia, segundo ele “pra ver quando alguém vai sentir saudade”. Ele estava buscando se esconder de outro jovem com o qual teve uma desavença que culminou numa tentativa de homicídio contra sua vida. Ao retornarmos à casa de Amaro, fomos para seu quarto, lá havia toda uma decoração com cartazes de eventos do hip-hop, um aparelho de som, CDs espalhados e roupas espalhadas pelo chão. Blink se sentou na cama de casal e eu fiquei numa cadeira ao lado, pouco depois, chega um outro rapaz, o Conde (Cm), que não participa do grupo como cantor, mas é considerado pelos seus amigos como um “irmão”. Novamente sou questionado quanto aos meus objetivos, enquanto aguardávamos a chegada de Amaro, que leva ainda uma meia hora para chegar. Finalmente, quando iniciamos as perguntas, passamos por vários aspectos, desde a inibição inicial, passando pelo entusiasmo, até um certo cansaço após uma hora e vinte minutos de dicussão. Logo após o grupo de discussão, Amaro me mostrou uma cópia do seu CD. Era uma foto de dois jovens, meio de perfil, um deles esguio e numa posição mais baixa, que logo reconheci como sendo o Blink, o segundo era diferente. Ele usava uma touca que cobria todo o cabelo, o olhar era cerrado, a expressão tensa. Em relação a descrição do rosto, os lábios eram volumosos, o queixo não era do tipo proeminente e a pele era escura, portanto, tratava-se de uma foto de um estereótipo, de uma personagem masculina negra. Daí eu perguntei ao grupo de quem se tratava naquele retrato. Imediatamente, Blink solta uma risada e diz categoricamente que aquela foto era de Amaro. Então eu disse que havia alguma diferença, porque Amaro era cearense e branco, de baixa estatura, além disso, seus lábios eram finos e tinha o queixo mais exposto, portanto, seus traços fenotípicos não correspondiam ao da imagem. Blink continuou a rir e disse que Amaro queria ser “negão”, por isso pediu para alterarem sua foto. Amaro sorri meio sem jeito e desconversa, “Eu queria fazer uma pose cabulosa”. Um fato curioso foi a posição de Amaro quanto a seu pai, para ele, “esse cara tava por fora, não tinha e nem queria ter conhecimento”. Ao que parece, seu pai nunca teve participação em sua vida. Mais tarde quando falamos de polícia, Amaro foi crítico quanto à legitimidade e à violência praticada por essa instituição. Ao final da entrevista, quando terminamos, Blink revelou nos bastidores que o pai de Amaro era policial militar no Ceará. Eles tiveram um encontro no passado, mas segundo o próprio Amaro nunca se entenderam. Breitner Tavares 113 Descrição do Grupo Revolução MCs Amaro (Am) tem 19 anos, é branco, reside em Ceilândia, não tem filhos, uma irmã, está namorando, nasceu no Ceará (CE), mas vive no Distrito Federal há 6 anos, com a mãe e o padrasto. Está cursando o ensino médio, está desempregado, mas pretende se tornar um músico profissional cantando rap e/ou sendo DJ, seu lazer preferido é escutar rap e tomar cerveja. Participa de atividades de conscientização nas periferias, está no grupo há 5 anos. Conheceu o grupo na escola, encontra-se diariamente com os integrantes do grupo em casa. Estado de origem de sua mãe: Ceará, ensino fundamental incompleto, faxineira. Blink (Bm) tem 17 anos, é branco, mora em Ceilândia com os pais, não tem filhos, 4 irmãos, solteiro, paraibano, vive em Brasília há 17 anos, possui fundamental incompleto e está fora da escola, trabalha como camelô, gostaria de se tornar um produtor musical de rap, seu lazer preferido é frequentar bailes de rap/hip-hop. Participa de uma associação que visa mostrar a realidade do nosso cotidiano, está no grupo há quatro ou cinco anos, costuma se encontrar com este diariamente, na rua ou em casa. Conheceu o grupo na vizinhança, foi o fundador do grupo. Seus pais são da Paraíba (PB) e possuem o ensino fundamental incompleto, sua mãe é cozinheira e seu pai trabalha com manutenção. Conde (Cm) tem 20 anos, é negro. Devido a problemas pessoais, Conde evadiu-se antes do término da entrevista e não respondeu ao questionário. Formação do Grupo Revolução MCs Inicialmente é apresentada uma pergunta sobre a formação do grupo. Amaro (Am) diz que o grupo surgiu em 2002 e que originariamente compunha letras que, de fato, estavam relacionadas a questões levianas definidas como “besteiras”. Para o grupo, o mais importante era cultivar laços de identificação, de amizade a partir de um estilo relacionado ao hip-hop. O grupo de amigos é diversas vezes reconfigurado, pessoas entram e saem a partir do encontro entre os jovens. Após a entrada de Blink (Bm), o grupo define um nome que os identificasse, que já tinha passado por vários temtativas, como “Faca” e “Fala Intimidatória”, e finalmente decide pelo nome Revolução MCs. Y: Vocês têm um grupo né, e, como que vocês resolveram criar um grupo de rap? Essa seria a primeira pergunta. Breitner Tavares 114 É diz aí, quem fala tu ou eu? (.) A princípio que hoje a Am: gente não fala, o grupo surgiu em junho de 2002 né, mas começou com eu escrevendo umas besteiras assim, começou a gente, a gente levava pro social, mas a formação que foi a gente já tinha como amizade, o Stink, outros integrantes também que hoje não faz parte e, de imediato a gente não tinha recurso pra gravar como muitos grupos não têm hoje, e::::, aí apareceu o Blink e a primeira formação não veio com nome Revolução MC, veio com outros diversos nomes. As diversas mudanças do nome do grupo expressam as mudanças de atitudes e a busca de um sistema de referência em comum para seus participantes. Essa falta de consenso ou identificação em termos de gosto e conduta é definida pela ausência de um “posicionamento” do grupo sobre o que se desejava “defender”. Portanto, inicialmente as “emoções” conduziam seu trabalho até que com o passar do tempo se descobriu o “compromisso”, ou seja, o conjunto de atitudes que permitiriam ao grupo se sobressair enquanto tal, a partir de seus objetivos e práticas. Parte dos aspectos que norteavam a definição do grupo estava relacionada ao interesse do mesmo em se apresentar, motivação essa que levou seus membros a se depararem com as dificuldades típicas de um grupo musical, como a de gravar um CD. Am: É , mas é porque a gente não tinha estrutura firmada, a gente não sabia o que tava defendendo, é, por muitas vezes a gente levava mesmo só pela emoção e, que que com o passar do tempo que vei chegar o compromisso, e isso aconteceu certas coisas pra levar a gente até o nome rebelde como a gente reconhecia que os outros nomes não representava o que a gente queria pregar, hoje, como hoje vocês têm como ponto de vista como Nelson Mandela, Zumbi, Malcon Ex, então, são pessoas que há poucos anos a gente vei conhecer, a gente vei dá valor, isso é o que representa hoje o Revolução MC, é. Rebeldes não é só dentro de casa, com os pais, com a vizinha, nem o vandalismo na rua, a gente prega revolução, revolução através das palavras, palavras pra nós são armas, isso que é terrorismo da informação, é isso aí. A mudança do nome do grupo refletia, de fato, a mudança de seu comportamento no sentido de assumir um compromisso em relação ao grupo. Os outros nomes não refletiam aquilo que o grupo queria difundir, “pregar”. O grupo para definir seu sentido de consciência e compromisso cita algumas personalidades negras, como Nelson Mandela, Zumbi dos Palmares e Malcom X. Todos esses nomes foram gradualmente conhecidos e valorizados, o grupo os valoriza e os cita, “passa a dar valor”. O sentido de revolução enquanto premissa para o compromisso do grupo não ocorre no âmbito da relação com a família, ou na vizinhança, tampouco isso está associado ao vandalismo. Para o mesmo, a revolução ocorre através das palavras. Para o grupo, “palavras são como armas” que podem ser usadas num “terrorismo da informação”. Breitner Tavares 115 Ao serem questionados sobre como o grupo se identifica com a cultura hip-hop, o mesmo passa a descrever o sentido do hip-hop a partir de suas diferentes modalidades, “os quatro elementos” (grafite, break, rap, DJ). Contudo, para além da descrição formal, o grupo define o rap como “sua vida”, para isso Blink comenta que “vai até o final” cantando rap ou atuando como DJ. Neste contexto, faz-se uma diferença entre o hip-hop e o rap. O estilo atua como um elemento constitutivo na visão de mundo do grupo, que orienta suas ações. Para isso, Amaro enfatiza a diferença entre o hip-hop e o rap. Para o grupo há uma identificação com o rap que vai além da roupa ou da música. É a partir do rap que se estabelecem outras vinculações dentro do hip-hop. Am: É bicho, é o seguinte, o rap se enquadra nos quatros elementos do hip-hop, já eu o que eu prego é o seguinte o rap faz parte do hip-hop, mas eu represento mais o rap do que o hip-hop, porque eu me identifico não só com a roupa, não só com a música, com rap, eu me identifico com tudo, tudo mesmo, porque o rap vem como forma de resgate, o rap entra como uma forma de missão, a gente passa a ser inteligente, aprende a conversar, prestar é, como é que se fala, confia mais na auto-estima, é isso o rap, o hip-hop é uma coisa, o rap é mais que o hip-hop, porque o rap cabe no hip-hop e é o que se expande mais entendeu? É os quatro elementos é a dança, tudo e o hiphop em geral já é um resgate (2) Falando do hip-hop a palavra é resgate, porque é, a gente tem amor pelo que faz, você todo dia tem amor pelaquilo, você dança, você tem prazer, você canta, é prazer demais, pra gente é liberdade. Bm: Aí né uns já jogava bola ali. Uns começou com essa onda aí. O rap, o rap veio, é na Am: fase que gente brincava, uns jogava pipa, o outro gostava de jogar bola, então o rap pegou a gente muito novo, tanto é que a gente veio, é. Eu tenho seis anos que moro aqui em Brasília , tem gente que mora aqui a vida toda, o rap pra nós agora que vai fazer uns quatro anos que a gente tá no rap, claro que quando você está no rap e isso pra gente é como se fosse uma eternidade, uma eternidade de dedicação e amor ao movimento. O rap é definido como algo que vem como uma “forma de resgate”, ou mesmo uma “missão”. O rap motiva o aumento da inteligência, amplia a capacidade de comunicação, de “conversar” e proporciona uma maior autoestima. Para o grupo, o rap, apesar de ser um elemento do hip-hop, acaba por encobri-lo, o que também representa um resgate a partir dos seus outros elementos. Isso implica que toda experiência do grupo em relação ao hip-hop se dá quase única e exclusivamente pela perspectiva do rap. Resgate significa restabelecer o amor como parte integrante da vida. Isso é materializado nas práticas sociais como a dança, a música, que seriam meios expressivos da liberdade. Breitner Tavares 116 Mais adiante, discutiu-se sobre o encontro dos jovens que possibilitou a criação do grupo e como isso estava relacionado à vida cotidiana na QNY. Ali os jovens compartilhavam outras atividades de lazer para além daquilo que se poderia considerar restrito ao hip-hop. Amaro em resposta menciona que conheceu seus amigos jogando bola à noite ou soltando pipa na região onde moram. Desde muito cedo, eles passaram a se interessar pelo rap, alguns passaram a fazer parte do grupo posteriormente depois de virem ao Distrito Federal como imigrantes nordestinos e, logo em seguida, se juntaram ao grupo. O grupo afirma que já está junto há quatro anos, esse tempo de convivência foi fundamental para a formação desse sentido de “missão” e “resgate” enquanto estrutura de suas ações a partir do estilo hip-hop. Esse tempo é definido como algo perene, duradouro, como comenta Amaro, “pra gente é como se fosse uma eternidade de dedicação ao movimento”. O sentido de “missão” ou mesmo “resgate” apresentado pelo grupo ganha dinamismo a partir do sentido atribuído à “revolução”. Para se interpretar isso dentro de suas orientações coletivas, recorre-se à idealização de um passado no qual o grupo estava envolvido com o uso de drogas e álcool, esse comportamento é visto como ter a “cabeça desorganizada”. Amaro conta que quando era menino conseguia recursos de modo obscuro para continuar a se drogar. Após algum tempo, promoveu uma mudança de comportamento a partir da conversão à religião evangélica, definida como uma “revolução” em sua vida, em sua trajetória. Ele reconhece que houve uma perda parcial de sua vida durante o tempo da regeneração. Cita o abandono da escola pelo alcoolismo, aos 17 anos. Suas experiências anteriores ficaram no passado. Entretanto, a conversão religiosa gerou preconceito por parte de outras pessoas. Para elas, a conversão interfere na configuração do estilo rapper, mas para o grupo “a igreja muda suas atitudes, mas não muda o seu jeito de ser”. Esta possibilidade criada pelo grupo entre ser e fazer é a base para seu sentido de revolução. Am: A cabeça não estava organizada, é tipo, no tempo era só um grupo de menino, era tudo da mesma idade, aí falava não, vamos comprar um negócio ali pra nós, e tal, ninguém trabalhava, ninguém tinha dinheiro e do nada aparecia dinheiro, e entrava no meio desse mato aí e usava droga e voltava de novo. Aí tipo depois que aconteceu essa revolução na minha vida e tudo mudou totalmente, eu não encarei aquilo como uma trajetória de vida, eu encarei como se nada tivesse acontecendo.Tipo, foram coisas assim quando eu fui pra igreja que eu vi, e eu falei pô, perdi uma parte da minha vida que, mais aquilo lá já foi passado já era, bola pra frente, não mudei com nenhuma das pessoas que eu conheço até hoje, igual o Stink, o Antônio, o menino da quebrada é o, como é o nome dele é o. Porque muitos acham que eu mudei, que eu estou através da Bíblia, os outros joga na sua cabeça pra você mudar sua religião. Você tem uma religião? Y: Tenho. Am: Igual chegaram em mim e, porque você está na igreja e não sei o que e tal, se você é do mesmo jeito que você é, e você tem que mudar é seu jeito de ser, é seus atos, se você aprontar você tem que deixar aquilo tudo pra trás, igual eu, que bebia, fumava, usava droga e deixei aquilo tudo pra trás, você tem que mudar nos seus atos e não no seu jeito de ser, modo de viver, você vai mudar, se eu falava com você, eu não vou mais falar com você porque eu virei evangélico. Taí uma Breitner Tavares 117 coisa que eu do meu ponto de vista acho totalmente fraco. Eu virei evangélico, mudei de atitude, meu jeito de ser continua o mesmo. Am: De vez em quando fica nas broncas ainda. Ó aí, Deus é nosso guia, aqui na terra são os amigos que a gente se apega, se eu tô com problema eu passo pro Stink, se ele tá com problema ele passa pra mim, e nos dois juntos vai e passa pro Daniel, o Daniel vai e passa as idéias e desse jeito vai um se ajudando aqui. Amaro menciona Deus como um guia no campo metafísico. Contudo, segundo o grupo, Deus está vinculado às pessoas, é nelas que ele encontra seu próprio reflexo. A partir da interrelação com outras pessoas e grupos que uma pessoa e reconhece e encontra o sentido de “Deus”, ao fazer parte de uma coletividade. Dito de outra forma, o indivíduo abstrai o sentido de sociedade na medida de sua interação conscientemente voltada para aspectos individuais, mas que indiretamente estabelecem um sentido, uma configuração da vida social. A amizade constituída dentro de uma estrutura geracional cria uma cadeia de interações que dá o puro sentido para “o estar junto” na companhia de amigos. A religiosidade, para além de sua metafísica, é um forte elemento norteador da vida coletiva, assim como permite a reelaboração do estilo hip-hop. Pra quem sabe chegar e pra quem sabe sair: construção de uma ética urbana dos humildes A vida na QNY é abordada como referência para a formação do grupo. Y lança uma pergunta sobre como é o dia-a-dia no setor QNY. Blink diz que é “tranquilo”, mas é completado por Amaro, que diz que há eventualmente problemas no bairro, definidos por eles como “desacertos”. Ele exemplifica que eventualmente há festas e que se pode ouvir sons de disparos de arma, chamados de “tecos”. Amaro define o lugar como não violento, e tampouco seguro, como define a expressão “não é um lugar de paz, mas também não é um lugar de guerra”. O sentido de desacerto está relacionado a eventuais conflitos, “encrencas”, com outros jovens relacionados à vida na escola ou no futebol. Quando esses jovens se envolvem na “criminalidade” promovem brigas e até mesmo morte. Y: É, aí eu queria perguntar pra vocês, que vocês falassem mais um pouquinho, é como é o dia-a-dia, como é o dia-a-dia na QNY? Bm: É o dia-a-dia aqui é tranquilo é, tranquilo de vez em quando::::: Cm: Um desacerto Bm: É de vez em quando um desacerto, rola uma festinha dos meninos de vez em quando ali. Um téco. Am: [ É, é neguinho diz que é tranquilo pra nós, a gente conhece todo mundo, conversa com todo mundo a gente aqui. É, lá é tranquilo. Breitner Tavares 118 Y: Como é, desacerto? Cm: É, se gente fosse fazer uma colocação, se gente fosse fazer uma colocação a gente diria que aqui não é um lugar de paz, mas também não é um lugar de guerra. Desacerto que a gente fala é que às vezes a gente vê um camarada, que até mesmo encrenca com a gente, jogando bola ou estudando, se envolver com crime, então é desacerto que a gente fala é, briga, é morte mesmo. Para o grupo o sentido de resgate está associado a preservar sua família. A narrativa do grupo, por um lado, naturaliza a violência que é intrínseca à vida diária durante a representação dos papéis mais simples. Aqueles que se envolvem em atividades criminosas, “parada errada”, tendem a sofrer os desacertos. Amaro menciona que a rua é o lugar de inspiração dos desacertos. Por outro lado, quem está na rua deve sempre buscar evitá-los e proteger sua família. Amaro afirma que é inevitável sair às ruas, pois ele precisa ir a lugares como a padaria e a escola, encontrar amigos para conversar. Portanto, é lá no “cotidiano normal” que “vez por outra” ocorrem os desacertos. Durante a conversação, a questão dos conflitos entre os jovens foi frequente quando o grupo trouxe uma história relacionada ao distanciamento de Blink da escola. Ele conta que estudou até a sétima série e que eventualmente reprovava por não entender o conteúdo, segundo ele, não por falta de inteligência ou dedicação. Por outro lado, o que o afastou da escola não estava relacionado ao currículo ou às provas. Na verdade, Blink se envolveu num “desacerto”, que ele prefere chamar, neste caso, de “acidente”. Ele inicia dizendo que havia outros jovens que desejavam matá-lo. Amaro então intervém no diálogo e desconversa. Ele diz que na verdade o problema não era diretamente ligado a Blink, este por sua vez, ao perceber a intervenção de Amaro, muda o tom da conversa. Em seguida, Blink conta que um dia estava com quatro amigos “chegados”, bebendo num bar pertencente a seu pai, quando outro jovem se aproxima e passa a discutir com Blink e seus amigos, em seguida surge outro jovem e dispara na direção do grupo, atingindo Blink no Braço. Ele foi socorrido e, mais tarde, se dá conta de que seus companheiros na verdade estariam em “desacerto” com o outro jovem, que deixou sequelas nos movimentos do seu braço. Neste momento, todos se olham reciprocamente, demonstrando certo incômodo com a história e preferem não entrar em maiores detalhes. Apesar da história, Blink define hoje a quadra onde vivem como “80% tranquila”. Conde (Cm) completa e diz que sua quadra é a melhor de toda a cidade, ele explica que o que torna o lugar seguro é o fato de estar separado fisicamente do restante da cidade por um vazio urbano, “um matagal”. Bm: É, se você for ver na escala, porcentagem assim, é uns 80% tranquilo:::: (.)É:::. Cm: Eu tenho no meu ponto de vista que uma das melhores quadras aqui em Ceilândia.Vale a pena colocar copa-quadra. No meu ponto de vista essa quadra aqui é a melhor, devido ela ser separada Breitner Tavares 119 das outras quadras mas ter um matagal do lado de cá, e uma quadra pra lá, ter outro matagal pra lá, ainda acho que aqui é uma das melhores quadras que tem, aqui é, gera menos violência. Am: [Aqui é como se fosse, é pra gente sobreviver é normal, aqui todo mundo se conhece pelo nome, se duvidar até pelo sobrenome, todo mundo aqui se conhece. Se conhece, se você chegar pra lá e perguntar quem é tal tal pessoa com certeza alguém vai saber, não porque eu canto rap, porque o lugar é pequeno. Bm: Aqui , aqui nunca foi sempre assim não, aqui já foi cabuloso já, já chegou a morrer sete, seis pessoas numa semana só, agora chega aqui aí tá aprendendo a sobreviver as leis e tá de boa assim, por enquanto todo mundo assim, quem era mais doidão foi embora ou então tá preso já tem tempo. O grupo menciona que todos ali se conhecem pelo nome. Blink, porém, reconsidera e diz que nem sempre houve uma comunidade, que no passado era comum ocorrerem mortes. Segundo ele, agora as pessoas estavam aprendendo a “sobreviver”, pois os mais violentos, chamados “doidões”, já haviam mudado ou estariam presos. Mas ele completa que para eles é tranquilo. O sentido de aprender a sobreviver está relacionado às estratégias criadas pelo grupo, a partir de uma indumentária proporcionada pelo estilo. Isso lhes permite articular os conflitos com outros grupos. Am: Porque Ceilândia mesmo é só até ali assim né, mas como cresceu, se expandiu, ali, aqui né até ali ficou mais mais, hoje como é que fala né, fazer uma comparação com a favela do Rio de Janeiro né, o morro lá, fazer uma colocação que antes que era violento. A periferia que a gente vê, a gente cresceu junto com periferia onde tem pobreza miséria, onde tem é polícia, onde a polícia chega atrás da gente com malícia, onde tem pai de família trabalhador, onde tem desempregado, é onde se concentra como é, é onde se concentra a marginalização, é que a gente está à margem da sociedade, a gente fala. Cm: Levando pro lado que ele falou da Fazendinha aí no, em uma das reunião que tava tendo lá em baixo, tinha um pessoal de Sobradinho, parou um carro da polícia e, por isso que eu falo que aqui é tranquilo, parou um carro da polícia e perguntou onde é que fica a QNY e o cara, cê tá doido, cê tá descendo o barranco numa hora dessa, e o pessoal chegou aqui espantado e falou é, quer dizer que por aqui o negócio é perigoso mesmo, e olhando prum lado e pro outro e o próprio cara que tá lá embaixo falou, não, aqui é tranqüilo, eu chego aí, deixo o carro, aí entro pra casa das pessoa, ando na rua tranqüilo, tem a segurança que anda comigo é pra prevenir alguma coisa, mas aqui é totalmente tranquilo, se depender de mim eu ando sem segurança. O cara que tava falando com ele, ele mesmo falando que se dependesse dele, ele vinha sem segurança, porque aqui é tranquilo e o policial botando aqui como perigoso, devido ao nome QNY que é separado da, das outra quadras porque aqui pra nós aqui, quem mora pra cá mora na favela mesmo, é favela, é Fazendinha tem outro nome não. Breitner Tavares 120 Em: Porque, se mora um tio ali, com certeza ele respeita aquele lugar, aquele eu que usa tôca, os cara que fuma, os cara que bebe, a gente é uma pessoa normal, a gente é do rap, mas a gente pode chegar num bar pode beber, posso sair pra passear com meus colegas sem medo nenhum, eu sou vítima também como qualquer outro da polícia, da polícia que chega e ao invés de fazer seu trabalho, faz é abusar, então lá é um bom lugar conforme as leis. O grupo cria uma idealização de seu espaço urbano a partir de referências como o bairro e as favelas do Rio de Janeiro. Amaro descreve o bairro como tendo a presença de uma “polícia maliciosa”, “pais trabalhadores” e “desempregados”. Para o grupo, a marginalização seria o fator definidor da existência das favelas e, consequentemente, das periferias. Diante disso, Conde apresenta um exemplo, relatando uma reunião com políticos de outra cidade, que estavam à procura da localização da Fazendinha e para isso perguntaram a policiais que lhes advertiram que ali era um lugar muito perigoso e que deveria ser evitado. Contudo, mesmo amedrontados, seguiram em frente até encontrarem Conde, que os receberia para uma reunião para tratar de ações comunitárias no setor. Ao se encontrarem, perguntaram se ali era realmente perigoso como consideraram. Conde conta que convidou o visitante para percorrer as ruas que seriam, segundo ele, tranquilas. Após isso, reconhece-se que se tratava de exagero da polícia. O político concluiu que realmente o lugar era tranquilo e que só estava acompanhado de um de seus seguranças porque era algo normal em seu cotidiano. Finalmente, diz que a associação com a Rocinha carioca prejudica a imagem da QNY. Enquanto Conde falava, Blink e Amaro o observavam atenciosamente sem risos ou brincadeiras. O sentido de missão do grupo está intimamente arraigado em uma ética dos humildes que é construída em função de uma noção geracional e geográfica. Nesse espaço idealizado pelo jovem, outras hierarquias da vida social, como pobreza, racismo, e violência, são deixadas de lado, para que todos possam compartilhar de um espaço de convivência de maneira relativamente harmônica. Para o grupo Revolução MCs, ninguém é melhor que ninguém, contudo, há aquelas pessoas que não sabem chegar a lugares como a favela e a periferia. Amaro usa o termo “playboy” como forma de idealização da imagem desse outro generalizado, que não pertence às mesmas condições de classe ou estilo dos jovens da QNY. Nesse contexto, descrevem os “playboys” como aqueles que possuem a mesma idade dos jovens do Revolução MCs, ou seja, entre 10 e 15 anos. Esses jovens chegam ao setor e não respeitam os demais, “ficam de pagação”. Nesse espaço, a maioria das pessoas é considerada como simples, de “coração humilde”, que não vão cometer nenhuma violência, como roubar. No entanto, há aqueles que, estando supostamente bem trajados, “com pinta de playboy”, não serão bem-vindos, ou seja, sofrerão algum tipo de agressão, “os cara vai encosta e vai enquadrá”, expressão que significa que estranhos visitantes serão abordados e submetidos a um esquema de diferenciação social, baseado nos valores daquele grupo em questão. O indivíduo, ao ser identificado num esquema de negatividade, nesse caso, como “playboy”, passa a ser Breitner Tavares 121 desumanizado e merecedor de algum tipo de violência, o que é um fato lamentável, mas corriqueiro, segundo o grupo. Portanto, o grupo cria uma imagem daquilo que expressa diferentes interpretações sobre sua condição de jovens, mesmo estando numa mesma faixa etária, definidas por jovens que, apesar de terem idades semelhantes, têm condições de vida distintas no que se refere à classe, raça e posição geográfica. Consequentemente, isso os leva a estabelecerem padrões de comportamento distintos de outros jovens. O grupo Revolução, nesse caso, usa o termo “playboy” como uma categoria negativa de outros jovens que podem até mesmo ter idades semelhantes às do grupo “10, 15 anos”. Contudo, em função de sua indumentária inscrita no corpo, ou pela forma de se vestirem, “bem trajados”, e se comportarem de modo arrogante, com “pagação”, tornam-se incompatíveis com os valores compartilhados pelo grupo, que preza por aspectos como ser “humilde”. Ainda em relação aos aspectos sobre diferentes unidades geracionais, Blink completa que a favela é um lugar bom, mas é um lugar para aqueles que “sabem viver”, em outros termos, a favela é um lugar “pra quem sabe chegar e pra quem sabe sair, como em todo lugar”. Nesse caso, as condições de opressão e pobreza levam os jovens a criar suas próprias regras, articulados pela existência do grupo em torno do estilo que lhes permite refletir a violência e os muitos valores que daí decorrem. O contraponto da idealização do “playboy” se dá pelo jovem que mora na periferia e compartilha da mesma visão de mundo que outros jovens que ali estão. Segundo o grupo, esse jovem que assume um estilo e um comportamento, adotando o uso da touca, que fuma e bebe bebidas alcoólicas, está dentro daquilo que ali é considerado “normal”, pois é conhecedor das regras do lugar, e, por conseguinte, é respeitado até mesmo pelos mais velhos, pelo “tio”. Nesse espaço, o jovem identificado com o estilo hiphop pode sair “sem medo” em grupo com seus amigos do setor onde vivem. A única ressalva vem pelo temor de se tornar “vítima” da violência policial, para o Revolução MCs a polícia não faz o seu trabalho corretamente, devido ao “abuso” de poder. Desta forma, o grupo define seu lugar como sendo bom em função de determinados códigos estabelecidos na relação entre os moradores que ali residem, seus visitantes e a presença do Estado na forma da polícia. Da multidão dentro de casa aos pontos que não batem: relação entre jovens e pessoas mais velhas Inicialmente foi apresentada uma pergunta sobre o relacionamento com os pais para o grupo Revolução MCs. O grupo, a princípio, considera que o relacionamento é bom, pois há diálogo. Contudo, os jovens ponderam; Amaro menciona ter um ótimo relacionamento com sua mãe, mas não tem contato com seu pai, além disso, ele às vezes impõe suas ideias à sua mãe, fato que o grupo considera normal no ambiente familiar. Em toda família há alguém que tem ideias contrárias às dos demais irmãos e irmãs, Breitner Tavares 122 como a “ovelha negra da família”. Porém, Amaro desconversa ao dizer que não se identifica com tal perspectiva. Y: Bom, essa pergunta aqui é em relação aos pais, vocês moram com seus pais? Seria a primeira pergunta e como é a relação de vocês com seus pais ? Cm: É, eu moro com meu pai e com a minha mãe e tenho um irmão só, é, pra mim, minha família sempre foi tudo muito bom, todo mundo conversa com todo mundo, a relação é ótima. Am: Não, eu acho que é o cotidiano normal, eu moro com meus pais, quer dizer com minha mãe, eu não sei nem onde anda meu pai por falar nisso, eu acho um cotidiano normal, sem briga sem discussões mas, às vezes eu falo isso e é aquilo, não vai. Bm: Acho que é toda família né?! Am: Toda família tem um que é do contra, tem um é a ovelha negra da família, eu não me auto intitulo a ovelha negra. Sou o filho mais velho, tenho mais consciência de certas coisas, tento passar o que eu sei pros mais novo inclusive, de uma forma diferente, pode até encarar como grosseria ou ignorância, é o jeito que eu aprendi, é a tradição que eu trago, meio que o passado da minha família, a gente leva uma vida normal, eu curto minha mãe, gosto da minha família, é isso acho, que é um cotidiano normal. O grupo considera relevante a influência das gerações mais velhas em relação às mais novas. Há vários indícios sobre isso quando se trata da relação entre os irmãos mais velhos e mais novos. Amaro menciona que na condição de filho mais velho transmite aos mais novos aquilo que sabe que pode ser encarado como grosseria ou ignorância. Durante a entrevista, ele às vezes gritava com suas irmãs, lhes impunha que abaixassem o som da televisão ou que elas deveriam realizar tarefas domésticas, como “cuidar da casa”. A relação com a mãe é bastante reforçada como a pessoa mais importante da família. Blink diz que vive com sua mãe, que é considerada como a mais importante, “é tudo na vida”, além do irmão e do padrasto com o qual diz ter um ótimo relacionamento, desde a infância. Por outro lado, afirmam que também existem as diferenças, pontos discordantes no relacionamento, que servem para aprimorar o convívio, “os pontos que não batem”. Sobre os pontos de discordâncias, Conde diz que apesar do bom relacionamento com seus pais, já brigou fisicamente com seu irmão. Amaro, em tom de ironia, diz que isto é “adrenalina”. Diante dessa assertiva, Conde acena de modo a concordar com Amaro. Ele, por sua vez, reitera tal perspectiva ao dizer que discute com suas irmãs de modo agressivo, mas sem incorrer em violência física, algo que logo em seguida é superado. Tudo isso ocorre em momentos instantâneos da vida diária, situações definidas em alusão ao efeito causado pela “adrenalina”. Conde fala que segue as orientações de sua mãe sobre frequentar festas, pois ela tem um bom senso, “eu tô sentindo para você não ir”. Ele diz que esses conselhos eram dados quando ele era menor de idade, algo que eventualmente lhe causava certa irritação. Ele completa dizendo que responde à altura dos que se aproximam de modo a não Breitner Tavares 123 lhe respeitar. Contudo, ele reconsidera e diz que atualmente, quase aos 21 anos, nunca agrediu fisicamente sua mãe, no que ele define por “levantar a mão” ou “levantar a voz”. Am: Mas essa diferença que tem em casa, em qualquer família, que é normal né? Bm: Isso serve pra aprimorar né. Cm: É, tem aqueles pontos que não batem, fica assim né? Y: [Mas como é que é isso, como isso funciona? Cm: Tipo assim não é com minha mãe, nem com meu pai, mas já aconteceu com irmão meu de a gente se pegar lá na porrada, mas, mas tem motivo aí que não tem graça tem que ter (.) Am: Adrenalina né? Cm: Adrenalina é, mas graças a Deus nós estamos de boa... Am: E a vida é louca! Bm: Ôche! Am: É igual eu e minhas irmãs, só que eu não rolo na porrada né, eu brigo, é sai daqui, não conversa comigo mas não, meia hora depois já estamos conversando de novo como se nada tivesse acontecido. Ôche, você que falou deve ser adrenalina .é mais entre irmãos né, tipo eu (.) ((Ele se volta para Cm, e lhe passa a palavra )) Pode falar ((olhando para Cm). Cm: Tipo eu respeito minha mãe pra caramba, se ela falar que é pau eu tenho que falar que é pau, também não adianta eu falar que é pedra, se minha mãe que é minha mãe que me botou no mundo tá dizendo que é pau. Tipo o conselho que tinha eu não discutia, não falava nada, ela falava que não era pra mim ir no tempo que eu era de menor, e eu falava então não vou, ficava chateado, ficava injuriado mas não ia, não teimava com ela, eu nunca respondi minha mãe, tenho 20 anos, vou fazer 21 em outubro, nunca cheguei a levantar a mão pra minha mãe, a levantar a voz, tem hora que eu fico muito nervoso se você vem falar comigo eu vou te responder à altura, se você manso, eu sou manso, se você alterar eu altero. Para os jovens do Revolução MCs, a conversão religiosa constitui uma mudança de conduta, uma escolha ética que está relacionada a uma integração com a família. Conde exemplifica, diz que se envolveu com drogas e pichação, coisas reprováveis, segundo ele, “um mundo que não era pra mim”. Esse envolvimento ocorreu quando era mais novo, período que considera difícil tomar decisões, “a cabeça não pensava”. Ele diz que o envolvimento com a pichação o levou a ter problemas com outros jovens e que teve de deixar a cidade para se proteger de represálias indo para Goiás. Havia pessoas querendo matá-lo, mas que desistiram por também estarem envolvidos em outras rixas com jovens. Diante das circunstâncias alegadas e por influência dos amigos, passou a frequentar uma igreja evangélica, que mais adiante passou a ser frequentada por suas irmãs e seu padrasto, naquilo que ele define como “a revolução de Jesus”. Breitner Tavares 124 Am: Eu entrei num mundo que não era pra ser meu, eu entrei no mundo das drogas, me envolvi mesmo, entrei de cabeça e fui descendo quando eu vi que aquilo ali não era vida, que eu entrei no mundo da pichação também, que foi o que mais me quis me tirar daqui, entrei no mundo da pichação só que no tempo eu era novo, a cabeça não pensava, era o que vinha, o que vinha tava, tava, se você falasse vai ali e escreve no caderno daquele neguin ali, eu ia lá, eu não tava nem aí, e isso aí foi gerando uma briga e eu tive até que mudar daqui de Ceilândia, eu fui morar no Goiás, eu morei no Goiás um ano, depois eu voltei e aí tipo, neguin que queria me pegar, mataram o neguin ou fugiram porque tiveram outros desacertos. Tipo eu entrei num mundo que não era meu mesmo, tipo bebendo, fumando, usando droga, naquele mundo totalmente errado, e do nada, Jesus vai e faz uma revolução na minha vida, fui pra igreja, comecei a ir pra igreja, não fui só eu, foi eu, minhas irmãs, meu irmão e meu padrasto, tudo de uma vez assim. Coisa maravilhosa. A influência sobre os irmãos mais novos é considerada pelo grupo. Os jovens assinalam que gostariam de participar nas suas decisões daquilo que é definido como “trabalhar a mente”. O grupo justifica que o rap enquanto um estilo de vida que pode estar associado à sucessão social no que se refere à busca por um bom emprego, algo que expressa uma justificativa ao discurso que marginaliza o rap como uma atividade ainda não profissionalizada, numa escala mais ampla da indústria cultural na cidade. Entretanto, o rap enquanto um conjunto de valores relacionados à vida no espaço urbano é apresentado como um patrimônio a ser transmitido às gerações mais jovens, a partir de elementos constituidores de um determinado padrão de gosto social, que envolve a apreciação pela indumentária hip-hop, que passa por um modo de se vestir distinto de outros estilos jovens, assim como um gosto musical específico, como o rap. A família é o grupo social definido pelo jovem como uma “multidão dentro de casa” com a qual se compartilha os problemas e se encontram as soluções. Amaro define a multidão de dentro de casa como aquela em que encontra amparo na família, em especial na presença do pai. O contraponto da multidão de casa é a “multidão da rua”, onde prevalece uma mentalidade centrada no indivíduo mediatizado por relações econômicas e simbólicas e concorrenciais e, eventualmente, na rua há sempre o risco da desilusão. O pai como imagem protetora não é encontrado nesse espaço. Amaro, por seu turno, não tem contato com o seu pai biológico, “eu nem sei o que é dia dos pais”. Ele diz que será muito orgulhoso quando se tornar pai, pois não abandonará seu filho, não irá “virar as costas” . Ele diz que sente por um lado ódio de seu pai ausente, e por outro, o amor de sua mãe com a qual convive. Am: Que encara o cotidiano normal, que é aquilo ó, aquela multidão, multidão dentro de casa, que você pode tá dentro dela, aquela multidão da rua você não aguenta é grande demais a da rua, você não pode considerar a rua como uma casa, já a rua é uma multidão, dentro de casa também é multidão, mas é uma que você aguenta estar 24 horas. Vale tudo. Bm: agora?... Breitner Tavares 125 Am: É, é isso, a multidão que eu falo do lado de fora, do lado de fora você não encontra pai, do lado de fora você encontra pai, pai eu não sei nem o que é o dia dos pais pra mim, eu quero chegar um dia e dizer, o dia que for pai vai ser a melhor coisa do mundo, não vou virar as costas pro meu filho, se precisar eu vou passar fome junto, eu nunca vou virar as costas como meu pai fez pra mim, por falar do meu pai na verdade eu sinto ódio, não tenho amor de pai, eu tenho amor de mãe. A relação do grupo com pessoas mais velhas é definida pelo respeito condicionado à sua reciprocidade. Os jovens questionam o abuso de algumas pessoas baseadas na crença de que se deve respeitar os mais velhos. Eles reconhecem que há diferenças, mas elas não devem corresponder a ofensas aos valores das pessoas mais velhas. Amaro diz que pode ceder o seu lugar para uma pessoa mais velha num ônibus, isso representa um gesto de respeito, além disso, cita que ele fala gíria, mas isso não representa um desrespeito com os mais velhos. Ele diz que tem suas ideias hoje e que será velho um dia. Ele considera que os velhos têm muito a passar para ele. Há um exemplo de um senhor que sempre está nas proximidades e que conta sua história de quando chegou ao Distrito Federal antes da construção de Brasília. Amaro diz que tem um carinho especial por este senhor, que não lhe incomoda ou pede qualquer coisa em troca pela sua companhia. Além disso, Amaro ainda menciona que foi criado pelos avós maternos, que hoje são velhos, e ele os considera como pessoas maravilhosas. Contudo, o grupo assinala que não é pelo fato de alguém ser mais velho que o faz merecedor de respeito. As relações intersubjetivas que definirão uma unidade no sentido geracional do grupo se constróem não numa relação de oposição entre seus indivíduos e as gerações mais velhas, mas a partir de um convívio mutuo e a partir da familia. De fato, ocorrem situações de continuidades em que o mais velho é tido como aquele que transmite os valores que definem o sentido dos grupos sociais, como a família, definida por laços de intimidade, “a multidão dentro de casa” e os laços de impessoalidade e concorrência em que a insatisfação e o sentimento de traição são eminentes, “multidão da rua”. O medo e o envolvimento com atividades consideradas pelos jovens como negativas e prejudiciais, tais como o uso de drogas e a pichação, são utilizados para justificar a relevância da família e determinados vínculos estabelecidos através desse tipo de grupo social. A conversão religiosa de fato seria uma dessas situações em que a diferença entre as gerações não impediria um diálogo intergeracional das diferentes percepções de mundo dos pais e filhos, definido pelos jovens como a “revolução de Jesus”. Por outro lado, os jovens pontuam sua visão de mundo através de seu aparato linguístico, “falar gírias”, como um elemento identificador do seu estilo. Diante desse tipo de situação, surgem os “pontos que não batem”. Há predominante ausência da figura paterna que lança seus filhos na solidão do mundo imaginário da “multidão da rua”. As mães provedoras de suas famílias, apesar de assumirem um lugar privilegiado, enfrentam as discordâncias dos jovens, os quais ainda se sentem inseguros quanto às suas posições, “a cabeça não pensava”. O rap enquanto um sistema inconsciente de atitudes define um lugar do jovem, em que este se defende de determinados dispositivos de distinção social estabelecidos pelo Breitner Tavares 126 mundo adulto. A experiência de contato entre gerações distantes como, entre avós e neto, é citada de modo a ser caracterizada como menos conflituosa nesse contexto de relações intergeracionais. O respeito às pessoas mais velhas está condicionado ao reconhecimento de sua identidade jovem enquanto uma redefinição de valores por uma nova conduta nos espaços onde diferentes gerações interagem, como na família, na escola, no trabalho, na rua, entre outros. Existe uma expectativa em relação à transitoriedade para um mundo adulto e até mesmo para o mundo dos velhos, mesmo de modo idealizado. O grupo assume uma missão no sentido de construírem novos valores a partir do rap. Seus irmãos e irmãs mais novos constituem o foco dessa ação de se “trabalhar a mente”. Quando esse jovem não é respeitado dentro de seu sistema de valores, reage de modo a garantir sua identidade frente ao mundo adulto. Grupo Resistência Periférica A gente se trombou e a gente se firmou: Relações vicinais e a identificação pelo estilo hip-hop Descrição do trabalho de campo Churrasco, rap e campanha eleitoral: Aproximações com produtores culturais Num domingo do mês de setembro de 2006 fui convidado para um churrasco. De fato, soube desse evento a partir da ligação de Emanuel (Em), um produtor cultural de bailes hip-hop que, coincidentemente, foi meu aluno anos atrás e que a partir do qual obtive contato com alguns membros do hip-hop. Ele me disse ser um dos produtores que traziam ao Distrito Federal os Racionais MC. Quando Emanuel soube de minha pesquisa, entrou em contato comigo para informar-me sobre a atividade de outros grupos em Ceilândia. Dessa vez, eu tinha sido convidado para um churrasco na casa de outro produtor, chamado Chakal. Contudo, para minha surpresa, quando chego ao churrasco, vejo que se tratava de um evento político para apoiar um candidato com propostas para amparar famílias de presidiários em Brasília. Muitos dos convidados eram familiares de pessoas nessa condição. Durante o churrasco, a conversa girava em torno da produção artística do rap e em relação à questão dos maustratos e dificuldades das famílias para acompanharem seus parentes encarcerados. Alguns rappers presentes estavam apoiando um candidato que propunha projetos em defesa dos direitos humanos nos presídios. Eu realmente não sabia que se tratava de uma campanha eleitoral. Durante o churrasco, reconheci outro ex-aluno, o Nelson da QNV, que me convidou para ficar em sua mesa. Conversamos sobre várias coisas, inclusive sobre meu trabalho atual envolvendo a juventude. Nelson, desejando colaborar comigo, me passou seu número de telefone e pediu para que eu ligasse para conversarmos em outra ocasião sobre o assunto. Ele inclusive chegou a me propor que eu conhecesse sua comunidade e que saíssemos juntos para tomarmos umas cervejas. Breitner Tavares 127 Mais tarde, a pequena garagem de Chakal já estava toda ocupada por várias famílias de jovens, todos de alguma maneira ligados ao rap. O churrasco estava sendo preparado do lado de fora da casa, numa rua que ficava em frente a uma pista que separava a quadra residencial de uma enorme vala, parte das obras do metrô ainda inacabadas naquela época. Alguns dos presentes, logo em seguida, tomaram a iniciativa de ligar um som, preferencialmente no volume máximo. As músicas apresentadas eram dos próprios grupos ali presentes, um deles era o Resistência Periférica, com o qual eu fiz contato mais adiante; além disso, fiz alguns contatos e anotações na agenda que, posteriormente, serviram para a viabilização de outras entrevistas. Mais tarde chega o candidato e, então, todo o diálogo se voltou para a questão prisional das famílias e as propostas do candidato Dr. Freedom. Observei tudo e, ao final da fala do candidato, me despedi dos que estavam mais próximos e me retirei. Sobre a entrevista com o grupo Resistência Periférica Numa ocasião à noite, encontrei com os membros do grupo Resistência Periférica (RP), grupo formado por Amauri (Am), Boca (Bm), Conrado (Cm) e Denis (Dm). Conhecemos-nos a partir do contato feito por Emanuel (Em), um produtor cultural de bailes hip-hop, no fim de semana anterior. Combinamos que a entrevista seria na casa de Amauri, que ficava na QNV 20, creio que a última quadra. Marcamos a reunião para as 20 horas, mas me atrasei 10 minutos. Eles já estavam achando que eu não chegaria mais. Imediatamente, pedi desculpas pelo atraso, Boca que estava à minha espera disse que não havia problema, ademais, segundo ele, os outros parceiros tinham ido à redondeza e logo estariam de volta. Amauri tinha ido receber seu pagamento no mercado da esquina, onde trabalhava como vigia. Boca disse que ele era recomendado, pois conhecia toda malandragem local. Isso lhe atribuía um status privilegiado em termos de respeito e segurança ao mesmo tempo, no bairro onde morava. Enquanto esperávamos em frente da casa de Amauri pelos demais integrantes do Resistência, aproximou-se um homem que era amigo de Boca. Seu nome era Spagueti, o irmão mais velho de Amauri. Boca disse que “a história de Spagueti dava um livro”, pois ele já teria “aprontado muita coisa”, sabia muito sobre como era a vida social de um jovem naquela região, “a vida ali na quebrada”. Spagueti aparentava já estar na casa dos quarenta anos. Boca puxou conversa, daí Spagueti disse que iria sair com a sua mulher para tomar umas cervejas. Ele então passou a contar parte de sua história, comentou sobre casos de morte na área, sobre os antigos locais de lazer que ele costumava freqüentar, como o salão do Quarentão e sua ida para a QNV. Ele explicou que as “guerras”, ou seja, os conflitos entre jovens na região, começaram por causa de roubo de bonés, “Um tomava o boné do outro”, “Todo mundo queria ter roupa de marca, mas ninguém tinha dinheiro”. “Eu já vi gente morrer por um boné”, disse. Spagueti explicou que as guerras eram motivadas pelo desconhecimento de quem roubava: “Malandro às vezes Breitner Tavares 128 roubava de outro malandro sem saber”, “aí começavam as guerras, as mortes”, justifica. Ele se dizia alguém de sorte por continuar vivo. Instantes depois, nossa conversa foi interrompida, pois surge na entrada da casa uma senhora. Eu imaginei que ela fosse a sogra de Amauri, pois era branca e se assemelhava um pouco com sua companheira. Ao se aproximar de nós, Boca comentou, com uma leve expressão de riso, sobre os antigos problemas de Spagueti na QNV. Essa senhora de aparência idosa e com semblante fatigado, foi reticente e só confirmava o que dizia Boca sem maiores comentários. Diante do sarcasmo de Boca e o silêncio da velha senhora, Spagueti demonstrou certo constrangimento e reiterou mais uma vez que tinha um encontro com sua mulher. Boca, sem dar crédito, ainda aproveitou para zombar dele dizendo: “vocês vão pra igreja?”. Spagueti discretamente gesticulou com a mão direita, sinalizando silenciosamente com o polegar, indicando que iriam beber. Por outro lado, em sinal de respeito à senhora ali presente, ele confirmava verbalmente: “sim, vamos à igreja!”. Logo após isso, ele se despediu e saiu caminhando pela rua mal iluminada por lâmpadas de luz amarela e, mais adiante, desapareceu de nossas vistas. Boca ainda lançou um último comentário: “Deus tem um plano na vida desse cara, pois ele já aprontou muita coisa, ele era considerado o terror”. Esperamos por mais alguns minutos, quando chegaram Amauri e Conrado e um outro jovem amigo do grupo. Cumprimentamo-nos, eu me desculpei novamente pelo atraso e, logo em seguida, entramos na casa. Ficamos numa confortável sala onde nos acomodamos num sofá. Assim que sentamos, eu passei a explicar um pouco sobre meu trabalho, eles, por sua vez, questionaram se eu estava escrevendo um livro ou se se tratava de um trabalho profissional. Eu procurei esclarecer todas as suas dúvidas sobre a finalidade, bem como sobre os procedimentos implícitos na realização de um grupo de discussão. Antes de começarmos, chegou o Denis, mais um integrante do RP, acompanhado de um amigo, Fábio (Fm). Nessa ocasião, aproveitei para testar um elemento motivador para a dinâmica do grupo de discussão. Propus que antes do início das perguntas assistíssemos ao filme Rap, o Canto de Ceilândia44. Perguntei-lhes se conheciam o filme e se desejariam assisti-lo. Todos concordaram. Durante a apresentação, observei que eles diziam coisas do tipo: “Somos a terceira geração do rap”, “Meu pai passou para mim e vou passar para meu filho”. Também diziam coisas do tipo: “Conheço aquele lugar, aquela pessoa. Poderíamos ter participado disso”. De um modo geral, eles se reconheceram naquela imagem produzida sobre a Ceilândia. O filme remetia a uma construção da memória coletiva da juventude local e, em especial, dos jovens envolvidos com o rap. 44 Filme dirigido por Adirley Queiroz, ganhador do prêmio de melhor documentário no Festival de Cinema de Brasília em 2005, o filme narra algumas trajetórias dos fundadores do hip-hop do Distrito Federal. Como todos esses músicos advêm de Ceilândia, o filme se tornou um marco iconográfico em relação à autoimagem da juventude local dessa cidade. Além disso, Adirley é morador de Ceilândia e se identifica com a causa de desenvolvimento de uma produção local de audiovisual em comunidades de periferia, o que implica uma reformulação do sentido de produção do audiovisual. Breitner Tavares 129 Quando, de fato, iniciamos o grupo de discussão, notei duas coisas: a primeira é que eu não precisei recorrer ao tópico-guia, pois já havia internalizado as questões. Também notei que muitas das perguntas foram contempladas espontaneamente sem que eu necessitasse apresentá-las. Eles mesmos estavam discutindo suas experiências. Notei que Denis falava pouco. Ele era o membro mais recente do grupo e, além disso, vivia em Águas Lindas (GO), portanto, suas experiências, apesar de semelhantes às dos outros, foram vividas em outra comunidade. Boca, Conrado e Amauri, por outro lado, cresceram próximos à QNV. Amauri assumiu desde o início uma postura de liderança e centralidade na discussão. Ele normalmente realizava suas narrativas num tom de seriedade, acompanhadas por todos atentamente. Conrado, por sua vez, comentava as falas de Amauri de um modo mais brando, às vezes, tentando manter uma atmosfera de tranquilidade e, às vezes, de humor, como contraponto à extrema seriedade de Amauri. Conrado também zombava de Denis, que tentava se defender sem contra-atacá-lo. Após uns quarenta minutos de entrevista, chegaram mais três pessoas a convite do RP. Emanuel (Em), Hélio (Hm) e Gabriel (Gm), músicos e produtores locais, amigos e parceiros do Resistência Periférica. Eles chegaram silenciosos e gradualmente passaram a intervir nas questões apresentadas. Quando os assuntos violência policial e discriminação racial surgiram, houve um alvoroço, o que podemos assinalar como uma mudança de foco, pois todos queriam falar ao mesmo tempo, muitas opiniões eram discordantes entre si, mas procurei ficar em silêncio, alguns se exaltavam, se irritavam, mas tudo num contexto de equilíbrio e respeito mútuos. Ao final, foi reapresentado o filme para os que não tinham visto no início, e enquanto isso, os demais preencheram os questionários. Depois fomos para fora da casa, onde a sogra de Amauri serviu pipoca para todos. Eu me senti num ambiente muito amigável. Também aproveitei para tirar algumas fotos dos presentes. Agradeci a todos pela entrevista e finalmente me retirei. Denis e seu parceiro ainda pegaram uma carona comigo até o Centro, a uns 8 km de onde estávamos, pois eles voltariam para Águas Lindas. No percurso, eles comentaram que lá havia vários grupos, mas a cidade não oferecia qualquer oportunidade. Mencionaram também a existência de algumas rádios comunitárias na região. Ao chegar ao Centro, nos despedimos, eles agradeceram e parti em seguida. O perfil dos jovens do grupo Resistência Periférica Amauri (Am) é o líder do grupo, cantor e compositor das letras. Ele tem 24 anos, é negro, casado, tem um filho, possui 7 irmãos, vive atualmente com sua companheira. Possui o ensino médio incompleto e está desempregado, mas pretende estudar direito e advogar no futuro. Amauri gosta de jogar futebol, de frequentar samba e tomar cerveja, além de curtir rap. Ele atua num grupo que trabalha a conscientização popular em seu bairro há dois anos e meio. Costuma se encontrar diariamente na casa dos amigos do Breitner Tavares 130 grupo. Ele conheceu este grupo na vizinhança onde mora por acaso, a partir da afinidade musical pelo rap. Sua companheira possui o ensino fundamental completo, seu pai possui o ensino fundamental completo e definiu sua mãe, em termos educacionais, como analfabeta. Boca (Bm) é cantor tem 23 anos, é negro, casado, possui 3 irmãos, tem um filho e vive com sua companheira em Ceilândia, cidade onde nasceu. Concluiu o ensino médio e trabalha como estoquista e cantor de rap, ele gostaria de trabalhar numa profissão que “incentivasse” as pessoas, como exemplo desse tipo de profissão, ele cita a de professor. Seu lazer predileto é cantar rap, informa que está envolvido em atividades comunitárias no bairro e que ajuda a juventude a mudar sua perspectiva, definida por ele como “ajudar os irmãos”. Boca informa que conheceu o grupo nas ruas, “vivendo o dia-a-dia da Ceilândia”, explica. Ele mencionou participar de organizações na cidade voltadas para a juventude, como o Grupo Atitude e CUFA (Central Única das Favelas). Sua companheira possui o ensino médio incompleto e é dona de casa. Seu pai, falecido, era de Belo Horizonte (MG) e sua mãe, também mineira, não concluiu o ensino médio e é dona de casa. Conrado (Cm) é cantor, tem 21 anos, é negro, separado, não tem filhos, possui 4 irmãos e vive com os pais em Ceilândia há 13 anos. Ele diz que, em termos de religião, se “identifica com o evangelho”. Conrado não concluiu o ensino médio e está fora da escola, atualmente está desempregado, mas pretende se tornar professor no futuro. Ele tem como principal lazer cantar rap. Ele não participa de nenhuma associação comunitária, ele diz que está no grupo há 6 anos e se encontra com seus parceiros quase diariamente na casa de Amauri. Conrado diz ter conhecido o grupo na vizinhança a partir de conversas com outros jovens, “na rua, trocando idéias”. Seu pai é de Goiânia (GO), concluiu o ensino médio, e sua mãe é de Taguatinga (DF) e também concluiu o ensino médio. Denis (Dm) tem 27 anos, é branco, vive com sua companheira e tem uma filha. Denis nasceu em Brasília (DF), mas vive em Águas Lindas (GO) há 14 anos. Ele informa ter irmãos, mas não diz quantos. Denis informa que não está na escola no momento e que trabalha como motorista de transporte alternativo em Águas Lindas. Não informou sobre as atividades que gostaria de exercer no futuro. Seu lazer preferido diz respeito a tudo que envolva o rap. Denis está no grupo RP há 8 meses e se encontra com seus parceiros 2 vezes por semana na QNV. Menciona que conheceu o grupo através de bailes que ocorriam na vizinhança. Sua companheira não concluiu o ensino fundamental. Seu pai é da Paraíba e não concluiu o ensino médio, sua mãe é de Minas Gerais e não concluiu o ensino médio. Fábio (Fm) tem 19 anos, é branco e piauiense. Ele é solteiro e sem filhos, vive em Águas Lindas de Goiás com seus pais e possui 5 irmãos. Concluiu o ensino médio, participa do programa Primeiro Emprego e gostaria de se tornar um disc jockey (DJ) profissional. Fábio gosta de ouvir música nas horas de lazer. Seus pais são do Piauí e possuem o ensino fundamental incompleto. Emanuel (Em) tem 32 anos, é branco, casado e tem 3 filhos. Ele vive em Ceilândia, onde nasceu, com seus pais e sua companheira e tem 7 irmãos. Possui o ensino médio completo e não está estudando no momento, mas pretende cursar direito. Trabalha como representante comercial há 12 anos, o que inclui a produção de eventos, como shows de hip-hop. Encontra-se com o grupo 3 vezes por semana na Ceilândia Norte. Ele conheceu esse grupo em sua vizinhança, através de reuniões comunitárias. Sua companheira Breitner Tavares 131 possui o ensino médio completo e trabalha como secretária. Seu pai é de João Pessoa (PB), possui o ensino fundamental incompleto e é bombeiro hidráulico, sua mãe é de São Luis (MA), possui o ensino fundamental incompleto e é dona de casa. Gabriel (Gm) tem 27 anos, é branco e afirma ser cristão. Ele vive com sua companheira em Ceilândia, onde nasceu, e não possui filhos. Ele tem 5 irmãos. Gabriel concluiu o ensino médio e não está estudando no momento, além disso, está desempregado, mas pretende se tornar produtor musical. Seu lazer predileto é jogar bola e cantar rap no grupo que já está há 7 anos. Ele costuma encontrar com seu grupo 1 ou 2 vezes por semana em seu barraco. Conheceu o grupo na vizinhança, através do interesse mútuo pelo rap. Sua mãe é de Barra do Corda (MA), trabalha como doméstica e possui o segundo grau incompleto, sua companheira não concluiu o ensino fundamental e é auxiliar de serviços gerais. Hélio (Hm) tem 30 anos, é negro, casado e tem dois filhos. Afirmou não ter religião, disse possuir irmãos, mas não informou quantos. Ele concluiu o ensino médio e informou que trabalha como agente penitenciário para adolescentes e pretende obter um emprego público no futuro. Helio é capoeirista há 15 anos e se encontra 3 vezes por semana com esse grupo, que conheceu no centro comunitário. Figura 11 Sociograma do grupo Resistência Periférica A formação do Grupo Resistência Periférica Y pergunta sobre a formação do grupo. Os membros do grupo se apresentam, informando seus nomes e idades. Denis (Dm) informa seu nome e idade e, logo em seguida, menciona que está no grupo desde 1997, quando o grupo tinha o nome Liberdade MCs. Ele informa que canta rap desde os 12 anos de idade e que agora está com 27. Em seguida, Boca (Bm) informa que também está no grupo desde sua formação original, que já chegou a ter quinze componentes. Com a sua entrada, o grupo definiu seu nome atual, Resistência Periférica. Y: Como começou o grupo de vocês? Antes disso, também gostaria de saber o nome e a idade de vocês. Breitner Tavares 132 Am, Bm, Cm, Dm, Em: (3). Pode ser nome e apelido? Y: Sim. Pode ser apelido, sim. Dm: Meu nome é Dm, eu tô no SR de 2001, mas minha correria no rap é desde 97 quando eu formei o grupo Liberdade MCs com mais três muleque. Desde os doze anos que eu canto rap, e tô com vinte e um anos de idade. (2). Bm: Pois é. Meu nome é Bm. (2). Tipo, desde o começo, né Am? Os muleque formo um grupo de uns quinze. A QNX todinha participava @( )@. Altas quebrada, os tipo, os muleque fez uma gangue. Formô um grupo, né Am? Aí quando eu caí pra dentro nós formô o SR que só foi três muleque que montô. Daí vei a parceria mais forte que foi com o Cm e o Am. Y: Bm: Pode crê. A gente vai chama a RH vai ter a participação do Exp. ClA A, L Crim, do Racio R, do Maro, do Jord, do Wld boy. China. O China é como se fosse o @padrinho pra nós@ @(1)@. Y: Pode crê. Bm: É padrin que eu falo, assim mais próximo. Am: Próximo @(1)@ ((interrompe Bm, brincadeira, remete a um duplo sentido a relação de apadrinhamento do grupo com China)). O interesse pelo rap, enquanto um estilo que representa um habitus voltado para uma juventude pobre e de periferia, levou a um envolvimento de vários jovens na QNX. O interesse dos jovens locais e a interação que os vínculos vicinais permitiam entre vários jovens da QNX definiram, a partir de uma afinidade, uma seleção de alguns jovens que compuseram a atual formação do grupo, definida como uma “parceria mais forte”, que “tomou o rumo certo”. Para além da formação de um grupo com quatro integrantes, há toda uma cadeia produtiva envolvendo desde os músicos rappers, passando por produtores musicais especializados na mixagem de um CD, agentes organizadores de festas e eventos. Além disso, há a participação de outros jovens que frequentam os eventos, como shows de rap ou bailes, que apreciam as melodias do grupo, que está identificado com o rap feito por eles mesmos, de modo independente, em nível local. Em relação às práticas sociais de mobilização dos grupos, com vistas a uma produção local, mencionam-se várias parcerias que ocorrem dentro de um sistema precariamente estratificado de agentes que compartilham alguma influência no grupo dos produtores. O grupo define os indivíduos com maior influência de “padrinhos”. Eles são os principais agentes, capazes de propiciar o avanço de grupos amadores ainda sem prestígio ou reconhecimento. Os padrinhos podem ser rappers mais experientes que já gravaram um CD, alguns são radialistas de rádios comunitárias, com transmissão local ou regional, outros são promotores de eventos como shows ou bailes. Em geral, os padrinhos são pessoas que já detêm um capital social responsável pela capitalização de recursos que permitirão uma relativa mobilidade dos grupos de rap em termos de produção e formação dos mesmos. Portanto, os padrinhos são definidos como aqueles que estão “mais próximos”. Durante a entrevista, o termo padrinho gerou certa tensão no Breitner Tavares 133 grupo. Vários nomes de rappers foram citados, alguns com renome nacional. Alguns jovens ironizavam a expressão “estar mais próximo”, com expressões de duplo sentido, em relação a uma suposta tutela do padrinho ou mesmo em relação a algo que punha em xeque a identificação do grupo com a masculinidade. Bm: Vai lá. Dá a sua idéia. ((passando a palavra para DM)). DM: Meu nome é Dm do Exp CA, tenho vinte e sete anos (3). Am, Bm, Cm @(1)@. Bm: @Todo mundo aqui é velho@. Dm: Eu comecei no rap desde antigamente. A primeira letra que eu fiz foi aquela( ) lá de antigamente aquela. Cm: “Cuidado não sei o que pá”. Dm: A primeira letra que eu fiz nesse estilo foi em 97, que inclusive eu nem gravei (2). Aí eu fiz a formação com os muleque lá da Prive, inclusive com o “L” que morava aqui e mudou pra lá. Aí a gente gravou o primeiro som em 2001, daí entrô o E. que morava aqui também, e agora mudou pra Samambaia. A gente tá tentando seguir o mesmo caminho do SR e com fé em Deus um dia a gente chega lá. Ainda durante as apresentações, Denis diz que tem 27 anos, faz uma pausa, e isso desperta o riso dos demais, que afirmam que todos ali são velhos. Isso gerou alguns comentários sobre a origem do grupo, os jovens relembraram trechos das primeiras letras que não foram gravadas. O grupo demonstra, a partir de seus exemplos, o grau de envolvimento entre diversos grupos na região na elaboração de uma linguagem em torno do rap com vistas a criar uma representação para a juventude local. A preocupação com os detalhes da produção e distribuição do trabalho do grupo é discutida a partir desses vários encontros ocasionais em Ceilândia originariamente e, posteriormente, envolvendo grupos de Samambaia (DF) e Águas Lindas (GO). O grupo apresenta várias narrativas que se voltam para as situações que propiciaram a formação do grupo. Amauri, ao narrar as primeiras experiências do grupo, conta que era extremamente tímido e não gostava da idéia de subir num palco para cantar rap. Contudo, o seu interesse pelo estilo e a amizade com os jovens do setor QNX o levaram a enfrentar sua timidez e a investir no grupo, se tornando um dos principais vocalistas, “MCs”. Quando se encontraram, “a gente se trombô”, a princípio, houve certa desconfiança entre ele e os demais integrantes do grupo, como define Amauri: “(o grupo) ficou de segunda comigo”. Ele conta que na verdade havia até certa inimizade que o envolveu em problemas, como rixas. Contudo, isso logo foi superado e a afinidade em comum pelo rap uniu o grupo. Mais adiante, o grupo menciona que fez contato com um importante rapper da cidade, que lhes passou uma base rítmica e melódica produzida por ele para que fosse cantada com uma letra produzida pelo grupo em estúdio musical. Isso propiciou a primeira apresentação do grupo, que ocorreu numa escola pública da QNX. Ele conta que se sentiu muito nervoso, mas foi aí que o grupo realmente se firmou. Breitner Tavares 134 Am: E o bagulho é interessante, né Bm? Tipo assim, eu nunca tinha cantado rap. Bm: Aí tem história muleque. Am: A história foi cabulosa, não foi Bm? A gente se trombô, não foi ?m ? ele até ficô de segunda comigo. Aí os caras: “vamos pegá”. E ninguém me pegava. Aí eu falei vamu fugi. @Eu parecia uma minhoca@. Depois disso nos começamos a trocar ideia (1) esse negócio de que gostava do rap. Falava pra ele que gostava do rap e coisa e tal. Eu falei que gostava do rap desde pequeno e tal. Aí ele falô que queria até me contratar, me dá uma força. Aí eu falei pra ele que tava com o muleque, mas ele era devagar pra carái, o Em tal lá da 22 da Ceilândia. Aí beleza. Aí um belo dia, o Nei chega aqui, não é Bm? “Aí muleque qué trombá com nois, o outro muleque lá saiu. Até Em ficou de segunda ((mudança na entonação de voz para brincar com Em)) @(1)@. Aí ele me deu a base e disse, você vai cantar isso aí. Aí eu cheguei no estúdio, passei a voz e deu certo. Aí eu fui fazer a primeira apresentação foi aqui na 17 na escola. Eita Bm e só as perninhas tremendo. Aí eu falei: “ou vai ou racha”, amarelinho. E foi lombra, isso aí. Tamu aí na caminhada até onde Deus permitir. Bm: O mais cabuloso foi ouvir no microfone o Am cantando rap ((todos riem)). Am: Se tivesse sido em outra quebrada tinha sido mais fácil. O grupo em diversas passagens relembra situações relacionadas a seu convívio familiar. Em geral, em suas famílias, há um histórico da ausência paterna. As mães, como chefes de domicílio, trabalham como empregadas domésticas e, em quase todos os casos, há na família algum irmão que se envolveu em atividades criminosas. Em relação a isso, Boca se emociona e conta que começou a trabalhar aos sete anos como engraxate para ajudar sua mãe com as despesas da casa. Além disso, Boca menciona Spagueti, irmão de Amauri, como um jovem que era envolvido anteriormente com a criminalidade, como assaltante e homicida, ficando conhecido na região por isso, “ele apavorava”. O fato de ter um irmão nessas condições fez com que Amauri fosse estigmatizado ao ser associado a seu irmão no Setor QNX. Contudo, Amauri pondera e diz que ele mudou significativamente. Diante disso, o grupo discute como pessoas de famílias envolvidas no crime, que “mete assalto”, são prejudicadas por uma imagem negativa. As pessoas dessas famílias sofrem preconceitos. Nessas comunidades, as outras pessoas se afastam por temerem ser agredidas de alguma forma, “já vira as costas, não quer nem andar perto”. O grupo alega que a população local tinha um prognóstico negativo em relação a Amauri, um jovem que teve uma trajetória de vida bastante conturbada. Contudo, a formação do grupo foi um meio encontrado para a superação da imagem negativa através do rap, de um novo status social constituído a partir do estilo hip-hop. Breitner Tavares 135 O grupo afirma que a vida de seus integrantes foi igual, “é a mesma coisa”. Diante disso, Boca menciona que seu pai faleceu quando ainda era criança, assim como ocorreu com Amauri. Boca, para ilustrar a dificuldade enfrentada por sua família, cita um trecho do depoimento do rapper Japão45, do filme Rap, o canto da Ceilândia, em que ele considera que “sua mãe teve que limpar muita bunda de filho de barão”. Boca conta que sua mãe trabalhava fora como empregada doméstica, nesse caso, ela dormia no trabalho, ao menos três dias por semana, e não tinha, portanto, como “controlar seus filhos”. Ele conta que vivia boa parte da sua vida na rua e um de seus irmãos se envolveu com a criminalidade, segundo ele, “caminhou pro lado errado”. Contudo, Boca pondera sobre o comportamento de seu irmão ao dizer que ele nunca cometeu um homicídio, ele “não tem maldade no coração”. Sobre as guerras na QNX: Eles gosta de curti a lombra deles Trajetórias familiares e o envolvimento dos jovens em conflitos locais O grupo em diversos momentos apresenta histórias vivenciadas na QNX que apresentam elementos para a constituição de um habitus a partir da socialização vivida no setor. A influência dos irmãos, a imagem social do jovem na região, em geral associada ao banditismo, são exploradas como forma de ilustração desses vínculos, ao mesmo tempo afetivos e estigmatizados. Durante a discussão sobre o envolvimento de seu irmão na criminalidade, Amaro interrompe e diz que eles tinham seu próprio modo de ser, “eles gosta de curtir a lombra46 deles”. Boca então demonstra sentir orgulho dos seus irmãos, segundo ele, porque sempre lhe orientavam sobre os riscos da criminalidade, dos quais ele deveria se manter distante. Ele relembra que, em algumas ocasiões, já quis se envolver no crime, mas foi interpelado por seu irmão mais velho. Além disso, ele recuperou algumas lembranças de quando seu pai ainda era vivo, mas não oferecia as condições necessárias para o sustento da casa, “meu velho chegava (em casa) e não dava nada”. Boca ainda menciona algumas ocasiões em que presenciou seu irmão mais velho usando drogas, a ponto de se acidentar dentro de casa devido aos seus efeitos. Sobre esse aspecto, ele admite que também havia experimentado drogas antes. Por fim, comenta que somente um de seus irmãos não se envolveu na 45 Japão é o nome de um rapper de Ceilândia. Ele é membro do grupo Viela 17, que já tem vários trabalhos lançados no circuito comercial do rap de Brasília e nacional. Além disso, Japão é membro da ONG Central Única das Favelas (CUFA), que foi fundada na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, e que tem sucursais em diversas capitais do Brasil. Japão, portanto, é uma referência regional da CUFA e possui várias entradas na formação de um campo político orientado por questões da juventude das periferias urbanas, como Ceilândia. 46 “Lombra” se refere a um estado psicológico alcançado, em geral, pelo uso de drogas, mas nesse caso a palavra se refere às escolhas existenciais dos jovens, com algo que causa prazer. Breitner Tavares 136 criminalidade e que atualmente já está casado. Para Boca, essas experiências foram decisivas para sua decisão de não envolvimento na criminalidade. Contudo, logo após seu último comentário, Boca é interrompido por Amauri. Ele alega que, de fato, todos ali estão de alguma forma “no crime” já “que é uma questão de sobrevivência”. Ele se refere a estar numa comunidade com muitos problemas envoltos à criminalidade, que levam alguns jovens a tentar se desviar constantemente desse tipo de apelo. Bm: Tipo assim, se você pega a história do Am, a minha e a do Cm. Am: é tudo a mesma coisa. Bm: A do Am. Ele não teve pai. Tipo assim, ((ele)) morreu novo. Am: eu fui criado com a minha mãe. Bm: O meu pai eu perdi com sete anos(.), foi que nem o China falou, minha mãe teve que limpá bunda de filho de barão, né? Eu cresci com quatro irmão, praticamente na rua. Porque não tem condição, uma mãe que dorme no serviço, minha mãe dormia três dias no serviço e ficava os outro em casa. Aí, tipo assim, não tem como controlar quatro filho. Tipo assim eu tive dois irmão meu que caminharam pro lado errado, mas graças a Deus eles ((ruído externo)) não têm maldade no coração, nunca matou ninguém, essas coisa assim. Am: ºEles gosta de curtir a lombra deles, né vei?º Bm: É isso que eu tô falando. Tipo assim, hoje eu bato parabéns até pra eles mesmo. Porque foi eles quem me ensinô. Às vezes eu queria ir pro crime fazê as coisa errada. Aí o Cabeça falava, não tu não vai não. (ele) ficava até chorando, o apelido dele era até Chora Rita. Am: E tipo assim, eu agradeço pelos exemplo que eu tive dentro de casa. Tá ligado? ((Eu))Vendo meu velho assim pá. Chegava e não dava nada. Nois passava o maior veneno. E tipo assim, eu via meu irmão usando droga e tal. Eu já experimentei, não vou menti não. Carái, meu irmão tá ) ºCaráiº meu irmão tá daquele jeito. O único que daquele jeito. Caiu esse dia e tal. ( não deu trabalho foi o Jú gordin que já é casado e tal. Mas rapaz se eu ( ) se eu não tivesse tido esses exemplos de repente hoje eu tava no crime (.) mais aprofundado, tá ligado? Bm: No crime a gente já tá irmão. ºÉ questão de sobrevivência aí.º.( ) Tem que ir, tá ligado?, desviando, parecendo super herói @(1)@. Isso é de rocha mesmo. Às vezes cê tá passando ali. O Am pá.( ). Daqui pra:lí ( )Tipo assim. A gente tá subindo daqui pra 70. Os muleque da 79 não gosta dos da 70. Entendeu como é que a história? mas a gente tem que passa:li véi. O que que a gente vai fazê? Tem que desviar, né véi? Falar e aí véi? Tranquilo? E aí pá. Passar por um e por outro. Durante a discussão com o grupo, surge uma metáfora de foco em relação à formação do grupo e um aparente paradoxo criado por seus próprios discursos. Em diversos trechos, os jovens expõem como Breitner Tavares 137 em suas famílias e comunidade onde vivem a criminalidade se constitui enquanto um problema a ser evitado ou sanado. Para o grupo, “estar no crime” implica assumir uma trajetória de vida marcada pela marginalização de jovens numa periferia como a QNX ,em Ceilândia, e redefini-la a partir da constituição do estilo hip-hop. O grupo discute como é a vida dos jovens na região onde moram. O grupo menciona que na QNX já houve muitas divisões e rixas entre jovens das quadras 76 e 70. Os jovens do grupo, apesar de viverem na quadra 70, alegam que não tomaram partido nessas diferenças, contudo, em diversas vezes, eles tiveram que se identificar e cumprimentar os jovens das quadras rivais de modo a se evitar o conflito. Afirma-se que, de fato, muitos jovens na QNX antipatizam-se reciprocamente. O grupo comenta que as rixas eventualmente ainda ocorrem em função da ascensão econômica de alguns indivíduos, que encontram emprego e passam a comprar roupas e produtos inacessíveis para a maioria da população local. Isso, de certa forma, incomoda outros que não lograram o mesmo êxito, “eles crescem o olho”. Nesse caso, gravar um CD ou videoclipe pode gerar algum tipo de contenda no setor contra o grupo. Essa rivalidade se manifesta em geral por críticas na forma de comentários negativos difundidos à revelia do grupo, feitas “pelas costas”. Y: Am mora na 79? Bm: Não. O Am mora na 80. ( Am: Na verdade::na verdade assim, muita gente aqui não gosta de ninguém, véi. Bm: ºNão gosta de ninguém, você entendeu qual que é a idea?º Am: Não pode começar a ganhar uma micharia, num pode começá a fazê uns correzim, compra um ) na 17 e Cm em Águas Lindas. tênis pá. Que os cara começa (1 ) Cm: ºA crescê o olhoº. Am: ºA crescê o olhoº. Tá ligado? Muita gente fala por falar, mas gostá não gosta não. Bm: Se tu gravar o CD então, complica, @(1)@. Am: [( Cm: Tem uns que dá uma força e tem outros que cresce o olho. Am: Não. Mas tem aqueles que fala carái o clipe de vocês é doido e tal( Cm: mas ao mesmo tempo pelas costa ( ). Am: É real. ) é real. ). Em relação à rivalidade entre as quadras 70 e 76, definidas como “guerras”, o grupo menciona que houve, certa vez, um confronto entre os grupos na QNX em que morreram alguns amigos seus, de ambas as quadras. Entretanto, o grupo buscou se manter numa posição de neutralidade, “a gente curtia normal”. Isso era possível porque o grupo, através do rap, agradava os jovens das localidades com letras que abordam problemas, como a vida na cadeia, a violência sofrida pelos jovens de periferia. Contudo, havia certas restrições. Os jovens da 70 que gostavam do rap do Resistência Periférica alegavam que os Breitner Tavares 138 mesmos estavam frequentando uma boate, “inferninho”, controlada pelo grupo rival, nesse momento, o grupo desconversa sobre as possibilidade de retaliações impostas por um dos grupo envolvidos na “guerra” local. O grupo comenta que, eventualmente, era convidado a se apresentar em uma área controlada pelos jovens da 76, mas sempre desconversavam por temerem as possibilidades de algum tipo de emboscada. Nesse momento, eles descrevem o perfil de jovens, menores de idade, portando pistolas nove milímetros, que eventualmente pegam qualquer um como bode expiatório, “pra vê se sente a dor”. O grupo comenta que, em meio a essa história de confrontos, muitos morreram ou foram presos, mas que felizmente esse conflito havia terminado. No entanto, o grupo ainda apresenta alguns depoimentos sobre experiências que, segundos eles, motivavam o envolvimento de jovens na criminalidade e na violência. O grupo apresenta sua versão dos tipos de situações que levam a juventude local a se envolver com a criminalidade. Boca comenta num baixo tom de voz que as coisas haviam mudado. O grupo relembra novamente Spagueti, irmão de Amauri, para tentar uma elaboração sobre a origem das guerras que atingem os jovens na QNX. Bm: Pra tu vê. Lá onde nois mora Dm, entre a 76 e a 70, foi uma guerra que morreu camarada meu, morreu camarada meu que morava do outro lado também que eu conhecia, tipo assim, morreu muito tá ligado Am? Né Dm? E a gente, a gente ficava praticamente no meio véi. Mas só que a gente ficava no meio (.) Am: Neutro. Bm: Tipo neutro. Am: ºA gente curtia normalº. Bm: No meio, porque a gente, assim a gente morava na 70, e os muleque da 76 curtia o nosso rap (1). Entendeu qual que é a história? Os muleque da 16 falava que a gente tava num inferninho que era tipo uma boate lá (.) Só que a gente já não ia pra não dá motivo, entendeu? Pra não falar pô. Se a gentefor pra lá os muleque ( ) aí tipo assim ( ) Em: ( Bm: Os muleque de menor que anda com uma nove milímetro cheio de munição mermo, na cintura. ). Você mora na Ceilândia, já sabe como é que é. Aí tipo assim, eu falava, aí Am é melhor a gente ficar neutro na história, pá. Nois fazia nosso rap e os muleque da 76 curtia, mandava ( ). Os muleque falava, manda os muleque do RP pra cantá aqui pra nois e tal. Aí nois falava(.) Dm: ºQuem vier vai levarº. Todos: @(2)@ Bm: @Sabe o que nois pensava?@ ( ) Vamu não Bm. os cara vai querer pá (.) cum nois(( armando alguma coisa)). É tipo assim, os cara pega qualquer pra vê se alguém sente a dor (1). Breitner Tavares 139 Dm: Essa é a verdadeº. Bm: Entende só? Dm: Muleque de dez anos ( Bm: Tipo assim, foi uma coisa que a gente sobreviveu. Acabou, graças a Deus. Muitos foi preso, ). muitos morreu. Tá ligado? O grupo exemplifica o surgimento das guerras e descreve que numa ocasião alguém rouba uma jaqueta de um jovem sem conhecê-lo previamente, pensando se tratar de uma vítima passiva. Contudo, a vítima do assalto recorre a seus amigos, que, nesse caso, se mobilizam, para se proteger, adquirindo armas, “ele junta um exército com ele”. Em seguida, ele busca uma revanche junto ao que efetuou o roubo de sua jaqueta, que pode se sentir coagido, “ficando pequeno” e, portanto, dando início à “guerra”. Bm: Exatamente, ºnão seiº, no assunto, no Spagueti que nós tava trocando idéias no começo ((antes de começar a entrevista – mundo do crime, falta de oportunidade)). Igual eu falei, a Expansão, com três, sete anos de idade, eu andava na rua, já trabalhava, ((eu)) engraxava ( ). Ah;(.) o Spagueti;(.), já apavorava, incomodava praticamente ( ) né? Am: Um muleque que mudô né? Bm: Aí o Am foi mais conhecido por ser até irmão né? Y: Só. Bm: De tá numa família, tipo assim. Se o Am tem uma mãe que é correria. Tipo assim, pro lado do mal, que mete assalto ((Ela)) vai afetar ele também. Nem todo mundo vai vê só a mãe dele. Vai vê ele também. (( todos comentam rapidamente)) Já vira as costa não qué nem andar perto. Entendeu? Então todo mundo vê o Am no palco. Hoje em dia. Am: Hoje em dia eu chegando naquela quadra lá Bm é cabuloso. Juntando um monte de gente na frente dizendo “eu só quero ver”. Parecia que era o cabuloso. Bm: ( ) uma fita meio estranha. Por isso que eu falei ((que)) parecia dois muleque. A gente chega no palco e vai tratar o Am tipo assim: “seu filho da mãe”. Aí depois vai lá ( tal foi mal coisa e tal. Aí então chega no palco ( ) não de boa ( ) ) um puxa o outro. Tipo assim coisa das antiga. Rolamo junto e deu certo. Am: ( ) a nossa infância foi um bagulho cabuloso. Em relação ao exemplo trazido pelo grupo, relembra-se o irmão de Amauri, Spagueti, que se envolveu com a “malandragem”. Segundo o grupo, ele costumava trabalhar honestamente e com algum dinheiro podia consumir roupas e acessórios de marca, como tênis Adidas, camisetas e casacos da moda. Contudo, havia um traficante local, chamado Cião, que sempre o abordava e lhe roubava seus pertences. Breitner Tavares 140 Em função de ter sido alvo de sucessivos assaltos, Spagueti decide comprar uma arma, na ocasião, um revólver calibre 22, para se defender. Passado algum tempo, Spagueti presenteia seu irmão mais novo, Amauri, com duas pipas coloridas, daí ambos decidem soltá-las próximo à casa deles, quando, de súbito, são surpreendidos novamente por Cião, que lhes toma as pipas, além de um par de tênis de Spagueti. Nisso, Amauri começa a chorar e Spagueti, sem dizer uma só palavra, o leva de volta para casa. Em seguida, ele deixa a casa sem informar seu destino quando, algum tempo depois, Amauri é informado de que ele havia matado Cião a tiros. Dessa forma, o grupo conclui que seu irmão se tornou um criminoso por causa de um par de tênis. Após esse incidente, Amauri conta que seu irmão teve que se mudar para outra cidade, São Paulo, para escapar das represálias locais e da polícia. Apesar do jovens reconhecerem a malandragem como um caminho incerto Spagueti é idealizado a partir de uma dupla moral como assassino e herói. Dm: ºJá faz tempo agora mudou mais. Agora mudouº. Bm: O Muga, Gaveta, Steel. Muleque de 16 anos perdeu a vida por causa de besteira, morreu. E igual o Spagueti falou no início. Às vezes na guerra Am, tipo assim, o cara entende. O cara chega ali e te assalta essa jaqueta tua. Gosto dessa jaqueta de couro. O cara vê o Am passando, só que ele não conhece o Am. Chega “bora=aí é um assalto”. Aí pensa que tá assaltando qualquer um. Mas aí vai vê, o Am junta um exército com ele, Eh=aí. Am: Cabuloso Bm: Fica pequeno. Am: Meu irmão mermo entrô na malandrage, ó Bm, por causa disso aí. Bm: ºEntão, tô ligadoº. Am: [Ele trampava, tá ligado Bm? Antigamente tinha uns Adidas tratozin, né? Tal as peitas, os moletonzões. Aí tinha um bicho que era traficante aqui, o Tião e dona Graça, que morava num sobrado ali. Bm: @Ei::ta@. Am: Lá onde que o Wal mora ali, tá ligado? Aí: pá, toda vez que esse bicho via o Spagueti (ele) brec, tomava, dava cabada, tomava as ropa tudo, o Spagueti vinha de cueca. Aí uma vez Spagueti trabalhô um mês e compro um vintedoiszão argentino ( ) 13 tiro. Bm: @Ei::tá@. Am: Naquele tempo quem tinha um 22 daquele era=era o (.) Zorro moço. Bm: @(.)@. Am: @Era o cabuloso@. Aí o Spagueti me chamô e comprô duas pipa. Eu lembro até hoje. Uma do Flamengo, e outra vermelha. E fomo soltá. Tamu lá soltanu as pipa lá, aí chega esse Tião ( . ) e pára o Spagueti de novo e toma os tênis e as pipa (1). Eu venho chorando, nois viemos de boa, né? º Aí belezaº (1) Certo dia nois tá aqui e só vê (.) meu irmão liga não sei pra quem aí avisa( ) ºtô chegando não sei da:on::de (1) acabei de matá o Tião dentro da casa dele e talº, maió lombra, por causa de um tênis. Breitner Tavares 141 Bm: º( ) falando pra tu, eu já fui até carregado por um caminhão de lixoº. Am: Cabuloso. Aí ele foi pará em São Paulo ( ) e depois teve que volta de novo. Maió lombra. Após a narrativa de Amauri sobre sua história associada à de seu irmão, Boca define o sentido da existência do grupo, “sua essência”, a partir de suas histórias de jovens que “cresceram nas ruas” da periferia. Ele mais uma vez remete à memória de seus irmãos. Um deles costumava se dirigir ao outro setor vizinho, chamado QN-OZ para roubar bicicletas. Boca conta que naquela época sempre queria acompanhar seus irmãos mais velhos. Segundo ele, seu irmão nunca permitia sua companhia nessas situações, por outro lado, ele lhe presenteava com roupas, “andava arrumado”. Diante disso, Boca conclui que vê seus irmãos como “heróis”, não por seu envolvimento com a criminalidade, mas por seu esforço para impedi-lo de não aderir a ela, todavia, ele pondera e reconhece que eles poderiam ter feito diferente, mas eles não tiveram as devidas oportunidades de estudar e trabalhar. Bm: Porque a idéia que a gente tá dando aqui é tipo uma essência de tudo, né véi. Por que SR? Porque a gente porra, gente cresceu no dia-a-dia na rua, eu mesmo véi, se eu for contar meu tempo pra cá, de muleque mesmo assim, eu já tive uma (força) daquelas ( ) agradeço meus irmão, né véi? Por não ter deixado eu entrá pelo lado do crime. Querendo ou não ( ) os muleque ia robá(.) . ºRobá mesmoº eu já ( robei) pá, ºvamu lá no Setor Oº robá bicicleta. Ia três. Eu doidim pra ir, e meu irmão “ vai não, vai não”. Meu irmão ia, eu queria ir e ele não dexava, tá ligado, qual que é a idéia? Ele cresceu me dava ropa, andava arrumado, e tal ( ) mas não gostava (( do envolvimento no crime)). Eu acho que o Am e o Dm. Eu acho que a gente vê nossas família ( ). Tipo eu não vô briga com meu irmão porque ele foi pro lado errado. Pelo contrário. Eu vejo ele como um herói, de questão de não deixá eu ir também (1). Tá ligado? Não por que ( ). Ele não foi certo. Pra mim ele não foi certo. Ele podia ter estudado e trabalhado. Mas como é que você vai estudar e trabalhar se você não tem condições. Boca discute algumas experiências na escola. Nesse momento, o grupo fica em silêncio e o observa atentamente. Boca relembra momentos em que, enquanto sua mãe trabalhava, alguns de seus irmãos eram infrequentes na escola, mas sua mãe lhe dava uma atenção especial por ser um dos irmãos menores. Ele alega que era sempre cobrado a ter bons resultados e isso lhe faz sentir bem. Isso lhe permitiu ir “caminhando” no sentido de construir uma história diferente das dos seus irmãos. A disciplina para os estudos que lhe permitiu concluir o ensino médio. A experiência na escola também foi importante para o esforço criativo na elaboração de letras das primeiras letras de rap, bem como a criação do grupo. O envolvimento com o rap é definido pelo grupo como um meio de alertar outros jovens quanto à luta por justiça. Eles, num tom de riso, dizem que se tornaram os “advogados dos muleques”, ao se Breitner Tavares 142 referirem à importância de não se permitirem ser humilhados e viabilizarem meios para a denúncia das injustiças. Eles ainda mencionam que já acompanharam algumas trajetórias de jovens envolvidos nas drogas que se recuperaram a partir do envolvimento com o rap. Bm: E antigamente, e antigamente ( Am: Ela batia moço, a bicha era aloprada, ( Bm: E minha mãe né Em? Trabalhava né? Como é que cuida de quatro filho? (2) Né? Trabalhando ) minha mãe Am. ) pra cá, era aloprada. mermão. E meus irmão ia pro colégio, às vezes não ia. E eu cresci, graças a Deus terminei o segundo grau. Tá ligado? Eu fui um muleque, mas assim eu me sinto bem, minha mãe sempre cobrava. Pelo menos da gente, de mim e do menorzinho. A gente sempre foi cobrado. Daí a gente foi caminhando, tá ligado? Montamo o rap, começamo a escrever rap. Aí a gente saiu mesmo assim. Isso aqui é pra nos alertar. A gente já começô a ser os a:::, como é que é? ( . )(( a ser)) os @advogado do muleque@. Não porra, não é assim não, não dá mole não, vai, se a polícia te bater, vai vai atrás, tipo assim, não fica sendo humilhado não porra. Am: Oprimido, né véi? Durante a discussão o grupo trouxe um tema que se tornou uma metáfora de foco importante em relação ao seu envolvimento na mobilização e solidariedade, mediante práticas de lazer na comunidade onde vivem. Além de um grupo de rap, o Resistência Periférica desenvolve outras atividades relacionadas ao entretenimento e, além de se divertirem em bailes e shows em diversas localidades, o grupo também se envolve na promoção de eventos para a juventude local. Em relação a isso, o grupo realizou uma festa para angariar fundos para a família de um jovem que havia sido preso recentemente em função do seu envolvimento com os conflitos no setor. Ele havia deixado sua família sem qualquer recurso. Nesse caso, ainda havia um agravante em relação à Ana Lú47, companheira do jovem preso, mãe de três filhos, pois ela estava grávida e prestes a dar a luz ao quarto filho. A relação de Ana Lú com o grupo se deu em função de sua participação na produção de um CD como segunda voz, backing vocal. Portanto, sua situação gerou uma mobilização do grupo no sentido de produzir um evento de lazer em torno do drama vivido por aquela família vinculada ao grupo. Mais adiante, de modo amadorístico, o grupo produziu a festa. Encontrou um velho galpão num setor de indústria próximo à QNX, elaboraram um cartaz e buscaram algumas rádios locais para a divulgação do evento, além de terem convidado todos na região para prestigiá-lo. O grupo menciona que o espaço para a festa ficou repleto de pessoas e que não houve nenhum incidente grave, apenas uma situação envolvendo briga, isso porque, segundo o próprio grupo, eles mesmos produziram a festa, assim como sua segurança, com permissão oficial da polícia. 47 O nome utilizado foi inserido pelo autor, pois o grupo não cita os nomes das pessoas envolvidas como uma forma de preservar suas identidades. Breitner Tavares 143 Bm: É. Que a gente fez tipo um frevo tipo pra ajudar a famílias dos preso. Dos cara que tava preso. Tipo, porque. a dona que participou do nosso CD que é a Ana Lú, ele tinha o parcero dela que tava preso, o marido. Ela tinha três filho com ele e tava pra ganhar nenê. Inclusive ela passô o bode de quase ganha nenê. Aí ela tipo chego ná gente, trocô uma idéia e a gente, pô. o que a gente vai fazê pra ajudá ela? Salário não dá. O Am não trabalha, não dá. Ninguém, eu tenho filho ( ) Vamo fazê um evento. Nóis fez um evento num @galpãozão tipo abandonado@. Am: Não deu nada, graças a Deus. Dm: Se a gente faz unido, entendeu? ?m: Deu uma briga. Em: Deu uma briga mesmo ainda Fm. O grupo menciona que todo dinheiro obtido com a festa foi revertido para pagamento das despesas com o evento, tais como: divulgação, a reserva dos espaços e para ajudar Ana Lú. De fato, o acontecimento da festa chegou ao conhecimento de vários presos da Papuda, algo que gerou um reconhecimento para o grupo, que tematiza a questão carcerária em suas letras. O grupo menciona que através dessa festa pôde conhecer vários outros jovens que tinham experiências semelhantes as suas no sentido de terem perdido amigos e familiares que se envolveram no passado com o crime. Boca menciona, inclusive, que alguns jovens mortos nesse tipo de conflito eram mais novos que ele algo que o deixa sensibilizado, pois o remete à sua antiga condição “de irmão mais novo” que foi orientado sobre a importância de não ir “para o caminho errado”. Am: E essa idéia é tão cabulosa Bm, que ontem chegou uma carta lá do presídio do Fabim pra nois, óh. Obrigado pela força Família ( Bm: ) viu, tá aí viu ?m?. [ Aí. É isso que eu tô falando. Tipo assim. Tá ligado nessa fita aí que a gente fez muleque? Foi uma fita pomposa véi, a gente não ganhô nada. Am: ºTá bem aquiº ((mostrando um trecho da carta para ?m)). Bm: Eu achei massa pelo seguinte. Querendo ou não, querendo ou não, tu=tu vai olhar assim: pô, os cara tão tudo preso, é tudo marginal. É que nem teve pessoa que virô pra mim e disse: “tu vai ajudar marginal mermão, tu tá doido, pega esse dinheiro e investe”. Aí eu fiquei pesando. Pô muleque, eu tô querendo dá um trampo pra família dos cara tá ligado, família dos cara, tá ligado?; que necessita, a dona tava perto de ganhar neném e não tinha uma fralda, uma ropa. Am: Pô, Bm, naquele dia eu fiquei até sentidão. Você chegou em mim e : ( Bm: Não tinha uma ropa, quer dizer, não era papel nem nosso. ). O grupo menciona algumas histórias em que jovens foram mortos nas guerras, em alguns dos detalhes discutem-se detalhes de mortes ocorridas com jovens no setor. Os jovens contam que um jovem chamado Batata, mais conhecido como Tata, presidiário e amigo de Boca, recebeu uma permissão para Breitner Tavares 144 visitar sua família no dias das mães. Tata tinha uma contenda, “guerra”, com jovens da quadra 70. Tata vai à casa de Boca, contudo, ele não estava em casa para recebê-lo, quando Tata resolve deixar o local, ele é visto por um desafeto, que lhe mata a tiros. Ele deixou dois filhos. Os jovens comentam que a festa, que tinha como um dos objetivos apoiar a família de um detento, gerou uma boa repercussão. O grupo recebeu cartas de agradecimentos de presidiários pelo esforço do grupo em dar algum apoio às famílias de presos. Boca ainda reconhece que teve dúvidas quanto a sua atitude, ele conta que se perguntou por que ajudar marginais presos. Alguns de seus amigos ainda lhe sugeriram que ele investisse o dinheiro no próprio grupo. Entretanto, ele alega que, ao pensar na condição de Ana Lú, ele se remeteu a sua própria trajetória, quando era soldado das Forças Armadas e foi forçado a sair prematuramente devido a problemas disciplinares com a corporação. Dessa forma, o jovem que sonhava seguir carreira militar, tinha ficado naquele momento desempregado, estava prestes a se tornar pai, pois sua companheira naquela ocasião estava grávida, assim como a companheira de seu amigo preso mais recentemente. Boca conta que naquela ocasião contou com a ajuda de seu irmão, que acabava de deixar a prisão e iniciava um novo trabalho. Essa situação o levou a tomar a decisão de ajudála, ao invés de simplesmente ficar com o dinheiro para si mesmo. O grupo conclui que as pessoas que têm dinheiro, um “riquim”, não compreendem a realidade que o jovem enfrenta numa periferia como a QNX, portanto, eles se põem a criticar. Para o grupo, como menciona Boca, caso uma dessas pessoas viesse à QNX e se mantivesse ali por uns dois meses, ela descobriria que a realidade é bem diferente, “chegaria com outra cabeça”. O grupo conclui que nem todos os presos encarcerados se comportam comportam como crianças, muitos ao serem perguntados por suas atitudes homicidas e de assaltantes se põem a chorar. Boca conclui que a condição de preso “não é vida não”. 7.3 Sobre as orientações coletivas dos jovens dos grupos analisados: algumas considerações conclusivas Os grupos de rap apresentaram diversas semelhanças, o que não implica um caráter homogêneo no que se refere à sua formação e envolvimento com o rap. As relações vicinais estruturadas pela escola e pelas limitações geográficas que os bairros impuseram foram decisivas para a realização de um encontro dos jovens. Há um protagonismo jovem que chama atenção para um envolvimento no sentido da mudança social em suas vizinhanças e famílias. Os jovens buscam assumir a responsabilidade por aquilo que, às vezes, chamam de “revolução” ou “correr atrás de algo verdadeiro”. Além disso, o ambiente familiar se configurou como um espaço relativamente importante para a socialização e contato com gerações mais velhas, representadas pelos pais, mães, padrastos ou irmãos. Contudo, apesar da ênfase dada à família e ao respeito aos mais velhos, esse tipo de argumento paralelamente informava o desejo e as atitudes dos jovens no sentido de construção de um contexto geracional específico, de um espaço paralelo ao mundo adulto, onde eles pudessem construir sua identidade a partir do seu estilo de vida, com suas respostas aos problemas enfrentados em seu cotidiano. Breitner Tavares 145 Sobre a formação dos grupos, o BR45 e Rap Comando se originaram de maneira semelhante, ambos a partir de projetos promovidos por instituições assistenciais que atuam em escolas no setor QNZ, onde os jovens residem. Os projetos envolviam a discussão de problemas locais associada a uma noção de cidadania, utilizando a estética hip-hop e, mais especificamente o rap, para mobilizar os jovens num tipo de empreendedorismo, já que o objetivo era motivar os jovens a trabalhar com música. O grupo BR45, formado há mais de dez anos, frequentou esse tipo de oficina até decidir deixar o ambiente da escola para atuar como artistas locais representantes do estilo rap. O grupo Rap Comando, por sua vez, é um grupo formado recentemente, há seis meses, e ainda frequenta o espaço das oficinas como uma possibilidade de se encontrar nas vizinhanças, bem como uma forma de aprender aspectos técnicos que envolvem o rap e o grafite enquanto estéticas do hip-hop, importantes para o grupo. Contrariamente, os grupos Revolução MCs e Resistência Periférica surgiram da relação vicinal entre jovens que se encontravam nas redondezas do setor onde vivem, em quadras esportivas, jogando futebol ou em bailes. Eles compartilham das mesmas experiências que os motivaram a criar o grupo. Diferentemente dos jovens do BR45 ou do Rap Comando, o Revolução MCs e Resistência Periférica não foram produzidos no interior de programa assistenciais ou ONGs, mas a partir da iniciativa de grupos de afinidade que passaram a agir como jovens empreendedores locais e que compartilhavam das mesmas situações existenciais de pobreza e exclusão social. Todo o processo de elaboração desses grupos, passando pela elaboração de um nome representativo, bem como pelo tipo de letras que iriam abordar, dentre outros aspectos da formação de um sistema de gostos expressos por suas orientações coletivas, está associado ao processo de autoaprendizagem a que os grupos se submeteram na busca de uma identidade em comum e de determinados fins para sua práxis estética. Em relação à elaboração de um projeto político-pedagógico, os grupos estão voltados para um conjunto de práticas lúdicas e consumo de bens identificadores com os sentidos de uma missão transformadora. Diante disso, o grupo BR45 discute seu processo de formação seletiva, em que muitos não resistiram devido a seu envolvimento com o uso de drogas e a pichação, prática contrària à ética do grupo. Criar um grupo de rap foi o meio encontrado por esses jovens para apresentar um contraponto, uma aposta num futuro livre desses problemas. Além disso, o envolvimento com o rap, com a capoeira permitiu ao grupo se reconhecer como um produtor de “cultura” no sentido de um conjunto de práticas identificadoras de uma negritude. Essa combinação entre rap e capoeira é definida como a “mais forte atualmente”, dado o seu potencial de envolvimento e ação política da juventude submetida à espoliação nas periferias urbanas. Os jovens do Rap Comando argumentam que o rap é uma forma de expressão artística e política dos problemas que enfrentam em sua cidade. O sentido de mudança social para esses jovens se expressa no sentido de “correr atrás” de algo “verdadeiro”. A crônica social elaborada nas letras do grupo representa um meio de organização e mobilização locais pelas mudanças que julgam necessárias para superar os constrangimentos sociais, definidos como as “humilhações”. O grupo Revolução MCs, de modo semelhante ao grupo BR45, reivindica o sentido de uma missão política para realizar o resgate daqueles envolvidos no “vício do álcool e das drogas”. O meio para Breitner Tavares 146 essa mudança de atitude está relacionado ao potencial lúdico e atrativo que o hip-hop apresenta para a juventude. O rap enquanto uma forma política de identidade adquire uma conotação mais efetiva em termos de sua capacidade de transformação quando associado à conversão religiosa protestante. A orientação religiosa redefine os vínculos afetivos de amizade entre os jovens e suas famílias, o que gera a capacidade de mobilização social para lograr suas finalidades políticas de “resgate social”. O grupo Resistência Periférica enfatiza as trajetórias familiares de seus integrantes, bem com de outros jovens que compartilham das mesmas condições de violência enfrentadas na QNX. O enfrentamento desses problemas seria o eixo norteador de uma formação geracional em relação ao hiphop e ao rap, com vistas a criar uma representação política a partir de manifestações estéticas. Em geral, o sentido de missão política voltada para a mudança social assumida pelos grupos, apresentada de diversas maneiras, tais como “revolução”, “cultura forte”, “buscar algo verdadeiro”, entre outras, não passa pela perspectiva dos movimentos sociais político-partidários ou de uma esquerda política institucional, com ideais revolucionários tradicionais. De fato, os jovens se organizam de modo autônomo e defendem uma intervenção de natureza assistencialista através de ONGs nas regiões onde vivem, com um meio ambiente urbano desprovido de equipamentos públicos voltados para o lazer e programas sociais para a juventude. Em relação à visão do espaço social urbano, os jovens dos grupos denunciam que, mesmo em sua região, os valores individualistas prevalecem em detrimento de valores associativistas e comunitários. Mesmo vivendo em meio a um setor desprovido de infraestrutura e falta de lazer, as pessoas estão mais preocupadas em “andarem bonitinhas”. Os grupos defendem uma intervenção no sentido de se garantir o direito à cidade por práticas lúdicas de lazer e esportes. Essa seria a garantia de uma redução do quadro de violência nas cidades onde vivem. Os jovens dos grupos, em geral, defendem um protagonismo jovem, em que o rapper assumiria o caráter formal de uma liderança comunitária no sentido de defesa dos interesses locais. Essa prática se daria pelo rap como uma forma de veiculação de protesto e engajamento em defesas dos jovens, como mencionado na expressão do grupo Resistência Periférica: “ser os advogados dos muleques”. O sucesso enquanto empreendedores musicais também deveria ser consequência da criação de uma nova cultura política. Por outro lado, os grupos reconhecem a dificuldade de se alcançar o ideal de uma transformação frente a valores que primam por relações mais impessoais e individualistas, mesmo na periferia da metrópole. Os jovens, de maneira geral, não desferem uma crítica direta ao Estado enquanto forma representativa de governança, eles simplesmente discutem a ausência dessa governança e se mobilizam como entidade associativista, capaz de mobilizar a população local em práticas sociais, como o mutirão para a solução das demandas locais. Em relação à percepção do espaço urbano e de possíveis interações sociais, os grupos descrevem os valores que são predominantes numa periferia em duas diferentes abordagens. Em relação à primeira, de tom distópico, os jovens afirmam que os desacertos ou rixas são frequentes como forma da materialização da violência que atinge, principalmente, os jovens em seu cotidiano na escola, nos campos de futebol, na esquina, nos bailes, entre outros. A violência entre jovens é naturalizada como parte da Breitner Tavares 147 rotina cotidiana, base para o discurso de “resgate” social. Existe uma mitificação dessa representação social da violência a partir de estereótipos urbanos, onde há criminosos e policiais corruptos, de um lado, e a população refém de um estado de descontrole social, de outro. Em relação à segunda abordagem, essa está relacionada a uma mobilização, “correr atrás” ou “ser os advogados dos muleques”, o que se relaciona ao item discutido anteriormente sobre protagonismo jovem e sentido de mudança social. Em geral, os jovens enfrentam grande dificuldade para realizarem seus projetos como produtores locais e como lideranças políticas em potencial. Em relação ao enfrentamento de uma perspectiva urbana e distópica materializada, definida pela violência, os grupos defendem uma reelaboração das regras sociais, em que a humildade e o sentido de existência do grupo passam a ser parte da etiqueta urbana. Para isso, cria-se um conjunto de gestos, o que seria um atributo do estilo rap, uma estratégia jovem de sobrevivência, que é materializada corporalmente pelo vestuário característico do estilo hip-hop. Durante as discussões com os grupos de rap, ao apresentarem suas queixas sobre os problemas locais, como pobreza e violência, bem como ao falarem da dificuldade para uma mobilização social, os jovens construíram uma categoria de uma alteridade que seria em parte responsável pela dificuldade na mudança social que vislumbram. Trata-se da categoria “playboy”. Essa categoria, “o playboy” ou, às vezes, “o riquim” (riquinho), é utilizada para tratar do outsider, ou seja, daquele jovem que não compartilha o mesmo status social dos jovens que vivem na periferia como parte de um sistema classificatório. Segundo eles, o playboy não reconhece as regras locais e ostenta um privilégio de classe e eventualmente se envolve em conflitos com os jovens da periferia, “os humildes”. Além disso, os playboys são aqueles que não se envolvem nos projetos sociais na periferia, definidos por aqueles que “só querem andar bonitinhos” e que estão atrelados a vínculos de sociabilidade relacionados à valorização e ostentação de poder econômico. Observa-se, em geral, nos grupos entrevistados, a tentativa de se construir uma imagem negativa do jovem envolvido em outros estilos de vida, outros vínculos de sociabilidade que, eventualmente, se chocam com a visão de mundo dos jovens de periferia envolvidos no hip-hop e no rap. Nesse caso, a depreciação do “playboy” é parte da luta concorrencial pelo reconhecimento que demarca o pertencimento ou não dos jovens que compartilham o mesmo estilo de vida vinculado ao hip-hop. Sobre a relação dos grupos com pessoas mais velhas, ou seja, que pertencem a diferentes gerações, os grupos apresentam respostas aproximadas. A relação com pessoas mais velhas é sempre considerada como importante, especialmente no que diz respeito ao acesso à experiência acumulada durante os processos socializadores. Por outro lado, também se observa, nos dois grupos, a tendência a buscar espaços de circulação e de troca de experiências que sejam exclusivamente jovens. A relação entre diferentes enteléquias geracionais, ou seja, diferentes construçõs do sentido de visão de mundo, como no caso dos rappers e seus pais, está condicionada a uma abertura para o reconhecimento das alteridades, baseada naquilo que os jovens definem como “respeitar para ser respeitado”. Sobre a relação familiar, a mãe é representada como alguém de extrema importância, principalmente em se tratando de famílias cujos pais estão ausentes. A idealização do pai, às vezes passa Breitner Tavares 148 por uma extrema depreciação, especialmente quando este é ausente da família, contudo, mesmo nesses casos, o sentido do pai enquanto patriarca, provedor, prevalece, trata-se do pai “guerreiro”. O relacionamento entre irmãos e irmãs está condicionado a padrões hierárquicos tradicionais, em que se valoriza o mais velho e o sexo masculino como corresponsável pela educação dos mais jovens, todavia, observam-se certas limitações em que os mais jovens e as meninas subvertem esse legado patriarcal. Em alguns casos, os irmãos mais velhos são apresentados como referenciais para a socialização dos jovens no hip-hop ou são construídos como “heróis” que protegem seus irmãos mais novos do envolvimento com a delinquência. Em termos da constituição dos grupos enquanto uma subcultura, os jovens entrevistados expressaram estar vinculados a um determinado padrão de gosto social que envolve a apreciação pela indumentária hip-hop, que passa por um modo de se vestir distinto de outros estilos jovens, assim como um gosto musical pelo rap. Os jovens desses grupos, apesar de manifestarem em algum momento uma posição sectária em relação a outros estilos, como o “pagodeiro” ou o “roqueiro”, em conversas informais, admitiram frequentar outros espaços, onde circulam outros tipos de jovens, como os shoppings, definidos como espaço dos jovens “playboys”. Portanto, isso deixa implícito que uma identidade como a de uma subcultura é menos restrita do que se poderia supor. Apesar dos jovens elegerem um discurso de “missão”, em termos de envolvimento nas atividades sociopolíticas em suas comunidades, eles eventualmente se envolvem com outros grupos como os de jovens que apreciam o pagode, forró ou outros ritmos tocados em bares nas redondezas. Esses jovens, de outra maneira, não trazem nenhum discurso “revolucionário”, típico do hip-hop, mas abordam, por outro lado, o hedonismo e o amor romântico, temáticas pouco comuns nas letras dos grupos de rap nacional, que em geral tratam de problemas sociais na forma de um “protesto cantado”. Portanto, os grupos de rap transitam entre outros jovens, mas demarcam seus referencias a partir de um conjunto de elementos estéticos que compõem o hip-hop. CAPÍTULO 8 ESTILO E RELACIONAMENTO: DEMARCADORES COLETIVOS EM TORNO DO TEMA SEXUALIDADE Breitner Tavares 149 The language of lovers can puncture through the everyday narratives that tie us to social time and space, to the descriptions, recitals, and plots that dull and order our sense insofar as such social narratives are tied to law. Chela Sandoval – Methodology of Oppressed (2000) 8.1 Grupos Rap Comando e BR45: Ficar, namorar e projeções de futuro Os jovens dos grupos selecionados em diversos momentos expressaram em suas respostas informações que propiciaram a reconstrução documentária de suas orientações coletivas em torno da sexualidade masculina. A construção de um tipo masculino e jovem define no âmbito das relações de gênero a construção e distribuições de papéis femininos e masculinos especificamente na esfera da sexualidade e do relacionamento afetivo. Os grupos apresentam em suas orientações coletivas elementos no sentido de uma interação entre o estilo de vida hip-hop e as definições de papéis hierárquicos entre homens e mulheres. A misoginia e o sexismo, enquanto valores masculinos, assumidos pelos grupos, não inviabilizam a construção de discursos afetivos em que as mulheres estabeleçam outras diretrizes, seja no sentido de uma inversão de poder patriarcal ou mesmo na construção de novas utopias que possam interferir na solução de problemas enfrentados pela juventude, como o pessimismo quanto ao futuro ou à violência. Grupo Rap Comando: Relacionamento afetivo e estilo Um dos temas que despertou interesse e maior participação do grupo refere-se ao assunto relacionamento amoroso. Quando perguntados sobre o tema relacionamento e namoro, houve uma motivação entre os jovens, muitos rapazes falaram a respeito de tal assunto, entretanto, a participação não foi tão recorrente entre as garotas. A pergunta lançada em relação à vida afetiva e ao namoro gerou toda uma atmosfera de inquietação, que não se observava com relação a outros temas, como escola e trabalho, por exemplo. Os jovens se puseram a rir e a olharem uns para os outros. Liba (Am), que era o mais velho do grupo e o instrutor da oficina, foi o primeiro a tomar a palavra. Y: Como é que é a relação de vocês com as namoradas ou namorados de vocês? Am: @Rapaz, eu tô enrolado nessa@. Todo: @(2)@ Am: Eu tô enrolado. Sabe por quê? Porque se agora eu não posso nem (.) Eu não posso nem mentir pra mulher mas em casa mas, porque ela canta rap também. Então não tem mais nem como Breitner Tavares 150 deixar a mulher. Aí rapaz minha relação com ela é nota dez. Graças a Deus eu ajudo ela, e ela me ajuda. Sempre surgindo novas idéias. É isso aí. Todos(1) Bm: O cara quando canta rap e arruma uma namorada ele nunca pode deixar ela levar ele (.) Am: Ele é que tem que levar ela. Bm: Pra sair. Porque tem namorada que faz isso. “Quer ficar comigo não vai fazer isso aí não ( ) que não sei o que. O cara tem que arrumar aquela que apóia. Sei lá, às vezes atrapalha. Eu não vou deixar de cantar rap por causa de uma pessoa. Ou me apóia ou não tá comigo. Am: Foi que nem aconteceu com meu irmão. A namorada chegou para ele e disse ou você fica com o rap ou fica comigo. O que ele escolheu fulano? Ele tá com o rap até hoje. Rm: Tem muitas que não aceita. Você vai fazer o show. Elas não aceita que você vai, ás vezes não dá pra levar. Às vezes ela quer ir e não dá. Aí acaba querendo sair mesmo ( ) fica turbulento. Aí você vai escolher o que você mais gosta, o que é melhor pra você. Foi o que eu fiz. Eu tô aí hoje, eu tô com uma menina, tá comigo e tal ( ) ela curte de tudo, mas se ela ( ) querer criticar. É o seguinte eu já fiz uma vez (separar) eu posso fazer de novo. Am: Ela não tem como te criticar, ela põe o símbolo do grupo na calça, na camisa. Bm Ela é toda doida. Todos: @(1)@ Cm: Eu tinha uma namorada que eu comecei a mudar o conceito dela, porque ela era pagodeira aquele jeito moleca, marota. Por eu cantar muito às vezes ( ) aí ela começou a escutar rap também. Pelo estilo que eu ando eu fui falar com o pai dela, pra namorar com ela. Então ela logo me pediu pra eu fingir ser playboy, ((ele relembra seu comentário)) “porque assim você não vai causar uma boa impressão pro meu pai”. Aí eu pensei em ir de um jeito assim bem simples, mas não deu pra ir. Eu fui no meu estilo. DM: Minha namorada mora lá na Ceilândia e eu aqui na QNZ. Eu faço toda a bagaceira e ela não vê, mas eu não fui falar com o pai dela ainda não. Os depoimentos remetem à valorização do estilo dentro de um sistema de habitus, como algo determinante das ações dos indivíduos do grupo em relação à escolha de uma parceira, “arrumar apoio”. Nesse caso, a produção artística dentro de uma conformação geracional definirá determinados padrões de comportamento em termos de masculinidade dentro do grupo. A expectativa dos jovens de sair desacompanhado da namorada ou companheira para um show é reconsiderada, caso ela “apoie” o estilo de seu companheiro. De fato, o sentido “apoiar” está definido sob a perspectiva de assimilação de valores sexistas definidos no hip-hop, como expresso por Bruno: “O cara quando canta rap e arruma uma namorada ele nunca pode deixar ela levar ele”, e completado por um sussurro de Liba: “Ele é que tem que levar ela”. Nesse caso, não cabe à namorada conduzir o relacionamento, mas deixar ser conduzida pelo companheiro. Breitner Tavares 151 Conforme Rosa (2006), elementos sexistas são recorrentes no rap. Isso implica na consideração da mulher enquanto um “bem” pertencente ao homem, que o “ajuda”. Além disso, o apoio ao estilo é uma premissa a ser seguida pelas garotas, o que não ocorre necessariamente em relação aos rapazes para com suas namoradas. Para eles, o hip-hop e o rap enquanto um estilo de vida definem um sistema de distinção e seleção social em que o relacionamento afetivo na forma de namoro é apropriado, portanto, como uma forma de constituição de uma estabilidade moral. Quando um rapaz está envolvido num relacionamento afetivo com uma garota que não compartilha do mesmo estilo é o momento em que se põe em xeque a adesão do rapaz ao estilo, bem como ao grupo. Uma relação implica um tipo de cumplicidade em que a garota adepta de outro estilo, como o pagode, é depreciada como “moleca” ou “marota”, mas, ao ouvir rap e acompanhar seu namorado, muda, assim, o “seu conceito” em relação ao estilo. Além disso, assumir um relacionamento com uma garota pode implicar a negociação do estilo. O hip-hop, devido à sua associação como elemento de negatividade, pode ser um entrave para se assumir um relacionamento, um namoro formal reconhecido pela família da garota. Isso implica tentar negociar o estilo, mudando alguns elementos como o vestuário para parecer “playboy”, ou seja, um estilo que estaria envolvido num sistema classificatório que seria supostamente mais aceito, por estar vinculado a uma maior posse de bens materiais ou status social. Cabe ressaltar que, durante a discussão sobre relacionamento, as duas garotas, Amanda e Bruna, não se pronunciaram. Diante disso, Y reitera sutilmente que elas também poderiam falar caso quisessem. Y: Como as meninas veem isso? (Questão do relacionamento, namoro). Bf: Eu estou aqui mais como ouvinte, eu vim aqui para uma oficina de teatro então é melhor deixar a galera falar. Af: Ah. Normal como todo mundo né. Mesmo estilo e coisa e tal. Eu gostaria de fazer os quatro elementos no hip-hop, mas tamos aí no rap, e estamos aí pra o que der e vier. Am: Ah. Se você namorasse comigo você ia ficá sem roupas porque eu ia pegar emprestado tudinho. Bf: Mas tem o olhar de fora, o fato de perceber tem muito integrante nesse grupo e pouca menina. Não generalizando, mas (1) eu já troquei idéias com uma galera do hip-hop e eles costumam ter o posicionamento deles machista (.) tirando a galera do Ataque Belize48 (3) perceber que eles se deixam permear por esse posicionamento mais aberto. É muito engraçado que eles falam que cantam rap como música de protesto, estão lutando contra o preconceito, mas tem um 48 Grupo de rap formado por alunos e ex-alunos da Universidade de Brasília, que produzem rap para a audiência universitária, ou seja, mais difundido e reconhecido neste circuito de distribuição de bens simbólicos, como festivais de música universitária, como o Finca - UnB. Breitner Tavares 152 posicionamento machista. Eles estão lutando contra uma forma de preconceito e estão fazendo uma sobreposição de outro. (2) Do caralho. Todos:@(2)@. Amanda fez apenas um breve comentário, o qual foi motivo de gracejos por parte dos companheiros homens, especificamente quando Liba mencionou que, se caso ele a namorasse, ela “ficaria sem roupa”, pois ele as “tomaria emprestadas”, o que deixou uma implícita conotação de masculinização do estilo de Amanda. Esse comentário em relação à Amanda despertou o riso dos rapazes. Diante disso, ela sorri meio envergonhada, cruza os braços e abaixa a cabeça, olhando os demais de modo indireto, sob a aba de seu boné. Bruna, a estudante da UnB, a princípio usou de sua posição enquanto universitária para evitar uma resposta e também para ajudar Amanda que não soube reagir aos comentários de AM, mas chamou atenção para o problema do machismo que supostamente não seria trabalhado pelo hip-hop. Em vista de sua assertiva intelectualizada, ninguém demonstrou interesse na fala da estudante. Alguns só abaixaram a cabeça e fizeram silêncio. Na sequência, foi feita uma pergunta relacionada ao interesse no casamento. As respostas continuaram nas mesmas perspectivas das respostas sobre a experiência do namoro. Y: Vocês pretendem se casar, como vocês veem o casamento? Dm: O que adianta você pensar em casá se você não tem a pessoa certa? Cm: Eu tenho namorada mas não passou pela minha cabeça casar ainda. Todos: (2) @(1)@. Bf: Eu quero terminar a faculdade primeiro, eu não penso em casar mesmo. Af: @Eu não penso em casar agora não véi, eu quero curtir primeiro@. Todos: @(2)@. AM: Negão olho nela. Todos: [@(2)@. As respostas foram direcionadas no sentido de se pensar o futuro enquanto uma combinação possível de se “encontrar alguém”, estabelecer um relacionamento. Em relação a isso, para Amanda e Bruna, o que importa é a realização de um objetivo (terminar a faculdade) e desfrutar da vida pela perspectiva do lazer e da vivência no interior do estilo hip-hop, como foi mencionado anteriormente por Amanda, o que foi definido pela expressão “curtir primeiro”. Essas respostas, diferentemente das apresentadas pelos meninos, foram alvo de risos e gracejos por parte dos rapazes. O irmão de Amanda, chamado Manu, que estava presente, foi advertido num tom irônico por Liba: “fica de olho nela”, o que implicou uma posição patriarcal e limitadora das ações de Amanda. Ela, por sua vez, reagiu ao comentário sorrindo e aparentando estar meio envergonhada, os outros riram por alguns instantes. Após Breitner Tavares 153 isso, ela praticamente não se manifestou durante a entrevista, o que reforça o sentido sexista de que cabe à mulher dever “ajudar” ou ser “levada” pelo homem numa relação desigual. A entrevista seguiu seu curso com algumas passagens de foco interessante. Contudo, ao verificar o arquivo de áudio, notei que a qualidade ficou aquém do que se esperava. Isso ocorreu dadas as condições acústicas da sala, que refletiam um pouco de eco. Ouvia-se muito ruído vindo do lado de fora onde crianças brincavam, os entrevistados estavam mais distantes do que o normal do gravador, e, além disso, falavam demasiadamente baixo. Penso que nesse caso teria sido melhor levar um gravador acessório de fita cassete para garantir um melhor resultado49. Ao final da entrevista, agradeci a todos e distribui alguns questionários. Depois disso, fomos ao pátio e tiramos algumas fotos, as quais repassei ao grupo mais tarde via e-mail. Voltamos à sala e então os jovens iniciaram um ensaio das músicas que seriam apresentadas no show de domingo. Liba sugeriu um novo arranjo da sala para simular o espaço de palco. O grupo Rap Comando passou a apresentar sua performance, enquanto Liba ficava à frente do grupo ao lado do aparelho de som. Ele observava os passos e eventualmente aprimorava os passos e a impostação de voz, dentre outros detalhes da produção. Na porta da sala se aglomerava uma dezena de crianças que observavam atentas ao que ocorria ali. Outros jovens ficavam próximos a Liba como espectadores. Houve um momento em que Liba interrompeu o ensaio, pois estava insatisfeito com a falta de ritmo de alguns integrantes do grupo. Então propôs um exercício em que ficamos reunidos em um círculo, sentados em cadeiras. Realizamos alguns exercícios rítmicos batendo palmas e cantando ou contando números com o objetivo de trabalhar a sincronia individual e coletiva. Eu apreciei muito o exercício. Ali cada um pôde expressar suas percepção rítmica, assim como aperfeiçoá-la. A estudante da UnB foi convidada a participar e a sugerir algo, mas ela hesitou e preferiu tecer apenas um comentário enfatizando a autopercepção corporal que cada um deveria trabalhar, além disso, ela fez um comentário num tom depreciativo em relação ao nome do grupo: “Rap Comando? Não sei se gosto disso. É brincadeira!” Ninguém comentou sua fala. Após o exercício rítmico, o grupo voltou para o palco e reiniciou o ensaio da música. Essa atividade terminou por volta das 18 horas. Quando terminamos, ainda pude ouvir um comentário irônico de Liba sobre a estudante da UnB que já havia ido embora. “Nunca vi alguém como ela. Ela não fala nenhuma gíria. Na hora de apresentar alguma coisa ela foi fraca, mas ela é gente fina”. Amanda ainda completou ironicamente: “É... gente fina ela é mesmo”. Amanda estava ao mesmo tempo se referindo à magreza de Bruna e ao seu comportamento, recebido de forma negativa, além disso, Amanda era o tipo de mulher negra, mais robusta. 49 Eventualmente farei uso dos verbos em primeira pessoa para tentar recriar a atmosfera de intimidade estabelecida durante a pesquisa de campo. Breitner Tavares 154 Nesse momento, me preocupei com a situação que estava em jogo. A estudante era do Plano Piloto e representava outro estilo, assim como outras gírias e expressões corporais, uma outra visão de mundo, que é mais usual no meio universitário, especialmente de quem circula no “meio artístico do Plano Piloto”. Ela também foi criticada em relação à sua opinião negativa em relação ao nome do grupo “Rap Comando”. Percebi nessas falas a relação assimétrica entre percepções de mundo que estavam em jogo naquele momento. A garota escolarizada que frequentava as oficinas e ensinava teatro frente à juventude da QNZ, que estava sob outras condições de acesso a bens materiais e imateriais. Após o ensaio, os jovens foram dispensados, então segui para a casa de Liba. A idéia surgiu quando mencionei que trazia comigo um DVD sobre rap, que Liba se interessou em assistir. Fomos ao meu carro e passamos por ruas com curvas e, às vezes, sem saída, algo bem característico e distinto para um dos bairros mais recentes da cidade. Por essas pequenas vielas, por onde tínhamos que passar devagar, outros jovens jogavam futebol na rua, todos cumprimentavam Liba e sabiam que eu era um visitante. Chegando à casa de Liba, sua mãe estava logo na entrada fumando um cigarro. Ela foi bastante simpática logo nos cumprimentou e convidou para entrar. Eu notei que a construção era bem precária. Um portão de ferro sem pintura, a casa tinha um reboco incompleto e nenhuma pintura ou acabamento no piso de concreto. A parte interior era escura com um furo no telhado que cortava a sala com um feixe de luz. A escuridão também era resultado de um aumento da cobertura da área externa. Havia uma pequena lâmpada que iluminava precariamente a sala e ao mesmo tempo um quarto ao lado. Isso era possível porque havia entre os cômodos um vão na parte superior que permitia compartilhar a mesma lâmpada, assim como ouvir sons de conversas em outros quartos. Na pequena sala, estava sentado o pai de Liba, “seu Matias”, um senhor com barba branca e um olhar cansado, de pouca conversa a princípio. Eu o cumprimentei e pedi licença para adentrar à sala. Logo me acomodei num sofá coberto por um forro. A sala logo foi ocupada por alguns dos que estavam na oficina. O pai de Liba estava deitado no sofá, onde continuou, apesar da entrada dos rapazes. Num determinado momento Liba, ao cruzar a sala, levou um chute na bunda de seu pai, que ainda lhe disse: “tá pensando o quê, seu folgado?”. Liba não disse qualquer coisa e saiu para chamar mais alguém para assistir ao filme. Naquele momento tive a impressão de que todos ficaram constrangidos, alguma coisa não estava bem com a nossa presença ali. Tínhamos invadido a privacidade da casa, mas logo seu Matias ponderou e resolveu sentar para permitir que mais alguém sentasse no sofá para assistir ao DVD, que ficava sobre um velho armário de madeira, improvisado como estante para objetos, roupas e eletrodomésticos. Na porta veneziana meio torta, havia um adesivo escrito “Lula Presidente”, era o único enfeite aparente na sala. O DVD e a TV colorida eram relativamente novos e contrastavam com seu tom prata na sala onde predominavam tons opacos e sombrios da parede ainda a ser rebocada. Apesar de escuro, o ambiente não parecia quente, mas era abafado. Havia algumas crianças, duas meninas de uns seis anos. Elas transitavam pela casa, assim como algumas garotas as quais não soube se eram da família. O barraco de alvenaria, num lote 8x8 m, tinha que comportar umas 10 pessoas. Breitner Tavares 155 Quando todos estavam acomodados, foi exibido um clipe do BR 45 e o filme Rap, o Canto de Ceilândia. Os dois filmes causaram vários comentários por parte dos jovens, principalmente em relação ao ambiente dos filmes, todos gravados em Ceilândia. Em diversos momentos, surgiam comentários do tipo: “Eu conheço essa quebrada!”, em relação às quadras do bairro que apareciam no vídeo, “É o Markim do Tropa50, é a galera das antiga, é de responsa51”. Depois disso, Liba se interessou em fazer uma cópia do DVD, eu disse que poderíamos ver se era possível, então fomos à casa de outro membro do Comando. Entramos no carro e continuamos a andar pela QNZ. Nas ruas estreitas, as pessoas transitavam. Havia em muitas esquinas galeras praticando golzinho52. Muitos ficavam nas portas observando a rua. Alguns bêbados ficavam na esquina, alguns comentavam que um dos alcoólatras era uma “pessoa de bem” e que agora estava “naquela” situação. Algumas garotas que trafegavam eram abordadas pelos jovens, eles aproveitavam para comentar sobre elas. Todos ali se identificavam se reconheciam. Quando chegamos, um dos jovens do Comando, o Galego, desce do carro e entra sozinho em sua casa para tentar utilizar um computador. Ele era o único do grupo a possuir um computador capaz de copiar um DVD. Nós ficamos do lado de fora, quando alguém comentava: “a mãe desse cara é chata pra carái53”, “Ela não gosta da gente”, “Ele não convida nem a pau para entrar”. Na janela, uma mulher, provavelmente a mãe de Galego, observava quem estava em frente à sua casa. Havia um portão de ferro com grades que iam do chão ao teto, embaixo algumas chapas de ferro galvanizado que não permitiam uma visão total da casa, a cobertura do telhado na garagem criava um isolamento quase total entre a rua e a casa. Esperamos no carro por uns dez minutos, quando Galego retorna e afirma que vai demorar a poder utilizar o computador. Então, Liba e os outros resolvem mudar de idéia e não deixar o disco, em seguida, voltamos para o carro e eu os deixei em casa. Esses detalhes referente a fachada das casas são mais uma regra que uma exceção na arquitetura de Ceilândia. Isso expressa o limite e, quem sabe, até mesmo um sentimento de aversão à vida social, aos vínculos vicinais e de intimidade na periferia urbana articulados pelo medo da violência e o desejo de segurança. Apesar de algumas casas terem cores quentes e contrastantes, como laranja e amarelo; as cores a cizentadas eram o tom predominante. Todas as casas tinham as mesmas características: grades de ferro, que impunha a demarcação entre o espaço privativo das famílias, e o espaço externo, a rua. 50 Markin é o nome do vocalista do grupo de rap Tropa de Elite, de Ceilândia. 51 Pessoas respeitáveis de tempos passados. 52 Trata-se de uma modalidade de futebol de rua que utiliza um pequeno espaço na pista, normalmente de asfalto. Caracteriza-se por utilizar uma área menor que a do futsal e por utilizar traves pequenas e, portanto, fáceis de serem transportadas e removidas da via pública, conforme exige o “fluxo” do trânsito. O golzinho tem se tornado cada vez mais popular nas periferias como Ceilândia, onde uma urbanização precária tem acabado com os antigos “campos de terra”. 53 “Pra Carái” é uma variação de “pra caralho”, que nesse contexto tem a mesma conotação de “bastante” ou “demasiado”. Breitner Tavares 156 Diante dessas duas experiências, a interna, ocorrida “dentro da casa” de Liba com a tensão exercida por seu Luiz e seu filho, e a “externa”, em frente à casa de Galego, onde sua mãe manteve a distância mediante as grades e o silêncio, são relevantes para se pensar nas condições dos jovens do Comando, que viviam nas casas de seus pais. Além disso, surge a questão de se repensar o sentido de uma “comunidade” num espaço urbano segregado como a QNZ. Muitas vezes o termo “comunidade” é empregado no sentido de se estabelecer um sentido de cumplicidade e integração dos indivíduos, que não correspondem necessariamente à vida nas regiões mais carentes. O sentido idílico do espaço urbano cantado em sambas, como “Minha maloca querida”, de Adoniran Barbosa, ou “Alvorada” em que se narra a favela onde “ninguém chora e não há tristeza”, de Cartola, sem dúvida está em xeque, diante da nova periferia blindada e superpovoada dos dias atuais. A impessoalidade e, às vezes, uma aversão à rua e a esse sentido tradicional para o termo “comunidade” tornam-se uma função definidora das mentalidades (SIMMEL,1973). No dia seguinte, volto à QNZ para assistir a um show. Já eram 13 horas. Desde as 10 horas a escola promovia a Festa da Família, que oferecia almoço – galinhada – para os participantes ao valor de 3 reais o prato. Durante a festa, ocorreram várias apresentações com forte apelo religioso católico. Na ocasião encontrei um ex-colega do curso de magistério54. Frederico, assim como eu, havia se tornado professor de séries iniciais. Já não nos víamos há mais de dez anos. Ele me contou ter aberto uma pequena escola em parte da área de sua casa, na Vila M. Ele estava trabalhando ali na QNZ já desde 2004. Surpreso ao me ver ali com os jovens do Comando, perguntou se eu já os conhecia e se já tinha ido à casa de Liba antes. Respondi que não. Ele se limitou a dizer que a situação deles era muito difícil, que eles precisavam de ajuda. Eu ouvi ainda mais alguns comentários sobre o trabalho pedagógico realizado na escola, em seguida, nos despedimos e Frederico seguiu para outras dependências. Já dentro da escola, eu cumprimentei a todos e me posicionei para tirar as fotografias do show do Rap Comando, que encerraria a atividade. Antes de o grupo iniciar, a diretora avisa que tudo deve ser breve para evitar problemas, pois o equipamento de som cedido por um voluntário deveria ser devolvido intacto. Os meninos comentam num tom baixo que a diretora na verdade não gosta de rap. Mais adiante, o grupo sobe ao palco e tenho a primeira surpresa. Amanda, a garota negra que havia ensaiado no dia anterior, foi substituída por Carla, uma garota branca filha de nordestinos, namorada de Liba. Amanda fica na segunda voz. Quando retiro minha câmera e começo a tirar fotos do Comando, os servidores e professores passam a me observar, expressando certa curiosidade com relação à minha presença ali naquele espaço. 54 Entre 1992 e 1994, cursei o ensino médio na Escola Normal de Ceilândia, que oferecia o curso de magistério. Em 1995, após aprovação em concurso público, passei a lecionar no ensino fundamental, a princípio, na cidade do Gama e, posteriormente, em Ceilândia. Também atuei no Ensino de Jovens e Adultos como alfabetizador e, posteriormente, como professor de sociologia no ensino médio. Breitner Tavares 157 Após a apresentação do Comando, as atenções se voltam para o grupo Street Base, de street dance. Eu procurei tirar algumas fotos, depois me aproximei e me apresentei ao grupo. Os garotos combinam um momento para que possamos conversar e então nos despedimos. O rap como motivação, o rap como educação Após o show, Liba me apresentou à representante da Juventude Negra. Todos comemoravam a apresentação enquanto comiam um pouco da galinhada que a escola lhes ofereceu ao final da festa. Eu fiquei próximo aos jovens, mas normalmente em silêncio, pois eu não me sentia muito à vontade para simplesmente interromper e expor minhas opiniões, já que aquele era o momento do grupo de comemorar a apresentação, bem como avaliá-la. Enquanto conversava com Liba, uma servidora da escola se aproxima e faz um comentário, sorrindo, e se dirigindo a mim, dizendo que Liba “era terrível e eles penaram muito para pô-lo na linha”, “é, e hoje taí todo exibido”. Ainda diante da servidora, ele lembra de episódios em que ia para a escola sem tomar banho ou sem ter se alimentado em casa. Diziam que suas condições eram tão ruins que, às vezes, lhe davam banho nos fundos da escola com uma mangueira. Ele inclusive reclamava do frio que às vezes fazia, mas mesmo assim era submetido à “limpeza”. A servidora ri e confirma o feito. Mais tarde, Liba conta que era o (aluno) problema da escola. Ele disse que costumava brigar muito, lembrou de uma vez em que tinha apenas dez anos e que estava brigando com um colega, quando a professora interveio visando apartar a confusão, nisso Liba passa a esmurrar a professora “nos peitos”, enfatiza. Isso gera um alvoroço, em que a polícia fora convocada. Eu lhe perguntei o que lhe fez mudar para o que ele representa hoje. Ele me conta que aprontava para “chamar a atenção” dos outros, para se sentir aceito como parte do grupo, do coletivo. Quando passaram a lhe desprezar, ele percebeu que não adiantava mais aquela postura e que já era hora de mudar. Num instante depois, ele subitamente me convida a ir a uma sala de aula próxima onde algumas professoras organizavam roupas que foram expostas num bazar. Ali ele me apresenta algumas professoras. Eu as cumprimento e logo em seguida saímos. Alguns passos à frente, ele comenta que a professora que ele acabava de me apresentar fora aquela vítima da fúria de um menino ocorrida há dez anos. Liba, agora aos 20, dizia que a professora passou a lhe tratar com carinho. Os jovens do Comando estavam, em sua maioria, cursando o ensino fundamental. Somente Rubão havia concluído o ensino médio e Galego (Cm) estava cursando o ensino médio. Liba (Am), apesar de ser liderança, havia abandonado a escola ainda na sétima série, além disso já era pai de um pequeno garoto de dois anos. Breitner Tavares 158 Y: Vocês estão na escola? Como é a relação de vocês com ela? Am: Nesse momento agora eu vou retornar, eu parei de estudar tem sete anos, sete não, tem cinco anos que eu parei de estudar, eu casei com dezeseis anos, a mulher engravidou aí eu tive que parar pra sustentar meu (filho), mas nesse momento agora eu vou retornar porque o rap exige, exige muito (2) o rap exige pra caramba. Eu tô naquela, sempre lendo, pesquisando. Eu tô sempre correndo atrás (.) Também você não pode ficar no encalço pra trás (.) pra ser uma pessoa mais adiante do que eu (sou agora) ou eu tenho que ficá junto a ele ou aprende, eu não aceito derrota também. Todos: (3) Rm: Ano que vem eu pretendo fazer faculdade, seguir o caminho das minhas irmãs também que são formada, eu pretendo me formar também porque como já falaram aí é bom pra mim que sou um rapper, é bom pra todo mundo. Cm: Assim, eu estudo ainda (1), passei pro segundo ano agora @graças a Deus@. Todos: @(1)@ Cm: É que nem o Rm disse, tem que saber de tudo um pouco (.) estudar é bom pra tudo, é bom pro rap ( ) saber das coisas, é isso aí, eu canto rap mas eu também estudo, é importante pra qualquer coisa. A educação, entendida como frequentar a escola, é considerada como de grande relevância e desafio. Isso pode ser compreendido pelo sentido imanente ao “rap que exige muito”. Ironicamente, Liba, apesar de ser responsável pelo trabalho pedagógico que desenvolve com os jovens do Rap Comando, é o único que se encontra fora do sistema de ensino formal, dentro do qual sempre foi considerado “o problema”, os maus-tratos, seja no âmbito da família, “deixar ir sujo para escola”, ou ter que ser limpo “à mangueira” em dias frios de forma punitiva e constrangedora, marcaram sua tragetória. Contudo, há um sentido de resistência quando esse mesmo jovem afirma: “eu tô sempre correndo atrás” e “eu não aceito derrota também”. Portanto, esse mesmo jovem que por um lado, encontrou na escola os obstáculos a sua progressão no sistema social, se tornou, por outro, uma liderança capaz de representar as demandas da juventude local no que se refere ao acesso a práticas de lazer através da experiência com a educação popular encontrada em outros setores fora do espaço formal da Escola. Nesse contexto, os jovens do Comando, apesar de suas dificuldades, passam a ocupar o espaço físico dessa mesma escola a partir de uma perspectiva de busca pelo reconhecimento enquanto sujeitos sociais ativos. O espaço de reconhecimento e trânsito passível para o mundo adulto talvez esteja mais próximo de jovens como Rubão, que pretende seguir a trajetória universitária de suas irmãs, o que para ele já é, em termos de sua mentalidade, algo dado pelas circunstâncias. Portanto, parece que o rap constitui um espaço intelectual, de reflexão e prática social, seja no caso daqueles que encontraram na escola aquelas barreiras formais que impedem a promoção social como repetência e a evasão escolar, “eu tive que parar pra sustentar meu (filho)” seja para aqueles que não sofreram os entraves de sua condição de classe. Breitner Tavares 159 Para os jovens do grupo Rap Comando, sua condição de classe e geração materializada num espaço precário como a QNZ, alvo de eventuais programas assistenciais promovidos por ONGs, motivaram o envolvimento dos jovens em atividades lúdicas, como oficinas de rap em que os mesmos podem expressar, a partir de uma estética musical, suas questões e problemas cotidianos. A demanda dos jovens por lazer e participação num espaço coletivo é um fator motivador de sua inserção enquanto grupo dentro da escola, espaço ambivalente que constrange os seus estudantes a partir de práticas discriminatórias e restritivas, mas, por outro lado, permite sua participação e expressão a partir de atividades racionalizadas da prática artística como uma oficina de rap ou a apresentação em uma atividade comunitária da escola. Essas possibilidades de inserção criam os vínculos sociais que a educação formal não foi capaz de consolidar. Além disso, essas atividades lúdicas oferecidas nas oficinas aproximam os jovens fortalecendo seus vículos sociais, um sentimento de pertencimento do grupo num espaço social mais abrangente que estrapola o âmbito da Escola ao mobilizar os jovens na região onde vivem. Ficar e deixar ir: Notas de campo sobre a relação amorosa entre garotos e garotas Depois da conversa que tivemos sobre a trajetória escolar de Liba, ele chama todos do Comando para deixarem a escola. Ao sairmos da escola, algumas garotas que apareceram no show propõem que deveríamos ir à casa de uma delas para passar à tarde, pois seus pais estavam fora e só chegariam mais tarde. Os rapazes a princípio não gostaram da ideia, porém mudaram sua opinião quando as garotas prometeram que lá outras garotas estariam à espera para conhecerem os garotos do Comando. Elas poderiam até mesmo ficar55 com eles. Assim, os rapazes foram convencidos, o problema é que a casa da garota era em outro bairro/setor, conhecido como Palmeira, há uns 3 km dali. Em função disso, os jovens me convidaram insistentemente a acompanhá-los, já que dessa forma eu poderia colaborar oferecendo uma carona, os demais iriam de ônibus. Eu aceitei e fomos para a Palmeira. Liba veio comigo além de mais uns 5 membros do Comando. Chegamos quase todos juntos à velha casa de alvenaria, provavelmente construída ainda nos anos 80, cheia de infiltrações e louças sujas. As formigas estavam em toda parte. Na sala, pôsteres da seleção brasileira dividiam espaço com outro de uma garota grávida acariciando a barriga. O sofá tinha um forro de seda vinho. No chão um tapete marrom se harmonizava com vestígios do revestimento de taco há muito danificado. Assim que cheguei me dirigi a uma sala, seguindo aqueles que entraram primeiro, isso se deu até que chegamos aos fundos da casa. Lá havia um quarto com objetos pessoais da anfitriã, que logo disse que ali não era lugar para homens estranhos. Essa foi minha deixa para me retirar, mas logo percebi que eles eram cordialmente 55 Relação afetiva amorosa, fugidia, instantânea. Breitner Tavares 160 agressivos entre si, o que não significava efetivamente um repúdio, mas seu modo de estabelecer uma interação informal. Dessa forma, não me acanhei e até pedi um pouco de água. A anfitriã Nina abriu a geladeira e notou que não havia mais água. Então me ofereceu um suco, feito já há vários dias, mas por educação, não pude desprezá-lo. Eu literalmente não sabia onde estava e com quem eu estava. Logo depois voltei à sala onde não havia mais espaço no pequeno sofá vinho. A anfitriã logo providenciou cadeiras onde nos acomodamos. Nesse ínterim, chegaram mais garotas. A proporção era equilibrada, em média havia umas dez meninas para um número de dez garotos. Enquanto isso Liba ajusta o DVD com videoclipes de rap gringo56 no aparelho de som que fica no volume máximo, mesmo sem qualquer equalização, pois é assim que eles gostam. Havia comida, como um peixe assado que foi servido no almoço, biscoitos, entre outras coisas que passaram a ser comidas por todos. Lá fora, formou-se uma roda só de garotas. Elas conversavam aos risos enquanto olhavam os garotos que estavam concentrados na sala e na porta de entrada. Eles comentavam sobre as meninas, elegendo as que poderiam apresentar “tudo”, até o “CPF”57, e, quanto às outras, em função de uma padronização estética, eles demonstravam a princípio aversão ou algo semelhante ao se referir a garotas como Amanda, negra e gorda. De qualquer forma, as meninas lá fora se decidiram por entrar e “tomar” a casa. Elas entraram sem falar com nenhum dos rapazes do grupo e foram em direção à cozinha. Depois disso, iniciou-se um ritual em que alguns dos rapazes eram chamados individualmente para as outras dependências da casa, entre a sala e a cozinha. A ida era rápida, mas suficiente para “ficarem” por alguns instantes sem maiores comprometimentos. Os que voltavam tinham em seus rostos uma expressão difícil de descrever. Chegavam calados com um sorriso estampado no rosto. “Ela só me beijou!”, dizia um deles. Depois disso, gerou-se certo alvoroço entre os rapazes. Alguns na sala chegavam a gritar “eu to doido” em relação às meninas. Enquanto isso, Liba, que estava no sofá com sua garota, ao perceber a movimentação dos rapazes, passou a reforçar num tom ambíguo que “o mais importante era a fidelidade”. Ele disse isso insistentemente por várias vezes a ponto de sua garota ficar olhando desconfiada, tamanha sua ênfase. Ele percebeu a atmosfera do distanciamento e passou a cortejá-la ali mesmo no sofá. Os outros só assistiam, riam e continuavam na expectativa. Pouco depois, Liba diz enfaticamente: “todo mundo aqui vai beijar, até você Breitner!”. Confesso que fiquei assustado e fiz questão de expressar isso visualmente, balançando os ombros e gesticulando as mãos num tom de interrogação. Liba chegou a perguntar se eu tinha algum problema, pois estava mais calado que o normal. Eu disse que estava “de boa”58 e que não havia problema algum, mas que eu não beijaria ninguém ali. Em seguida, alguém chega com uma garrafa de Fogo Paulista, um licor barato, doce e extremamente alcoólico. Perguntaram-me se 56 Expressão utilizada para se referir ao rap norte-americano, normalmente de cunho mais comercial, com apelo sexual, como Snoop dog dog. 57 Nesse caso, os garotos se referiam a uma das garotas que tinha o fenótipo de ser branca e magra e que seria a mais atraente entre as outras meninas que tinham traços indígenas e/ou negros. 58 A expressão “de boa” significa “estar bem”. Breitner Tavares 161 eu gostava de beber, eu fiz questão de dizer que não estava a fim naquele momento. De fato, para além de qualquer moralismo chulo, eu sabia que minha situação ali era arriscada, pois eu era praticamente o único maior de idade e que havia oferecido carona para vários adolescentes menores de 18 anos para realizarem uma festa sem o consentimento dos donos da casa. No entra e sai dos meninos e meninas, chega uma informação que muda toda a dinâmica da festa. O pai da anfitriã estava vindo no fim da rua. Ele era um senhor negro, de uns 50 anos e empurrava um carrinho, que provavelmente era utilizado para trabalhar como ambulante. Como já passava das três horas da tarde, a ideia de que se tratava de um vendedor ambulante seria a mais provável. Pela janela, pude ver seu olhar de estarrecimento e cansaço ao ver toda vizinhança, naquela tarde escaldante de domingo, próxima a sua casa, assistindo “de camarote” a festa que sua filha, uma adolescente, estava promovendo. Após notarem sua presença, imediatamente as meninas da vizinhança, que estavam na casa, se retiraram, só restando os garotos e garotas da QNZ, a anfitriã e eu. Liba pergunta em tom baixo, quase sussurrando: “Ele vai nos expulsar?”. A anfitriã responde: “Não, não dá nada”. Liba conclui: “É (...) Ele não é doido”. Poucos instantes depois, o pai da garota chega finalmente ao portão de entrada. Contudo, ele ao perceber a aglomeração diante da casa, pelas meninas da vizinhança, resolve entrar discretamente por uma entrada lateral, para evitar a sala onde a turma se encontrava. Todos ficam apreensivos, quando, de súbito, ele aparece na entrada interna da sala e grita: “Desliga essa porra que eu quero dormir!”. Em seguida, ele dá as costas e se vai. Daí, sua filha imediatamente gesticula, mesmo que silenciosamente e pelas costas, apontando o dedo médio, num gesto de repulsa, na direção do pai que acabara de se queixar do barulho. Um dos rapazes desliga o som que estava no máximo e Liba, na sequência, convida todo o Comando a se retirar da casa. Aglomeramo-nos na porta onde outros vizinhos tinham colocado até cadeiras para acompanharem a movimentação na casa em frente. Uma das garotas ainda comenta em relação à atitude do pai: “Eu já vi isso acontecer antes, não foi a primeira vez”. Eu insisti ficar mais alguns instantes com o pessoal, mas logo em seguida me despedi confirmando minha presença na escola no próximo fim de semana para outra entrevista com o grupo Rap Comando. Mais tarde, ao checar os dados dos questionários do Comando, notei que todos marcaram ser solteiros, nenhum deles (as) marcou estar namorando. Algo que definitivamente pôs em xeque certas categorias estáticas sobre “estado civil” e as dinâmicas para um relacionamento amoroso. O “ficar” instantâneo, fugaz, é uma redefinição das relações afetivas para essa juventude. A relação do namoro está num nível de interação que não incluiria eventuais encontros com pessoas desconhecidas em espaços voltados para o entretenimento, como a festa. Por outro lado, os jovens, especialmente os rapazes, tendem a assumir seus relacionamentos quando estes são estabelecidos na região onde moram e/ou estudam. GRUPO BR45: Pra namorar tem que ser perfeito, mas a fila anda. Breitner Tavares 162 Discursos sobre namorar e ficar no relacionamento juvenil De modo geral, o grupo BR45 se posiciona de maneira diversa em relação ao namoro e à perspectiva de construção de uma família no futuro. De fato, durante a discussão são apresentadas algumas experiências que abordam temas como o sentido de liberdade, o namoro enquanto compromisso pré-matrimonial, o casamento propriamente dito e uma outra situação onde as regras para se estabelecer o relacionamento são mais fluidas em função de interesses mais imediatos. Cabe ressaltar que os temas “namorar” e “ficar” não se limitaram à discussão no momento em que foram apresentadas as questões relativas aos temas. Durante vários trechos relacionados à formação geracional, o relacionamento com os familiares do grupo ou no contexto das experiências de discriminação racial, a questão sobre relacionamento foi abordada frequentemente. Portanto, o tema relacionamento se tornou algo transversal no grupo de discussão. Contudo, nesse capítulo serão abordadas as respostas geradas especificamente no contexto dessas questões. Em outros capítulos, é possível observar a articulação das orientações coletivas aqui analisadas em torno do relacionamento de sexualidade masculina. Outro aspecto relevante sobre a discussão sobre relacionamento dos jovens do BR45 está em que parte da conversação foi acompanhada por algumas jovens amigas e parentes dos rapazes, como irmãs e primas, algo que impôs um certo direcionamento do grupo, composto exclusivamente de homens, em relação a audiência feminina. Y lança uma pergunta sobre relacionamento para os jovens. Todos riem e Cenin, (Cm) de 17 anos, o mais jovem do grupo, diz sorrindo que todos ali são casados e ele, o “único solteiro”. Os demais jovens no grupo se desconcertam com o tom provocativo de Cenin, que remete a um sentido de disponibilidade e liberdade, que supostamente não é a condição dos seus companheiros no grupo. Portanto, em função dessa resposta, Bantu (Bm) e Duarte reagem dizendo que tinham terminado recentemente seus relacionamentos com suas namoradas. Bantu fala do fim do seu relacionamento, que ocorreu há poucos dias. Ele assinala que foi um namoro longo, de quatro anos, e que a relação era ótima apesar das discussões. Em seguida, Duarte (Dm) em tom de riso afirma que, assim como Bantu, também havia terminado um relacionamento havia duas semanas. Ele afirma que “as coisas são desse jeito, a fila anda”. Bantu repete a mesma assertiva e todos se põem a rir, até mesmo as espectadoras. Augusto (Am) então sugere que se passe à próxima pergunta. Y alega que é muito importante que esse assunto seja discutido e todos se põem a rir. O grupo, ao recorrer à expressão “as coisas são desse jeito, a fila anda”, se remete à fugacidade dos relacionamentos afetivos e fluxo interativo entre os jovens e seus afetos. Ao mesmo tempo que estar solteiro remete a uma série de possibilidades de encontros num conjunto indefinido de pessoas definida como “a fila”, por outro lado, falar nessa dinâmica em alguns momentos gera certa insegurança ou constrangimento para o grupo. Diante disso, alguns dos jovens pedem que outras perguntas sejam feitas. Breitner Tavares 163 Em seguida, Augusto afirma que está namorando com uma ótima pessoa, Bantu sorri ironicamente, Augusto demonstra irritação com um olhar cerrado, de baixo para cima. Frente ao gracejo de Bantu, Augusto reafirma que está vivendo um excelente momento em sua vida. Enquanto Bantu sorri, todos os outros membros do grupo ficam em silêncio. Y: Tem namorada, são casados? Como é a relação com suas namoradas? Todos : @(2)@. Cm: @Eles é casado e eu sou solteiro@. Todos: @( )@. Bm: Eu não vou falar não, mas até três dias atrás, quatro dias eu tava namorando, mas eu não sei se eu volto pra ela. Mas eu acho que volto sim porque era um namoro longo. A gente namorô quatro anos e oito meses entendeu? Namoramos pra caramba, a gente gostava um do outro pra caramba, apesar das discussões que tinha era ótimo. Era ótimo nosso relacionamento, entende? Am: No momento agora eu também tô namorando, graças a Deus é uma ótima pessoa. Bm: @(ironia )@. Am: ( Bm: [@ agora todo mundo ficou tímido@. Em: [@Não, que da outra vez que você veio aqui eu falei que eu tava namorando e agora já também ) mesmo tá bom demais. eu terminei. Eu tô solteiro. Porque é desse jeito. A fila anda, a fila anda. Igual os cara@ ( Bm: @A fila anda, a fila anda que nem falou o Bill ali@. Am: Qual é a próxima pergunta? Todos: @(3)@. Y: @essa pergunta sobre as mulheres, ela é realmente muito importante@. ). Elmo (Em), que até então não havia se manifestado, reconhece que o tema trazido descontraiu o grupo, em seguida, ele afirma que namorar é algo muito importante como uma etapa preparatória para o casamento, além disso, ele considera que o namoro é definido por “sinceridade” e “fidelidade”, a partir dessas premissas deve-se buscar a “perfeição”. Após a definição de namoro apresentada por Elmo, o mesmo admite não estar namorando de fato, mas “está com uma menina aí”. Finalmente ele reafirma a necessidade da perfeição no namoro para que o mesmo seja verdadeiro e compara isso à religião ou a uma cultura. Em tom de riso, ele não afirma que está namorando, tampouco está solteiro. Em: É porque esse papo namorar. Foi um papo que descontraiu bastante, mas namorar é muito importante, porque o namorar é o preparar pra noivar, o noivar é o preparar pra casar. Entendeu? Então eu acho que o namoro tem que ter sinceridade, tem que ter fidelidade, tem que ser perfeito ou pelo menos tentar encontrar a perfeição. Eu não vou falar que eu tô namorando não. Eu tô com uma menina aí. Mas se não tá sendo perfeito, não tá sendo um namoro. Cada um tem um Breitner Tavares 164 jeito de pensar né, no lado sentimental, no lado emocional. É tipo cada um por si, entendeu? É como se fosse uma religião. Uma cultura que vem de casa, da família. Eu não vou afirmar @ “eu tô namorando”, mas também não tô solteiro@. Cm: @Eu sou o único solteiro aqui no BR45, sem compromisso@. O grupo cria uma idealização tradicional pra o relacionamento, contudo, os mesmos admitem que, de fato, experienciam práticas de relacionamento menos convencionais, como namoros esporádicos definidos como “ficar”. Durante a discussão, os jovens apresentam eventualmente afirmações inspiradas na Bíblia e no comportamento definido como “cristão”. Fala-se em “sinceridade”, “fidelidade” e “perfeição”, mas quando se trata do relacionamento que os jovens estão vivenciando, de fato, eles optam pelos verbos “estar” ou “ficar” com uma “menina”. Além disso, considera-se que nesses casos onde o namoro não está instituído, o que vale é a “interpretação de cada um” para o que está se experienciando, algo que atribui uma dinâmica diferente de um namoro convencional. Em seguida Y lança uma pergunta sobre a intenção dos jovens do BR45 de se casar. Os jovens do BR45 consideram de um modo geral que o casamento é algo “fundamental”. Bantu afirma que viver a dois é fundamental e para isso deve-se casar. Elmo e Cenim destacam que o casamento serve para se “construir uma família”. Bantu ironiza e menciona que a família atende parte das etapas da vida, deve-se deixar descendentes, “herdeiros, de 2 a 4 filhos”, isso, segundo o grupo, caso a mulher “aguentar”. Bantu argumenta que se duas pessoas estão vivendo juntas maritalmente, mas não assumem essa posição estariam segundo ele se “prostituindo”. Além disso Banto afirma que deseja “envelhecer” junto com a sua mulher, sem separar-se dela. Ele alega que aos 27 anos ainda não pensou em casar por essa razão. Bantu alega que crianças filhas de pais separados sofrem muito. Ele apresenta alguns exemplos em que a criança se sente prejudicada pela separação dos pais como em eventos sociais na escola e na comunidade. Finalmente ele usa o exemplo de sua família que nunca se separou, algo que para ele se constitui como uma referência. Augusto menciona o período em que esteve vivendo com uma companheira e com um filho, mas que terminou em separação. Ele lamenta não ter acompanhado o crescimento do filho em função disso. Bantu sorri e se volta para os demais que estão em silêncio observando. Augusto retoma a palavra e afirma que ainda assim pretende se casar, mas somente quanto tiver trinta ou trinta e cinco anos. Em função do comentário de Augusto, Bantu afirma que casar cedo é besteira. Duarte toma a palavra e comenta que “deve-se estabilizar a vida primeiro”. Bantu chama a atenção das dificuldades decorrentes de um casamento sem planejamento, para isso ele utiliza a expressão “ficar passando fome”. Y: Mas, dando continuidade a esse assunto. Vocês pensam em se casar? Constituir família? Bm: Eu? (.) Eu penso. Eu acho que viver uma vida a dois é::: fundamental e tem que tá casado (.) Eu tenho vontade de construir porque a gente num veio no mundo só pra vegetar. A gente veio no mundo pra:: (.). Breitner Tavares 165 Cm: [construir. Em: [construir uma família. Bm: [ crescer e reproduzir, constituir uma família e deixar herdeiros pelo menos @um, dois três quatro@ (.) @depende da mulher se ela aguentar né@. Todos: @(.)@ Cm: @dois três, dez@ ( Bm: Eu acho que se a pessoa vive a dois e não é casado tá se prostituindo. A gente mesmo assim ) tá massa. durmindo com a namorada na cama, a gente tá se prostituindo ao mesmo tempo eu quero tá casado me:smo e eu quero envelhecer com ela. A mulher que eu escolher pra casar ( ela ( ) e envelhecer mesmo. Por isso pode existir briga, desavença eu quero ficar ( ) vai ser ) por isso, que eu não tô casado até hoje. Eu vô faze 27 anos agora dia 23 e nem pensei em casar entendeu? Porque eu acho que a criança sofre por ter pai e mãe separados. Am: Eu:: Eu mesmo tive uma ilusão aí: ( ) teve um tempo aí eu me juntei com uma mulher fiquei quatro anos com ela tive um filho mas:: é isso daí é::::( ) a vida continua né? A vida continua, ilusão, cinco minutos de burrice na vida, mas eu to aí pra consertar, mas hoje eu me arrependo de não ter vido, de não ter vido o primeiro passo do meu filho, a primeira palavra dele, mas é isso aí (.) a vida continua (4). Bm: [@ e vocês?@ @(2)@. Cm: [ @Eu já falei@. Bm: [((bate palma com expressão de riso sarcástico)) ( Am: Mas eu pretendo me casar novamente novamente, mas com uns 30, 35 agora. Bm: É besteira o cara casar cedo. Né? (1) Casar com: 19 casa=com: @Quantos anos você tem?@ Dm: 23. Bm: @ó 23@ é besteira casar cedo assim. O cara tem que casar: ( Dm: Começar a estabilizar a vida primeiro. Bm: [ Estabilizar a vida primeiro pra procurar constituir uma família (.) porque porque ficar casando ( ) ). ) se basta só um ficar passando fome. Como afirmado anteriormente, os jovens do grupo consideram o casamento importante, mas de fato não o consideram como algo prioritário em suas vidas. A experiência de casamento e separação de Augusto é vista como uma espécie de advertência para o grupo, em relação a se estabelecer um casamento sem que haja as devidas condições para manter a sua durabilidade. O grupo mantém o consenso de que “casar cedo” é uma ideia indesejável sem que se construam as devidas condições materiais para que ele se realize, o que evitará “ficar passando fome”. O namoro assim como o casamento são importantes, mas de fato os relacionamentos vivenciados pelo grupo, em geral, estão no campo da estabilidade passageira de se “ficar com as meninas” Isso implica por sua vez em não estabelecer um compromisso duradouro, como um namoro ou casamento. 8.2 Masculinidade e misoginia: a construção social do namoro e a monogamia Breitner Tavares 166 Grupos Revolução MCs e Resistência Periférica O grupo REVOLUÇÃO MCS: Dando um rolê, porque tem dona dando mole no frevo Relacionamento de rapazes, formação de pares românticos e o sentido da fidelidade Y Bom, vocês teêm namoradas ou vocês têm esposas, como seria essa relação com as mulheres? Am @O barato é loco véi@. Bm Namorada, eu já tive namorada mas @eu sô mais de ficar zanzando@ Am @malandrão@ Bm Já quiseram, mas eu não consigo ficar ali::::: só com uma não, eu sou uma pessoa que eu tipo gosto é de frevo. Am @Uma vida louca na história@ Bm Se eu tiver uma hora marcada tipo com minha namorada ali, não que eu não goste dela, mas tipo assim se eu tiver uma namorada ali, e um muleque chegar e ((aí Blink vamo ali no frevo ali mermão, vai ter altas donas e pá)), eu vou pro frevo e depois eu sento pra conversar com ela, eu invento uma desculpa, um caô, falo que fui com a minha mãe. Am Mas você não tem namorada ((por isso fica falando isso)). Bm Tipo assim que nem ontem (.) tipo uma doninha ali pá. Am @E a gente dá conselho pra ele ainda@. Y apresenta uma questão sobre relacionamento. O grupo se exalta, os risos se tornam constantes, assim como os olhares recíprocos em busca de cumplicidade se multiplicam. Para os jovens do grupo, a resposta sobre como encaminham seus relacionamentos não é unívoca, tampouco linear. Contudo, em cada trajetória individual há uma inclinação para um habitus da festa e do lazer como forma de encaminhamento de suas orientações coletivas na esfera do relacionamento afetivo. Em geral, os jovens já estiveram envolvidos com namoro, contudo, preferem não manter um relacionamento fixo. Em contrapartida, as festas e os encontros casuais orientam suas práticas e seus gostos em relação aos encontros mais fortuitos e momentâneos que podem ocorrer, como considera Blink (Bm) ao dizer que prefere “ficar zanzando”, que desperta o riso dos demais integrantes do grupo, Amaro (Am) e Conde (Cm). Eles, em resposta a Blink, o chamam de “malandrão”, termo que manifesta nesse caso um tom discretamente irônico repreensivo quanto à posição de homem galanteador e ao mesmo tempo descompromissado com as mulheres. Esse comentário do grupo gera uma resposta de Blink, que busca justificar sua posição. Ele afirma que já quis ter um relacionamento fixo, mas não consegue manter um único vínculo, portanto, prefere viver a diversão, definida pela palavra “frevo”. Breitner Tavares 167 O relacionamento com as garotas é estipulado pelo grupo quando está reunido. Estar na presença de outros homens interessados em flertar com outras garotas é preferido a estar na companhia da namorada do relacionamento estável, monogâmico. Blink exemplifica que se ele eventualmente for convidado para alguma festa, “frevo”, em que haverá a presença de outras garotas disponíveis, chamadas de “donas”, nesse caso ele desiste do encontro já marcado com sua namorada. Ele argumenta que posteriormente irá procurá-la para lhe dar uma explicação, na qual ele omitiria a experiência do frevo com as “donas”. Para isso, ele contaria uma mentira a sua namorada, definida como “caol”ou “caô”. Amaro contrapõe Blink e comenta que ele só tem essa postura por não estar namorando de fato e que ele costuma aconselhá-lo quanto a esse tipo de postura, considerada por ele como incorreta. Blink conta que costuma ser convidado por seus amigos para um passeio, para se divertir, “dar um rolê”. Ele comenta que numa dessas ocasiões uma “dona” estaria insinuando estar interessada nele, “dando mó mole”. Blink afirma que costuma aceitar os convites para esse tipo de atividade, mas admite que, com o passar do tempo, se sente enjoado e não demonstra mais tanto interesse nesse tipo de relacionamento mais ocasional, momentâneo. Ele conclui num tom de riso que Amaro é um tipo de pessoa que se apaixona facilmente. Diante desse comentário, todos riem. Amaro demonstra certo constrangimento e diz para Blink “parar” com esse tipo de comentário. Amaro tenta desviar a atenção do grupo voltada nesse momento para ele e convida enfaticamente Conde para apresentar seus comentários sobre o tema. Conde sorri meio envergonhado, faz uma pequena pausa e em seguida diz que, precisamente, não tem uma namorada e se compara a Blink, contudo, ele faz uma ressalva, pois, segundo ele, não costuma participar tanto de festas, “frevo”, como Blink. Diante desse comentário, Amaro sorri e comenta que Conde ainda está mais preocupado com sua conduta religiosa, pois ele se considera evangélico, “ainda está orando”. Conde comenta que hoje ele pode estar com uma garota, “eles se vêem, se falam, fazem qualquer coisa”, contudo, logo em seguida, ele encontra outra garota e finalmente ele prossegue em múltiplos relacionamentos. Para o grupo, o relacionamento é determinado ocasionalmente em encontros múltiplos. Em alguns casos, os jovens mantêm vínculos com várias garotas ao mesmo tempo sem compartilhar com as mesmas que se trata de um relacionamento sem compromisso de um namoro monogâmico. Isso expressa aspectos de um relacionamento pautado em bases patriarcais, em que o jovem mantém certo controle sobre suas namoradas ao firmar um compromisso monogâmico, que, de fato, não ocorre. Para os jovens do Revolução MCs, estar no “frevo” implica jogar com o relacionamento, no sentido de manter vários relacionamentos. Por outro lado, os jovens mantêm um relacionamento mais estável, no sentido de maior duração, um namoro. Nesse caso, a namorada nunca é informada sobre os outros relacionamentos dos jovens. Para eles, isso implica ludibriá-las, criar uma fachada que represente a estabilidade no namoro, omitir e mentir sobre outros possíveis relacionamentos, prática definida pela expressão “aplicar o caô”. Por outro lado, estão as “donas”, garotas supostamente sem namorados e que potencialmente poderiam flertar com os jovens. Breitner Tavares 168 Há uma variação dessa situação de múltiplos relacionamentos. Nesse caso, o jovem estabelece desde o princípio uma situação de não envolvimento, num par romântico. Eles se divertem juntos, se vêem e podem eventualmente aprofundar ou não o relacionamento, contudo, não há um jogo de blefes ou “caô” em que o jovem tentará lograr o controle de várias namoradas ou “donas”. Nesse caso, os relacionamentos ocorrem um por vez. Isso demarca uma diferença em relação a “viver zanzando”, um relacionamento por vez num curto espaço de tempo ou “viver no frevo”, manter vários relacionamentos ao mesmo tempo e num espaço de tempo curto. Ela: pessoa perfeita pra mim ou feita pra mim Monogamia e masculinidade na relação entre jovens Durante a discussão sobre relacionamento, houve em princípio o posicionamento do grupo por relacionamentos sem o vínculo monogâmico centrado na figura masculina. Contudo, houve uma polarização no sentido da defesa do namoro tradicional, numa estrutura monogâmica. Am: Eu já tem um ano e três mês que eu namoro. Cm: [@Vai casar@ Am A melhor coisa do mundo é namorar, @altos beijinho, altas briga, altas divergência, altos conflitos de pensamento@. Cm: A mulher dele com todo respeito é toda perfeita, toda bonita, é linda, meiga. Pra ele ::(( )). Am: Não. Tipo assim, como eu falei, eu sempre tô visando o rap mas como eu te falei, na minha vida ela veio como o rap, o rap vei pra mim fazer ficar mais dentro de casa, mais atento, mais esperto (.) as pessoas que vei, e depois virou as costas pra mim, eu aprendi com eles certos pensamentos, não certos pensamentos ((mas)) certos gestos, certos tipos de conduta, ficar mais na sua e tal ((hoje em dia)) eu até agradeço as pessoas que me viraram as costas hoje, a minha namorada ela veio num momento muito ruim, Blink lembra disso e chegou a envolver o rap em conflitos pessoais é, em conspiração muita vezes por dinheiro ou fama na quebrada, coisas que envolviam violência mesmo, então ela veio num momento bom no meu toque de falar, me tirou do meio da multidão, igual o Blink, quando eu acho que (1) quando eu acho que vários estão contra mim, no meio de de de: cem tinha um, o Blink, tanto é que hoje em dia ele tá aí. Bm: @Apesar das discussões a gente discutia pra caramba@. Am: Até hoje existe isso. Em relação à defesa de um relacionamento monogâmico com namorada, Amaro menciona que já está envolvido há mais de um ano e que isso é “a melhor coisa do mundo”, ele exemplifica num tom de riso que no namoro existe a intimidade “dos beijinhos”, que se remete a um sentido de cumplicidade no relacionamento apesar das eventuais divergências e dos “conflitos de pensamento”. Contudo, o Breitner Tavares 169 comentário de Amaro desperta o olhar de Conde, que comenta sorrindo e, em baixo tom, que Amaro vai se casar. Em seguida, ele lança um elogio sobre a namorada de Amaro ao mencionar que ela é “perfeita, toda bonita, linda e meiga”. Amaro responde rispidamente que “não!”, se referindo ao comentário de Conde sobre sua garota. Conde então se recolhe ao silêncio. Amaro, por sua vez, inicia um comentário paralelo em que compara seu relacionamento com seu envolvimento com o rap. Amaro, em seus próximos comentários, menciona que o rap veio para lhe “fazer ficar mais dentro de casa”, “ficar mais atento e esperto”. Dito isso, ele faz uma pequena pausa e olha para todos e se fixa momentaneamente em Conde, que mantém um olhar cabisbaixo. Em seguida, Amaro segue dizendo que se envolveu com outras pessoas que posteriormente lhe decepcionaram, “lhe viraram as costas”, essas experiências foram, segundo ele, importantes acerca do aprendizado dos gestos e condutas das pessoas, que lhe motivaram uma conduta mais reservada, “ficar mais na sua”. Ele considera que, apesar de ter se decepcionado, isso foi algo também positivo para seu aprendizado, pois foi num momento ruim que ele encontrou sua namorada. Nesse momento, ele se dirige a Blink como alguém que teria acompanhado sua trajetória. Amaro menciona que se envolveu em conflitos pessoais, “conspirações” em função da disputa por status social ou mesmo dinheiro na região onde vive. Essas situações, segundo ele, chegaram a envolvê-lo em atos de violência. Em meio a essas situações, o encontro com sua atual namorada foi fundamental para levá-lo a se distanciar de brigas e problemas da “multidão”. Nesse caso, ameaças, essa mudança o teria retirado dos o relacionamento amoroso cria uma possibilidade de enfrentamento dos dilemas de um mundo em que os vínculos sociais são mais superficiais e momentâneos e eventualmente conflitivos (SIMMEL, 1973). Ele ainda comenta que, em meio a toda essa situação de infortúnios, a presença de seu amigo Blink se manteve. Conde nesse momento aproveita e menciona que apesar da amizade as divergências eram constantes, assim como a retomada do consenso entre os dois amigos. Amaro retoma a palavra e discute brevemente sobre a formação de vínculos sociais de amizade e consciência grupal relacionados ao movimento hip-hop. Para ele não há amigos ou meio amigos, para ele há ou não há fraternidade na relação entre “irmãos”. Na fraternidade, há uma maior cumplicidade que aproxima os indivíduos do grupo. Nesse momento todos estão em silêncio acompanhando seus argumentos. Após lançar essa parábola em relação aos vínculos afetivos e de fraternidade como um arcabouço moral que orienta a estrutura do habitus do grupo, Amaro resolve retomar o assunto sobre namoro e relacionamento. Ele considera que ter namorada evita o envolvimento dos homens com prostituição, entretanto, ele ressalva dizendo que não é contrário àquele que se envolve com muitas garotas, definido como “garanhão que pega todas”. Contudo, ele admite estar voltado para uma relação monogâmica, mais estável, o que é definido pela expressão “eu tô parado”, que seria uma condição diametralmente oposta à condição de “estar no frevo”. Amaro argumenta que quando se encontra a “pessoa certa” ou que se supõe ser certa, vive-se de modo mais reservado, respeitando seus próprios sentimentos. Isso implica um envolvimento com a pessoa Breitner Tavares 170 certa, “conversar mais com ela”. Amaro admite que não acreditava que pudesse existir a pessoa “perfeita” ou “feita” para ele, toda mulher era vulgar, sem valor, vagabunda”. Ele admite que alguma coisa mudou em relação a seus pensamentos, apesar dele saber que não dá para confiar totalmente. Todavia, ele assume que sabe com quem está, da mesma forma que ele conhece suas companhias. Amaro conclui com ar de convicção que ser astucioso, “malandro”, é saber viver e que ele está envolvido nessa experiência. De fato, ele fez uma grande parábola sobre amizade e fidelidade que desvirtuou o debate, principalmente depois do comentário ambíguo de Conde que, logo em seguida, se retirou do grupo sem dar maiores explicações. O depoimento de Amaro em relação ao seu envolvimento com sua namorada expressa a busca do grupo por uma estabilidade moral que pode ser garantida com a companhia feminina, seja ela em bases monogâmicas ou não, num ambiente onde ficar sozinho significa estar na “multidão” com seus respectivos problemas. A existência de uma namorada permite aos jovens que os mesmos compartilhem a construção de suas respostas no sentido de um grupo numa mesma unidade geracional, o que se identifica na expressão “saber que existe uma pessoa perfeita”. Apesar de alguns membros do grupo admitirem não ter namoradas, eles constroem seus argumentos no sentido de estarem frequentemente encontrando garotas como as “donas”, que reforçam um sentido de masculinidade delineado por estar com várias garotas ao mesmo tempo. No caso da atitude em relação à defesa da monogamia, define-se um discurso no sentido da maturidade emocional, que estabiliza o indivíduo. Contudo, ocorre o aumento do sentimento de posse, nos termos do comportamento ciumento em relação a namorada. Para o grupo, mesmo sabendo que não se deve confiar integralmente nas pessoas, há sempre a possibilidade de se construir laços de fidelidade entre pessoas “perfeitas” umas para com as outras. Por fim, durante a discussão, a ênfase dada ao sentimento de cumplicidade entre amigos foi apresentada como uma delimitação do sentimento de ciúmes, que apesar de latente gerou uma tensão que fez o grupo repensar a relação dos vínculos sociais definidos pelo estilo hip-hop. O embate entre diferentes posições, seja monogâmica ou não, é parte dos dilemas enfrentados pelo grupo. Ainda em relação a essa tensão, Y lança uma pergunta sobre a intenção dos membros do grupo em relação a casamento e filhos. A projeção de futuro implícita na pergunta leva o grupo a manifestar um interesse mais homogêneo favorável à ideia de casar e ter filhos. Isso foi observado primeiramente em Blink, que manifesta seu interesse em se casar e ter filhos. Diante de sua resposta, Amaro aproveita e diz que Blink iria deixar de cometer falhas, “sair da vida bandida”. Blink responde com certa irritação à provocação de seu companheiro. Ele continua a manifestar o seu desejo de constituir sua vida da sua maneira, “do seu jeito”, que implica um desejo de mudar. Amaro ri da tensão provocada por seu comentário e sugere que Blink deve obter um bom emprego. Blink concorda e diz que gostaria de ter um bom emprego e um carro para passear com sua mulher, ele pensa em ser “alguém na vida”. Breitner Tavares 171 Y: Bom, a outra pergunta, é beleza, é, cada um tem uma forma de se relacionar no momento né, cada um tá vivendo uma história, né isso, e como é, vocês pensam em casar, ter família, ter filhos? Bm: Até casar... Pra falar a verdade véi, eu tenho, eu tenho, tem vontade assim de casar sei lá, de ter meus filhos, Em [@ sair da vida bandida@ Bm: [sair da vida bandida não véi ((irritação)) Em: @(2 )@ Bm: [mas tipo, mudar viver do meu jeito tá ligado, mudar. Em: [@Um bom emprego@. Bm: [ É, arrumar um bom emprego, ser o que eu quero ser, ter uma casa, um carro, pra eu ficar de rolê com a minha mulher, quiser sair, sei lá, é isso aí véi, um dia eu penso em mudar, penso em casar, penso em ser alguém na vida né? Amaro, por sua vez, afirma que pensa em constituir uma família. Ele menciona que já viveu junto com outra mulher por algum tempo e admite não saber se isso tem o mesmo significado de um casamento formal. Amauri pontua que não se pode viver na miséria e que tudo hoje em dia tem seu preço. Ele afirma que eventualmente pode não se encontrar emprego, assim, diante da possibilidade de desemprego, não se pode pensar na possibilidade de constituir família, dessa forma, o que se pode fazer por enquanto é sonhar. Am: Cara já eu penso em constituir uma família, eu acho que quando fala em casar assim, já fui junto, não como casamento, mas já moramos junto, não sei se casar é a palavra certa e eu. Bm: Tem muita gente que quer casar que já está vivendo há muito tempo. Am: Como eu falei, como eu falei, a gente não dá pra viver é na miséria, é que precisa de tanto pra pegar o ônibus pra um lugar, pra outro, tudo hoje em dia se paga mau, pra deixar currículo, quem hoje em dia não tem um bom emprego, não é visto, não como um vagabundo, tem uma profissão pra fazer, eu tô estudando, trabalhar e estudar, eu já trabalhei já, mas às vezes a gente está desempregado, então a gente não pode pensar em constituir família, sem não antes pensar em seus projetos pro futuro, então é isso, que pensar a gente pensa, a gente comenta. Por enquanto a gente faz é sonhar. Em relação a uma atitude reflexiva em relação ao futuro, o grupo associa a constituição de uma família, em bases monogâmicas, como um meio de transformação pessoal. A expressão “ser alguém na vida” pode ser associada à intenção de obtenção de emprego, que implica uma mobilidade social em termos econômicos. Por outro lado, o grupo manifesta sua preocupação em relação ao futuro “a dois”, pois isso implica participar do mundo do trabalho, que é encarado pelo grupo como instável e comprometedor da estrutura familiar. Portanto, nesse caso, há certa ponderação sobre a intenção de se Breitner Tavares 172 assumir uma série de responsabilidades que levam os jovens a não estabelecerem planos mais definidos em relação a constituição de uma família nos termos de uma união conjugal, para eles “por enquanto (o que resta ) é sonhar com o futuro”. O grupo Resistência Periférica: “A complicação do bom marido e suas falhas”. Relacionamento e afetividade no Grupo Resistência Periférica Os membro do Resistência Periférica (RP) estão em sua maioria envolvidos em relacionamentos mais estáveis, casados ou namorando. Durante a discussão com o grupo sobre como os jovens lidam com o relacionamento com suas companheiras, imediatamente se estabeleceu uma atmosfera de risos e, logo em seguida, um deles define a questão como “complicada”. Além disso, durante toda a discussão, prevalece uma dualidade em relação a suas representações coletivas, que são ilustradas pela dualidade entre ser um “bom marido”, por um lado, e, por outro lado, cometer “falha”. O estilo hip-hop materializado por diversas práticas de lazer irá gradualmente definir certos comportamentos no que diz respeito à relação entre os sexos. Em geral, os homens estabelecem atividades relacionadas à diversão que não incluem mulheres. Amauri (Am) diz que gosta de sair para tomar umas cervejas, mas nem sempre informa sua companheira disso, pois ela não demonstra interesse, “ela não é de frevo”. Isso provoca certa tensão na vida do casal, sua estratégia para minimizar o problema se dá pela busca do diálogo, “trocava idéia”, pois continuar a viver no “mesmo mundo”, ou seja, se restringir ao espaço social do casamento seria algo indesejado. Ele fala que antigamente costumava sair e só retornar no dia seguinte, agora ele procura informar sua companheira a que horas voltará para que ela possa ficar lhe esperando, essa é sua alternativa frente ao comportamento “falho” do homem. Essas tensões provocadas pelo comportamento “falho’ do homem, ou seja, de sua busca contínua por outro espaço sem a presença de sua companheira, são definidas como “conflito de alma”. Enquanto Amauri fala, todos observam atentos e, ao final, Conrado (Cm) dá uma breve risada. Am: Tipo assim, eu acho que eu sô um bom marido, mas eu tenho minhas falha, tá ligado? Tipo=assim, tipo=assim, minha mulher não é de frevo assim tá ligado? Não gosta. Aí pá, e eu assim quando começo a tomar uma cerveja, mano (.). Dm: @Já era@. Am: Só Jesus na nossa causa, porque é problema. Que nem eu falei com ela, tipo uma vez aqui, eu falei pra ela: não amozinho vou só ali comer um cachorro quente. Que hora que eu cheguei? Quatro hora da manhã. Tá ligado? Todos: @(2)@. Am: Aí pá, eu troquei idéia, viver no mesmo mundo que ela é pior. Moço. Antigamente quando eu casei com ela eu saía, por exemplo eu saía hoje e só voltava amanhã, ( ) no outro dia. Tá ligado? Agora eu já tenho uma coisa de falar ((ruído de carro)) me esperando. É o que eu faço, Breitner Tavares 173 porque o homem é falho. Mas agora eu tenho uma consciência, né? Agora a relação de casado é bom:::, fora isso, se não fosse as briga que aparece aí. Conflito de alma. É cabuloso. Cm: @(1)@. O encontro entre garotas e garotos irá definir a criação de vínculos afetivos como namoro e casamento. Esses vínculos estão relacionados a aspectos de proximidade geográfica com a vizinhança e a atividades de lazer relacionado ao rap. Denis (Dm) conta que conheceu sua ex-mulher num salão durante um baile de hip-hop. Após se casarem e passarem a viver em Ceilândia, ele passou a sair para cantar em apresentações com outros companheiros homens, contudo, quando ele se preparava para deixar sua casa ela começava a lhe xingar. Ele, por seu turno, diz que ignorava suas ofensas. Ela ainda lhe dizia que ele deveria escolher entre o rap e a sua companhia. Diante de tal situação, Denis acenava ironicamente como se estivesse se despedindo de sua companheira e lhe dizia para “ficar aí”, pois ele já estava de saída, “saindo fora”. Em seguida, ele se refere ao seu estilo como uma propriedade, algo que lhe atribui um sentido de pertencimento, uma autoimagem, que sua companheira quis lhe tomar, “tirar uma coisa de mim”. Ele disse que já cantava rap há quatro anos quando a conheceu, o que caracteriza a sobreposição do estilo sobre o relacionamento, assim como definiu o grupo Rap Comando. A manutenção do relacionamento ocorre pela exclusão da companheira das práticas de lazer que são sempre definidas pelo viés masculino, “sair com os amigos para cantar rap”, porque quando eles se conheceram ele também já cantava rap e ela fazia parte do espaço de circulação de jovens desse estilo sem que isso se constituísse num entrave. Há uma outra situação semelhante apresentada por Conrado, que retruca enfaticamente as considerações anteriores de Denis: ele afirma que, em seu caso, supostamente, ocorreu o contrário. Conta que sua ex-companheira passou a gostar do rap através de sua influência. Ela tinha interesse em saber os detalhes dos shows, quem iria se apresentar, entre outras coisas. Denis ainda tenta justificar que sua mulher passou a causar problemas depois do casamento. Em: Comigo foi o contrário, Celine passou a gostar do rap por causa de mim, @(1)@. Ela vai (.) ela gosta mesmo (.) ela quer saber quem é quem (.) quer tá no palco. E eu falo os nome tudim pra ela, “esse aqui é fulano, mora não sei aonde”. Dm: Foi depois de casado que a ((minha)) mulher encrespou ( ). O estilo caracterizado por práticas de lazer e determinadas indumentárias é algo que caracteriza o grupo. Isso se expressa a partir de suas ações e significados constituídos nesse sentido de pertencimento coletivo. Nesse caso, o casamento aqui aparece como uma mudança no significado e na dinâmica de consumo dos jovens que redefine a orientação coletiva em torno do estilo, como, por exemplo, o costume de sair com os amigos. Apesar de Emanuel e Denis terem conhecido suas companheiras em meio ao ambiente hip-hop dos bailes e shows, o que implicava participar de um meio frequentado por homens e mulheres, num segundo momento, essa prática passa a ser considerada apenas como interessante Breitner Tavares 174 exclusivamente para os homens. Portanto, em ambos os casos, o vínculo afetivo mais duradouro, como o casamento ou o namoro, passa a ser um entrave ao prosseguimento do homem no estilo, como expresso por Denis em “tirar uma coisa de mim”. Essa tentativa de constituir um espaço de relativa autonomia masculina e exclusão feminina define o sentido de “falha” no comportamento do jovem de sexo masculino após assumir um determinado tipo de relacionamento. Amauri aproveita para comentar um episódio em que estava com sua companheira e outros amigos numa boate quando alguém acende um cigarro de maconha, “uma barata”. Segundo ele, sua companheira passou mal, daí ele a levou de volta para a casa. Amauri afirma que ela não gosta desse tipo de ambiente e, além disso, seus amigos haviam dito para que ele não levasse sua mulher, “tu não leva sua mulher”. Por outro lado, Amauri admite que apesar de sua mulher ficar contrariada, nesse caso, é melhor que ela esteja em casa a ter que se sentir mal na rua. Am: º É que nem eu vô te dá uma idéiaº. Eu fui naquele dia pra Capital ((boate em Taguatinga Sul)), tava eu, tu, a Dásia que é minha esposa, tá ligado? Aí tamo lá curtindo, quando um cara lá acendeu uma barata ((cigarro de maconha)), aí quando eu vejo ela tá morrendo. Aí eu falei, vamo embora moço. Tá dormindo? Ela ficô lombrada. Dm: Quem? Sua mulher? Am: Foi. Já não gosta e (.) pá tá ligado? Aí os muleque fala pô “tu não leva sua mulher”. Né não moço. É pra mim ir e dizer que a mulher sentindo mal? É melhor eu dizer, né não? Ficar em casa. Apesar que ela vai achar ruim. Da distopia da guerra ao amor para trabalhar a cabeça: Relacionamento amoroso e visão de mundo Quando a vida em espaços segregados envolve toda a família, irmãos e irmãs em conflitos, o relacionamento entre os jovens, o amor e o envolvimento são capazes de gerar uma transformação. Amauri fala de alguns problemas com outros grupos que queriam matá-lo, o que ele chama de “guerra”. Outros rivais queriam matá-lo porque ele seria considerado alguém ingênuo e imaturo, um “prego”. Segundo seus parceiros, isso estava relacionado a problemas anteriores de seu irmão. Amauri diz que esse problema é assim de “geração para geração”, problema que só amenizou depois que ele “cresceu”. Ele acrescenta que esses problemas poderiam tê-lo feito outra pessoa. Além disso, apesar de seus irmãos serem errados (envolvidos no crime), era um pelo outro. Ele segue dizendo que mesmo seu irmão estando preso (numa penitenciária), uma parte dele também estaria “presa lá dentro”. Ele menciona que certa vez chegou à vizinhança na esquina da quadra e disse que seu irmão não estava sozinho, pois ele estaria do seu lado mesmo estando do lado de fora da prisão. E desafia caso alguém envolvido no conflito queira Breitner Tavares 175 tirar satisfação com ele na rua, pois ele estará lá disposto a isso, e acrescenta que não pertence a esse mundo e não veio para ficar. O pensamento distópico em relação à vida e ao mundo experienciado ali no bairro restringia os horizontes de Amauri, que já havia perdido a companhia do irmão que estava preso. Por outro lado, nesse mesmo ambiente, ele encontra aquela que será capaz de “trabalhar sua cabeça”, ou seja, de estabelecer novos valores no que se refere à compreensão da vida e dos problemas que o cercam através do amor entre duas subjetividades distintas e, nesse caso, heterossexuais. Amauri dizia que, durante esse período, encontrava-se na rua com a garota que seria hoje sua companheira. Am: Era coisa tipo assim de geração pra geração entendeu? Um bagulho que amenizou quando eu cresci. Entendeu? Que amenizou que era pra eu tá tipo o outro. Apesar que meus irmão pode ser errado como for, mas tipo assim, um é pelo outro, tá ligado? Eu tô tipo aqui na rua aqui, meu irmão tá lá preso? Mas um pedaço meu tá lá dentro, tá ligado? Um pedaço. Pá, que nem eu falei. Cheguei lá no pátio lá ontem é o seguinte: “Meu irmão não é só não, tal, se for pra cruzar na rua tô aí”. Não sô daqui, não vim pra ficá. E é o seguinte, depois disso, minha mulhé me via ((na rua)) e eu achava bonitinha e eu falava “ºvô pará elaº”. Aí ela saía correndo, moço. Aí ela falava é o Am. O Am era a mesma coisa=de vê o demônio, moço. Ela saía correndo. @Aí ela falava “É o Am@”. e “Pra”, corria. Am: Aí foi mudando, conheci ela. Ela foi trabalhando minha cabeça, e tal. Aí parei, aí conheci os muleque, aí foi um apoio, tá; apesar que eu não sou fã entendeu? Nunca fui. Minha vida melhoro de cem pra mil por cento. Y: Pode crê. Ele queria se aproximar daquela pela qual ele havia se apaixonado, para chamar sua atenção, para se lançar numa paquera, “vô pará ela”. A garota, por sua vez, saía correndo, buscando se afastar de sua presença. Ele dizia que ela preferia “ver o demônio” a estar em sua companhia. Ele justificava sua aversão pelo fato de estar sempre armado e envolvido na guerra. Amauri pondera sobre a perspectiva que a jovem tinha ao seu respeito acrescenta e menciona que de fato não era uma pessoa discreta ao se referir a seu estilo simples de trajar apenas uma bermuda como vestuário. Logo em seguida ele retoma a discussão sobre os conflitos na região onde mora, ele diz que nessa época não tinha tranquilidade em sua casa, havia armas e munição. Havia uns 20 revólveres no bairro. Contudo, com a gradual influência de sua namorada, foi mudando sua postura, deixando de lado seu envolvimento com as “guerras”, ela foi “trabalhando sua cabeça”. Depois disso, conheceu outros jovens que formaram o RP e que também o apoiaram. Sua vida teria melhorado substancialmente de “100 para mil por cento”. Amauri ainda encontra a recusa dos pais de sua atual companheira. Ele justifica seu empenho em estabelecer um relacionamento como sendo uma “outra fita”, ou seja, uma situação capaz de uma mudança qualitativa de conduta dentro do grupo social que o levou a abandonar a “guerra” e se tornar um Breitner Tavares 176 vigia de supermercado. Além de sua namorada, o encontro com outros jovens com o mesmo interesse pelo rap são elementos dinamizadores da construção de um novo estilo que altera seu posicionamento em relação às “guerras”. Ele abandona as armas e se arma com a lírica das rimas e a poesia para uma outra guerra num plano artístico. Dessa forma, o namoro é interpretado como a materialização de um amor romântico, bem como uma possibilidade de um casamento. Nesse caso, uma união estável é associada a possibilidade de alteração do status social do jovem dentro de seu grupo. Am: A mulher me via, moço, corria, moço. A mãe dela quando via eu conversando com ela, a mãe dela chegava e puxava ela e dava o bote, @ºéh:::º@. Bm: @(1)@ @até hoje é cabuloso, né?@. Am: Não. Mas a mãe dela comigo (.). Bm: @ºAgora amenizouº@. Am: amenizou, agora o padrasto dela (.). Bm: Porque o Am era muleque, não tinha futuro pra filha dele, era tipo a @minha patricinha, né?@ @(1)@. Am: Falava que eu só ia, pá, chegá e dá o bote, “sai daí tio”. E tô falando pra eles o seguinte; é outra fita. A paquera é definida por Conrado como “catá muié” (catar mulher), que exprime a postura do grupo em relação à busca por uma eventual companhia feminina durante o momento de lazer, quando os garotos saem para beber. Aqui a ideia de “catar”, no sentido lato de recolher algo que está disponível, implica a possibilidade de se cortejarem diversas garotas ao mesmo tempo. A discussão sobre paquera e seu modo masculino de flertar eventuais garotas gera certo alvoroço e risos durante as respostas do grupo. Além disso, há por um lado a idealização da mulher agressiva, “a bicha era braba”, aquela que sai “à procura do marido à noite vestida de camisola”. Por outro lado, há a idealização da mulher “carinhosa” que entende as limitações e falhas do marido, os “furos”. Essa mulher é a que “arruma a roupa com carinho”, para que seu marido possa sair para o show com seus parceiros ou aquela chamada de “minha nega” que prepara sua marmita. Nessa passagem o tom é de riso e certo sarcasmo com relação à condição de suas companheiras. Além da mulher agressiva, “braba” e da mulher subserviente, “carinhosa”, há aquela que atua enquanto parceria positiva na solução das demandas e dificuldades da vida, essa é a mulher que “trabalha a cabeça”. Concentração e Xingamento: uma sociologia do escárnio e de ausência feminina Breitner Tavares 177 Durante vários momentos da discussão os membros do Resistência Periférica lançaram alguns gracejos entre si. Alguns deles, como Conrado, se dirigem aos outros membros do grupo como Denis e dizem que o mesmo é “capado”, ou seja, não é viril, e “mancebado”, atribuindo uma conotação de que o mesmo tem um relacionamento, mas que este é algo instável, impreciso. Apesar da conotação negativa das duas palavras, elas são ressignificadas num ambiente masculino e sexista, em que se referir ao outro negativamente, agredi-lo, faz parte de uma gradual construção de intimidade entre homens e de vínculos afetivos entre os mesmos. Além disso, Conrado ainda faz menção à filha de Denis que teria nascido recentemente, que possui somente alguns meses. Durante sua fala, ele é interrompido novamente por Conrado, que lança outro comentário mencionando que esse fato é “bom”, especialmente daqui uns 17 anos. Nesse contexto, Conrado faz uma dupla menção a uma filha imaginária de Denis já na sua fase jovem, definida como mulher já constituída fisicamente, e disponível, por outro lado, Boca (Bm) também se converte num homem idealizado disposto a cortejá-la. Am: Vô te dá idéia aqui, eu sou casado. O Bm também é, o Cm é::::: Cm: º@capado@º. Em: @(2)@. Am: mancebado. O Dm Bm: @A filha do Dm nasceu, isso é bom:: daqui uns 17 anos:@, @(1)@. é::casado. O Em é separado. Parte das relações de socialização dos homens e a construção do seu sistema de gostos e valores são construídas diversamente numa relação de oposição ou no sentido de se evitar a presença feminina. A busca por essa “ausência feminina” é apresentada como um meio de se preservar a concentração que seria “retirada” do grupo pela presença das mulheres. O fato de o grupo realizar apresentações é estabelecido como subterfúgio para que suas companheiras não compareçam ao local dos eventos, que também é frequentado por outras garotas, mas que teriam o status de não estarem em sua companhia. Além disso, a expressão “porque nois no grupo é fechado numa idéia, tipo ninguém levar a mulhé” define um sentido de pertencimento masculino e misógino. Estar num ambiente masculino implica redefinir aquilo que, num contexto, mais amplo seria considerado ofensivo e desrespeitoso. A exemplo disso, o grupo mantém a prática do xingamento, a criação de códigos de reconhecimento masculino, que segundo o grupo não podem ser compartilhados com mulheres e, em especial, aquelas com as quais eles têm um relacionamento, pois incluem traços misóginos e homofóbicos. O xingamento e o palavrão têm uma função social integradora, decisiva por estarem relacionados a um sistema de valores complexos que tende a se redefinirem em função de múltiplos Breitner Tavares 178 aspectos59, como a formação da masculinidade. Em relação a isso, Conrado menciona que quando estão reunidos têm o costume de xingar uns aos outros, e que se uma das companheiras vir isso pode não gostar, pois ela “já olha”. Aqui nesse contexto, quando homens estão em grupo, há uma suspensão provisória que os permite se relacionar de modo mais íntimo. Isso implica, entre outras coisas, se permitir xingar e aceitar ser xingado, sem necessariamente infringir aquilo que em outra situação seria uma afronta à honra do indivíduo. Cm: A minha mulher fica brava, porque tipo assim, eu saio de vez em quando, e ela “Eu quero ir pro Racionais também”. Eu falo “não gata, não dá pra tu ir, tal”. Porque tipo=assim, é complicado, né véi? Tu vai pra cantar, e a mulher qué ir, e não tem como levar. Am: Tira a concentração do=cara. Cm: porque nois no grupo é fechado numa idéia, tipo ninguém levar a mulhé. Por que? Porque tira a concentração. Tipo assim eu “Ei Am seu viado, não sei o que tal” ((dá um tapa no sofá enfatizando um susto ou repreensão num ambiente de intimidade)). Tá ligado? Aí a mulher dele ( Dm: ). Já olha. O estilo hip hop enquanto referência para uma representação social masculina não permite uma intervenção feminina no sentido de uma avaliação da performance dos integrantes do grupo de rap. Dessa forma, as jovens eram definidas como aquelas que “botavam defeito” e deveriam ser mantidas à distancia. Em relação a isso, Boca ainda relembra uma experiência em que as primas de Amauri foram ao ensaio e prejudicaram a concentração do grupo, fazendo comentários sobre quem teria a melhor performance. A possibilidade de participação da elaboração do grupo é um fator que pode levar o mesmo a se desestruturar internamente, gerando um retraimento, “gerar uma contenda”. Mesmo admitindo diferenças 59 Jocenir, em sua obra autobiográfica, “o Diário de um detento”, narra sua trajetória enquanto presidiário no sistema carcerário paulista. Ele faz menção sobre vários aspectos da vida diária dos presos, como a prática do lazer. O futebol como uma dessas práticas é redefinida, enquanto fora do sistema prisional, o xingamento é uma prática comum entre os jogadores, exercendo às vezes até uma função integradora e motivadora do jogo, por outro lado, dentro da prisão, o jogo se dá de maneira silenciosa, o que nesse caso significa a manutenção da honra entre os detentos, caso alguém infrinja esta regra, pode sofrer alguma agressão mais tarde quando voltarem para a cela. “Diferente do que ocorre nos campos de futebol espalhados pelo país, em jogos de futebol não há ofensas e nem palavrões. Uma simples palavra de baixo calão suja uma honra, invariavelmente se lava com sangue” (JOCENIR, 2001, p. 23). Jocenir adquiriu certa notoriedade após manter contato com o vocalista Mano Brown, que editou parte de seus manuscritos sobre o cárcere na versão videoclipe de o Diário de um Detento (1997), que narra o massacre no presídio Carandiru em São Paulo, e também foi ganhador do melhor clipe MTV no mesmo ano. Veja o clipe no sítio da internet http://www.youtube.com/watch?v=M1i-iGxUz9M. Breitner Tavares 179 internas ao grupo, esse enquanto tal tenta estabelecer uma fachada harmônica para eventuais observadoras, “ninguém canta melhor que ninguém”. Portanto, fatores ligados à integração e à harmonia entre os membros do grupo são aspectos definidores que irão prescrever a separação das mulheres, com as quais eles têm relacionamento nos diversos circuitos de lazer, exclusivamente masculinos, criados por eles, como ir beber cerveja à noite, ir para um baile, ensaiar ou se apresentar num show. Em todas essas atividades, as mulheres são impedidas de acompanharem seus namorados ou maridos, “É por isso que a gente evita levar mulher”. Cm: Gera a desatenção no show. Tipo, é igual a gente vai ensaiar, às vezes trancava a porta, ficava minhas prima, né Em? A Eliene. “Porque a gente não pode ver, a gente só que ver” tá ligado? Ah, porque se nos deixava ver, (elas) botava defeito. “O Cm canta melhor que o Am”. Aí gerava uma contenda entre nois. E nois não queria isso, nois era fechado. Nois cresceu tipo assim. Ninguém canta melhor que ninguém mermão. Em: Ainda rola uma intimidação ( ) Cm: É por isso que a gente evita de levar mulher. 8.3 Algumas considerações gerais sobre relacionamento e sexualidade nos grupos hip-hop O estilo hip-hop caracterizado como um referencial para as representações coletivas do jovem demarca uma série de interações afetivas dentre outras práticas sociais. Isso caracteriza o sentido para o relacionamento amoroso dos jovens e permite que estes reconheçam a si próprios a partir de sinais de distinção que se constitui em função de uma compreensão do seu tempo, que são descritos pelo namoro, o “ficar”, e em alguns casos pelo casamento. O discurso dos jovens em sua maioria homens define o relacionamento amoroso, como um conjunto de práticas voltadas para a afetividade e a interação social, que aparece na constituição de valores misóginos que excluem e invisibilizam as mulheres. Além disso, o relacionamento afetivo seja no caso de um namoro ou casamento, aparece aqui como possibilidade de uma mudança no significado e da dinâmica de consumo masculino, que redefine a orientação coletiva em torno do estilo. Nesse caso, o relacionamento vivenciado pelos jovens influenciará como eles irão se apresentar nos espaços de lazer interferindo em seus hábitos como, por exemplo, o costume de sair com os amigos para uma festa ou para um show para uma apresentação pública. Breitner Tavares 180 Por outro lado, o relacionamento possui a capacidade de redefinição do papel masculino às vezes inserido no contexto de conflitos com outros jovens e grupo rivais que promovem a “guerra”. A mulher aqui tem a capacidade de “mudar a cabeça” do homem na medida em que estes escolhem enfrentar os dilemas de seu tempo construído intersubjetivamente, que é também capaz de gerar a transformação. Os jovens em geral, são solteiros e não admitem terem namoradas apesar de ficarem eventualmente com garotas em festas, “frevos” no setor onde moram ou em outras regiões da cidade onde eles têm amigos. Eles são desempregados e vivem com seus pais dos quais dependem economicamente. Eles idealizam o namoro como uma etapa importante para realizar o casamento e constituir uma família, como plano de futuro, contudo os jovens admitem, que em geral estão envolvidos com garotas em outros modos de relacionamento menos formais, que o namoro onde seguindo eles está implícito o compromisso de fidelidade que deve ser respeitado. O casamento é considerado como uma realização importante para a construção de um “futuro”, contudo os jovens ponderam, e alegam que essa escolha deve ser encaminhada após um planejamento, que implica numa “estabilidade” compreendida como ter meios de se sustentar de modo independente. Diante das dificuldades apresentadas pelos jovens os mesmo consideram que o que pode fazer por enquanto é “sonhar”. Para aqueles jovens que são casados assim como para os jovens que têm namoradas, observa-se a construção patriarcal das relações sociais em torno da sexualidade que marginaliza a mulher, tornando-a ausente do espaço de lazer e entretenimento, que se torna masculinizado, uma vez que ela já assumiu um relacionamento mais estável. Por outro lado, o jovem do sexo masculino assume um papel ambíguo em que por um lado encontra no relacionamento amoroso a possibilidade de enfretamento dos dilemas de ser jovem numa determinada conjuntura social, contudo o relacionamento não o impede a dar continuidade em atitudes consideradas pelos jovens como “falhas”, que estão relacionadas a vida mundana e festiva compartilhada por seus amigos e parceiros. As diversas possibilidades de articulação entre os indivíduos permitem aos jovens de maneira geral, transitarem eventualmente de um papel para o outro no que se refere a manter um namoro formal monogâmico ou a manterem vários relacionamentos com outras garotas, “as donas” ou “piriguetes” consideradas disponíveis para um relacionamento casual definido como “ficar zanzando” ou “ficar no frevo”. Os grupos Rap Comando, BR45, e Revolução MC’s tem algumas semelhanças que os aproximam. Esses grupos em geral são constituídos por jovens em sua maioria com até vinte anos de idade. Boa parte desses jovens encontram possibilidades de estarem juntos a partir da escola em que estudam ao a partir de atividades promovidas por ONGs locais como o Resistência Negra; alguns dos jovens que não estão frequentando a escola se encontram na rua o na casa de amigos. Eles são solteiros, e poucos admitem terem namoradas apesar de eventualmente ficarem com garotas do setor onde moram ou em outras regiões da cidade onde eles têm amigos. Breitner Tavares 181 O grupo Resistência Periférica, por sua vez, é constituído em sua maioria por jovens entre 20 e 30 anos e são casados vivendo com suas companheiras ou são separados de outras relações anteriores, mas a maioria vive em local independente da moradia dos pais. O grupo não menciona nenhum vínculo com movimentos organizados. Sua atitude em relação ao grupo está mais voltada para relações vicinais no setor QNX ou nos bailes que ocorrem em locais diversos. Muitos já concluíram o ensino fundamental e médio, mas poucos frequentam a escola atualmente. Além disso, todos no grupo trabalham exercendo diversas atividades. O jovens do Resistência Periférica, diferente dos outros grupos, são responsáveis por arcar com seus gastos e mantém uma relativa independência em relação aos seus pais. Eles alegam que conheceram suas mulheres em bailes de hip-hop e que compartilhavam do mesmo estilo, contudo após o casamento, os problemas vieram tais como: mudança de residência e outras responsabilidades como o nascimento dos filhos. Contudo mesmo diante dessas mudanças atribuídas pela vida de casado, os rapazes continuam a frequentar as atividades de lazer característico do estilo, ir aos bailes para se apresentarem, sair num grupo exclusivamente de homens para uma festa. Consequentemente isso gera uma tensão no relacionamento. Os casais brigam mais frequentemente. Os jovens do grupo alegam que suas companheiras estão tentando “tirar do homem aquilo que lhe pertence”. Nesse caso a expressão se refere à possibilidade de sair com outros homens mesmo que isso implique indiretamente em circular naqueles espaços que não são de circulação exclusiva de homens. Em todos os grupos discutiu-se o papel da mulher definido pelos jovens como aquela que “dá apoio”, ou seja, ser complacente em relação ao estilo e a distribuição de poder em termos de gênero que estaria implícita a ele. Nesse caso, não cabe a mulher “levar” no sentido de definir as regras do relacionamento, mas de “ser levada” pelo seu namorado. Para o grupo além do “apoio” requerido pelos rapazes para a aceitação das garotas ao estilo, ainda assim há certa resistência para com as garotas que se identificam com o hip-hop e querem frequentar as atividades do estilo, como festas e shows de rap, em sua companhia. Os jovens definem essa resistência em relação a presença feminina ao dizer que “não dá nem para mentir” ou “elas tiram a concentração”, ou seja, mesmo quando estão envolvidos com garotas que compartilham do mesmo estilo os mesmos têm que abrir uma concessão para que estas participem das atividades, por que em caso contrário eles sairiam somente em grupos de rapazes desacompanhados de suas namoradas ou esposas, caso elas não se identificassem com o estilo. De fato, estar desacompanhado ou desacompanhada num baile implica na possibilidade de flertar ou “ficar” com outras garotas no caso dos rapazes o que justifica um discurso que masculiniza o lazer no hip-hop. Os rapazes querem por um lado, estar “concentrados” em suas atividades como músicos na ausência de suas namoradas e esposas, mas por outro lado, almejam a possibilidade de flertar outras garotas. Ao se tratar da visão dos grupos sobre relacionamento encontraremos algumas semelhanças. Ambos definem as atividades relacionadas ao lazer dos integrantes dos grupos como uma atividade masculinizada. Para o grupo Resistência Periférica relacionamento é definido como “complicado”, pois Breitner Tavares 182 os homens em geral alegam que suas companheiras não gostam de sair, apesar de ficarem contrariadas com a saída de seus companheiros. A dualidade entre ser “bom marido” ou ser um homem “falho”, define a complicação ou complexidade dos relacionamentos jovens sob o ponto de vista masculino. As atividades como sair para beber ou ir a bailes são masculinizadas. Ausentes da diversão às mulheres já envolvidas num compromisso como o casamento são invisibilizadas. Nas poucas falas das garotas, observa-se a identificação pelo estilo hip-hop e o que isso pode descortinar antes delas assumirem um relacionamento. Isso foi definido por Amanda como “curtir primeiro”. Contudo, mesmo durante a discussão quando as jovens manifestavam seu interesse em desfrutar do lazer proporcionado pelo envolvimento no hip-hop logo surgiram considerações como “fica de olho nela” dito pelos jovens, que define o sexismo dentro do grupo pelo desejo interdição e controle das garotas pelos rapazes. No caso de Amanda, há uma dupla classificação racializada e masculinizada atribuída pelos rapazes pelo fato dela usar roupas folgadas e ser considerada gorda, que faria de suas roupas adequada para o uso dos rapazes. Em relação ao lugar das mulheres nas práticas de lazer elas se restringem a um longo silêncio. Por outro lado, os jovens, em diversos trechos apresentados anteriormente, surgem com expressões que reforçam o sentido de limitar a mulher a “ficar aí” ou “ficar esperando” o retorno de seu companheiro que “vai sair fora” para se divertir com seus amigos. O lugar da mulher é construído no espaço doméstico, que o homem tem ojeriza e não cabe a ele participar: “não dá para ficar no mesmo mundo dela”, portanto a casa é um lugar da solidão feminina. Para o homem a casa é só lugar de saída, mas não de permanência. Para a mulher, na mentalidade misógina masculina, “é melhor ela ficar em casa a ter que sentir mal na rua”. Por outro lado, no ambiente do baile, e do lazer masculino, ocupando lugar dessa mulher “carinhosa” restrita à esfera doméstica, surge a “piriguete”. Uma outra mulher genérica hiper sensualizada e consequentemente desumanizada, que estará supostamente disponível para relacionamentos fugazes no imaginário dos rapazes. A festa como a carnavalização da vida estabelece outras dinâmicas que definirão um ambiente para construção de um gosto peculiar da sexualidade e suas orientações coletivas entre os jovens como “os caras” e “as minas”. Contudo, apesar do discurso misógino dos jovens, no contexto do relacionamento afetivo quando todos os jovens estão reunidos em locais de festa, a dinâmica da paquera não é conduzida necessariamente pelos rapazes, mas também é articulada e definida pelas garotas que tem a capacidade de decidirem com quais garotos elas querem “ficar”. A sensualidade e o amor romântico são negociados e reinterpretados. Os beijos e carícias trocados não implicam necessariamente numa dominação unilateral, mas numa tensão entre gestos, olhares, caras e bocas, que definem a complexidade dos papeis femininos e masculinos, que eventualmente transgridem o sexismo implícito nos contatos sociais. Breitner Tavares 183 CAPÍTULO 9 EXPERIÊNCIAS DISCRIMINATÓRIAS E ESTRATÉGIAS COMUNICATIVAS DE ENFRENTAMENTO CRIADAS PELOS JOVENS RAPPERS Por mais dolorosa que possa ser nossa constatação, somos obrigados a fazê-la: para o negro, há apenas um destino. Ele é branco. (…) No entanto, permanece evidente que a verdadeira desalienação do negro implica uma súbita tomada de consciência das realidades econômicas e sociais. Só há complexo de inferioridade após um duplo processo: - inicialmente econômico; - em seguida pela interiorização, ou melhor, pela epidermização dessa inferioridade. Frantz Fanon - Pele Negra, Máscaras Brancas (2008) 9.1 No shopping assim, o segurança me olhando me seguindo. Seria por causa da minha cor ou das minhas vestes? Grupos BR45 e Revolução MCs Ao reconstruir as orientações coletivas dos jovens envolvidos no hip-hop, em Ceilândia, no que tange às suas experiências e estratégias em relação à discriminação, propiciou-se a criação de determinados tipos. Os jovens, em geral, são visualisados de uma maneira negativa em espaços públicos; eles alegam sofrer perseguições e agressões por parte de instituições como a polícia. São constrangidos frequentemente em espaços públicos por seguranças, vendedores ou mesmo por pessoas comuns, transeuntes. A análise das orientações coletivas em relação às experiências discriminatórias permite observar um tipo discriminatório, constituído por aspectos relacionados ao estilo hip-hop, pelo seu habitus corporal e sistema de gosto expresso por uma indumentária específica e identificado negativamente. Em diversas narrativas, há incidências de discriminação com base em elementos étnicos raciais contra negros e, em menor grau, contra nordestinos, que também sofrem um racialização. Além disso, há aspectos Breitner Tavares 184 relacionados à classe social de uma juventude pobre que vive num espaço urbano segregado e estigmatizado, definido como “periferia”. Grupo BR45: Experiências de discriminação e estratégias de enfrentamento do racismo: Você tem que ensinar a pessoa. Todo mundo ali é ser humano. O grupo BR45 apresenta diversos aspectos relacionados à discriminação que invariavelmente passam pelos aspectos relacionados ao estilo hip-hop e aspectos relacionados ao preconceito racial. Além disso, de maneira menos frequente, o grupo aponta outras variáveis relacionadas à discriminação que se associam a aspectos geográficos, mais precisamente em relação à Ceilândia como um espaço segregado. Em relação a isso, Bantu apresenta vários exemplos que são discutidos por seus companheiros no grupo. Diante de tais situações, os jovens apresentam sua maneira de identificar a discriminação, bem como algumas de suas estratégias, criadas no “aqui e agora”, para enfrentá-las. Y: Vocês já tiveram alguma experiência de discriminação? Todos: @(1)@. Bm: Já. E até hoje tem. Em: @(.)@ Bm: Não só pela cor, mas pela veste também. Y: Você poderia citar um caso, como foi? Bm: Óh. Altas vezes eu já fui parado no shopping. Am/Dm: @(1)@ Bm60: No shopping assim, o segurança me olhando, me seguindo, me seguindo e eu rodando o shopping todo, dando canseira nele. Aí depois eu parei e perguntei pra ele “que que foi que você tá me seguindo?” e ele “eu não tô te seguindo”, “ta sim, eu sou segurança também e eu sei quando um segurança tá desconfiado de uma pessoa”. “É pelas vestes ou pela cor?”. E também já sofri discriminação em vário lugares também até com mulher. Mulher chegava assim, eu nem cheguei a cantar a mulher e ((ela dizia)) “eu vou ficar com aquele nego nada, você é doido?” ((e Zulu responde)) “quem disse que eu te quero!?”, “é doida é?!” Até os próprios negros negros são racistas, até os próprios negros são racistas, até os próprios negros são racistas (( percutindo sobre a mesa)) é::; tem vergonha do seu cabelo, tem vergonha da cor deles, tem vergonha da mãe que é negra, tem vergonha onde mora, entendeu? Os próprios negros são racistas, então a gente tá vivendo num mundo que:::: racismo existe até dentro da casa. 60 O fragmento acima foi modificado para reduzir a dimensão do texto. Breitner Tavares 185 Y pergunta ao grupo se eles já tiveram alguma experiência de discriminação. Todos riem brevemente e, em seguida, Bantu (Bm) responde que ainda tem vivenciado tais experiências. Ele acrescenta que isso ocorre não somente por sua cor, mas por seu estilo de vida, que ele define por “suas vestes”. Em seguida, Y pergunta aos jovens se eles poderiam citar algum caso em que tais situações de discriminação ocorreram. Bantu conta que já foi abordado, “parado”, várias vezes no shopping por seguranças. Enquanto ele fala, Augusto (Am) e Duarte (Dm) riem brevemente. Bantu conta que numa dessas ocasiões, ao notar que estava sendo observado pelo segurança, decide guiá-lo para vários lugares para verificar se ele estava realmente agindo nesse intuito. Ele o despistava pelos corredores do shopping, “dava canseira nele”. Posteriormente, ele se aproxima do segurança e lhe pergunta por que o mesmo o seguia. O segurança lhe responde que não o estava seguindo. Bantu demonstra irritação com a resposta do guarda e alega que também trabalha como segurança e tinha conhecimento quando alguém estava sendo tratado como suspeito. Então ele pergunta ao segurança se ele realmente supunha que ele roubaria alguma coisa no shopping e, em seguida, lhe apresenta a carteira com dinheiro. Bantu age dessa forma para demonstrar que é um consumidor em potencial. Além disso, diz que poderia processá-lo por racismo. E lhe apontou várias pessoas que assistiam a tudo o que ocorria ali, algo que gerava um fator a mais de constrangimento. Diante da atitude de Bantu, que reagia à abordagem indireta do segurança, esse reagiu expressando uma feição assustada. Bantu insiste na pergunta: “está me seguindo pelas vestes ou pela cor?”. Em outra ocasião, Bantu vai ao supermercado próximo a sua residência na QNZ para trocar uma nota de cinquenta reais. Ele pegou a fila e notou que algumas pessoas estavam pagando suas compras com essas notas sem qualquer procedimento extra por parte da atendente do caixa, tudo transcorria bem até chegar a sua vez. Uma jovem, que estava atendendo no caixa, ao receber a nota de Bantu, passa a examiná-la erguendo a nota para cima como se quisesse verificar a possibilidade de ser uma cédula falsa. Essa atitude da atendente, segundo Bantu, tomou bastante tempo e lhe causou um grande desconforto diante dos outros consumidores presentes. Quando finalmente a caixa lhe devolveu o dinheiro trocado, Bantu reagiu da mesma forma. Ele passou a checar nota por nota, algo que, segundo ele, irritou a caixa do supermercado, que passa a reclamar de sua atitude. Ele alegou que “tem o mesmo direito de desconfiar dela” e continuou checando cédula por cédula. Os dois ainda discutem por mais alguns instantes quando Bantu decide se retirar. Bantu segue em sua narrativa sobre histórias de discriminação. Em algumas ocasiões, como festas, ele alega ter sido alvo de racismo por mulheres, mesmo sem que tenha flertado ou empregado algum outro tipo de abordagem: “eu vou ficar com aquele nego nada! Você é doido?”. Vendo-se diante de tal circunstância, ele argumenta que costuma responder que também não está disponível para alguém que tenha esse tipo de comportamento. Depois disso, Bantu repete por três vezes num tom de voz alto: “até os negros são racistas”, enquanto repetia essa frase, ele batia sua mão sobre a mesa como se quisesse dar Breitner Tavares 186 ênfase ao que estava dizendo. Depois disso, ele generaliza e afirma que os negros têm vergonha do cabelo, da própria mãe que é negra, vergonha onde moram e da família. O racismo, segundo ele, existe onde estão os negros e homossexuais, como gays e lésbicas, fato que ele julga já estar “acostumado”. Ele faz menção à polícia, afirmando que os próprios policiais negros abordam mais os negros, pois esses teriam mais características suspeitas. O branco, segundo ele, não chamaria muito a atenção, não estaria muito “flagrante”, por outro lado, o negro “deve ter alguma coisa escondida”. Bantu diz que frequentemente ouve comentários referentes ao suposto caráter suspeito do negro, através de expressões como: “aquele nego ali é bandido”. Durante a discussão, Bantu gesticula na tentativa de reconstruir o olhar preconceituoso. Ele olha de lado, de cima para baixo. Todos observam os seus comentários e gestos em silêncio e atentamente. Em seguida, Bantu conta que já foi discriminado em duas ocasiões em vans de transporte alternativo. Ele descreve que as vans são geralmente escoltadas, em certos trechos da viagem considerados de risco, por seguranças privados. Num desses trajetos, um segurança não identificado se aproxima da van que Bantu se deslocava e lhe ordena que desça imediatamente, sem qualquer argumento. Contudo, Bantu se recusou a seguir a ordem do segurança. Alegou que só se submeteria a descer se todos ali presentes fizessem o mesmo. Ele ainda disse que tinha sido considerado como suspeito por sua forma de se vestir e por ser negro, o que não justificava tal tratamento. O segurança, demonstrando estar convencido pelos argumentos de Bantu, decide solicitar a todos que descessem da van para serem revistados. Ele ainda comenta que aquela abordagem foi muito injusta e estava relacionada ao fato de ele ser negro e devido ao seu estilo hip-hop. Bantu diz já estar cansado por ser discriminado por ser negro e estar vinculado ao estilo hip-hop. Alem disso, diz ter sido discriminado por ser capoeirista e morar na Ceilândia na hora de buscar emprego. Augusto inicia um comentário sobre o sentido do preconceito social definido como algo complexo e intrigante, “cabuloso”. Contudo, logo em seguida, ele é interrompido por Elmo (Em), que inicia uma narração sobre a história de seus amigos, com certa entonação de voz irônica, como se narrasse uma história fictícia, mas de fato se tratava de uma história real relacionada a Augusto e Duarte. Durante a narrativa, todos se puseram a rir constantemente. Elmo conta: “era uma vez duas crianças pobres da QNZ que se apaixonaram por uma mesma menina”. Nesse momento, Augusto interrompeu Elmo e lhe pediu, com um sorriso constrangido, que ele não prosseguisse com a história. No entanto, Elmo ignora o pedido constrangido dos jovens. Em seguida, ele segue sua narrativa e conta que os dois meninos foram pedir para namorar com a menina, que se recusou imediatamente justificando que ela não “ficava” com “menino preto”. Dito isso, houve uma pequena pausa, seguida de um comentário que tentava explicar a atitude da menina como algo “influenciado pela sociedade”. De uma maneira sarcástica, Elmo chama a atenção de todos os presentes sobre o que seria areia saibrosa e sugere ao grupo que imagine sua brancura. Então, Elmo e Bantu riem de modo mais prolongado, a gargalhadas. Elmo pede para que os presentes imaginem os dois meninos rolando na areia saibrosa até ficarem esbranquiçados ao se cobrirem com a areia. Contudo, após realizarem esse feito, a menina alega que também não ficaria com menino sujo. Em seguida, Elmo repete Breitner Tavares 187 que racismo é “embaçado”. Bantu confirma e diz que “racismo é coisa dos fracos”. Dito isso, todos riem e comentam que isso representava outro tipo de preconceito. Augusto e Duarte, sem expressar sorriso diante da gozação dos colegas, permanecem em silêncio. Bm: Eu acho também que a pessoa esconde o preconceito assim é::: com medo de me chamar: “oh negão”, “oh moreno”. Eu apelo se me chama de moreno, “oh moreno”. “Tá com dó de por tinta? É negão mesmo”. “Ah mas negão é::::é Em: ˚É preconceito˚ preconceito” Não. Eu sou negão mesmo você só tá me chamando de negão, eu acho que preconceito é você tirar sarro com a minha cor, eu acho que preconceito é isso, pode me chamar de negão que eu não ligo não “Oh negão chega aí”. Agora tipo assim (.) “oh morenim da cor de kichut”. Aí já é preconceito”. Bantu afirma que as pessoas escondem o seu preconceito e menciona que eventualmente as pessoas lhe chamam de “moreno”, despertando uma reação negativa de sua parte. Bantu prefere ser chamado de “negão”, para ele algumas pessoas evitam utilizar a palavra “negro” por preconceito. O grupo diferencia que chamar de “negão” não representa preconceito necessariamente, o preconceito está relacionado à maneira como estes termos são empregados ou na utilização da palavra “preto” de modo depreciativo. Além disso, o grupo chama a atenção para a reação contra determinados apelidos depreciativos. Bm: Aí o cara vai descontraindo, “pô o cara é gente boa, o cara é tranquilo”, se a gente agir só no jeito de processar só de: ( ) a pessoa vai deixar de preconceito só por medo, você tem que ensinar a pessoa, todo mundo ali é ser humano Em: E tem respeito. Bm: e tem o respeito, ter respeito. Eu não troco minha cor, eu tenho orgulho de ser negro. Eu tenho orgulho da história e da cultura negra menos o candomblé, menos o candomblé porque eu não apoio isso. Dm: Já é religião né? Bm: Já é religião eu não discuto nada, eu não apoio, menos isso, mas da cultura negra eu tenho orgulho de tudo, tenho orgulho, eu queria ser africano mesmo se não vê eu falando? meu nome é africano, eu queria ser africano. “cê mora aonde?” “Angola”. Am: @angolano@ ((com sotaque como do personagem da TV)). Bm: Eu queria ser negão africano ( ). Eu até brinco com o pessoal ((que usa expressões)) “é serviço de preto”. Se preto é serviço de preto, quando faz alguma coisa errada, é serviço de preto, eu “se preto fizesse serviço errado o branco não escravizava ele naquele tempo se preto fizesse serviço errado, o branco escravizou o preto naquele tempo porque ele não dava conta de fazer o serviço, por isso ele queria uma pessoa mais forte pra fazer. Então quem faz o serviço errado: o branco Breitner Tavares 188 ou o preto?”(.) ((durante esse trecho entre aspas ele enfatizava as palavras percutindo sobre a mesa)) Em: @hum@ Bm: Eu falo isso entendeu? Então já se toca entendeu? Então o branco escravizou o preto pra fazer aquele serviço. Se fosse serviço errado não existiria escravidão do negro, porque se preto fizesse tudo errado (( )). Aí neguim já cala, já pula assim pô ((surpreso)):“o negão é instruído”. Instruído nada. Eu sou vivido e esperto entendeu? Eu fico ouvindo o que os outros tá comentando, eu assisto muito jornal, eu leio de vez em quando, mas também morro de preguiça de ler, mas eu leio de vez em quando, eu sô atencioso pras coisas que os outros fala e nisso eu fico instruído mesmo né. Aí eu já tenho as palavras na ponta da língua. ((exemplo)) “Isso é serviço de preto!” “por que você contratou meu serviço? Por que tu fez isso?” Aí o cara já se toca. Eu não sou preconceituoso porque eu só namoro menina branca. Eu namoro menina branca @porque as neguinha não qué @(1)@. As negras não me querem agora. ((Contudo)) é que tão surgindo algumas negras que falam: “êta negão, eu com um negão desse!” Entendeu, agora que tá surgindo, agora, é que eu tive mais oportunidade de namorar mulheres brancas. Aí eu “agora eu vou descontar tudin:::: que os branquelo fez. ((Eles)) pegava as negona tudin:::: agora eu vou descontar, eu vou pegar as branca também.” Eu falo tudo brincando, eu levo tudo pro lado da brincadeira, mas sem preconceito entendeu? E no meu ver, eu acho que eu sou desse jeito e:: no mais, eu acho que o Dm já sofreu preconceito ele deve tá lembrado, ele fala que só por cantar rap, mas por cantar rap tu nunca sofreu não? Dm: Já. Bm: Por andar com os negão aqui você nunca sofreu não? Em: Pelas roupas? Bm: Pelas roupas( Dm: pelas roupas eu já sofri já. Pelas roupas e por cantar rap. Na minha rua eu sofro muito por ). cantar rap(1). Bm: O pessoal pensa que tu é bandido né Dm? Dm: É por que eu não fico muito na minha rua, eu venho mais pra cá, eles acha que eu mexo com alguma ou ando fora da linha entendeu? Eu só saio e entro na minha casa, vou trabalhá. Eles acha que eu sou bandido. Mas nunca chegaram em mim pra falar. Bm: Mas comentário a gente escuta. Em relação à postura do grupo frente a ofensas raciais, Bantu entra na discussão e argumenta que tem sua própria estratégia para lidar com o racismo, que é através da piada e do gracejo, algo que ele define como “jeito pra comédia”. Costuma responder às pessoas que lhe chamam de “macaco” dizendo que os mesmos também o são, pois há macacos de coloração branca, além disso, ele menciona que nesses casos todos seriam “macacos”, já que o ser humano é imagem e semelhança de Deus, um não poderia ser macaco sem que todos também fossem da mesma maneira. Ele conclui seu argumento de fundo teológico, Breitner Tavares 189 num tom de riso sarcástico. Bantu defende que essa estratégia descontrai o autor do gesto racista, que chegaria à conclusão de que ele é uma “boa pessoa” e que o comportamento racista não se justifica. Em relação à possibilidade de processar alguém pelo crime de racismo, Bantu alega que a ação punitiva do processo por racismo irá eliminar o preconceito apenas pelo “medo”, apesar de ele não descartar essa possibilidade, argumenta que o mais relevante é ensinar a pessoa preconceituosa que “todo mundo ali é ser humano”. Elmo comenta que é importante ter respeito. Enquanto Bantu apresenta sua estratégia para enfrentar as piadas racistas, os demais membros do grupo o observam em silêncio e com uma expressão mais séria. O grupo manifesta sentir orgulho da história e cultura negra apesar de não demonstrar conhecimento da realidade atual do continente africano, contudo, os jovens manifestaram que o candomblé seria a única exceção, pois, de fato, não o apoiam e não gostariam tampouco de discuti-lo. Bantu, em relação a seu interesse pela cultura africana, disse que gostaria de ser africano, especificamente de Angola. Augusto em relação ao comentário de Bantu imita o sotaque do personagem Angolano61, em função disso, todos no grupo riem, inclusive Bantu. De fato, durante o grupo de discussão, não se observou algo que remetesse os comentários do grupo para além de estereótipos, como vistos na mídia, sobre a realidade africana, apesar da afirmação anterior dos jovens sobre o orgulho da história africana. Em relação ao enfrentamento de piadas racistas, Bantu demonstra suas estratégias. Ele age basicamente criando inversões para expressões que normalmente são empregadas de modo preconceituoso, a exemplo do sentido da expressão “serviço de preto”. Para Bantu, “serviço de preto” é melhor do que “serviço de branco”. Para isso, ele defende uma hipótese para a explicação da escravidão no Período Colonial, afirmando que os brancos, por sua incapacidade, teriam estabelecido um sistema de trabalho escravo. Nesse momento, Elmo se põe a rir, mas sem fazer comentários. Para Bantu, independentemente das hipóteses históricas mais correntes, o que de fato é relevante é o impacto que esse tipo de assertiva vai gerar naqueles que são seus interlocutores, que, segundo ele, lhe chamam de “o negão instruído”. Em relação a esta alcunha, ele desconversa e diz que de fato não é instruído, pois não é afeito à leitura, mas se autodenomina alguém “vivido”, aquele que presta atenção nos comentários que estão sendo ditos pelas pessoas, além disso, assiste a vários programas na TV. Ainda sobre o tema relacionamento, Bantu não se considera preconceituoso por apenas namorar meninas brancas. Ele alega expressando riso que o problema é que as meninas negras, “as neguinha”, não demonstram interesse por ele. Por outro lado, ele admite que atualmente tenham surgido algumas negras interessadas em relacionamento, mas ele admite que teve “mais oportunidades” de namorar meninas brancas. Ele alega, num tom irônico, que seu relacionamento com meninas brancas trata de uma revanche contra a dominação dos homens brancos sobre as mulheres negras. Bantu conclui que leva tudo na brincadeira, mas, segundo ele, evitando ser preconceituoso. 61 Personagem interpretado pelo ator Romeu Evaristo do programa de humor “Zorra Total”, da Rede Globo de Televisão, que vai ao ar aos sábados à noite. Breitner Tavares 190 Finalmente, Bantu, juntamente com Elmo, se volta para Duarte, o único integrante a se considerar branco, filho de nordestinos, e lhe pergunta se ele já havia sofrido algum preconceito por seu estilo, materializado nas roupas e por andar com negros. Duarte de forma discreta confirma ter sido discriminado por suas roupas e por cantar rap, mas não faz qualquer menção ao fato de ser membro de um grupo onde todos são negros. Bantu ainda lhe pergunta se ele é associado à imagem de bandido. Duarte confirma e acrescenta que não passa muito tempo em sua rua, que fica no Setor X-Norte, ele prefere estar na companhia de Bantu e dos outros membros do BR45 na QNZ. Portanto, ele acredita que seus vizinhos pensem que ele esteja envolvido em atividades “fora da linha”, mas nunca se manifestaram diretamente. Como mencionado acima, Bantu alega ter sofrido “todo tipo de discriminação”, isso envolve o fato de ser um homem negro, rapper, vestido no estilo hip-hop, com seus adereços, como bonés, calças folgadas e correntes de prata. Alem disso Bantu alega que sofre discriminação por ser capoeirista e residir no Setor QNZ em Ceilândia. Diante da aparente impessoalidade de serviços, como o de segurança de shopping center ou de transporte público, ou da polícia, ocorre a construção de um perfil do suspeito em potencial ou do ente indesejável em determinados espaços de socialização. Os vários exemplos de discriminação apresentados em série pelos jovens do grupo BR45 esboçam toda uma complexidade de situações que estruturam um habitus do grupo. A discriminação, nesse caso, se torna um componente na materialização de um estilo hip-hop que cria suas próprias estratégias de enfrentamento de modo elaborado e dinâmico, com uma série de recursos criativos associados à produção estética do corpo na forma das “vestes” ou na própria forma de conduzir um diálogo em que ocorra um comentário racista, em que os jovens vão recorrer à ironia, “ao jeito comédia”, como meio de persuasão. No campo das relações afetivas, apesar de os jovens negros eventualmente sofrerem preconceito por parte de mulheres brancas, admite-se que há uma certa preferência por elas. Além disso, os jovens afirmam que encontram dificuldade para se relacionarem com mulheres negras, as quais, segundo eles, não demonstram tanto interesse em estabelecer um relacionamento como ocorre mais frequentemente com as brancas. Nesse caso, estar com as mulheres brancas, ainda que essas os rejeitem, remete ao desejo latente de apropriação do que é branco, ou seja, se tornar “branco”, reiterando o que Fanon definiu como “o mito sexual da busca pela carne branca” (FANON, 2008, p. 82). Nesse sentido, discute-se a relação do homem negro e a mulher branca, que se relaciona à idéia do racismo como algo assimilado como inconscientemente, “epidérmico”, que imprime o desejo pela brancura por parte do homem negro. Ele busca numa atitude agressiva a compensação da situação de abandono e desprezo pelo fato de ser negro. Essa situação, de fato, ocorre como resultado de um sistema estruturado com múltiplas hierarquias na relação do indivíduo com o seu contexto de socialização. Na maioria dos casos, a ironia e o humor são utilizados como estratégias de inversão da negatividade em relação aos tipos de discriminação enfrentados pelos jovens. Associado a isso, há elementos de positividade no sentido de “ser negro” e ser rapper, que se manifestam nas letras do grupo contra o racismo e a violência praticada contra o jovem em localidades como a QNZ. Durante os Breitner Tavares 191 depoimentos, o grupo manifestou o interesse e a apreciação pela cultura africana, com uma ressalva para aspectos relacionados à sua dimensão religiosa. Em relação a isso, em outros momentos da discussão, os membros do grupo assumiram um discurso em que associavam aspectos de uma ética religiosa cristã ao estilo hip-hop. Grupo Revolução MCs Andar fragante, estar de boa e enfrentar a violência financiada pelo governo Experiência discriminatória e interpretação jovem do sentido de violência Y lança uma pergunta ao grupo em relação a prováveis experiências com a polícia. De maneira geral, o grupo admite que já se envolveu em eventuais problemas com a polícia na região onde moram e admitem que foram alvo de ações discriminatórias em função do estilo que assumiram. Além disso, o grupo elabora um discurso em relação à discriminação e ao racismo. Y: Eh beleza, então vamos pra outro tópico, com relação à questão da violência e da polícia, vocês já tiveram algum problema com a polícia? Bm: Ah véi, num vô mentir não. Já, já tive uns problemas, já invadiram minha casa revirando meus quarto lá já, já fui pego aí na rua vacilando pra delega já umas duas vezes, mas nada mais grave. Y: Vacilando como? Fazendo correria? Bm: Não. Sempre com::: sempre com droga, porque eu já fiz altos corre já. Eu sempre fui (( )) eu já fui conhecendo a malandragem muito cedo, eu fazia uns corre, hoje não, hoje eu tô mais de boa, tô trabalhando, ganhando meu dinheiro honestamente, honestamente não porque ainda vendo minhas paradas do Paraguai lá, óculos, relógio do Paraguai. Mas é isso aí, já tive meus probleminhas aí, mas nada tão grave pra como ser preso e ficar na cadeia, nunca fui encarcerado. Quanto a isso, Blink é o primeiro a se manifestar seguido de Amaro. Ele admite que já passou por várias situações definidas como “problemas”. Ele menciona que já teve sua casa invadida por policiais e que já havia sido detido em delegacia duas vezes por estar na rua portando drogas, atitude que ele considera ingênua e define como estar “de vacilo”. Em função dessa resposta, Y pergunta sobre o significado de “vacilo” e pergunta se ele já esteve envolvido em “correria” (pequenos delitos). Blink responde enfaticamente que não foi detido por estar envolvido em “correria”, mas alegou que conheceu a malandragem muito cedo e que praticava pequenos delitos, “fazia uns corre”. Contudo, ele afirma que atualmente não está envolvido em qualquer atividade desse tipo, ele “está de boa”. Ele menciona que trabalha e ganha seu dinheiro honestamente, apesar de reconhecer que vende produtos importados, como óculos e relógios do Paraguai. Ele diz nunca ter sido encarcerado. Breitner Tavares 192 Logo em seguida, Amaro inicia um discurso sobre a violência e a miséria que, segundo ele, ocorre em parte em função do próprio despreparo da polícia, que é levada a desrespeitar o cidadão e a juventude. Os policiais sofrem uma “lavagem cerebral” para se tornarem “conformados”. Ele considera que os policiais, por utilizarem uma farda considerada “suja” e “imunda”, deteriam uma autoridade que lhe daria o direito de agredir pessoas. Esse fato, segundo Amaro, não faz parte das atribuições de um policial. Ele argumenta que não há referência na Constituição que permita que um policial possa bater numa pessoa. Enquanto Amaro apresenta seus argumentos, Blink o observa com expressão de seriedade. Concluída sua reflexão sobre a violência policial, Amaro inicia a narrativa de uma experiência na qual ele foi agredido por policiais quando estava voltando para casa do supermercado. Ele conta que quando apanhou dos policiais em frente a uma escola estava portando apenas uma sacola com verduras. Ao dizer isso, Amaro faz uma breve pausa de dois segundos, quando Y pergunta como foi a abordagem da polícia. Demonstrando estar um pouco tenso, Amaro conta que durante o trajeto de volta para casa encontrou alguns amigos, “manos”. Enquanto ele os cumprimentava, uma viatura do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar (BOPE) se aproximou e “enquadrou” todo mundo. No entanto, Amaro supôs que pelo fato de ele estar só de passagem e não estar trajado como seus amigos, com corrente de prata e bermudão, ou seja, dentro do estilo do “fragrante”, ele continuou seu caminho com sua aparência “de qualquer outro (cidadão)”. Contudo, mesmo assim ele foi abordado por um dos policiais que lhe chamou. Ele conta que permitiria ao policial realizar a revista, “fazer o trabalho dele”, porém, durante a abordagem, Amaro conta que tentou se identificar, fato que teria irritado o policial, que não teria gostado de sua atitude, terminando por agredi-lo. Amaro demonstra irritação com sua própria história, mas pondera sobre o incidente com o policial e diz que está “tudo bem” e que “isso passou”. Ele inicia, em seguida, sua análise quanto à sua compreensão de “justiça social”. Ele diz que as leis que regem o homem já existem desde o começo do mundo, contudo, ele não as aceita no que se refere a ser “protegido pela polícia”. Ele alega que quando estava em perigo, envolvido em atritos com outros jovens que queriam matá-lo, a polícia não se fez presente. Amaro define a polícia como a “violência financiada pelo governo”. Posteriormente, Amaro conta que ia se identificar ao policial na abordagem em frente à escola, mas antes que o fizesse foi agredido e xingado pelo policial. Ele considera que, num grupo, nem sempre todos estão fazendo coisas erradas, mas que eventualmente ocorre esse tipo de generalização, que causa certo desequilíbrio nos indivíduos, que “abala o psicológico do indivíduo”. Segundo ele, os policiais, “gambés”, independentemente da inocência ou culpa, querem prejudicar a pessoa abordada. Amaro diz que a polícia age por ter “raiva” do jovem, isso se expressa não simplesmente pelas palavras que os policias podem ocasionalmente dizer, mas pelos gestos de suas armas, que “forçam o silêncio” pelo medo de ser atingido por um disparo efetuado por um impulso emocional ou por mera distração. Amaro considera que isso é inaceitável, já que ele, na condição de cidadão, é responsável pelo pagamento desses policiais. Breitner Tavares 193 Y pergunta sobre o significado de se andar “fragante”. Amaro responde de maneira vaga em que isso se refere a andar “com as roupas que se possui”. Contudo, ele descreve a combinação de certos acessórios como usar touca, chinelos, independentemente do clima, mesmo que haja um “solzão de rachar”. Ao se trajar dessa forma Amaro assume que não há correspondência com o estilo correspondente ao playboy. Nesse caso, se ele for tratado com “indiferença” numa loja de playboys, ele simplesmente se retira sem comprar qualquer coisa. Ele menciona que vai a um shopping em Taguatinga, mas isso não implica a obrigação de se vestir “bonitinho”, porque seu objetivo não é procurar alguém ou um emprego, mas simplesmente fazer compras. Y: O que é andar flagrante? Am: Andar flagrante é você olhar no espelho com as roupas que você tem e falar: “é isso daqui o que eu quero ó, moro?”, você viu um solzão de rachar e eu eu vou lá loja desse jeito aqui ((aponta para a toca na cabeça)) óh na loja de playboy, desse jeito aqui ((ele aponta para sua própria roupa)), e se ele me tratasse indiferença eu ia saber, ((Eu)) ia simplesmente virar as costa e não ia comprar lá. Eu fui de chicão ((chinelo)) porque é as roupas do meu cotidiano normal. Não porque eu vou pra Taguatinga que eu vou todo bonitinho, eu não vou atrás de ninguém lá, eu não vou atrás de emprego, eu fui comprar. Roupa flagrante é você portar uma corrente de prata morô, e ter amor a ela, ter sua toca, umas bermuda louca, porque é o seguinte, como é que é roupa de mala se a roupa que a gente compra é caríssima, que nem os playboy compra, como é que nos é mala e gente quer andar do nosso jeito, bem vestido, bem trajado, porque muitos vê uma bermuda assim como roupa de mala, mas uma roupa de mala dá pra comprar, dá pra fazer quase um guarda-roupa, então se gente usa uma corrente ou touca ou uma jaqueta é porque a gente pode financiar nosso luxo com nosso ganho pessoal, nosso jeito de andar, porque se a gente é mala, andar flagrante é até o jeito que você se expressa, e aí mano tal. Muitas vezes se tiver dois gambé ali, um playboy ali vendo eu conversando com o BM Bm: Kit peba é o que eles falam, kit peba. Am: Não vai saber nada, a gente vai tá xingando eles e eles não vai tá sabendo porque nois tem nosso jeito de se comunicar. Amaro descreve o estilo “flagrante” ou “fragante” como o uso em conjunto de certos acessórios, como corrente de prata, touca e bermuda. Roupas, segundo ele, de que se deve ter orgulho, “amor por elas”. Amaro ainda questiona o sentido da roupa de malandro, definida como “roupa de mala”. Ele questiona como roupas de valor elevado, “que nem playboy”, são consideradas como de “mala”, pelo fato de serem reorganizadas numa outra perspectiva de estilo, segundo Amaro, “bem trajado”. Amaro exemplifica que uma bermuda de “mala” pode ter o valor de várias peças de roupa, “um guarda-roupa”. Ele conclui que se eles estiverem utilizando uma touca, uma jaqueta e corrente, produtos considerados de luxo, isso é decorrente do jeito deles se portarem, “andarem”. Andar “mala” ou “fragante” corresponde simplesmente a sua maneira de se expressar. Amaro ainda elabora outro exemplo em que caso eles sejam Breitner Tavares 194 vistos por policiais ou playboys os mesmos não saberão o que eles estarão conversando porque os jovens que usam o estilo ‘fragante” têm sua maneira peculiar de vestir e se comunicar. Blink, nesse momento, acrescenta que a polícia ou os playboys dirão que eles estão vestindo um “kit peba”, que representa a interpretação pejorativa da polícia para o jovem que se veste flagrante. O estilo hip-hop “fragrante” assumido pelos jovens do grupo é também objeto de discussão. Estar “fragrante” para o grupo atende ao paradoxo de utilizar roupas que normalmente possuem um alto custo, como jóias de prata, tais como anéis, medalhões, pulseiras, associadas a outros itens como jaquetas de couro, camisas e bermudas, além de tênis de grifes famosas, como Adidas, Nike e Mizuno. Essas peças de roupas, às vezes, luxuosas são encontradas no shoppping, que é definido como o lugar de playboys. Contudo, a combinação inusitada estabelecida por esses jovens configura um estilo próprio que põe em xeque o sentido inicial para aqueles itens. Essa bricolage articulada dentro de um sistema de habitus corporal é identificada como um “estilo mala” em referência a “malandro”. Naturalmente, aqui há uma descrição de um ideal de consumo, que não é de fato acessível para jovens de camadas sociais pobres de um modo geral. Aliás, é essa mesma inacessibilidade que pode ser apresentada como uma das hipóteses que alimentam a indústria da pirataria de bens simbólicos de consumo que se alastra em escala global. Os jovens, ao se trajarem de modo “fragante”, são discriminados por serem frequentemente associados a bandidos ou delinquentes. Em algumas dessas ocasiões, eles se utilizam de estratégias de enfrentamento, como se recusar a efetuar uma compra numa loja que agir de maneira discriminatória com eles. Blink retoma o comentário de Amaro sobre a violência policial e reafirma que a polícia é a “violência financiada pelo governo”. Ele exemplifica que já foi abordado por policiais quando portava drogas, “uma pedra”. Segundo ele, os policiais apreenderam a droga sem tê-lo prendido ou registrado ocorrência, além disso, ele conta que o mesmo ocorreu com outros de seus amigos em relação a armas. Os policiais os abordaram e apreenderam as armas sem que os mesmos fossem presos. Nessas ações, a polícia agride os jovens e, às vezes, chegam até mesmo a matá-los. Amaro segue com seus exemplos sobre estilo “fragante” e a relação de oposição que de oposição que este estabelece em relação ao estilo “playboy”. Para isso, Amaro define a categoria “playboy” a partir dos jovens como os que assassinaram o índio Galdino62, que teriam ficado impunes por pertencerem a uma grupo social de elite. Em contraposição a isso, ele alega que é discriminado por seu estilo “fragante” e que pessoas pobres em geral são presas por pequenos crimes, como o “roubo de uma margarina”, enquanto pessoas bem trajadas cometem crimes muito mais sérios e não sofrem qualquer punição. Ele comenta que gostaria de produzir um relatório e levar ao presidente, mas pondera e diz que “o mesmo não atende ninguém”. Ele conclui que muitas famílias têm como alternativa se envolver no tráfico de drogas, pois esse seria um jeito fácil de se ganhar dinheiro, argumento que é desenvolvido um pouco mais pelo rapper. 62 O comentário está relacionado ao assassinato de Galdino de Jesus dos Santos, índio da tribo Pataxó, cometido por jovens de classe média-alta, em 1997, em Brasília. Breitner Tavares 195 Os jovens do grupo, em geral, admitem ter tido um envolvimento com atividades ilícitas, como o uso de drogas, e também ter um contato íntimo com um segmento social que eles denominam como “malandragem”, entendida como o banditismo propriamente dito. Entretanto, esses jovens defendem que hoje a situação é diferente, que estão trabalhando e não estão envolvidos em qualquer tipo de contravenção. Alem disso, eles implementam um discurso antipolicial ao apresentarem seus depoimentos sobre invasão de privacidade ou agressão policial durante abordagens nas ruas. Segundo o próprio grupo, a polícia age violentamente conforme uma compreensão estereotipada da juventude em geral e especificamente daquela identificada com o estilo hip-hop, nesse caso, em relação à variante definida pelo grupo como “fragrante”, também definida negativamente pela polícia como “peba”. Para o grupo, o estilo é o principal indicativo da polícia para a abordagem policial violenta, apesar de se admitir que mesmo se vestindo como “qualquer um” a condição de jovem pode suscitar a agressão. Essas abordagens normalmente ocorrem próximas às residências dos jovens, nas esquinas ou próximas a locais públicos como escolas. Ainda sobre a violência revelada pelos jovens nas abordagens policiais, eles alegam que os policiais promovem desde ofensas através de xingamentos até mesmo outros graus de agressão física. Segundo o grupo, o tipo de violência cometida pela polícia dependerá das condições nas quais os jovens forem encontrados. Eles exemplificam que em situações em que jovens são apanhados em algum ato considerado como ilegal, como o porte de drogas e/ou armas, a polícia eventualmente apreende as drogas e as armas, os agride fisicamente e posteriormente os liberta em áreas desertas próximas à cidade. Em casos extremos, a polícia pode chegar, inclusive, a realizar a execução sumária. Todas essas ações ocorreriam sem que houvesse qualquer registro de ocorrência policial numa delegacia de polícia. O grupo se julga consciente de seus direitos que, em alguns momentos, são articulados formalmente, ao se recorrer à Constituição. Em outros casos, há uma elaboração de cunho intersubjetivo em que a juventude se “recusa a ser protegida” no sentido de aceitação de uma dominação burocrática, instituída por uma “violência financiada pelo governo”, materializada na polícia. O grupo reflete sobre o desejo de reagir contra a violência, buscando, organizando hipoteticamente um movimento reivindicatório ao se “buscar o Presidente da República”. O grupo apesar de negar qualquer envolvimento com atividades, como o tráfico de drogas, não condena aquelas famílias que se deixam levar pelo que é aparentemente mais “fácil” e se envolve com tal atividade. Breitner Tavares 196 Orgulho de ser negro sendo branco:Interpretação sobre sentido de raça e inclusão social Y apresenta uma pergunta sobre o racismo. Blink considera que racismo para eles não importa, pois se referir às outras pessoas pela cor é normal e, em relação a isso, exemplifica: “ei neguim!”, “ei negão!”, “ei macalé!”. Contudo, Amaro pondera e menciona que esses termos estão relacionados a uma maneira “masculina” de tratamento. Ele diz que sentiria orgulho de ser negro caso ele o fosse. Ele Breitner Tavares 197 considera que o negro representa uma raça “predominante”, inclusive por sua “força física”, mas que tal povo sofreu muito durante a escravidão. Por outro lado, ele acha um absurdo a implantação de um programa de cotas para negros na Universidade de Brasília (UnB), mas admite que isso é algo que gera um impacto social, o qual foi resultante da mobilização dos negros, o que ele define como “um choque na sociedade”, a qual trata as pessoas discriminatoriamente, ou seja, “não tratam a pessoa normal”. Amaro ainda acrescenta que se eles não fossem tratados com respeito, iriam reivindicar por seus direitos, iriam “cobrar”. Y: Com relação a isso, a essa discriminação e tudo, como é que vocês veem essa questão do racismo? Bm: Racismo aqui nem (( )) aqui pra nós aqui, o tipo não importa é normal, tem um neguim ali, a gente chama: “ei neguim, ei negão, ei neguim, ei macalé sei lá”, mas é relacionado ao cotidiano normal se referindo ao masculino em relação Em: ao racismo é o seguinte, muitos acham que os negro é inferior, se eu fosse negro véi, eu teria orgulho morô, porque a raça predominante pra mim, no meu modo de vista eu sei que parece um absurdo, eu acho que é o negro, não só pelo que ele são, pelo que ele representa na cor, até na cor é forte, pelo físico, eu tô falando por que sofrero muito depois da libertação, ainda vivem sendo perseguido, nas senzalas, nas fazendas, nas senzalas, aquelas cadeias morô? Em relação ao nível de cota da UnB, eu acho até um absurdo morô? Claro que é um choque assim pra sociedade, que é pra se ligar, porque se ele não der, como é caso de tratar a pessoa normal, eu vou falar até nós se ele não tratar nós normal a gente vai cobrar não é, mas eu acho um jeito do negro se inferiorizar porque não era pra existir aquilo, era pra ser igual morô? Não era pra ter tantas cotas, tantas vagas não, a fita era chegar lá, fazer a cara e cair pra dentro, não era ter que ter cota pra negro, morô? Não era pra tá se referindo, aí tá escrito lá no bagúi: ((Constituição)) que todo mundo é igual porque esse negócio de cota está contrariando até a própria Constituição, morô, eu acho que já vai sair uma nova emenda, já né? Vai sair uma nova emenda, tudo bem hoje é bom, mas no começo de tudo já era difícil pra ser igual, não era pra ter isso né. Teve um tempo aí em São Paulo que a maioria dos negros aí não se assumia, até que chegou Racionais, hoje todo mundo bate no peito ... aí já é preconceito, nós usar 100% negro, não é preconceito, a gente defende uma bandeira, uma tese, uma lógica, isso pra mim não é preconceito, diferente de um branco usando 100% branco, isso já imitação e além de ser imitação, isso já é preconceito. Nós usarmos uma camiseta 100% negro não é racismo porque a gente defende uma bandeira, tese, uma lógica. Mais adiante, Amaro reforça sua posição anterior, contrária aos programas de cotas, e diz que as cotas são um meio de “inferiorizar os negros”, porque, segundo ele, todos deveriam ter as mesmas condições para se submeterem às provas e serem admitidos na universidade, ação definida como “cair pra dentro”. Amaro crê que as cotas contrariam o princípio de igualdade determinado constitucionalmente. Breitner Tavares 198 Ele considera que muitas pessoas não se assumiam como negras, contudo, posteriormente, sob a influência do rap, muitos negros passaram a se identificar como tal, para isso ele cita a influência do grupo Racionais MC. Além disso, revela que a utilização de camisetas com a frase “100% negro” representa um movimento de afirmação que não faria sentido numa situação inversa como, por exemplo, uma camiseta “100% branco”, o que, além de uma imitação, seria uma ação preconceituosa. Em vista da resposta anterior sobre a mobilização e o autorreconhecimento da população negra através do rap, Y pergunta ao grupo que atitude deveria ser tomada pelos negros em relação ao preconceito. Amaro diz que mandaria “se fuder”, mas pondera e considera que se deve agir com tranquilidade, “esfriar a cabeça”. Ele acredita que se um negro se envolver numa situação de racismo, ele deve buscar a justiça, pois todos são iguais e a raça negra tem que se orgulhar do seu valor. Ele exemplifica que as mulatas e as morenas são lindas, contudo, ele revisa o uso do termo “mulata”, o qual, segundo ele, está incorreto, na verdade deve-se utilizar a palavra “negra”. Amaro conclui que nossa miscigenação é imensa e questiona quem não tem sangue de negro nas veias. Em seguida, Amaro e Blink dizem sorrindo: “eu sou negão”. Amaro ainda considera que não existe “nenhum negro legítimo”, dada a miscigenação. Dito isso, Y pergunta ao grupo se existiriam raças como a negra e a branca, ou se haveria simplesmente uma miscigenação. Amaro argumenta que raça existe, mas que pessoas do mesmo grupo étnico se discriminam mutuamente. Ele exemplifica que os nordestinos construíram Brasília, contudo, os seus filhos nascidos aqui nutrem preconceitos quanto a outros nordestinos que eventualmente migram para a capital, mesmo sendo “iguais”. Y: Como deveria ser a atitude dos negros em relação ao preconceito? Am: É o seguinte, na minha opinião eu mandaria ir se fuder, mais já que é uma opinião minha, e do que eu defendo é simplesmente esfriar a cabeça. Porque se um branquelo ou qualquer um outro que fala eu sou negro, não vai tá defendendo, e me chamar de macaco, ou de qualquer outra coisa o negócio é chegar na justiça, por que ele já está falando com preconceito, acho que... agiria conforme as regras, conforme age as leis do homem morô? Agora em relação do meu ponto de vista aí, ta lá cara todo mundo é igual, ninguém é melhor que que eu, só porque tem a pele branca, morô? E a raça negra tem que ter orgulho véi, é uma coisa linda véi negro, as mulatas, as morenas são lindas, até isso se refere como mulatas não é mulatas, é negras, e a nossa miscigenação é imensa, quem não tem sangue de negro nas veia, quem?, @nóis é negão@. Bm: @Eu sou negão@, Y: Vocês acham que acontece, que a gente não existe raça, só existe uma mistura é isso? Am: Não, não, existe a raça sim, só que eu tô falando tipo o nordestino, morô, o Stink é filho de nordestino, Brasília foi construída por nordestino e hoje você vê que quando vem alguém pra cá, do interior pra cá , muitos discrimina, quem não tem o sangue na veia, sangue de nordestino, isso não existe cara, além de aos olhos de Deus, somos todos iguais. Breitner Tavares 199 Em relação à questão racial, o grupo não reconhece como prática racista tratar pessoas negras por meio de apelidos relacionados à idéia de raça. Para seus integrantes, agir dessa maneira é algo que faz parte do habitus masculino. O grupo se posiciona contrário a um programa de cotas para estudantes negros na Universidade de Brasília, pois isso seria contrário ao sentido de igualdade. Isso revelaria uma situação de inferioridade social, a qual prejudicaria a imagem dos negros. Em contrapartida, o grupo reconhece que as cotas são resultado da mobilização social dos negros, que historicamente vêm sofrendo com a discriminação, e que isso seria como um “choque na sociedade”. De fato, o grupo manifesta simultaneamente certa admiração pelo ser negro, que é algo que se relaciona implicitamente com a cultura hip-hop, a qual é associada a um bem cultural produzido por artistas negros. Contudo, o grupo não reconhece um programa de ação afirmativa como uma forma de promoção de igualdade social. Ainda sobre a importância da mobilização social da população negra, o grupo considera que o rap teve uma contribuição importante no sentido da construção de uma auto estima positiva do ser “100% negro”. Além disso, observa a importância de reação ao racismo através da busca pela justiça sem violência. Em relação a uma definição mais precisa sobre a categoria “raça”, o grupo reúne aspectos pautados em interpretações da biologia, “nenhum negro é legítimo”, “quem não tem sangue de negro?” e “eu também sou negão” (mesmo quando se identificam como brancos). Esse seria o aspecto definido da tese de que “todos são iguais”. Por outro lado, o grupo reconhece a carga política em torno da categoria “raça”, ao admitir que o termo “mulata” esteja relacionado a uma carga preconceituosa e que o correto seria usar o termo “negra”. Breitner Tavares 200 9.2 Configuração urbana e estratégias de enfrentamento da discriminação Grupos Rap Comando e Resistência Periférica “Racismo a gente não pode aceitar não, racista tem que pagar, eu não baixo a cabeça não.” Grupo Rap Comando Y lança uma questão sobre as experiências do grupo em relação à violência policial. Liba argumenta que “nunca botou um cigarro na boca e que nunca tinha cheirado”, nunca havia sofrido tal violência, e que tampouco havia sido preso, matado ou roubado. Contudo, ele confirma que não sabe o futuro, “ninguém sabe o dia de amanhã”, que é possível se envolver num delito ou crime por vingança, “vingação”. Ele sugere uma situação hipotética – o assassinato de um irmão por um policial – e pergunta aos demais se eles deixariam tal crime impune, “deixar baixo”. Todos permanecem em silêncio por alguns instantes. Am: Graças a Deus desde que eu me entendo por gente eu nunca fui preso, nunca botei um cigarro na boca, nunca cheirei, nunca matei, nunca roubei, mas tipo aquela, ninguém sabe o dia de amanhã. Eu não vou falar que eu não vou fazer isso, que eu não vou cair em vingação porque vamos se dizer um PM por engano mata um irmão seu, o que que você vai fazer, vai deixar baixo só porque ele é PM? Ninguém sabe o dia de amanhã. Ninguém sabe o dia de amanhã mas graças a Deus eu nunca tive problema com polícia não. Bf: Mas e levar baculejo por ter um visu carregado por ser negro. Rm: pela roupa também a maioria das vezes. Bf: Nunca foi discriminado por esses aspectos? Am: Sobre isso, eu acho até engraçado. De uns três anos pra cá eu nunca levei bacu, parece que os PM sabe quem eu sou, sabe quem eu sou já chegaram assim eu tô (( em grupo )) ((todo mundo na parede)) aí chega o PM e esbarra ne mim e fala ((não, esse aí não, ele tá de boa)) porque conhece né, mas já tem uns três anos que eu não levo bacu. Breitner Tavares 201 Diante dessa resposta, Bianca (Bf) lhe pergunta se ele nunca havia sido revistado por policiais, “levado baculejo”, em função de seu estilo, “visu carregado”, ou de ser negro. Rubão (Rm) intervém e diz que isso ocorria na maioria das vezes em função das roupas. Contudo, a garota insiste na pergunta. Liba sorri e diz achar esse tipo de situação “engraçada”. Ele argumenta que nos últimos três anos não foi revistado. Segundo ele, isso ocorre porque talvez os policiais já o conheçam no Setor QNZ. Contudo, ele admite que já foi abordado quando estava em grupo. Nessa ocasião, um policial o teria liberado da revista, “não, esse aí tá de boa”. Carlos (Cm) complementa o argumento de Liba e afirma que a polícia mudou seu comportamento na região. Ele menciona que anteriormente a polícia abordava mais frequentemente os jovens que usavam o estilo de calça folgada, entretanto, já reconhecem que aqueles que estão envolvidos em crimes, “o cara que anda com alguma coisa”, não se identificam com o estilo hip-hop. Ele exemplifica que, se ele estivesse armado, não usaria o estilo, pois isso atrairia facilmente a atenção da polícia, “na rua rapidim eles me acham”. Liba completa: “é entregar para o ladrão”. Carlos retoma e diz que andar armado dessa forma é denunciar-se à polícia, “entregar de graça”, pois alguém que porta uma arma não anda daquela maneira. Finalmente, ele conclui que nunca foi parado ao fazer uso do estilo, “eu nunca fui parado assim fragante não”. Liba comenta que se fosse um traficante não seria encontrado pela polícia. Ele alega que não se importaria de fazer uso do estilo “playboy” de “terno e gravata”, “filhinho de papai”. Por outro lado, ele exemplifica que ao frequentar um shopping é normalmente seguido por seguranças que, segundo ele, insistem num tipo de discriminação, “ficar separando a gente”. Liba alega que, enquanto isso ocorre, pessoas que não despertam a atenção dos guardas “de terno e gravata”, ocasionalmente, cometem furtos. Segundo ele, as provas ficam evidentes ao se checar no sistema de monitoramento do shopping. Entretanto, não há interesse da mídia em mostrar esse tipo de fato. Finalmente, ele diz seu nome e pergunta, como se quisesse perguntar a um guarda do shopping: “você sabe quem eu sou?” Liba numa tentativa de se dissociar ao estilo hip hop da imagem negativa de suspeito idealiza um criminoso vestido de terno e gravata que pode passar despercebido pela segurança de um shopping e cometer roubos. No momento em que ele apresenta seu exemplo hipotético de criminoso, Liba muda seu semblante, iniciado com um tom de brincadeira e ironia, que despertou o riso dos membros do grupo, variando para uma postura mais séria, emocionada, gesticulando mais freneticamente e alterando o tom de voz, o que não despertou mais risos no grupo. Liba conclui de forma direta e faz uma pequena pausa em que todos acompanham com um olhar mais cabisbaixo e sem comentários sobre o exemplo em questão. Em seguida, Carlos comenta que há alguns policiais que incomodam, “enchem o saco”. Galego complementa que só quem pode julgar alguém é Deus. Diante disso, Bruna questiona Carlos sobre sua queixa em relação à polícia. Carlos demonstra certa surpresa por ser questionado. A garota lhe faz a pergunta novamente. Carlos, num tom meio envergonhado, pergunta aos demais como a polícia costuma Breitner Tavares 202 se dirigir aos jovens. O grupo responde, num tom de riso e uníssono, com a palavra “peba63”. Carlos também sorri e passa a contar que certa vez foi abordado por policiais que lhe chamaram de “peba” e lhe disseram que mesmo ele sendo tão pequeno já andava daquele jeito (alusão ao estilo de roupas hip-hop). Carlos disse que não se importa em ser xingado por policiais e fica calado, porque, segundo ele, “pebas” são os próprios policiais que o xingam. Rubão confirma que policiais gostam de xingar os jovens, Carlos segue apresentando outros exemplos de ofensas proferidas por policiais. Cm: Pra dizer a verdade, tem us PM que enche o saco. Gm: Só quem julga é Deus, só ele sabe no que você está envolvido. Bf: Mas como assim ele enche o saco? Por que você disse que enche o saco? Cm: Ah? Bf: Por que você ache que ele enche o saco? Cm: @Ah@. Como é que eles me chama mesmo? Todos @peba@. Cm: Uma vez, eu tava andando assim aí eles me chamaram de:;:; ((você desse tamãezim já anda desse jeito, não é seu peba?)) já chamaram de peba já, mas os verdadeiros pebas são eles mesmo, mas tão me chamando eu não to nem aí pode falar quer xingar, xinga ((você desse tamãezim já quer ser maloqueiro, seu safado, que não sei o que )) eu fico calado. Rm: os cara gosta de xingar o cara. Cm: seu peba, seu safado quer ser marginal? Não sei o que. Eu deixo falar, eu sei que eu não sou. Em seguida, Bruno (Bm) apresenta uma história que aconteceu com um amigo, o qual foi abordado por policiais que lhe perguntaram se ele usava drogas. Seu amigo confirmou que usava maconha. Os policiais o revistaram e encontraram um pouco de maconha, em seguida, o advertiram e devolveram a droga. O fato gerou o silêncio do grupo, eles também traçaram sussurros, enquanto Bruno 63 pebape.baadj m+f (tupi péua). Palavra de origem tupi que significa alongado, chato. sm. Tatu de cabeça achatada, que costuma violar as sepulturas. sf pl gír Nádegas. Pegar um peba ou um tatu: cair. Veja-se no dicionário on-line Michaelis: <http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=peba> No caso de Ceilândia, “peba” se refere a alguém ordinário, insignificante. A polícia considera “peba” aquele jovem, em geral, do sexo masculino, que possui um estilo inspirado no hip-hop, mas com alusão ao gangsterismo, aquele que se identifica, mesmo que apenas simbolicamente, com o banditismo. Outro termo que não possui a mesma conotação depreciativa de “peba”, utilizado para definir esse estilo, é a expressão “aba reta”, que se refere ao estilo identificado por alguns acessórios, dentre eles um boné sem a curvatura frontal da aba, por isso deixada na posição “reta”. Breitner Tavares 203 apresentava sua história. Em geral, Bruno sempre trazia histórias de outras pessoas, apesar de nunca nunca estar envolvido nelas. Independentemente da veracidade das histórias de Bruno, elas provocam outros comentários de integrantes do grupo em relação ao imaginário acerca do comportamento da polícia para com os jovens da QNZ. Rubão comenta que, às vezes, a polícia simplesmente chega perguntando diretamente “cadê a maconha?”. Liba menciona uma ocasião em que estava com um amigo conversando na esquina, ambos estavam vestidos no estilo, quando são surpreendidos por um carro. O motorista para e pergunta se eles tinham merla64. Esse comentário despertou o riso dos demais. Liba conta que respondeu negativamente à pergunta e que ficou abismado com aquela abordagem inesperada de um desconhecido. Para ele, tal abordagem se explicaria pelo estilo que os dois amigos portavam naquele momento. Ele completa que seu estilo não tem nenhuma referência com as drogas e que os “noiados” (drogados) são os outros. Bm: Na maioria das vezes as pessoas te julgam pelo que você veste né? Foi até engraçado que teve um amigo meu o policial chegou nele tava numa roda com um monte de amigo dele todo mundo com roupa folgada né, aí ele chegou e perguntou pra ele ((você fuma?)) desse jeito ((alguém aqui fuma)) desse jeito. Aí esse colega meu disse ((eu fumo mesmo.)) ((você fuma maconha? [pergunta o policial])) ((fumo.[responde o jovem])) desse jeito. Aí deram baculejo, acharam maconha e depois devolveram a maconha pra ele ((pode fumar aí, você é gente boa, você não faz nada mesmo)) devolvi e ficou nessa. Rm: Isso quando eles já não chegam pedindo ((cadê a maconha?)) ((cadê a maconha)) Rapaz oh, é Am: tão cabuloso nosso estilo que outro dia eu tava conversando com o irmãozinho sobre confiança né na esquina ,todo mundo estiloso lá, aí passou um cara, ele parou um carro ((@eh aí ? tem merla?@[ e o cara perguntou])). Todos: @(1)@ Am: Aí eu ((@ mano a gente não mexe com isso não mano@)) eu fiquei assim até. Cm: Apavorado Am: Abismado porque aconteceu isso aí, eu disse pro irmãozinho, tá vendo aí, é nosso estilo, é nosso jeito, os noiado são eles. Manu (Mm) narra uma situação em que estava próximo a uma padaria com um amigo, quando foi abordado por algumas garotas, “donas”, que lhe perguntaram se ele tinha maconha para vender, “bagulho”, ele responde negativamente e comenta com seu amigo, num tom de voz baixo, que o comportamento das “donas” era estranho, “cabuloso”. Essa fala leva todo o grupo a rir brevemente. Em seguida, ele questiona a “dona” por sua abordagem, considerada demasiadamente direta: “É desse jeito? 64 Merla é uma droga obtida de um subproduto da cocaína e é comum no Distrito Federal. Breitner Tavares 204 na cara de pau?”. A garota, por sua vez, lhe disse que ele tinha aparência de alguém que fumava maconha, “você tem cara que fuma!”. Ele lhe responde afirmativamente que já havia fumado algumas vezes. Apesar de Manu admitir que já havia fumado anteriormente, a maneira com que responde à garota indica uma certa irritação por ter sido abordado como se fosse um traficante num espaço público próximo à sua rua. Em seguida, o grupo mais uma vez fez um breve silêncio. Mm: Aconteceu uma coisa dessa comigo mas foi lá naquela padaria lá em cima, aí eu tava quieto, aí chegou três donas mó cara estranha, agitadas, eu olhei ((vixe)) eu tava com o Sese pra não dizer que eu não tô mentindo, aí a gordinha chegou perto de mim e perguntou ((você tem um bagulho pra vender)) aí eu disse ((não eu tem não)) logo quem ((quem mexe é um colega meu, mas eu não mexo com essas coisas não )) aí eu falei pro Sese ((°essa dona é cabulosa°)). Todos: @(1)@. Mm: aí eu ((é desse jeito na cara de pau)) aí ela ((você tem cara de quem fuma)) aí eu ((eu não vou negar, mas eu já fumei já)) aí ela ((é claro)). Todos: (.) Logo em seguida, Galego (Gm) comenta que antigamente tinha o hábito de trajar bermudão, com a boina aba reta, moda definida por ele como de “doidão”. Ele acrescenta que gostava de aparentar como “bandidão”, nesse período ele conta que era frequentemente abordado por policiais no setor onde mora. Posteriormente, quando ele aderiu ao estilo hip-hop, notou que as abordagens diminuíram e o tratamento dos policiais foi mais amigável. Os rapazes continuam a exemplificar diversas situações em que alegam ter sido abordados por policiais bêbados ou serem detidos por estar bebendo cerveja sendo menores de idade. Gm: Antigamente quando a gente era muleque né véi, tipo eu andava todo doidão né, com a moda do bermudão e tudo, boina aba reta tá ligado? Só andava metido mesmo, só queria ser o bandidão e direto era reprimido pelos homi, tá ligado? E aí depois que eu parei de andar mais no estilo hip-hop eu não levei muito bacu não véi, mas de vez em quando ainda levo, mas assim de boa tá ligado? Discriminação e racismo Breitner Tavares 205 Durante a discussão sobre a abordagem policial e as histórias de discriminação enfrentadas pelos jovens do Rap Comando, alguns depoimentos mencionavam “medo” da polícia, o que justificava uma postura passiva durante a abordagem considerada ofensiva. Diante disso, Liba discorda de seus amigos, em relação à não reação às ofensas cometidas por policiais. Segundo ele, deve-se reagir contra a injustiça cometida pela polícia. Em relação a isso, ele menciona que antigamente tinha medo da polícia, “tremia nas bases”. Liba conta que numa certa ocasião, quando trabalhava num supermercado, houve o desaparecimento de carne, então a polícia foi chamada e passou a revistar a todos. Liba se recusou a ser revistado, porque, de acordo com sua explicação, ele estava trabalhando ali e não fazia sentido aquela revista. Ele conta que o policial se sentiu surpreso com sua coragem de questionar a abordagem e decidiu liberá-lo da revista. Após esse episódio do roubo no supermercado, Liba conta que passou a ser discriminado pelo gerente da loja onde trabalhava. A princípio, o gerente dizia que ele era um “bandido da Ceilândia”, que ficava desocupado nas esquinas da cidade. Liba disse que suportou essa situação até o momento em que o gerente o chamou de “macaco”, algo que o motivou a processar o gerente e a empresa. Liba argumenta que deixou de ter medo da polícia quando passou a se informar sobre os seus direitos, algo que lhe concedeu um sentido de liberdade. Ele acrescenta que se deve saber falar com os policiais, pois isso influenciará a forma de sua abordagem. Am: Antigamente quando falava no nome de polícia eu tremia nas bases, que nem teve no serviço, voltando a emprego, sumiu 300 toneladas de carne lá, aí chamaram a polícia, a polícia chegou revistando todo mundo aí eu ((oh peraí aqui eu tô trabalhando como todo mundo aí, “mas tá todo mundo sendo revistado, você vai encontrar o que dentro dessa bolsa? Alguma coisa? Quer revistar, olha aquele armário ali. Oxi, você é muito folgado hein? [comenta o policial])) Aí tudo bem, passou isso, outro dia que foi até o gerente que eu processei ele, ele passou a me tratar como bandido ((Que nada, você é da Ceilândia, você dever ser daqueles bandidinho pidão lá das esquinas)) eu aguentei isso, eu só não aguentei quando ele me chamou de macaco, aí eu taquei o bicho no pau. Antigamente eu tinha medo de polícia, mas depois eu comecei a agir mais, saber mais dos meus direitos, isso pra mim tá sendo como uma liberdade, é tipo assim você tem que saber falar se ele ((o policial)) chegar com ignorância você pega e (( o senhor peraí calma aí)) duvido, o cara já muda o estado dele o (( )) cara é entendido, o cara sabe das coisas. A experiência de Liba no seu ambiente de trabalho chamou a atenção do grupo para o problema do racismo, que passou a ser discutido pelos jovens. Os jovens em geral narram situações em que são xingados durante o contato interpessoal com os colegas na escola ou na vizinhança. Liba ironiza e diz que está à procura de outras pessoas que o chamem de “macaco”. Em relação a isso, ele relembra o período em que alguns vizinhos costumavam chamá-lo de “neguim ou macaco”, contudo, mudaram de comportamento logo que tomaram ciência do processo e condenação de seu ex-patrão. Ele conclui que Breitner Tavares 206 “não abaixa a cabeça”, porque racismo é algo “inaceitável” e as pessoas que o cometem devem “pagar” por isso. Am: @Eu tô a procura mais de preconceito@ Depois que teve esse negócio na justiça do racismo, eu tô à procura de negão que de alguém que me chame de macaco novamente ( assim você ( ) é porque só ) aqui na rua era tão engraçado tinha uns vizins que chama “aqueles neguim, aqueles macaco”, depois que soube que eu processei um, quem disse que falaram isso ( ) mais nunca. Pra você ver como é as coisas né. Racismo a gente não pode aceitar não, racista tem que pagar, eu não baixo a cabeça não. O grupo, em relação à sua atitude contra o racismo, finaliza cantando à capela um refrão feito especialmente para tratar dessa temática. Na letra, os jovens tratam das ofensas que tentam desmoralizálos, contudo, afirmam que são resistentes e têm orgulho de ser negros. De um modo geral, os jovens apresentaram diversas experiências relacionadas à discriminação por parte da polícia local. Para eles, a polícia trabalha com uma imagem generalizada do jovem, definida por “peba”; o estilo definido pelos jovens como “bandidão” atrai a atenção da polícia, que normalmente age de modo agressivo através de violência psicológica mediante xingamentos e ofensas morais contra os jovens. Contudo, os jovens admitem que, em geral, não reagem por temerem represálias ou por desconhecerem a lei, como alguns deles justificam. Para o grupo, vestir-se no estilo hip-hop, com suas roupas folgadas, bonés e cordões de prata, implica se tornar mais visível, “fragante”, perante as outras pessoas na região. Tornar-se visível na perspectiva do grupo seria um modo de justificar, ao contrário do que alegaria a polícia, que os mesmos não têm envolvimento com a criminalidade, pois não estariam agindo de maneira discreta. Outra situação recorrente para o grupo diz respeito à discriminação racial. Em vários depoimentos, os jovens são confundidos com traficantes simplesmente por estarem numa esquina de Ceilândia na companhia de outros jovens negros que se identificam com o estilo hip-hop. Eles são abordados por usuários de drogas e policiais. Quanto às estratégias para enfrentamento da discriminação, o grupo, como mencionado anteriormente, aborda o tema em suas letras, construindo imagens de autoestima positiva para os negros. Entretanto, os jovens se esforçam para, eventualmente, dialogarem com a polícia ao verificarem excesso em sua abordagem. Em alguns casos, o preconceito racial foi tratado de maneira formal através de processo judicial, como no caso de Liba. “Da Ceilândia pra cá é a mesma coisa” Experiências discriminatórias e estratégias de enfrentamento Breitner Tavares 207 Grupo Resistência Periférica Y retoma alguns pontos mencionados anteriormente sobre a experiência do grupo e a violência na periferia e, logo em seguida, pergunta se houve algum envolvimento da polícia com a violência. O grupo inicia uma grande discussão sobre o tratamento “covarde” da polícia e a necessidade de sua reeducação. Os jovens apresentam vários exemplos sobre as formas de abordagens durante as revistas. Além disso, Y pergunta ao grupo se há uma abordagem diferenciada da polícia em relação à juventude. Diante dessa questão, todos no grupo passam a conversar ao mesmo tempo. Em seguida, o grupo responde que em geral a polícia é agressiva, mas quando há oficiais da PM na patrulha a abordagem é mais tolerante, mas em geral há um tratamento diferenciado em relação ao estilo dos jovens da periferia, em que a policia age de modo mais agressivo. A polícia se refere ao “kit peba” como a maneira característica de se vestir dos jovens potencialmente suspeitos, identificados pelo estilo hip-hop. Como menciona Hélio (Hm), “Da Ceilândia pra cá é a mesma coisa. É na orea”. Y: Vocês falaram também desde o início da conversa. Que muitas coisas inclinaram pro lado do crime, e tal ou então pro lado das guerras. Vocês citaram algumas experiências de vocês relacionadas a isso. Mas eu não vi ninguém citar, por exemplo, a relação com a polícia. Como vocês vêem o comportamento da polícia aqui na região. Vocês já tiveram algum problema com isso? Bm: A repressão continua. Primeiro eu acho que (.) Am: Covardes, cara. Bm: Eles é covarde, tá ligado? mas não cabe a eu (.) tipo julgá eles. Né véi? Gm: É tudo oportunista. Y: Existe uma abordagem diferenciada da polícia? ((todos falam)). Hm: Da Ceilândia pra cá é a mesma coisa. É na orea ((orelha)). Am: Uma coisa que muda também é o seguinte. Quando vem um cara estudado, um oficial lá de dentro. Ele chega “boa noite, operação desarmamento”. Gm: Aqui tem uma onda, tem um estilo. Eles vão muito pela aparência da pessoa. Cê tá ligado? Hm: É o kit. É o kit peba. Bm: Dependendo com quem cê tá andando tem uma taca. Bm: Eu não dou mole pra polícia não. Um dia lá em frente de casa lá o PM chegou pá, veio me abordá, eu tava até com meu muleque, óh véi. Aí o bicho: “Bora todo mundo na parede”, peguei meu muleque, “você também. Oh eu tô com meu filho no=colo”. O bicho doidão, véi ( Breitner Tavares 208 ) Aí eu tipo andei, pus meu muleque dentro de casa, tá ligado? Aí ele foi tipo me acompanhando. “Você vai sair? Bora, sai pra fora porque eu tô mandando. Eu vô sair porque eu quero, não porque você tá mandando. Aí o bicho fico brabo comigo, doido. Eu pensei que eu ia a apanhar nesse dia ó Am. Mermão o bicho me jogou na parede assim, doidão véi, alcoolizado mesmo. O bafo de cachaça assim na minha cara, e eu “caralho”. Eu gelei. Aí eu peguei e falei bem assim “eu tô de boa, não tô com nada, eu não devo, não tenho nada, eu nunca fui na delegacia nem pra documento perdido”, tá ligado? Aí é seguinte eu botei a mão, o bicho registrou e pá, e ficou: “Você qué que te chame como? Ô bonitão vem pra parede. Eu queria que você me tivesse educação de me tratar (1) do jeito que eu mereço, eu nunca nem te vi como é cê tá falando de negócio de vagabundo” e tal. (1) Aí o bicho ficou doidão. Eu calei a boca porque eu pensei que ia apanhar, doido. Eu fiquei com medo do cara crescer pra mim. Sobre as experiências de discriminação e abordagens da polícia, Boca afirma que não se deixa intimidar pela Polícia Militar (PM), “não dá mole não”. Ele conta algumas experiências, numa delas ele estava em frente a sua casa com alguns amigos quando foram surpreendidos por uma abordagem da PM, que pediu a todos que se voltassem para a parede. Boca se recusou a seguir as ordens dos policiais, porque estava com seu filho menor nos braços. Contudo, o policial insistiu na revista, então Boca adentrou seu lote e levou seu filho até um local seguro, sempre seguido pelo policial. Em seguida, o policial repetiu a ordem para que Boca saísse de casa, para ser revistado, quando ele respondeu que “sairia porque queria” e não em função da ordem expressa. Isso teria irritado o policial que teria empurrado Boca contra a parede. Durante a revista, Boca se sentiu agredido pelos empurrões e tapas do PM. Isso o levou a usar as mãos para se proteger da ofensiva policial. Nesse momento, ele observa que o policial estava alcoolizado. Então ele imaginou que poderia ser agredido a qualquer instante pelo PM. Ele tentou ainda dialogar com o policial para que o mesmo fosse menos agressivo e não o xingasse de “vagabundo”, mas o policial teria ironizado a queixa de Boca. Diante disso, Boca decidiu se manter em silêncio para evitar maiores represálias. Logo em seguida, Amauri conta outra história semelhante em que estava caminhando pelas ruas da QNX, que tem um formato peculiar em relação a outros setores de Ceilândia, por serem estreitas, dificultando o trânsito de carros e, além disso, com várias bifurcações e becos sem saída. Amauri estava caminhado com seus amigos na rua onde mora, contudo, poucos instantes depois, quando ele adentra seu lote, foi surpreendido pela abordagem da PM. Ele observa o que está acontecendo e continua a se afastar do grupo, quando é ameaçado por um policial que aponta uma arma engatilhada em sua direção e o aborda, chamando-o de “negão”. Diante disso, Amauri se incomoda, mas atende à exigência do policial, sendo levado a sair novamente para ser então revistado. Ele contesta a abordagem feita já dentro de sua residência, mas os policiais ignoram. Breitner Tavares 209 Am: Foi que nem o ( ) tava vindo lá de baixo, eu nem vi não com os muleque tranquilo, os muleque tava descendo (eu só lembro disso, de repente) eu só escutei assim: “Eh aí cidadão”. Não sei o que () quando eu olhei eu falei: “O que que foi, eu já tô aqui dentro de casa já, o que que foi?” Dm: E ele já com a arma engatilhada: “bora negão” Am: Um=bora vem aqui pra porta” E eu já malandro, fui e saí, né? Aí ele “ se tu não vem, eu ia te buscá dentro” Aí eu falei: “tá ficando doido é?” Aí eu falei “Não tem mandado mais não? É bagunçado é?” “é, não sei o que”. Aí ele falou “tu é fácil né negão? Aí me deu bacu sorrindo. Aí eu falei: tá ficando é doido. Em seguida, narra-se uma história em que o grupo iria fazer uma apresentação com vários grupos de rap em Brasília, quando foram abordados pela PM, que se aproximou xingando e agredindo os jovens. Amauri e Boca acrescentam que ainda tiveram tempo para ironizar os policiais, “ta nervoso seu polícia?” , e isso teria irritado o sargento do grupo, que os levou para um lugar mais ermo. Os jovens imaginaram que seriam agredidos, mas Boca, que havia sido soldado militar das Forças Armadas, teria supostamente persuadido o sargento ao usar termos pertencentes ao jargão policial. Denis conta que logo em seguida, após terem sido revistados por policiais militares, foram abordados novamente por policiais civis, que, segundo o grupo, foram muito mais respeitosos, fizeram perguntas ao grupo sobre o local aonde iriam e, logo em seguida, o liberaram sem nenhum constrangimento, segundo o próprio grupo. O grupo segue narrando exemplos de abordagens agressivas da PM. Amauri menciona uma ocasião em que estava num bar próximo a sua casa quando chegou o Batalhão de Operações Especiais da PM (BOPE), segundo ele, com armamento pesado, e ordenou que todos se encostassem na parede. Amauri conta que um de seus amigos levou golpes de cassetete nas costas e nádegas, o que o deixou inconsciente. Ele conta que se sentiu apavorado e saiu correndo junto com outro amigo. No dia seguinte, encontraram o jovem que teria sido agredido pelo BOPE na noite anterior, ele estava com um grande hematoma nas nádegas, resultado dos golpes que chegaram a destruir os cartões de crédito que estavam na carteira, tamanha a violência da abordagem. Durante a narrativa, o grupo oscila entre risos e manifestações de repúdio em relação à forma de tratamento agressivo da polícia na QNX. Am: @. Outro dia eu tô ali no barzim que tinha fechado. Com as menina lá e um muleque. Chega a BOPE ó véi, todo mundo encabulado. “Vumbora encosta, encosta” tal. O cara com um chico 12 desse tamanho, óh Bm. Mermão, o muleque ali o ?m tava com a carteira, os cana deram uma paulada tão forte nele, quando eu vi batendo eu @corri, moço@. o muleque tipo desmaiô. Bm: @(.)@. Hm: @(.)@ Breitner Tavares 210 Am: A marcona de sangue na bunda do muleque. Quebro os cartão da cartera tudo, Cm. Foi lombra. Eu Ah::: corri. Todo mundo torto no outro dia. ( ). Os jovens do Resistência Periférica sofrem frequentes abordagens das polícias militar e civil na região onde vivem, no setor QNX. Eles alegam que são abordados, em geral, de modo “covarde” pelos policiais, que os agridem fisicamente e os xingam. Em relação aos critérios de abordagem da polícia, os jovens dizem que isso se dá em função de múltiplos fatores. Segundo eles, as abordagens são mais agressivas na Ceilândia. Essas abordagens ocorrem mais à noite quando estão passando pelas ruas com seus amigos. Normalmente, só os rapazes são abordados, nos depoimentos praticamente não se mencionou nenhuma situação envolvendo a abordagem de mulheres. Além disso, a polícia trabalharia com um estereótipo do jovem que usa o “kit peba”. Esse jovem seria aquele que traja bermudões, camisetas largas, correntes e boné aba reta, elementos que também são associados ao estilo hip-hop, também conhecido como “fragante” (flagrante). Ademais, a polícia aborda segundo critérios de diferenciação racial, com ênfase nos jovens negros, em outros termos, ela age em função de uma orientação segundo um sistema de status pautado em aspectos raciais. Em alguns dessas abordagens, os jovens alegam que suas casas são invadidas sem que haja evidências que os incriminem ou um mandado judicial. Por outro lado, os jovens observam um melhor tratamento durante as abordagens policiais, quando membros de uma hierarquia superior estão presentes em operações de maior escala. Sobre a reação dos jovens frente à atitude discriminatória da polícia, eles, em geral, não gostam de admitir que sofrem constantes abordagens. Em muitos casos,se referem aos colegas. Apesar do tom dramático dos depoimentos, há eventualmente brincadeiras dos colegas em relação ao constrangimento que tal situação gera. Por outro lado, há um consenso no sentido de que não se deve aceitar a discriminação. Os jovens, ao sentirem-se discriminados durante uma abordagem mais agressiva, buscam dialogar com a polícia, com o intuito de demonstrar que conhecem seus direitos a partir de uma noção de cidadania criada pelos próprios jovens. Segundo eles, não “se deve bater de frente com a polícia”, entretanto, deve-se buscar a denúncia nos casos de abuso. Discriminação racial e a vida mental da cidade Breitner Tavares 211 Para os jovens do Resistência Periférica há uma tensão entre problemas relacionados à pobreza e à discriminação racial. Por um lado, há um consenso em relação à existência do racismo, enquanto prática social, mas, por outro lado, para alguns jovens do grupo, o racismo é algo que apenas atingiria os negros pobres. Contudo, outros jovens contrapõem esse argumento, afirmando que o racismo atinge toda população negra, independentemente de classe social. Y lança uma pergunta ao grupo sobre experiências com racismo e outros tipos de discriminação. Em relação à pergunta, Hélio (Hm) responde imediatamente que sofre discriminação econômica, “financeira”, mas Boca (Bm) o interrompe e reforça que se trata de uma questão sobre “racismo”. Diante disso, o grupo faz uma breve pausa e, em seguida, Conrado (Cm) resolve perguntar novamente se a questão apresentada era de fato sobre “racismo”, palavra que ele repete por duas vezes enfaticamente. Boca mais uma vez toma a palavra, retoma o que foi dito anteriormente e diz que Hélio estava falando de dinheiro, mas o assunto é “cor de pele”. Após o comentário de Boca, Hélio retoma a palavra novamente e menciona que já havia trabalhado de motoboy, antes do seu atual emprego, e frequentava vários prédios importantes dos setores Comercial e Bancário de Brasília. Ele conta que ao adentrar em um dos prédios, chamado pelos jovens de “Robozão”, dada a sua arquitetura arrojada de vidros espelhados e grandes proporções, se dirige ao elevador onde havia uma mulher branca. Segundo ele, a mulher o observava com um olhar de desconfiança e repulsa, em seguida, buscou se afastar dele, algo que lhe deixou irritado, mas se manteve quieto enquanto dizia para si mesmo em silêncio, “porra!”. Y: Como que vocês veem o racismo? Vocês já tiveram alguma experiência de discriminação? Hm: Eu mesmo financeiro. Bm: Ele tá falando racial, malandro. Am: Então. Cm: Mas, é racismo né? que tá falando. O assunto é racismo? Bm: Mas é dinheiro, (que o Hm tá falando). Ele tá falando de cor (.) de pele. Hm, aquele que tem lá Hm: Eu trabalhei de motoboy, eu trabalhei em vário prédios importantes no Plano Piloto. Uld Trade Center, que tem lá? Gm: Hm: O robozão? É. Aí eu entrei lá, rapaz? Entrei no elevador mais a mulher, (.) e a mulher ficou me olhando assim já, (.) com o ar de (desconfiado) você sabe quando a pessoa tá desconfiando de você, né. E, pá deu uma afastada de você assim ( .) Aí eu “porra” ((pensamento)). Gm: Lá no Plano, pra maioria, neguim é ladrão, olha só. Hm: É mais pilantra é (o Plano Piloto) mas na periferia não rola isso não, só pra lá mesmo. Breitner Tavares 212 Diante da história apresentada por Hélio, Gabriel (Gm) comenta que no Plano Piloto de Brasília os negros são considerados como ladrões pela maioria das pessoas. Logo em seguida, Hélio confirma o comentário de Gabriel e diz que essas pessoas que agem de maneira preconceituosa são “pilantras”. Por outro lado, ele afirma que na periferia esse tipo de comportamento não ocorre. Os jovens do grupo, sem fazer menção a aspectos de classe, observam que o racismo se constrói em função de uma estratificação social que se materializa espacialmente. Nesse caso há diferentes tipos de estratificação, em função das relações sociais, baseada na categoria “raça”. Para o grupo, uma pessoa negra tende a ser discriminada num espaço como um edifício ocupado por uma elite econômica voltada para o setor de negócios. Uma área restrita, que normalmente circulam pessoas brancas, e prestígio social típico de uma burocracia liberal . Por outro lado, a periferia, enquanto lugar socialmente construído em função da categoria classe, é um espaço de socialização onde as pessoas negras não seriam supostamente alvos de discriminação racial. Numa área como a periferia, onde a população é majoritariamente negra65, ou seja, onde as relações de sociabilidade ocorrem a partir de laços endogâmicos de pessoas negras, não haveria um sistema de distinção social baseado na raça. Os jovens do grupo afirmam que, para acabar com o racismo, se deve antes de tudo “parar de falar em racismo”. Boca argumenta que as crianças crescem vendo programas, como telenovelas, que abordam temas relacionados à cor da pele, como a escravidão dos negros associada a várias imagens dos “negros sendo chicoteados e chibatados”. Segundo o grupo, essas imagens interferem nas relações entre crianças nas escolas, que passam a se discriminar mutuamente. Para o grupo, a televisão é a “ponte” para se discutir o racismo, para que o mesmo se torne algo “que não se possa falar mais”. Hm: É mais pilantra é (o Plano Piloto) mas na periferia não rola isso não, só pra lá mesmo. Bm: Eu acho que é o seguinte. (2) ((todos falam)) Eu acho que esse assunto do racismo aí, eu acho que pra acabar com o racismo tem que acabar de falar no racismo. Porque o muleque, o muleque que cresce vendo uma novela, tá ligado? Que falar de uma cor da pele. Tipo assim, que ( ) Am: [ Preto ( Bm: ) escravo. tá ligado? Eu acho que um muleque que cresce ali ((interrupção=conversa paralela)). Se liga como é que conta a história ali. O muleque assiste a novela da seis, e vê o negão sendo chibateado, chicotado. Aí ele vai pro colégio aí quando ele vê o neguin ele fala “aí neguin ( )”. Aí já começa o racismo daí, tá ligado? A televisão é a (Discriminação racial e a vida mental da cidade. 65 Segundo a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílio (PDAD), realizada em 2004, a distribuição da população a partir dos critérios cor/raça, em Ceilândia, 54,2% da população é negra (pretos ou pardos). Breitner Tavares 213 Bm: A televisão é a ponte pra discutir, pro racismo crescer no Brasil e em qualquer país. Eu acho que quando acabar, todo mundo não pode falar mais de racismo, não pode mais falar de nego, não pode falar mais. O sentido específico da expressão “parar de falar em racismo” remete à ideia que se constrói uma cultura política que atravessa o audiovisual, em que a imagem do negro é sempre construída a partir de seu sofrimento. Isso para o grupo gera consequências negativas para a autoestima da juventude negra, que sempre se vê retratada dessa forma. Portanto, “parar de falar em racismo” não trata necessariamente de se ignorar o problema, mas construir outras imagens relacionadas à representação social da população negra. O racismo como sistema de diferenciação social deve ser superado, de modo que a categoria “raça” deixe de ser empregada para se referir às pessoas. Apesar de o grupo propor intervenções nos meios de comunicação para que se estabelecesse um amplo debate sobre o tema, de fato há opiniões discordantes que não compartilham com a possibilidade de superação do racismo. Em relação a isso, Hélio considera que o racismo jamais acabará, pois está associado a questões de “poder aquisitivo”, o qual está mais concentrado na população branca, e, para ele, são poucos os negros com alto poder aquisitivo. Diante da consideração de Hélio, Boca comenta repetidamente “que tem muito negro racista”. Segundo ele, alguns negros têm vergonha da própria pele. Ele explica que esses “negros gostariam de trocar de pele, ser brancos”. Contudo, Hélio discorda. Ele reafirma que na periferia não existe racismo. Para isso, ele exemplifica que através do relacionamento afetivo exogâmico é possível se estabelecerem contatos com pessoas de diferentes “raças”. Além disso, ele afirma que na periferia as pessoas podem chamar umas às outras de “neguinho” sem que isso represente uma diferença racial, contudo, isso se altera quando as relações sociais se estabelecem fora desse espaço de sociabilidade. Em função dos comentários do grupo, verifica-se que o racismo é algo que decorre de um comportamento que estabelece uma diferenciação social em que o segregador é assimilado não só por brancos, mas também por negros. De fato, o negro não pode ser racista, mas simplesmente assimila aspectos de uma imagem negativa de “como ser negro”. Fanon precede Bourdieu, no que se refere à utilização do conceito de habitus, ao empregar a categoria epidermização para se referir à internalização inconsciente de um sistema de distinção social baseado na categoria “raça”, em que o negro é inferiorizado (FANON, 2008, p. 28). Hm: O racismo não vai acabar nunca. Sabe por que não vai acabar nunca? O racismo vem do poder aquisitivo. Sabe por que, o poder aquisitivo? Porque quem tem mais, você sabe, que são os branquinhos. Bm: Mais existe Hm. Hm: São poucos negros que tem( Breitner Tavares ). 214 Bm: Existe negro racista, parceiro, existe negro racista. Hm: Não. Existe, meu jovem. Bm: Tá ligado? Existe negro que tem vergonha da pele. É tipo assim. É uma fita que negro quer trocar de pele. Quer ser branco. Hm: Aqui na periferia não existe. Sabe por que que não existe racismo? Gm: Não tem, não existe. Hm: Não tem. Aqui não existe racismo. Cê agarra uma neguinha º nao agarra não?º porra (.), agarra uma neguinha, agarra uma branquinha. Tudo mais. Bm: ºMas existe muleque, que isso?º. Hm: Não não existe não existe ( Gm: Não Bm ( ) eu não concordo com você. Hm: (Aqui) eu posso falar “eh aí neguinho, beleza?”. Bm: Existe ( racismo) ). Para o grupo, as relações raciais estão vinculadas a um sistema econômico que se estrutura de maneira desigual e injusta. Portanto, numa escala a possibilidades estabelecida pelo grupo, a inserção social, bem como a participação política seria mais difícil, ou mesmo improvável para pobres e negros. O grupo assume um discurso em que o racismo é algo estruturante nas relações sociais, que define ao mesmo tempo, racial e economicamente, as posições de classe social dos indivíduos. Eles afirmam que há um grupo restrito de brancos que detêm o “poder aquisitivo”. Por outro lado, inversamente a essa situação, há uma maioria negra que não dispõe das condições daquela minoria branca. O grupo considera que a ascensão econômica pode livrar uma pessoa dos constrangimentos vividos por negros e pobres. Hélio menciona que caso tivesse dinheiro poderia encarar ou outros, os brancos do Plano Piloto, “de frente”. Ele menciona algumas personalidades negras, como Pelé, Foguinho (Lázaro Ramos), que detêm alto poder aquisitivo e status social e, portanto, não sofreriam preconceito racial. Hélio recorre à expressão “tratado como racista”, para definir pessoas que, de alguma maneira, são discriminadas racialmente. Para ele, o poder aquisitivo leva as pessoas a serem tratadas como iguais. Hm: porque se eu tivesse dinheiro ( ) e pudesse olhar eles de frente (os brancos) frente a frente. Bm: @Já rolou o racismo, é foda@. Hm: Cadê que ninguém encara o Pelé como racista? Ninguém encara o Pelé como racista. Am: É o rei né muleque, tem dinheiro. Hm: Ninguém encare esses ator de novela. Bm: Encara malandro. Hm: Igual o Foguim, aqui oh, como racista. Bm: Encara malandro. Breitner Tavares 215 Hm: como neguim não. Porque os cara tem dinhero, os cara tão lá envolvido um com o outro, lá. Isso não existe lá entre eles não. ( ) Bm: Encara pô. Hm: Basta, basta os nego começa a estudar, caça estudo e de onde tirar. Aí sim vai poder igualar por meio do serviço. Gm: Não iguala porque ( Bm: Oh Hm. Bm: Não, mas a partir que você se qualifica o mercado não fecha não, véi, que ele faz é abrir, véi. Bm: Óh Hm se liga.O negro sempre foi humilhado, desde o tempo que começou, calma aí. ) as porta fechada ( ). Em relação à mobilidade social do negro, Hélio acredita na ideia de que, quando os negros começarem a estudar, poderão se igualar através do trabalho. Contudo, Gabriel alega que isso não ocorre porque as oportunidades são desiguais entre brancos e negros, mesmo que ambos tenham a mesma formação, “as portas estão fechadas”. Boca discorda e diz que o mercado se abre quando se é qualificado, segundo ele, o negro foi escravizado historicamente, portanto, se um negro chegar ao poder, mesmo sendo rico, sempre haverá uma tutela, uma interdição de um homem branco. Isso se daria, segundo ele, em função de um receio “dele (do negro) de fazerem o mesmo que fizeram com os antecedentes dele”. Bm: Quer dizer se um negro chegar no poder, se um negro chegar, por mais rico que ele seja um milionário, por mais rico que for. Sempre vai ter um branco, dizendo, querendo tipo abaixar ele. Por que? Porque vai ter medo dele chegar e fazer o mesmo que fizeram nos antecedentes dele, moço. Hm: Mas adianta, velho. Adianta que a pessoa. Hoje em dia ?m: O Colin Powell era negro e ( Hm: a pessoa se qualificando e sabendo não tem esse negócio não. Bm: Que, Hm, não tem. Gm: Eu sei, eu sei, acabou, já era ((tentativa de intervir na discussão)). Bm: Você pode ser milionário Hm, você pode ser milionário. Você pega um neguim milionário que ). tiver, sempre vai ter um branco, tá ligado com ele ( Gm: ). Não existe isso mais não. Mais adiante, o grupo menciona que o racismo seria baseado numa suposta crença na incapacidade do negro. A exemplo disso, Hélio afirma que priorizar o acesso de negros na universidade através de um sistema de cotas é uma forma de desqualificá-lo. Ele ainda comenta, gaguejando, que se negros e brancos, disputarem uma vaga, o negro seria bem sucedido. Nesse momento, todos no grupo fazem comentários no mesmo sentido. Amauri é o único a discordar. Ele pergunta ao grupo quantos negros chegou à universidade e, em seguida, conclui que nenhum negro logrou tal êxito. Breitner Tavares 216 Hm: Sabe o que que eu acho racismo? Achar que o negro é incapaz. Achar o negro incapaz. Que a pessoa de pele escura é incapaz. Sabe o que que eu acho racismo? Racismo é você pegar e dar prioridade pra um negro na faculdade, pra um negro. Eu acho que isso é o pior racismo que existe. Porque se o negro disputar pau a pau junto com o branquinho. Gm: Ele arrebenta. Hm: Ele= ele=ele dá conta. Gm: ºÉ, pior que dá mesmoº. Hm: [ Agora priorizar:: eu acho que isso aí começa o racismo. Am: Aí já tá tirando. Hm: Isso aí que já começa o racismo. Isso aí que começa o racismo. Porque a pessoa tem capacidade, ela luta, ela vai em frente. Eu sei disso. Am: Não Hm. Mas ( ) assim . Quantos negros chegaram lá? Nenhum. Então? Eles tão abrindo primeiro a porta pra depois ( ) invista neles mesmo. Bm: Tem os dois lados da moeda, né muleque? Hm: Então. Então. Eles têm que tomar atitude. O grupo, durante boa parte da discussão sobre discriminação e racismo, manifestou várias posições caracterizando uma passagem de foco, ou seja, um momento do debate com vários pontos de discordância e agitação dos envolvidos no debate. De modo geral, o grupo constrói uma perspectiva na qual a predominância das relações impessoais numa metrópole como Brasília estabelece uma mentalidade com condições para a discriminação racial e de classe. De maneira discreta, mas eficiente, a arquitetura delimita espaços de circulação estratificados. A exemplo disso, uma situação corriqueira, num prédio luxuoso no setor financeiro da cidade, em que duas pessoas desconhecidas entram num elevador pode durar apenas alguns segundos. Contudo, se nesse caso, for um motoboy negro e uma secretária executiva branca, tal coincidência seria suficiente para acionar todo um sistema de distinção e gosto observável através do gestual, de um olhar repulsivo, um passo atrás, entre outras possíveis e discretas variações do mesmo tipo de constrangimento preconceituoso que está inscrito e expresso pelo corpo. Em contraposição à etiqueta urbana dos espaços onde há uma maior incidência da especulação imobiliária de Brasília, os jovens definem a “periferia” como espaço em que prevalece as relações vicinais e seus consequentes vínculos afetivos. Para o grupo, a periferia constitui um espaço segregado, em que há uma série de precariedades no que se refere aos equipamentos e serviços públicos, o que a associa à pobreza de sua população, que tem “baixo poder aquisitivo”. Por outro lado, nesse mesmo espaço, os jovens do Resistência Periférica alegam que não há incidência de racismo nas relações interpessoais onde vivem na QNX. Os vínculos de intimidade estabelecidos pelo convívio de amizade de Breitner Tavares 217 jovens que compartilham do mesmo lugar de classe e “raça” possibilitam formas de tratamento, como se referir à cor do outro, o que num ambiente impessoal é vedado e poderia caracterizar uma ofensa. A relativa predominância racial e de classe obtida em determinadas cidades, especificamente em setores como a QNX, em Ceilândia, leva à condição de um relativo isolamento social imposto pela configuração urbana da cidade, que limita as interações sociais entre pessoas de mesmo perfil socioeconômico e étnico-racial, composto por negros e nordestinos e seus descendentes. Uma relativa homogeneidade étnico-racial para uma dada comunidade torna “invisível” o racismo, porque o mesmo está inserido no arranjo geopolítico da cidade, que cria espaços distintos de circulação. Nesse caso, a “mão invisível” da especulação imobiliária cria uma periferia negra e nordestina, em que, pela condição de isolamento, a população não reconhece a existência de um racismo que já está estruturado na própria configuração urbana. 9.3 Algumas considerações gerais sobre as experiências discriminatórias e estratégias de enfrentamento dos jovens A discussão das questões relacionadas a experiências discriminatórias gerou diversos comentários e posicionamentos controvertidos por parte dos grupos. Em cada contexto, foram selecionados os principais aspectos para a definição de situações em que os jovens se sentem discriminados. Contudo, mesmo diante de uma diversidade de posicionamentos, há alguns elementos que permitem alcançar algumas generalizações quanto ao tema discriminações, bem como as respectivas estratégias encontradas pelos jovens para o enfrentamento de tais eventos. Em geral, os grupos consideram a abordagem policial violenta e a discriminação racial contra negros e nordestinos como os principais temas para suas narrativas sobre experiências discriminatórias. Para os jovens, a discriminação está diretamente associada ao fato de assumirem o hip-hop como estilo de vida e às condições de uma juventude negra e pobre que vive num espaço urbano segregado, como alguns setores em Ceilândia. O estilo hip-hop, caracterizado pelos grupos como um conjunto de valores e práticas, se materializa a partir de uma maneira, uma moda específica, em que o corpo se expressa no no espaço público. Desta forma, os jovens vinculados ao hip-hop, de um modo geral, apreciam roupas folgadas, adereços, como jóias reluzentes em tons dourados e prateados, além de acessórios, como bonés, toucas, tênis, entre outros. Trajados dessa maneira distintiva, os jovens realizam suas atividades corriqueiras, como frequentar escolas, passear em shopping centers, utilizar transporte público ou, simplesmente, permanecer em suas comunidades, conversando com outros jovens nas esquinas. Breitner Tavares 218 Entretanto, independentemente do espaço em questão, a simples presença dos jovens num espaço público redefine a postura de policiais e seguranças privados, que passam a agir de maneira mais ostensiva e, segundo os jovens, discriminatória. Apesar de o hip-hop ser uma manifestação estruturada em uma cadeia produtiva de bens simbólicos representativos do sentido de pertencimento jovem, no momento em que esse assume a indumentária, enfrenta uma situação ambígua a que seu estilo está vinculado. Por um lado, existe a afirmação jovem, masculina e, em alguns casos, agressiva, como indica a variação “fragante”. A vinculação à estética marginal em algumas variações, como o fragante ou o gângster, pode acirrar a postura ostensiva e discriminatória da polícia. Durante as narrativas, os jovens contam que são constrangidos por seguranças armados em shopping centers, que passam a segui-los constantemente, de modo que eles passam a ser encarados como suspeitos, não só pelos guardas, mas por todas as pessoas que estão nesse espaço de circulação. As abordagens dos policiais durante as revistas são avaliadas pelos jovens como “covardes”. Há diversos exemplos sobre como a polícia aborda os jovens baseados em categorias discriminatórias como “peba”, que se refere a uma imagem estigmatizada do jovem associado ao hip-hop como aquele envolvido em prática de delitos e crimes. Os jovens dos grupos afirmam se identificar, em alguns casos, com uma variação do estilo, conhecida como “fragante”, que alguns chamaram de “aba reta”, “bandidão” ou “doidão”. Os jovens identificados com essa distinção alegam que compram roupas caras, de “luxo”, e estabelecem sua bricolagem ao criarem uma nova estética pela reconfiguração das peças de roupa e acessórios, que fazem eventualmente alusão ao estilo gângster. Portanto, o jovem “fragante” é definido pela polícia como o “peba”, que é considerado um “suspeito em potencial”, visado nas abordagens policiais. Outros jovens alegam que se vestem de modo “hip-hop”, com suas calças e camisetas largas. Os jovens adeptos dessa variação afirmam que, apesar de serem chamativos, por sua estética, não aludem ao estilo “fragante”, que seria mais visado pela polícia. Em relação à constituição de um habitus em relação ao estilo, os jovens ao discutirem suas experiências em relação à discriminação demonstram uma certa ambigüidade, em que, por um lado, assumem que o racismo é algo estruturante da vida social e orienta um habitus de classe para brancos e negros em diferentes estratos sociais. Frente a isso, não haveria como ele ser eliminado, pois é algo a que já se está “acostumado”. Por outro lado, em diversos momentos, os jovens narram suas estratégias de enfrentamento do racismo, que se articulam, em muitos casos, por meio de diálogos durante as situações em que a discriminação se objetiva e é identificada. Os jovens demonstram que o racismo através de piadas e anedotas é comum nas escolas ou no ambiente de trabalho. Alguns afirmam que tal prática é “comum” entre homens que têm o costume de se ofenderem com apelidos durante seu processo de socialização. Em relação a esse tipo de situação, os jovens definem suas estratégias como “jeito comédia”, em que se busca a persuasão do racista sem que se desfaça o vínculo de amizade do grupo. Entretanto, na maioria das narrativas, as situações têm uma grande carga dramática que os interlocutores não conhecem, pois estão envolvidos em vínculos institucionais e impessoais, como passageiro e motorista num transporte público, ou num prédio Breitner Tavares 219 comercial num ambiente entre funcionários de uma mesma empresa. Nessas situações, alguns jovens afirmaram que reagiram ao ser discriminados. Alguns discutiram com seguranças e vendedores de lojas em shopping centers, outros processaram seus chefes por crime de racismo. Contudo, em muitas das situações, os jovens identificaram a discriminação, mas não apresentaram qualquer reação a ela. Os grupos em geral trouxeram diversos elementos no que se refere à construção do sentido de identificação da Ceilândia como um importante espaço de convivência. Nesse caso, Ceilândia, diante de sua atual complexidade enquanto espaço urbano, é vivenciada a partir da metáfora da “periferia”. De fato, é nesse espaço que determinadas relações vicinais e locais estabelecerão as condições socioambientais para o encontro dos jovens em torno do estilo de vida como o hip-hop. Além disso, nesse espaço vivencial, os grupos afirmam que não ocorreria racismo. A relativa homogeneidade, em termos de classe social e de predominância de uma população negra e de imigrantes nordestinos, não é associada pelos jovens como parte de um processo de segregação, ao mesmo tempo, étnico-racial e espacial. Para os jovens da periferia, há uma atmosfera que invisibiliza o racismo, porque todos ali são tratados como “iguais” e vivem a partir de vínculos de intimidade, centrados nas famílias e nos grupos de amizade. No que se refere ao relacionamento afetivo, os jovens mencionaram algumas experiências, especificamente a dificuldade de jovens negros se relacionarem com mulheres brancas. Para eles, apesar de preferirem namorar garotas brancas, elas às vezes os tratam com desprezo em festas ou outros locais públicos, pelo fato de serem negros. Em contrapartida, alguns dos jovens alegam que nunca tiveram relacionamento com garotas negras, mas que não seriam contrários a esse tipo de relacionamento. Isso expressa como os jovens racializam a discussão sobre relacionamento a partir de uma supervalorização as garotas brancas em detrimento das negras. Ainda sobre a relação das experiências discriminatórias e sobre o espaço urbano, os grupos, ao tratarem de incidentes com a polícia, alegaram que, em Ceilândia, há mais brutalidade, conforme diversos exemplos apresentados. Esse tratamento, segundo os depoimentos, ocorreria contra os jovens negros do sexo masculino que circulam, à noite, em áreas de lazer, como bares e boates, ou mesmo em áreas próximas a suas residências. De fato, isso expressa o quanto a cidade é precária no sentido de equipamentos de lazer para a juventude. Essa juventude está inserida precariamente no mercado de trabalho, além de ser pouco atendida por políticas públicas relacionadas à educação, lazer, capacitação profissional, dentre outras, vivendo à margem das ações estatais. A associação de pobreza e racismo para o grupo é exemplificada pela descrição da configuração urbana do Distrito Federal. Os jovens alegam que, em cidades como Brasília ou Taguatinga, eles são discriminados pelo seu estilo e por serem negros. As diferenças entre raça, classe e status dos jovens estruturam a desigualdade e a discriminação que eles enfrentam quando estão nos espaços públicos. No caso de Brasília, as impessoalidades que orientam as relações sociais criam possibilidades para a discriminação, as quais os jovens têm dificuldade de enfrentar, pois são mais discretas, “como um olhar repulsivo”, mas não menos objetivas no que se refere ao estabelecimento da barreira da “boa aparência” Breitner Tavares 220 enfrentada pelos jovens quando tentam procurar emprego ou buscar informações em espaços comerciais ou públicos. Ainda durante as discussões em relação à discriminação racial, em especial no que se refere à elaboração de estratégias de enfrentamento do racismo, os jovens em geral se identificaram como negros e fizeram considerações críticas aos termos como “mulato” ou “moreno”, os quais, segundo eles, eram preconceituosos e não possuíam a mesma visibilidade da categoria “negro”. Os jovens que não se identificaram como negros disseram, em contrapartida, que tinham “sangue negro nas veias” e, portanto, também seriam “negões”, mesmo sendo brancos. 10 CONSIDERAÇÕES FINAIS Apesar da pouca utilização do conceito de gerações por pesquisadores brasileiros, assim como da variável metodológica do método documentário de interpretação, há algumas pesquisadoras que têm demonstrado sua eficácia em abordagens em que há uma maior ênfase na produção de dados qualitativos. Essa metodologia permitiu trabalhar com sujeitos sociais subalternos, considerados “sem história” ou “sem voz”, como a juventude pobre e negra das grandes metrópoles. Contudo, abordagens mais convencionais, baseadas em certas hipóteses sobre a juventude, ainda reforçam estereótipos sobre um suposto caráter da marginalidade juvenil intrínseca, assim como abordagens que tentam qualificar a juventude simplesmente por aspectos cronológicos. As múltiplas culturas jovens desafiam os pesquisadores a construir um “campo de pesquisa” sobre juventude que não esteja vinculado a velhos paradigmas que narram a juventude de maneira espetacular e superficial, criando, dessa forma, alguns estereótipos em torno de categorias como “tribos” ou “gangues”, ao desconsiderar outros aspectos que vão além das indumentárias e daquilo que compõe Breitner Tavares 221 parte das estimas dos jovens. Para enfrentar tal situação, requer-se a construção de uma metodologia explicativa desses fenômenos presentes nas orientações coletivas juvenis, que considere aspectos relacionados ao consumo da juventude pobre das classes trabalhadoras, bem como as dimensões relativas à construção de um sistema de distinções sociais pautado em categorias como raça-etnia, gênero e sexualidade. Diferentemente daquilo que algumas perspectivas homogeneizantes poderiam apresentar, nessa investigação sobre os jovens em Ceilândia, foi encontrada uma diversidade dentro das “culturas juvenis”. Diante disso, diversas orientações coletivas puderam ser documentadas durante o convívio com os grupos, bem como por meio da análise dos grupos de discussões realizados ao longo da pesquisa. A modernidade enquanto um projeto de reificação da racionalidade técnica estabeleceu um projeto global, centrado em valores universais eurocêntricos. Esse projeto, articulado em função de um sistema mundial, definiu toda cultura existente através de um sentido de colonialidade. Como consequência, os projetos de modernidade e suas crises definiram, de um modo geral, outras experiências históricas, a partir de uma noção de centro e periferia. Esses projetos desconsideram outras possibilidades de configurações geracionais e práticas sociais que revelem as descontinuidades de um projeto ocidental. Diante disso, o conceito de gerações, entendido enquanto processo, enquanto mudança social, se estabelece mediante as alternativas concretas de um determinado grupo social, identificado como juventude. A juventude estabelece seu próprio sistema de comportamentos sociais, o qual sofre diversas interferências da estrutura social em que se encontra, definindo os sentidos das ações individuais como os de uma juventude negra e pobre da América Latina, que vive nas grandes cidades e se apropria de elementos advindos de um processo mundial de construção de suas orientações coletivas, materializadas sob a perspectiva de novas formas de expressão estético-políticas e de consumo, capazes de traduzir suas questões específicas em ações sociais. Essa dinâmica da juventude estabelece uma espécie de região de fronteira que potencialmente transcende o imaginário de colonialidade sob o qual foi submetida historicamente. Em relação a essa experiência, o hip-hop foi associado à diáspora africana do Atlântico como fenômeno cultural realizado por negros e latinos em grandes metrópoles do hemisfério norte. O povo negro recriou suas linguagens em novas formas de reivindicação política por igualdade, superando dicotomias entre cultura e política ao inserir o lazer em suas estratégias e práticas sociais, tornando-se uma cultura dentro de um sistema mundial. Isso se expressa por uma mobilização da sociedade civil, na esfera da produção e consumo de bens simbólicos, articulada como a luta por reconhecimento no espaço público. De fato, isso não implica uma assimilação passiva desses elementos estéticos globais. Em cada localidade, há em operação diversas influências que possibilitarão a multiplicação de formas, bem como de políticas associadas à juventude afrolatina, em especial no Brasil, e ao hip-hop enquanto uma forma de cultura popular contemporânea. O estudo das orientações coletivas em relação às narrativas de jovens negros da periferia de Brasília, em Ceilândia (DF), enfrentou a questão da marginalização urbana a partir de suas próprias experiências. Para isso, o estudo sobre os estilos de vida definido a partir de sua complexidade dentro de Breitner Tavares 222 um sistema de gostos e distinções sociais estipula toda uma rede de relações que extrapolam o grupo em si. Isso implica a relação com outros grupos, como a família, a vizinhança local, os professores, policiais, bem como com diferentes espaços de interação, como a escola, a casa dos pais ou dos amigos, a rua, a esquina, entre outros. Todos eles vão dinamizar e abrigar a construção de uma visão de mundo dessas juventudes em torno desse “canto de Ceilândia”: o rap. Essa forma de cultura popular engajada em discursos de uma “missão transformadora” foi uma referência motivadora do envolvimento das primeiras gerações de jovens no hip-hop no Distrito Federal. Isso foi constatado a partir das experiências dos próprios jovens em Ceilândia, em que, através de uma inserção nos meios de produção musical do rap, os jovens puderam redefinir uma série de pautas reivindicatórias na esfera política, no sentido de um reconhecimento positivo da juventude das periferias de Brasília. Isso foi realizado mediante a intervenção no espaço público através de shows, assim como no campo publicitário dos meios de comunicação, que estigmatizavam a cidade, bem como sua juventude. Nesse caso, o rap passou a ser um dos referenciais do reconhecimento da juventude antirracista na periferia de Brasília. A análise das orientações coletivas dos jovens envolvidos com o hip-hop e o rap em Ceilândia permitiu, por meio do método documentário, construir um tipo em relação social frente a sua posição geracional e ao seu estilo cultural. Dessa forma, a família e as relações interpessoais de amizade foram relevantes para a construção de um sentido de pertencimento coletivo. A cidade, com sua complexidade e contrastes, assim como com semelhanças no que se refere à condição de classe dos grupos, permitiu que esses se identificassem dentro de uma experiência intersubjetiva geracional. Em relação à constituição dos grupos, eles se originaram de maneira semelhante, a partir de projetos promovidos por instituições assistenciais que atuam em escolas no setor onde os jovens residem. Em relação à elaboração de um projeto político-pedagógico, os grupos estão voltados para um conjunto de práticas lúdicas e de consumo de bens identificadores com o sentido de enfrentar seus problemas cotidianos. Outros grupos reivindicam o sentido de uma missão política para realizar o resgate daqueles envolvidos no “vício do álcool e das drogas”. Em geral, o sentido de missão política voltado para a mudança social foi apresentado de diversas maneiras pelos grupos, como: “revolução”, “cultura forte”, entre outras assumidas pelos grupos. Todas elas constituem expressões que, de maneira heterodoxa, propõem um envolvimento dos jovens com atividades sociopolíticas em sua cidade. A formação e o envolvimento dos jovens com o hip-hop e o rap, que eram em sua maioria negros, do sexo masculino, com idade aproximada de 15 a 25 anos, foram motivados por vários elementos, como as relações vicinais articuladas por espaços de circulação e convivência como a escola. Contudo, apesar das semelhanças entre os jovens, isso não implica que os mesmos sejam homogêneos, mas que compartilham de uma visão de mundo em que se elege um “protagonismo jovem” como valor. Alguns grupos estão envolvidos em trabalhos sociais coordenados por ONGs locais ou regionais, outros atuam como empreendedores de pequenas atividades voltadas para o lazer em suas comunidades. A família enquanto instituição social se mostrou relevante para os jovens que, em sua maioria, vivem com seus pais ou avós, os quais são espectadores do envolvimento dos seus filhos com a música. Breitner Tavares 223 Paralelamente ao discurso que valoriza a interconexão geracional com os pais e as pessoas mais velhas, há um conjunto de assertivas que indicam o interesse dos jovens em criar um espaço de convívio restrito às suas práticas sociais em torno da música e da troca de experiências com outros jovens envolvidos num mesmo contexto geracional. Parte da motivação dos grupos de rap em relação a uma transformação, definida por “revolução” ou “correr atrás de algo verdadeiro”, traduz o sentido de vários dilemas enfrentados pelos jovens no setor da cidade onde vivem, espaço onde lidam com experiências discriminatórias nas escolas ou mesmo nas ruas. Apesar do desejo de mudança e mobilização local, observa-se a tensão entre valores de cunho mais individualista, representados pela categoria “playboy” em contraposição ao associativismo preconizado pelos jovens “rappers”. Os desacertos e a dificuldade de mobilização no sentido reivindicatório leva à criação de um imaginário distópico em relação à vida na periferia urbana, além da criação de estereótipos relacionados à violência juvenil. Portanto, em suas narrativas, há uma ambivalência entre uma violência naturalizada e o discurso em torno de um resgate social a partir de uma juventude envolvida no estilo hiphop. A observação de campo, bem como as entrevistas dos grupos de discussão permitiram observações de uma orientação coletiva dos jovens em relação à sexualidade masculina e suas perspectivas acerca das visões de mundo sobre relacionamento afetivo. Há vários elementos que permitem constatar o modo como os jovens estabelecem um sistema diferenciado de papéis sociais masculinos e femininos de jovens que, em sua maioria, são solteiros. Os jovens definem o envolvimento com o hip-hop como um aspecto orientador de suas escolhas afetivas. Isso se torna uma prerrogativa masculina para determinar a dinâmica do relacionamento com as garotas, definidas em categorias como: “donas”, “minas” ou “piriguetes”. Nesse contexto, estipulam-se certos valores masculinos de cunho sexista que limitam o espaço de circulação das jovens, especialmente aqueles relacionados ao lazer. Os jovens do sexo masculino, em geral, preferem buscar diversão na companhia de outros amigos em detrimento de suas namoradas ou esposas, mas frequentam espaços de socialização e lazer onde há a presença feminina. Além disso, alguns jovens, “garanhões” ou “aqueles que pegam todas”, preferem estar envolvidos em relacionamentos ocasionais com as “donas” ou “piriguetes”. Nesse caso, a vida festiva, expressa no “curtir o frevo” ou “ficar zanzando”, se apresenta como uma oposição ao relacionamento estável de cunho monogâmico. Em contrapartida ao discurso predominante que invisibiliza a participação feminina nas constituições do relacionamento afetivo, há determinadas situações em que se observaram inversões ou reações das jovens no sentido de determinarem suas próprias escolhas frente à configuração do relacionamento patriarcal ou frente à redefinição de um prognóstico de futuro que possa interferir na solução de problemas enfrentados pela juventude, como o pessimismo e a violência urbana. Portanto, as jovens têm a capacidade de “mudar a cabeça” de seus companheiros e livrá-los da “guerra”. Para os jovens rappers de Ceilândia, o amor romântico é redefinido pelos relacionamentos por eles orientados. Apesar do sexismo e misoginia, não se pode afirmar simplesmente que haja uma Breitner Tavares 224 dominação unilateral, mas uma complexidade dos papéis femininos e masculinos, que, eventualmente, transgridem o sexismo implícito nas interações sociais. O método documentário, assim como a observação de um vasto material iconográfico, como jornais e periódicos, permitiu a constatação de diversas experiências discriminatórias sofridas pelos jovens envolvidos no hip-hop em Ceilândia. Na mesma proporção, o hip-hop permitiu a reflexão sobre estratégias criativas estipuladas pelos grupos para enfrentarem tais situações. Os jovens alegam que são constrangidos frequentemente em função de abordagens discriminatórias, no espaço público, em função do estilo hip-hop pelo seu habitus corporal e sistema de gosto expresso por uma indumentária específica, a qual é identificada negativamente. Há diversos exemplos sobre como a polícia aborda os jovens fundamentando-se em categorias discriminatórias associadas de alguma maneira ao estilo hip-hop como o “peba”. As histórias apresentadas durante os grupos de discussão tratam de situações em que os jovens negros são seguidos e constrangidos por guardas em estabelecimentos comerciais como shoppings. Em outras situações, eles são identificados de maneira suspeita em áreas valorizadas economicamente e de maioria branca em Brasília. O aspecto de uma configuração urbana no Distrito Federal, que criou periferias heterogêneas em termos de classe, contudo, mais homogêneas em termos étnico-raciais, cria, portanto, uma periferia racializada pela predominância de negros, que sofrem uma constante abordagem policial, considerada agressiva pelos jovens. Os jovens em geral naturalizam as situações nas quais sofrem algum tipo de discriminação, eles já se “acostumaram”. Dessa forma, o simples fato de o fato de serem jovens e negros já justificaria a abordagem agressiva da polícia. Além disso, a condição geográfica, por viverem numa cidade como Ceilândia, estigmatizada pela ideia de periferia, só agravaria esse quadro. Apesar do fatalismo de alguns discursos mais pessimistas, há aqueles que buscam formas de enfrentamento da discriminação racial e da discriminação em relação ao estilo hip-hop. Os jovens afirmam em suas narrativas que enfrentam diretamente essas situações em espaços em que estão envolvidos numa situação discriminatória, como a escola, o trabalho, entre outros. Para isso, recorre-se à estratégia de tentar dialogar informalmente contra o agente causador do racismo para demonstrar sua posição antirracista usando o “jeito comédia”. Por outro lado, alguns jovens afirmam que, caso seja necessário, recorre-se até mesmo a uma queixa formal para punir os eventuais agressores. Os jovens organizados a partir do hip-hop e seu sentido de transformação social, como mencionado em seus discursos de “revolução”, buscam através do rap e de outras práticas sociais ligadas ao lazer, lidar com os dilemas existenciais a sua volta. Dessa forma, os jovens que compartilham de uma mesma configuração geracional a partir do estilo hip-hop lidam com seus medos e desejos, em que o amor é a utopia fugaz voltada para o futuro e vivida no presente. A pobreza e o racismo, materializados num espaço urbano desprovido de equipamentos públicos, criam um meio ambiente que leva os grupos de rap a assumirem a missão de uma entidade coletiva capaz de se organizar na ausência de um Estado e promover atividades sociais que os jovens julgam necessárias para cultivarem uma autoestima positiva na Breitner Tavares 225 periferia onde vivem na busca por reconhecimento social que eventualmente se constitui de maneira insurgente. 11 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABMA, Ruud. 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