Na quebrada, a parceria é mais forte - Juventude hip-hop: relacionamento e estratégias contra a
discriminação na periferia do Distrito Federal
Breitner Luiz Tavares
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO: VELHAS E NOVAS JUVENTUDES
1
CAPÍTULO 1 GERAÇÕES:
POR UMA TEORIA DO TEMPO EM MOVIMENTO
1.1
O conceito de Gerações: alguns aportes
1.2
O problema das gerações enquanto sociologia da mudança social
1.3
6
Noções de geração e habitus:
movimentos sociais como formas de estilos de vida e gosto
CAPITULO 2
ESTUDOS E TEORIAS SOBRE A JUVENTUDE
NO SÉCULO XX E NO PRESENTE: UMA BREVE REVISÃO
2.1 As velhas teorias:
Escola de Chicago (1920-1940) e Teorias Funcionalistas (1950-1960)
2.2 Estudos Culturais (anos 1970)
2.2.1 Subculturas jovens sob uma perspectiva crítica
2.2.2 Mercado de bens culturais, estilo e autenticidade
2.2.3 Sexo ou classes
2.2.3 Abordagens qualitativas no âmbito do CCCS
2.3 Juventude enquanto categoria social no Brasil
2.3.1 Um novo paradigma da juventude nos anos 90:
violência e criminalização – Uma abordagem sobre os estudos da UNESCO
Breitner Tavares
16
2.3.2 Para as juventudes do presente
CAPÍTULO 3
O MÉTODO DOCUMENTÁRIO COMO REFERÊNCIA PARA O ESTUDO DAS ORIENTAÇÕES
COLETIVAS DA JUVENTUDE HIP-HOP
38
3.1 Sociologia compreensiva e o método documentário
CAPITULO 4 CIDADE E DINAMIZAÇÃO E PERIFERIZAÇÃO:
UMA SOCIOLOGIA URBANA DE BRASÍLIA
46
4.1 Segregação Sócio Espacial: A Invensão da periferia
4.2 Ceilândia-DF: o projeto da invasão erradicada
CAPÍTULO 5
HIP-HOP COMO PENSAMENTO DESCOLONIAL E PÓS COLONIAL
55
CAPíTULO 6
ETNOGRAFIA URBANA: JUVENTUDE HIP-HOP NO DISTRITO FEDERAL
61
CAPÍTULO 7
ORIENTAÇÕES COLETIVAS E GERACIONAIS
DE JOVENS RAPPERS NO DISTRITO FEDERAL
7.1 Orientações Coletivas e Geracionais:
estilo de vida hip-hop e o envolvimento com trabalho social
7.2 Grupos Revolução MCs e Resistência Periférica:
estilo de vida e configuração urbana
7.3 Sobre as orientações coletivas dos jovens dos grupos analisados:
algumas considerações conclusivas
CAPÍTULO 8
ESTILO E RELACIONAMENTO:
Breitner Tavares
II
73
DEMARCADORES COLETIVOS EM TORNO DO TEMA SEXUALIDADE
140
8.1 Grupos Rap Comando e BR45: Ficar, namorar e projeções de futuro
8.2 Masculinidade e misoginia: a construção social do namoro e a monogamia-Grupos Revolução MCs e
Resistência Periférica
8.3 Algumas considerações gerais sobre relacionamento
e sexualidade nos grupos hip-hop
CAPÍTULO 9
EXPERIÊNCIAS
DISCRIMINATÓRIAS
E
ESTRATÉGIAS
ENFRENTAMENTO CRIADAS PELOS JOVENS RAPPERS
COMUNICATIVAS
DE
171
9.1 No shopping assim, o segurança me olhando me seguindo. Seria por causa da minha cor ou das
minhas vestes? -Grupos BR45 e Revolução MCs
9.2 Configuração urbana e estratégias de enfrentamento da discriminação-Grupos Rap Comando e
Resistência Periférica
9.3 Algumas considerações gerais sobre as experiências discriminatórias e estratégias de enfrentamento
dos jovens
10 CONSIDERAÇÕES FINAIS
205
11 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
210
Breitner Tavares
III
Introdução: velhas e novas juventudes
Meu interesse pela sociologia urbana de fato, surgiu durante graduação em Sociologia na
Universidade de Brasília-UnB em 1999. Diante dessa influência, eu passei a me dedicar aos fenômenos
da cultura e sociabilidades urbanas, quando decidi em 2003 iniciar o curso de mestrado sob orientação da
professora Barbara Freitag, pelo Programa de Pós Graduação Sociologia – PPSOL-UnB. Naquela
ocasião, eu havia decidido realizar um estudo de caso sobre mercados informais, como feiras livres.
Nesse caso, o tema das representações sociais e da segregação sócio espacial adquiriram um novo viés
pelo aspecto simultaneamente lúdico e controvertido, em relação a um espaço social como uma feira
poderia ser. Dessa investigação resultou a dissertação defendida em 2005, intitulada: Feira do Rolo: Na
pedagogia da malandragem: Memória e representações sociais no espaço urbano de Ceilândia-DF.
A pesquisa de mestrado me permitiu desenvolver algumas reflexões acerca da configuração do
espaço urbano de Brasília pelo viés da realidade fora do Plano Piloto, em áreas segregadas e incompletas
em termos de infra estrutura urbana. De fato, Brasília hoje próxima do seu cinquentenário encontra o
reflexo de seus problemas e possibilidades nas outras cidades do Distrito Federal, anteriormente
denominadas “cidades satélites”, e a região do Entorno. Nesse caso, o estudo sobre juventude permitiu
observar, como a vida na cidade implica na percepção de manifestações de diferentes gerações
estruturadas em diversos espaços de socialização e fluxos contínuos.
Antes mesmo de ingressar no curso de doutorado pelo PPSOL-UnB, eu já havia iniciado o
esboço daquilo que se tornaria mais adiante meu projeto de tese sob orientação do professor Brasilmar
Ferreira Nunes. Eu desejava realizar um estudo sobre sociologia da juventude com ênfase no estilo de
vida hip hop na periferia urbana do Distrito Federal. Nessa ocasião estabeleci contato com a professora
Wivian Weller, que já havia produzido um estudo comparativo entre jovens rappers em São Paulo e
Berlin. Desde então, eu pude acompanhar boa parte de seu trabalho o que colaborou de modo
significativo para novas abordagens em pesquisas sobre juventude.
Durante o trabalho de pesquisa de campo entre 2006 e 2007 realizado em algumas cidades do
Distrito Federal e especialmente na Ceilândia, em alguns momentos, a minha experiência como morador
e professor, bem como, membro de algumas entidades sócio culturais da cidade contribuiu
significativamente para minha aproximação dos jovens. Ao longo desta tese há várias fotos obtidas
durante esse trabalho, contudo essas fotos são apresentadas intensionalmente sem legendas. Elas não
pretendem ilustrar os argumentos do texto. Por fim, elas são simplesmente um convite para um passeio,
por uma rua não linear pavimentada por imagens.
Essa pesquisa foi capaz de revelar o quanto Ceilândia expressa diferentes hierarquias sociais
vistas a partir das relações de classe social, gênero e sexualidade, raça e etnia. Alem disso pude
Breitner Tavares
acompanhar brevemente como a juventude redefine, sob uma nova ótica, a própria maneira de
compreender o que significa ser “ser urbano” na contemporaneidade.
Ao se remeter à categoria juventude, objeto de diversas conotações, faz-se necessário discuti-la a
partir de alguns postulados, os quais ajudarão a se aproximar da configuração de um campo temático para
o estudo sociológico da juventude, tais como o conceito de gerações, a teoria funcionalista sobre
juventude, os estudos culturais. Além disso, serão apresentados nos capítulos 1 e 2 alguns elementos que
serão a base para os primeiros estudos sobre a juventude no Brasil, no final dos anos sessenta e setenta, e
as contribuições da atual configuração do campo de estudos sobre a juventude influenciado pela Unesco
nos anos de 1990. Cabe destacar que essa abordagem não pretende ser simplesmente uma “revisão da
literatura”, mas uma possibilidade de reflexão de como esses eixos demarcadores cunharam uma
variedade de sentidos para a juventude, ora superexpondo certos eventos e características, ora omitindo
certas assimetrias internas ao fenômeno da juventude.
Inicialmente, cabe ressaltar que, dentre as abordagens sobre juventude, a mais difundida se faz
através do conceito de gerações, desenvolvido por Mannheim (1952), o qual se refere de uma maneira
geral a uma noção qualitativa de tempo e como esse tempo está voltado para um processo incessante de
mudança social. Assim, a juventude inserida num processo de formação de uma unidade geracional
diversa, frente à subjetividade de seus atores, realiza-se na busca de suas metas íntimas, do espírito de seu
próprio tempo. Nesse caso, o que importa é analisar nos tempos atuais quais são as reações e intenções
desses grupos, em especial na contemporaneidade. A juventude exprime reações diferentes frente a
problemas semelhantes, observáveis nos diferenciados estilos de vida manifestos. Esses estilos, por sua
vez, estão voltados para a busca pela participação de espaços políticos na tentativa de reconhecimento
social. Essa mobilização social a partir de uma posição de classe da juventude constitui um fator
indicativo de sua posição geracional.
Ainda no capítulo 2, discute-se como os estudos empíricos pioneiros, desenvolvidos por alguns
pesquisadores vinculados à Escola de Chicago, na primeira metade do século XX, trataram de questões
como a negação dos valores morais dominantes, a delinquência ou mesmo a criminalidade, ligando os
jovens ao desvio do processo de integração do jovem na estrutura social. Pode-se, de fato, inferir que
houve certa ênfase em estudos sobre jovens das “classes baixas” nos primeiros estudos empíricos, como
os desenvolvidos nas décadas de 30 e 40 pela Escola de Chicago, por autores como Whyte (2005),
Thrasher (1927) e Shaw (1930). As hipóteses implícitas daqueles estudos se referiam ao problema da
delinquência como resultante do processo de urbanização, o qual será abordado mais adiante.
Há aqui várias perspectivas que remetem à elucidação da violência juvenil. Algumas delas são
apegadas às explicações centradas no indivíduo, segundo as quais aspectos biopsicossociais influenciam a
construção de personalidades desviantes, como aquelas abordagens de caráter funcional-estruturalista
(MERTOM, 1949). O desenvolvimento econômico desigual numa sociedade extremamente competitiva
exige uma maior preparação para o mundo do trabalho e uma maior escolarização que, entre outros
Breitner Tavares
2
fatores, prolongam a transição do jovem ao mundo adulto. Como consequência disso, surgem menores
oportunidades.
Posteriormente, nos anos sessenta, haverá uma grande ênfase nos estudos sobre a juventude de
classe média, em especial sobre estudantes universitários. Aqui as hipóteses serão voltadas, sobretudo,
para o potencial transformador do jovem em função da assimilação de valores políticos esquerdistas.
Aliás, como será visto adiante, esse será o referencial analítico e empírico do surgimento da sociologia
das juventudes no Brasil: o “jovem revoltado” (IANI, 1968), engajado politicamente, mas incapaz de
realizar a transformação social que o sentido de missão, construído nos movimentos estudantis, traduzia
(FORACCHI, 1972). Em contrapartida, os jovens de classe trabalhadora são colocados em plano
secundário nas análises, tipificados como desinteressados em política ou incapazes de se organizarem
politicamente em função, justamente, de sua condição de classe trabalhadora.
Os estudos culturais representados pelo Centre for Contemporary Culture Studies (CCCS),
criado na Inglaterra, especificamente na Universidade de Birmingham, no final dos anos sessenta do
século XX, constituirão um marco na renovação dos estudos sobre a juventude. Sua formação
multidisciplinar com apelo marxista retoma os estudos sobre juventude sob a ótica das classes sociais.
Metodologicamente, retoma-se a pesquisa qualitativa, em especial a observação participante e a pesquisa
etnográfica. O CCCS foi responsável pela difusão dos estudos da juventude sob a perspectiva da
subcultura. O posicionamento crítico do grupo de estudos em relação à influência neopositivista nas
ciências sociais motivará uma série de controvérsias em relação à legitimidade do CCCS, bem como em
relação a limites de sua proposta intelectual.
No final dos anos 90, a Unesco será responsável pela retomada dos estudos sobre juventude no
Brasil. Nesse caso a juventude, enquanto categoria social, é redefinida não a partir da perspectiva de
classe, mas pela abordagem de categorias, tais como violência, cidadania e protagonismo social. A
Unesco, com seu ímpeto intervencionista, mobilizou pesquisadores, bem como o campo político
institucional, e definiu novos parâmetros em relação à juventude. Essa deixa de ser “desviante” e passa a
agente social, vítima e causadora da violência, o que a inclui numa perspectiva de vulnerabilidade social.
Além da Unesco, enquanto intituição que irá motivar a redefinição dos estudos sobre juventude
no Brasil, nos anos noventa, observa-se o surgimento de novas abordagens sobre gerações e juventude
que se posicionam de um modo crítico em relação a outras abordagens mais tradicionais de cunho linear.
Autoras como Sposito (1994) e Pais (2005) discutem uma abordagem teórica e metodológica definida
como “pós-linear”. Esses estudos questionam as perspectivas mais tradicionais sobre os estudos da
juventude, para isso as autoras se voltam para a complexidade intrínseca dos modos de vida dos jovens
definidos como “culturas juvenis”. Essa pluralidade cria possibilidades para novas pesquisas sobre um
campo de estudos a respeito da juventude ainda em estruturação no Brasil. Aspectos como o consumo dos
jovens pobres das classes trabalhadoras, bem como dimensões relativas à construção de um sistema de
distinções sociais, pautados em categorias como raça-etnia, gênero e sexualidade, desafiam a construção
de uma metodologia explicativa desses fenômenos presentes nas orientações coletivas das juventudes.
Breitner Tavares
3
Em relação aos aspectos metodológicos da pesquisa, no capítulo 3, serão apresentados alguns
aspectos sobre o método documentário de interpretação, o qual foi criado pelo sociólogo húngaro Karl
Mannheim como uma forma de análise das visões de mundo. Essa metodologia de cunho qualitativo
permite a organização dos dados de pesquisa obtidos mediante a observação participante das entrevistas
com os grupos de discussão e a análise de materiais iconográficos. No capítulo 4 são discutidos algus
aspectos sócios históriocos da configuração urbana de Brasília bem como o processo segregação sócio
espacial que deu origem a uma periferia urbana representada por cidades como Ceilândia-DF.
Algumas discussões sobre as origens e dinâmicas em relação ao hip-hop são apresentadas no
capítulo 5, com o objetivo de estabelecer um norte entre certas perspectivas teóricas do pensamento póscolonial (GILROY, 2001) e pensamento fronteiriço (GROSFOGUEL, 2005). A ideia central passa pela
crítica ao reducionismo imposto pela ideia de globalização da cultura como algo assimilado em termos de
uma hierarquia centro-periferia (SANSONE, 2004). Aspectos relacionados à raça/etnia e gênero
permitem uma elaboração sobre sistemas de distinção social pautados em vínculos discriminatórios, bem
como em algumas alternativas estabelecidas pelos jovens para isso. Por fim, no capítulo 6 faz-se uma
explanação geral sobre o hip-hop no Distrito Federal e sua relação com a luta pelo reconhecimento social
da juventude negra das periferias, a partir da luta concorrencial de um mercado fonográfico que envolve o
estilo musical rap.
O trabalho de campo realizado em Ceilândia, incluindo as observações participantes e as
descrições dos grupos analisados, é parte integrante do capítulo 7. Esse capítulo é fundamental, pois
apresenta diversos elementos relacionados as orientações coletivas dos jovens em relação a sua
identificação com o estilo hip-hop, bem como, sobre a formação dos grupos de rap. A relação
intergeracional com pessoas mais velhas dentro do universo familiar ou da Escola expressa parte da
percepção juvenil do espaço urbano. A cidade se apresenta para o jovem ao mesmo tempo com um
espaço precário e como um espaço mutável a partir da construção de valores de pertencimento coletivo
como a amizade.
Em seguida, no capítulo 8, a sexualidade dos jovens é discutida a partir da ótica da afetividade e
da constituição dos vínculos afetivos. A fugacidade dos relacionamentos ou a perspectiva de futuro
monogâmico são dilemas enfrentados pelos jovens. Em relação a isso, há o enfrentamento de aspectos
relacionados à construção de um sentido de masculinidade que não é unívoco, mas frequentemente
sexista.
No capítulo 9, os jovens apresentam suas narrativas em relação às experiências discriminatórias.
Eles elegem, de modo, às vezes, fragmentário, diversas situações que envolvem desde constrangimentos
cometidos por professoras na escola primária até mesmo, a violência policial, nas ocasiões em que são
abordados na região onde vivem. Diante disso, os jovens elaboram, a partir de um conjunto complexo de
variáveis, as explicações para a discriminação que sofrem no seu cotidiano. Essas explicações passam
invariavelmente pela condição geracional, da identificação dos jovem com o estilo estilo hip-hop. Além
disso, o constrangimento decorrentes da pobreza e do racismo são outros agravantes desse quadro vivido
por jovens negros e pobres em Ceilândia. Em relação à postura dos jovens frente às situações
Breitner Tavares
4
discriminatórias, eles apresentam suas alternativas de enfrentamento que, em geral, estão voltadas para o
diálogo com os agentes diretos causadores da discriminação.
De um modo geral, a estrutura da tese, no que se refere a disposição dos seus capítulos visa
expor diversas abordagens sobre o problema da juventude no espaço urbano. No capítulos 1 e 2 há uma
ênfase nas escolhas teóricas para os estudos da juventude como apresentado na discussão sobre gerações,
bem como, nos conceitos de estilo de vida e habitus. Mais adiante, percorresse-se algumas escolas
representativas para esses estudos com a dupla função informativa e crítica desses postulados
desenvolvidos pela Escola de Chicago, a teoria funcional-estruturalista e os estudos culturais. Além
disso, os primeiros estudos sobre juventude, em especial advinda dos meios universitários como ocorre
nos anos 60 e sua influência nos primeiros estudos são apresentados de modo a delinear a preferência
pelos estudos das camadas médias da sociedade, como “os universitários” e uma certa ausência de
pesquisas sobre juventude de classe trabalhadora. Os estudos da UNESCO no final dos anos noventa
assume uma demanda social por estudos sobre juventude e de certa forma reimpulsiona esse campo de
pesquisa que atualmente assume um possição multudisciplinar, “pós linear” em abordagens que visam
incluir diversas categorias de análise anteriormente invisibilisadas ou estudades de maneira distinta como
é ocorria nos estudos de gênero\ sexualidade, raça\etnia e classe social.
O capitulo 3 de cunho teórico-metodológico retoma a discussão do método documetário de
Mannheim, bem como suas contribuições para a pesquisa qualitativa atual. O capítulo 4 cumpre a função
de introduzir a discussão sobre a sociologia urbana de Brasília a fim de localizar a cidade com espaço
dessas múltiplas interações sobre jovens especialmente para os menos familiarizados com as
especificidades da configuração da cidade modernista. O capítulo 5 , sobre hip hop e diáspora negra,
cumpre a função de dicutir em termos de bem cultural enquanto fenômeno mundial capaz de
interconectar diferentes hierarquisas sociais a aprtir de uma estética que suerge no espaço público na luta
por reconhecimento social. A história do hip hop e mais precisamente do rap no Distrito Federal é
apresentada no capítulo 6, de modo a enfatizar sua relevância enquanto parte relevante da estrutura da
produção cultural nacional.
Finalmente os capítulos 7, 8 e 9 discutem alguns aspectos relacionados as orientações coletivas
dos jovens em termos da constituição dos grupos de rap, da mamneira como os jovens lidam com sua
sexualidade e como enfrentam determinadas experiências dicriminatórias na periferia urbana onde vivem.
Breitner Tavares
5
CAPÍTULO 1 GERAÇÕES: POR UMA TEORIA DO TEMPO EM MOVIMENTO
The emergences of disciplines have often led to forgetting of their impetus in living human subjects and
their crucial role in both the maintenance and transformation of knowledge - producing practices. The
results are special kind of decadence. One such kind of disciplinary decadence. Disciplinary decadence is
the anthologizing or reification of a discipline as thought it was never born and has always existed and
will never change or, in some cases, die.
Lewis R. Gordon – Disciplinary Decadence (2006)
Como um dos principais conceitos para a elaboração de uma teoria sobre a juventude, o conceito
de gerações de Mannheim1 persiste enquanto referencial teórico e metodológico de grande importância
sociológica.
Apesar de ser considerado um “autor clássico”, até hoje parte de sua obra continua sem tradução
em língua portuguesa, além disso, já foram observadas deturpações em traduções para línguas latinas
1
Mannheim, nascido em 1893, na Hungria, de família judia, assimilou diversas influências intelectuais,
especialmente das ciências sociais. Teve seus primeiros contatos com estudos sobre filosofia em
Budapeste, em 1915, sendo orientado por Georg Lukács. Mais tarde, vai a Berlim, onde ouviu as
preleções de G. Simmel. Além disso, em Heidelberg, em 1921, foi aluno de Alfred Weber, irmão de Max
Weber. Em 1930, se tornou professor na Universidade de Frankfurt, onde teve como assistente Nobert
Elias. Em 1933, já com a ascensão do nazi-fascismo, Mannheim deixa a Alemanha para viver na
Inglaterra, onde lecionou na London School of Economics, onde falece, em 1947 ( KETTLER, 1984).
Breitner Tavares
6
(WELLER, 2005b). Isso poderia ter prejudicado uma maior difusão do autor. Mannheim foi considerado
para alguns autores como um humanista reformador, devido a algumas de suas considerações, como a
intelligentsia e as possíveis alternativas ao totalitarismo, chamado de o “terceiro caminho” ou “terceira
via”. Isso consistiria na intervenção pragmática de uma filosofia pautada em princípios científicos que
deveriam substituir as técnicas tradicionais e manipulativas, ou seja, pautada em princípios formais do
planejamento (FERNADES, 1960).
Por outro lado, outras autoras, posteriormente, seguem assinalando a relevância e o problema de
uma subteorização frente à obra de Mannheim (DOMINGUES, 2002), especialmente em relação a
algumas de suas contribuições como os conceitos teóricos metodológicos: geração e o método
documentário, os quais serão discutidos oportunamente.
1.1 O conceito de Gerações: alguns aportes
O problema das gerações, como perspectiva sociológica, constituiu um dos marcos da
sociologia, dados os estudos que propõem investigar processos de mudança social e estudos sobre
juventude, que estão interligados à construção de uma “visão de mundo”.
Mannheim, em seu famoso ensaio O problema das gerações, publicado inicialmente em 1928,
analisa a categoria gerações, realizando primeiramente uma análise comparativa de algumas assimetrias e
alguns encaixes existentes nas abordagens positivistas francesas, que primavam pela quantificação, em
termos lineares, dos eventos sociais e da natureza humana e, por outro lado, pelo pensamento romântico
alemão que valorizava uma perspectiva de cunho qualitativo.
Partindo da perspectiva positivista, a contagem do tempo em termos cronológicos determinaria a
sucessão da vida e da morte, em relação à realização humana do progresso, que segue uma lógica mais ou
menos estável. Alterações nas relações humanas são a base para o processo de dinâmica social, no que se
refere a aspectos ligados à cultura e à tradição, que são consequentes na duração desse processo de
natureza biológica. Nesse tipo de abordagem, Mannheim também observou outras generalizações
improváveis em relação às gerações, como a natureza intrinsecamente conservadora dos pais e, por sua
vez, a posição contestadora dos filhos; contudo, suas considerações em relação à juventude nazi-fascista
(MANNHEIM, 1993) buscaram demonstrar que essas prerrogativas nem sempre correspondiam às
diferentes configurações geracionais criadas historicamente.
Esses estudos estavam voltados para hipóteses que se empenhavam em determinar quais
períodos de idade seriam determinantes no “processo de substituição da vida”, para o ingresso ou o
abandono dos indivíduos na vida social, em termos de faixa etária. A observação de diferentes
instituições permitiria constatar dinâmicas sociais diversas, algumas “moderadas”, como os militares, e
outras mais “livres”, como intelectuais e artistas (MANNHEIM, 1993, p. Apud WELLER, 2005b). Por
outro lado, o postulado do pensamento romântico alemão, de grande influência de Dilthey, postula que,
para além do tempo mensurável, há o tempo que é vivido numa dimensão intersubjetiva pelos sujeitos
sociais. Essa perspectiva está basicamente vinculada à noção qualitativa de tempo. Um tempo que é
Breitner Tavares
7
experienciado para além de um tempo cartesiano, naquilo que se pode denominar como “compreensão
intuitiva”.
Los individuos que crecen como contemporáneos experimentan –tanto en los
años de gran receptividad como después – las mismas influencias directrices
de la cultura intelectual que les moldea y de la situación político-social.
Constituyen una generación, una contemporaneidad, porque esas influencias
son unitarias. Se produce así un vuelco: se pasa a considerar que, en lugar de
ser un simple dato cronológico, la contemporaneidad significa, en la historia
del espíritu, la existencia de influencias similares (MANNHEIM, 1993, p.
199)2.
Como menciona Dilthey (MANNHEIM, 1993, p. 199), as interações subjetivas dos vários atores
sociais são fundamentais para se definir uma geração, pois a mesma é consequência de múltiplas
influências vivenciadas por indivíduos de uma mesma época. Essas experiências compartilhadas são
definidas por fatores como: o período específico do nascimento e as condições socioeconômicas dos
sujeitos sociais que irão contribuir para a formação de uma mentalidade específica. Esses elementos, para
Mannheim, definem o que seria uma “situação de classe”.
A contraposição de uma proposta positivista de cunho matemático com a abordagem de âmbito
qualitativo deixa a quantificação e imerge na experimentação. A questão apontada anteriormente em
relação à sucessão das gerações é posta nos termos das vivências e dos riscos dos múltiplos atores sociais
na contemporaneidade. Contudo, neste mesmo turbilhão de sentimentos e estimas com os quais os
indivíduos se confrontam, se associam e se realizam, há supostamente variações na constituição de
gerações dentro de um mesmo tempo histórico. “El poder del ‘destino colectivo’ se libera ante todo en la
comunicación y en la lucha. Lo que constituye el propio acontecer cabal del ‘ser ahí’ es el ‘destino
común’ individualmente destinado del ‘ser ahí’ en y junto a su generación’ (MANNHEIM, 1993, p. 200).
2
As traduções dos textos de Mannheim já foram objeto de várias críticas, como considera Weller (2005)
e Ros (1993). No caso das versões existentes em língua portuguesa, a portuguesa (Editora Rés) e a
brasileira (Editora Zahar, 1967) foram feitas a partir da versão inglesa publicada em 1952, em uma
coletânea com textos de Karl Mannheim – Essays on the Sociology of Knowledge – organizada por Paul
Kecskemeti (Editora Routledge & Kegan Paul, p. 276-322), que teria como objetivo tornar a obra mais
acessível ao leitor anglo-saxônico, provocando, assim, uma mudança do vocabulário teórico. Essa seria
uma provável explicação das incorreções quanto aos conceitos empregados originalmente pelo autor. Em
função disso, a versão mais próxima do sentido original da obra seria a versão espanhola, versão do artigo
produzido por Ignacio Sánchez de la Yncera, publicada em 1993, na Revista Española de Investigaciones
Sociológicas, traduzida diretamente do alemão, REIS, n. 62, p. 147-192, abr/jun. 1993.
Breitner Tavares
8
A convivência entre múltiplos indivíduos em termos de idade e localização, dentre outras
variáveis, estabelece diferentes tempos para uma mesma época ou seja, uma experimentação da vida que
tende a unir aqueles que têm idades mais aproximadas num “destino comum”. Mannheim observou essa
possibilidade do convívio de diversas gerações numa mesma época em Pinder em sua perspectiva “da não
contemporaneidade dos contemporâneos”. Em outros termos, dentro de uma mesma cronologia, pode-se
encontrar mais de uma realidade que trás consigo uma carga multidimensional pela diversidade de níveis
de maturação e desenvolvimento de cada geração. “Cada uno vive con gente de su edad y con gente de
edades distintas en una plenitud de posibilidades contemporáneas. Para cada uno el mismo tiempo es un
tiempo distinto; a saber: una época distinta y propia de él, que sólo comparte con sus coetâneos”
(MANNHEIM, 1993, p. 200).
Outro conceito de Pinder chamado enteléquia está relacionado à maneira como uma geração
expressa um sentido de unidade, aquilo a distingue de outros grupos sociais em função de seu propósito,
de sua maneira de “experimentar a vida no mundo”, “suas metas íntimas”. Dessa forma, não há no mundo
experiência que seja homogênea frente à complexidade da vida social.
La unidad de una época no tiene impulso dinamizador alguno, no cuenta con
ningún principio formativo unitario; carece, por lo tanto, de entelequia. Su
unidad consiste, a lo sumo, en una situación de afinidad en cuando a los
medios que un mismo momento de tiempo pone a disposición de la
generación para las distintas tareas (MANNHEIM, 1993, p. 202).
Uma geração possui configurações diversas que independem de laços sociais relacionados a um
“grupo concreto”, como, por exemplo: a família, a tribo ou a seita assim como as associações de cunho
comunitário ou qualquer instituição que se organiza deliberadamente em função de um fim específico.
Essa perspectiva dispensa a necessidade de uma espacialização para a configuração de uma geração, pois
muitos indivíduos podem compartilhar de uma mesma conexão geracional sem que necessariamente se
encontrem ou se conheçam para estarem conectados. Por outro lado, isso não implica um total desprezo
da espacialização, pois, conforme discutiremos mais adiante, são os movimentos sociais materializados
num tempo e espaço construídos dentro de sua existência social e enquanto intelectuais contemporâneos
que irão clamar por um reconhecimento social dentro de um sistema de múltiplas associações sociais.
La conexión generacional es un ser los individuos unos con otros en el que se
está vinculado por algo; pero de esta adhesión no se deriva aún, de forma
inmediata, ningún grupo concreto. Con todo, la conexión generacional es un
fenómeno social cuyas propiedades tienen que ser descritas y comprendidas
(MANNHEIM, 1993, p. 207).
A identificação de uma geração é feita através da observação da ligação de laços de
solidariedade, determinada em função de sua posição de classe e sua dinâmica, que, por sua vez, está
Breitner Tavares
9
associada ao ritmo biológico das sucessões de vida e morte. Os indivíduos que compartilham a mesma
posição social em termos de classe e nascimento serão submetidos ao mesmo conjunto de experiências
frequentes e naturalizantes da ação social condicionante de hábitos e gostos. Por outro lado, uma
excessiva ênfase nos fatores econômicos da categoria “posição de classe” pode comprometer estudos
sobre juventude ao não levar em conta outras dimensões da vida social que se articulam em outros níveis,
como os raciais e os relacionados ao gênero.
Num determinado contexto sociohistórico, os sujeitos sociais que pertencerem ao mesmo “grupo
de idade” definirão a dinâmica de entrada e saída de novos participantes dos sistemas sociais. Essa
dinâmica é determinada pelo sistema etário e limitada a um tempo histórico. Dessa forma, justifica-se a
transmissão de valores a uma nova geração que se incumbirá de ressignificá-los continuamente em novos
sistemas de tradição. Além disso, um indivíduo é limitado a participar de uma única configuração
geracional, dada a limitação de tempo associada a suas experiências com outros indivíduos na construção
de uma identidade.
La situación de clase se fundamentaba en la correlativa existencia, en la
sociedad, de una estructura económica y de poder que está en transformación.
Por su parte, la posición generacional (die generationslagerung) se
fundamenta en la existencia del ritmo biológico en el “ser ahí” del hombre:
en los hechos de la vida y de la muerte y en el hecho de la edad
(MANNHEIM, 1993, p. 208).
O conceito de geração é distribuído em três importantes subdivisões que devem ser consideradas
enquanto um conjunto: posição geracional, conexão geracional e unidade geracional. A posição
geracional relaciona-se à possibilidade dos indivíduos, enquanto grupos, vivenciarem certas experiências
em comum. A conexão geracional está relacionada à experiência propriamente dita da vida coletiva,
estabelecida através de vínculos concretos ou mesmo virtuais da vida social para além do sentido de uma
posição geracional que está relacionada a certas potencialidades de experiência coletiva. Em relação à
unidade geracional, apesar de alguns autores defenderem a ideia de que há uma conexão geracional
unificada, Weller considera que diferentes grupos sociais podem constituir
unidades geracionais distintas, isso porque diferentes unidades geracionais
como os jovens podem apresentar diferentes respostas frente as questões que
lhes foram apresentadas no seu tempo histórico, resultando em diferentes
estilos de vida, mesmo compartilhando do mesmo ‘meio social’(WELLER,
2005b, p. 11).
Além disso, demonstram-se como as unidades de geração são os elementos mais próximos dos
grupos sociais propriamente ditos. Contudo, seu enfoque está voltado para a interpretação das ações
sociais dos grupos em sua dimensão mais expressiva, no contexto de uma geração determinada pelo
Breitner Tavares
10
conjunto de intenções e práticas vivenciadas pelos grupos sociais em seu processo de socialização.
1.2 O problema das gerações enquanto sociologia da mudança social
A discussão de Mannheim sobre o problema geracional se constitui numa referência fundamental
para a compreensão de uma sociologia contemporânea (YNCERA, 1993). A terceira via teórica frente ao
positivismo e ao romantismo alemão permite observar a construção de um problema verdadeiramente
sociológico, que deve passar pela revisão de abordagens teóricas de caráter fixo, que visam a definição de
ritmos e leis gerais para dinâmica geracional. Mannheim, ao lançar uma avaliação crítica às proposições
em diferentes contextos sobre o conceito de gerações, oferece um significativo exemplo de uma
sociologia do conhecimento, que observa as diferentes formas de se pensar o mesmo problema num
determinado período histórico. Além disso, o autor demonstra as dinâmicas que alteram as concepções
sobre o mundo social em cada país em função de vários fatores, tais como os políticos. Portanto, as
diferentes definições encontradas sobre o conceito de geração expressam simplesmente mais um evento
num processo de competição social. Mannheim defende a perspectiva de que cada tempo definirá de
modo polifônico quais serão os elementos constitutivos de uma geração (YNCERA, 1993, p. 154).
Para o autor, uma das principais discussões que perpassam o problema geracional é a questão da
mudança social (cultural) pensada a partir da questão geral da construção identitária no âmbito das
estruturas sociais. Uma identidade social é construída a partir de interações sociais no “ser com o outro”.
Essa capacidade social para a interação entre múltiplos indivíduos permite a manutenção das conexões
geracionais que são reveladas simultaneamente pelas posições de classe e tempo de nascimento.
Observa-se em Mannheim a influência de múltiplas abordagens em seu construto teórico, assim
como em Simmel (1973) em relação às dinâmicas da socialização e dos indivíduos no interior dos grupos
sociais. A cultura para Mannheim (1993) é apresentada como elemento estruturador da vida social,
conforme definido por Weber (1999) e os problemas relacionados à consciência de classe, como no
pensamento marxista. Além disso, para Mannheim sua abordagem interpretativa dos fenômenos sociais
parte de um plano macroscópico, que implica a influência do pensamento hegeliano, que pensa a história
a partir de um sentido estrutural. Essa perspectiva visa à sistematização de múltiplos fatores, o que uma
abordagem em nível micro não seria capaz de evidenciar. Desta forma, o autor aponta para a relevância
de pequenos eventos na vida cotidiana que podem ser incluídos numa reflexão sistemática, como já
demonstrava a psicanálise (YNCERA, 1993, p. 160).
Breitner Tavares
11
A perspectiva sistêmica como abordagem de problemas sociológicos de base hegeliana aponta
para o universo como uma estrutura compreensível a razão e completa enquanto uma totalidade. Contudo,
para Mannheim, em sua “concepção de mundo”, não há uma estrutura unívoca, completa, disponível para
a compreensão racional, mas, de fato, um conjunto de sistemas não totalmente estruturados, como se
demonstra nos conceitos de “espírito do tempo” e da “enteléquia geracional” em que temos ordens
incompletas que não partem de perspectivas apriorísticas de uma “estruturação global, que tampouco se
encerra nela” (YNCERA, 1993, p. 165). Portanto, um mundo precariamente estruturado altera-se em
função de suas especificidades históricas que demandarão diferentes modelos teóricos para sua
interpretação, ou seja, “estruturas sistêmicas” com seus níveis de “variação”. Frente a isso, afirma-se que
são as situações concretas vividas pelos indivíduos coletivamente que determinarão o sentido dialético da
história.
Uma geração, entendida enquanto dinâmica de mudança social, se desenvolve a partir do
conjunto concreto de alternativas que geram uma configuração, um sistema de padrões de comportamento
social. Além disso, pode ser entendida como o sistema social e alterada por múltiplas interferências,
tensões na totalidade social. Dessa forma, os sentidos das ações individuais devem ser concebidos dentro
de um sistema organizado. Descobrir continuidade onde os outros veem somente descontinuidades, essa é
a missão do sociólogo. Este é o ponto definidor da sociologia da cultura relevante para se entender o valor
sociológico do “problema das gerações”.
1.3 Noções de geração e habitus: movimentos sociais como formas de estilos de vida e gosto
O problema teórico das gerações se torna visível através de sua manifestação em termos dos
movimentos sociais, que propiciam outro nível de reflexão sobre aportes teóricos e metodológicos da
sociologia, conforme discutiremos adiante. Além disso, os movimentos sociais, especialmente os
movimentos juvenis, são relevantes para se entender a configuração de uma geração, pois evidenciam, a
partir de sua conduta enquanto sujeitos sociais, que participam de vínculos de solidariedade e competição
social, dentro de uma unidade geracional. Os movimentos sociais, portanto, constituem um importante
elemento de autoorganização social dada a importância das características concretas de cada conjuntura
histórica de grupos de idade que estão tentando redefinir seu papel social em termos de estilos de vida que
eventualmente se lançam num conflito geracional. Os movimentos sociais, como os de classes
trabalhadoras e/ou os de mulheres, são exemplos de mobilização social de grupos que buscam, a partir de
seu autorreconhecimento, uma visibilidade, um reconhecimento social redefinindo o sentido de
intelectualidade.
Como já referido, uma geração pode ser analisada empiricamente a partir de suas manifestações
em termos dos diversos movimentos sociais, em especial aqueles organizados em torno da juventude.
Breitner Tavares
12
Portanto, cabe evidenciar que a juventude enquanto uma configuração, uma categoria social se
materializa a partir de diferenciados estilos de vida num determinado espaço social. Bourdieu (2007),
nesse contexto, traz importantes aportes em relação ao conceito de estilo de vida, o qual é definido a
partir do conceito de habitus3, que consiste num sistema de disposições mais ou menos duráveis e que
possui um potencial para a mudança e que, além disso, se expressa a partir de necessidades e desejos
definidos dentro de um sistema objetivo de práticas e representações sociais. Essas “estruturas
estruturadas que organizam as práticas, o habitus é também estrutura estruturante: o princípio de divisão
de classes lógicas que organiza a percepção do mundo social é, por sua vez, o produto da incorporação da
divisão em classes sociais” (BOURDIEU, 1987, p. 191). Essa topologia social proposta pelo conceito de
habitus localiza as posições dos indivíduos sociais a partir de determinados estilos de vida.
(...) o habitus, enquanto disposição geral e transponível, realiza uma
aplicação sistemática e universal, estendida para além dos limites do que foi
diretamente
adquirido,
da
necessidade
inerente
às
condições
de
aprendizagem: é o que faz com que o conjunto de práticas de um agente – ou
um conjunto de agentes que são sistemáticas por serem o produto da
aplicação de esquemas idênticos – ou mutuamete convertíveis – e ao mesmo
tempo, sistematicamente distintas das práticas constitutivas de um outro
estilo de vida (BOURDIEU, 2007, p. 163).
Para identificar, interpretar e avaliar aqueles traços que funcionam como estilos de vida,
considera-se que os mesmos foram submetidos a diferentes processos de socialização. Isso ocorre de
acordo com diversos condicionantes, como classe, gênero e raça/etnia, entre outros. Eles estabelecerão
variados sistemas de distinção e separação social frente a outros grupos. Além disso, os agentes sociais
definem sua identidade enquanto um grupo específico com sua dinâmica de transformação ou
acomodação, de acordo com a configuração ou nível de interrelação social com outros grupos. Também
aí se encontram afinidades de estilo que são intercambiáveis entre diferentes grupos, como exemplo um
estilo musical característico que é apropriado em diferentes circunstâncias por outros grupos de músicos,
como o sampler de um trecho de uma música rock que pode ser redefinido para uma batida rap.
O estilo de vida torna-se evidente por tudo aquilo que nos rodeia em termos materiais e, além
disso, pelas práticas sociais em função de recursos disponíveis. Esses dois níveis do opus operantum
3
Segundo Wacquant, o conceito de habitus é originariamente utilizado por Aristóteles [hexis] e pela
escolástica medieval por Thomas de Aquino. Posteriormente, o conceito de habitus é utilizado em
diversos enfoques pela fenomenologia ocidental [Hussel , Merlau-Ponty]. Para Wacquant, encontra-se em
Bourdieu “a mais completa renovação do conceito” desenvolvido a partir de seus estudos sobre
sociedades camponesas, na França e comunidades cabilas, na Argélia, no seu Esquisse d’une Théorie de
La Pratique . WACQUANT, Loic. Notas para esclarecer a noção de habitus. In: RBSE 6(16), 2007
[http://www.cchla.ufpb.br/rbse/WacquantArt.pdf].
Breitner Tavares
13
(conjunto das propriedades) e do modus operandi (conjunto de práticas) definirão o habitus como
“unificador de todas as práticas”. Esses dois aspectos dos hábitos são essenciais para a compreensão de
um elemento essencial na constituição de um estilo de vida: “o gosto”.
O gosto, propensão e aptidão para apropriação – material e/ou simbólica – de
determinada classe de objetos ou de práticas classificadas e classificantes é a
fórmula geradora que se encontra na origem do estilo de vida, conjunto
unitário de preferências distintivas que exprimem, na lógica específica de
cada um dos subespaços simbólicos – mobiliário, vestuário, linguagem ou
hexis corporal - a mesma intenção expressiva (BOURDIEU, 2007, p. 165).
Aqui se evidencia a definição do gosto como um sistema de status social, definidor de um estilo
de vida que, assim como em Weber (2002, p. 191), revela um sistema de classificação social hierárquico
e seletivo em termos de acesso a bens materiais e/ou simbólicos adquiridos por indivíduos que ocupam
diferentes lugares dentro do sistema de classe e prática social. A autovalorização que um grupo atribui a
si mesmo ou a outrem está direta ou indiretamente ligada ao impacto que o gosto compartilhado definido
em termos de obtenção de algum lucro econômico ou simbólico. Goffman (1989) atribuiu importância
sociológica à “fachada social” como elemento fundamental para participar da encenação social. Portanto,
valores distintivos baseados numa relação de classe estabelecem diferentes experiências em termos do
acesso a experiências de vida, além disso, esses valores irão definir diferentes formas de consumo cultural
expressos em diferentes espaços de diferenciação social.
Os diferentes espaços sociais, articulados por seus respectivos estilos de vida, determinarão um
sistema de gosto. Além disso, a conformação dos agentes sociais, suas atitudes, também irá configurar um
tipo de corporeidade. Isso implica, no sentido social atribuído a corpo, algo para além da pretensa
conformação biológica e, às vezes, desumanizada de corpo. A partir de uma cosmética ou vestuário, o
corpo gradualmente se materializa com “traços distintivos”: body piercings, tatuagens, penteados,
modificações por próteses, entre outras, irão “esculpir” o corpo, vão demarcá-lo em algum lugar das
infinitas fronteiras da existência social. Trata-se do corpo como propriedade, como limite individual
dentro de uma estilística. Essas configurações estão em jogo em função dos recursos econômicos e do
meio cultural no qual se está inserido.
Produto social, o corpo – única manifestação sensível da “pessoa” – é
comumente percebido como a expressão mais natural da natureza profunda:
não há sinais propriamente “físicos”; deste modo, a cor, a espessura do batom
ou a configuração de uma mímica, assim como a forma do rosto ou da boca,
são imediatamente lidas como índices de uma fisionomia “moral”,
socialmente caracterizada, ou seja, estados de ânimo “vulgares” ou
“distintos”, naturalmente “naturais” ou naturalmente “cultivados”. Os sinais
constitutivos do corpo percebido, produtos de uma fabricação propriamente
Breitner Tavares
14
cultural, cujo efeito consiste em distinguir os grupos de uma fabricação
propriamente cultural, ou seja, de distância à natureza, parecem estar
baseados na natureza (BOURDIEU, 2007, p. 183).
Apesar de Bourdieu não ter se dedicado a uma reflexão mais sistemática em relação às
implicações do conceito de geração, traz algumas considerações relevantes sobre a juventude e estilo de
vida no espaço social. Contudo, ao tratar do tema juventude, baseado no conceito de habitus, o autor se
limita a mencionar alguns aspectos relacionados à faixa etária como simplesmente “divisões arbitrárias” e
“manipuladas socialmente”. Além disso, ele incorre em certos estereótipos ao considerar o “estado de
juventude” como mero “estado de irresponsabilidades”. Por outro lado, é de extrema relevância a
conclusão obtida a partir de sua consideração da juventude como um construto social, que deverá ser
posto diante de outro, como os velhos, para que desta forma se obtenha um contraste em termos de
sistemas de identificações. Todavia, cabe chamar a atenção para os riscos do exagero sociológico da
aplicabilidade da teoria dos campos de batalha social entre os grupos sociais que vivem em diferentes
ritmos de tempo social. “A juventude e a velhice não são dados, mas construídos socialmente na luta
entre os jovens e velhos. As relações entre idade social e a idade biológica são muito complexas”
(BOURDIEU, 1983, p. 113).
Sentidos de oposições entre diferentes posições em termos de tempo cronológico-biológico
devem ser analisados dentro de suas demandas específicas para que se possa definir que nível de
“competição social” está em jogo. O exercício intelectual de se lançar numa análise da juventude implica
na num esforço redobrado para relativizar o olhar do “mundo adulto” às vezes carregado de estereótipos
construídos em relação ao “outro”, nesse caso, o “jovem”. Além disso, notam-se algumas semelhanças
entre a categoria “condição de classe”, em Mannheim, e o habitus, em Bourdieu. De um modo geral,
ambos tratam, à maneira marxista, dos impedimentos materiais que determinarão, cada um ao seu modo,
uma geração para o primeiro e um habitus de classe para o segundo.
Breitner Tavares
15
CAPITULO 2 ESTUDOS E TEORIAS SOBRE A JUVENTUDE NO SÉCULO XX E NO
PRESENTE: UMA BREVE REVISÃO
Discutir alguns dos parâmetros formadores de um “campo” das pesquisas sociológicas sobre a
juventude é, sem dúvida, uma tarefa complexa. Contudo, é relevante expor de maneira breve alguns
marcos definidores dos estudos sobre a juventude.
Os primeiros esforços dentro de um empirismo sociológico para realizar estudos sobre a
juventude datam dos séculos XVIII. A função social da juventude era se integrar à sociedade maior, de
modo a solidificá-la dentro de um sistema de valores prescritos. Isso implicava conhecer os limites das
regras sociais que deveriam ser inculcadas desde o início da vida, dados pela psicologia e dos primeiros
estudos que tentavam seguir uma sistematicidade dita científica (FLITNER, 1968).
A violência, fruto de um mundo em franca transformação, em função do industrialismo, acirrou
problemas como a violência urbana nas suas diversas formas. A criminalidade juvenil, portanto, superava
as marcas anteriores à modernidade. As principais hipóteses eram centradas nas camadas pobres.
Diversas perspectivas de cunho psicologizantes eram aplicadas no sentido de se reidentificar as causas da
delinquência jovem e as possíveis alternativas para sua superação (FLITNER, 1968, p. 41).
Entretanto, no início do século XX, quando Staley Hall publica sua obra Adolescense (1904),
passa-se a uma abordagem de cunho psicogenético sobre a juventude. Sua tese aferia que aspectos
biológicos seriam definidores da construção de uma personalidade jovem, para isso recorria a técnicas
probabilísticas e estatísticas para suas generalizações. Contudo, suas posições foram duramente criticadas
por não admitir a relevância da cultura como elemento na conformação das personalidades juvenis.
Nos anos vinte, delineiam-se algumas reflexões fenomenológicas que propiciarão o surgimento
do conceito de gerações. A princípio, destaca-se Eduard Spranger (1924), baseado nos estudos sobre
hermenêutica de Wilhem Dilthey, que considera que os aspectos do comportamento psíquico do jovem
Breitner Tavares
16
deve ser articulado entre as pulsões internas de natureza biológica em conjunto com fatores de cunho
social objetivos (FLITNER, 1968). Mais adiante, Mannheim publica sua obra sobre gerações, em 1928,
que constituirá um marco decisivo na constituição de um campo de estudos sobre a sociologia da
juventude como parte de suas reflexões sobre sociologia do conhecimento e dos fatos culturais.
2.1 As velhas teorias: Escola de Chicago (1920-1940) e Teorias Funcionalistas (1950-1960)
No contexto norte-americano, em especial aqueles relacionados à Escola de Chicago, destacamse alguns autores Thrasher (1927) e Shaw (1930), de Whyte (2005) cautor de A Sociedade de Esquina
obra que se refere ao estudo da juventude urbana, nos anos 30 do século XX. Nessa obra, que foi
realizada através do convívio com gangues de jovens filhos de imigrantes italianos em uma região
segregada de Boston, o autor pôde desenvolver uma análise distinta das abordagens quantitativas,
realizadas até então sobre os processos de urbanização. Willian Foote Whyte foi um pesquisador que
trouxe uma significativa contribuição à chamada pesquisa qualitativa em ciências sociais, sobretudo, no
que ficou conhecido no campo dos métodos e técnicas como "observação participante".
O ímpeto reformista – desenvolvido ainda no período acadêmico – leva Whyte a desejar
pesquisar uma "comunidade pobre e degradada", a partir de sua vaga idéia do que isso poderia representar
em termos sociológicos. A reigião escolhida por Whyte numa região pobre de Bosto foi denominada por
ele com Cornerville, lugar onde se materializaria a Sociedade de Esquina.
O autor buscou em suas observações definir a região estudada em dois grupos de jovens de
Cornerville, dividindo-a em rapazes da esquina e rapazes formados. Esses atores sociais revelam, ao
longo de seus percursos, aspectos relevantes para a compreensão de sistemas de status e diferenciação
sociais no espaço urbano. Sua análise trouxe diversos elementos que permitiriam analisar a juventude em
dimensões relacionadas à classe, bem como problemáticas de gênero e etnia para se entender outros
níveis da exclusão e marginalização por jovens imigrantes de ascendência italiana.
Ao se referir às relações de gênero, expõe vários traços do contexto sexista que regulavam esses
encontros entre os jovens, como, por exemplo, a afetividade típica do amor romântico interage em outros
momentos com o tom misógino de alguns garotos. Aspectos relacionados à cultura e identidade italiana
os lançavam na tensão racializante norte-americana, o que os levava a ser identificados como uma “raça”
distinta dos outros americanos em geral.
Em relação ao problema da transição para o mundo adulto, Whyte considera que esse fator tende
a levar à desintegração da gangue. O autor acompanhou vários jovens membros de gangues para
compreender como o fato de não se ter dinheiro e emprego intensifica o estigma da pobreza, associado à
vida na esquina, além da pouca instrução escolar. Dessa forma, os jovens têm que se submeter aos
Breitner Tavares
17
empregos temporários pouco remunerados. Os rapazes formados, por sua vez, constituem uma minoria
que superou o nível de “rapaz de esquina” por meio de uma educação universitária. Esses jovens estão
voltados para o imaginário de ascensão e mobilidade social do típico imaginário da classe média norteamericana.
Whyte se refere a algumas regularidades encontradas no cotidiano dos jovens. Para ele, as
gangues resultam de relações habituais já presentes na vida de seus integrantes, desde os primeiros
contatos sociais na infância, quando viviam próximos uns dos outros. A interação social, desta forma, é
vista a partir de sua experiência de campo. Para ele, os clubes e as gangues possuem um equilíbrio que se
estabelece no momento em que seus membros, a partir da interação, internalizam os padrões costumeiros
de organização de suas atividades4.
Posteriormente, outras abordagens, como Parsons (1969), apostam no caráter de ordem
estrutural. O desenvolvimento econômico desigual numa sociedade extremamente competitiva exige uma
maior preparação para o mundo do trabalho e uma maior escolarização que, entre outros fatores,
prolongam a transição do jovem ao mundo adulto. Diante disso, podem ocorrer consequências como a
redução de oportunidades no sistema produtivo e, portanto, o surgimento de tipos sociais não integrados,
considerados “desviantes”.
Teóricos como Merton (1949) consideram a “crise e a falência” de marcos institucionais e
normativos da sociedade moderna, em que as metas prescritas não são alcançadas por certos indivíduos.
Esse fracasso social ocorreria em função das restrições de acesso aos mecanismos intitucionais de
promoção social como a Escola e o trabalho, causadoras da delinquência. Assim, as instituições, como a
família, a Escola, a Igreja e a comunidade, responsáveis pela formação e sociabilização do jovem e por
sua adaptação às normas de convivência social frente à exclusão social geram a crise de valores e,
consequentemente, a perda do idealismo frente aos obstáculos do sistema.
S. N. Eisenstadt foi responsável pela implementação de várias pesquisas de cunho teórico e
empírico sobre as gerações e juventude, além disso, ele foi influenciado pelo funcional estruturalismo
norte-americano de T. Parsons e R. Merton. O autor interessado em problemas intergeracionais, discutido
em seu trabalho mais conhecido sobre o tema From Generation to Generation (1971), considera que o
surgimento da juventude, enquanto um grupo social específico, ocorre quando não há um perfeito
ajustamento entre as regras sociais articuladas no interior da família.
Age groups in general and youth groups in particular tend to arise under
conditions of non-familial division of labor(...) in those societes whose main
integrative principles are different from the particularistic principles
4
TAVARES, B. Gangsterismo jovem: observação participante e a Escola de Chicago. In Sociedade e
Estado. Brasília, v. 21, n. 3, p. 781-791, set./dez. 2006.
Breitner Tavares
18
governing family and kinship relations (EISENSTADT, 1971, p. X).
Desta forma, considera-se que cada indivíduo atravessa diferentes gerações durante o seu tempo
de vida. Essa premissa relacionada ao tempo de vida e à definição de determinados estágios geracionais
serão debatidas exaustivamente pelo autor em sua obra. Em cada estágio da vida, há determinadas regras
a serem seguidas dentro de papéis sociais específicos, como a criança, o adulto e o velho. Para o autor,
apesar de não apresentar dados empíricos suficientes, esses estágios em termos biológicos seriam
praticamente os mesmos em todas as sociedades, contudo, eles seriam diversos, exatamente por serem
definidos culturalmente. “In every society the basic and commom biological facts are market by a set of
cultural definition which ascribe to each age grouping” (EISENSTADT, 1971, p. 23).
Na relação face a face, os indivíduos assimilam seus papéis de comportamentos a ser
desempenhados a cada geração, portanto, em termos de socialização, a criança aprende com o adulto as
regras de conformação que a levam, mais adiante, a negar a sua condição de criança. O adulto, dessa
mesma forma, irá assimilar o lugar de velho, com o passar do tempo (EISENSTADT, 1971, p. 24). É
interessante frisar que esse processo está sempre baseado na lógica da aceitação das regras sociais pelo
viés do adulto pela criança no ambiente interno à família. Há expectativas, portanto, de que o jovem
assimile dentro de um processo social difuso os valores correspondentes às funções sociais que se espera
que este desempenhe. Ou nos termos do autor: “Age groups may constitute a basic institucional focus as
far as the continuity and stability of the social system are concerned, and one of the main channels for the
transmition of the social heritage” (EISENSTADT, 1971, p. 270).
Por outro lado, dentro de uma lógica social competitiva, quando os valores transmitidos pela
família não permitem ao jovem alcançar plenamente o status social pretendido, ele passa a se articular
dentro de grupos específicos de geração (age groups). Consequentemente, todas as condições que lhe
permitiriam o perfeito ajuste na estrutura social seriam consideradas como parte do processo de
surgimento de grupos jovens articulados em torno de demandas específicas, tais como econômicas
(trabalho, emprego, consumo). Alem disso as restrições sociais estabelecido o autoritarismo político e a
interdição e o controle do comportamento sexual dos jovens (EISENSTADT, 1971).
De acordo com o que foi apresentado, a mudança geracional, como dinâmica social e fator de
sua integração, nem sempre ocorre de modo ‘harmônico’ conforme se pode observar. Desta forma,
Eisenstadt considera que a falta de realização do jovem, no conjunto de possibilidades de inserção social
definidas como viáveis, gera a criação de grupos de geração específicos. Dentro dessas coletividades, o
jovem encontra a possibilidade de compartilhar e minimizar suas frustrações com outros indivíduos que
sofreram a mesma “segregação social”, por não terem sido admitidos numa geração ascendente, ou seja,
Breitner Tavares
19
“mais adulta”. Essa organização pode permitir que o mesmo encontre o caminho da superação de suas
perdas e a consequente preparação para a “maturidade do mundo adulto”, ou seja, a semi-integração no
sistema social (EISENSTADT, 1971, p. 293).
O enfraquecimento das relações de solidariedade no âmbito familiar seria, portanto, a base para
o conflito geracional que pode ser administrado no sentido de sua superação ou pode gerar o surgimento
de “grupos desviantes”, ou seja, aqueles grupos engajados de modo a romper o legado secular transmitido
dentro da esfera familiar. Os grupos desviantes se posicionam de modo a contrapor o comportamento
esperado pelo mundo adulto que estrutura o sistema social. Ao não serem incluídos num sistema de
valores e oportunidades, eles recriam suas demandas no sentido de marcarem uma oposição ante as
instituições oficiais voltadas para a juventude, como escolas, igrejas, programas juvenis desportivos, entre
outros. A referência de imagem social, outrora baseada no “mais velho”, passa a ser negada numa relação
de direta oposição. O autor classifica algumas categorias em relação ao comportamento jovem desviante,
das quais podemos destacar três:
•
Grupos de jovens delinquentes surgindo no contexto de cultura de contato (culture
contact). Consequente de uma desestrutura familiar que não viabilizou os elementos
necessários para a transmissão de valores, que possibilitariam a maturação dos
indivíduos.
•
Grupos de delinquentes com diferentes níveis de graduação, coesão e organização.
Grupos que criticam alguns significados dos valores sociais, mas não propõem uma
ruptura. Como exemplo, cita-se a situação do jovem que migra de áreas rurais para
áreas metropolitanas e com isso sofreria de algumas consequências sociopsicológicas
adaptativas ou os estudantes que rejeitam a escola (EISENSTADT, 1971, p. 308).
•
Movimentos rebeldes e organizações jovens de movimentos revolucionários e partidos.
Desenvolvem uma ideologia jovem específica com fins a uma revolução conta a “velha
ordem” pelo rejuvenescimento da ordem social (EISENSTADT, 1971, p. 311).
De fato a abordagem de Eisenstadt, apesar de seu apelo heurístico no sentido de demarcar
diferentes categorias dos “grupos de geração”, trouxe uma importante contribuição para a construção da
juventude enquanto categoria sociológica. Além disso, ampliou os horizontes da sociologia nos termos de
observar determinadas relações de conflitos, parte integrante das estruturas sociais. Por outro lado, podese observar que ele fez arriscadas generalizações a partir de um conjunto restrito de estudos comparativos
de sociedades consideradas “primitivas” pela antropologia clássica face as sociedades ditas “civilizadas”
(EISENSTADT, 1971, p. 60), suas generalizações induzem a pensar que sociedades como a juventude
dos Kibutz sejam mais organizadas, “desenvolvidas” em relação aos considerados primitivos membros da
tribo Neur da África. Além disso, questões relacionadas ao gênero, que adquirem importância posterior
nos processos sociais, passam despercebidas ao longo do texto, o que permite deduzir que se está tratando
de um universo masculino heterossexual.
Breitner Tavares
20
O autor se dedica também a estabelecer certas assimetrias entre o comportamento de classe entre
a juventude alemã e israelense dos Kibutz. Segundo Eisenstadt, os jovens, no caso os rapazes, compõem
estes grupos “informais”. Eles estão mais voltados às relações vicinais ou do convívio no ambiente
escolar. A transitoriedade de uma etapa geracional para outra terá diferentes tempos em função da classe
social. Nesse caso, os jovens pobres tenderam a entrar no mundo adulto devido à precoce iniciação sexual
e o consequente interesse pelo casamento. Novamente, o autor parte de hipóteses que reforçam um lugar
comum com relação à juventude de classe operária, ao considerá-la mais propensa à desorganização e a
atividades delinquentes (EISENSTADT, 1968, p. 65). Por outro lado, os jovens de classe média, por sua
vez, já tenderão a ter um posicionamento mais “organizado”, com vistas a planejar um futuro e se inserir
no sistema de papéis sociais previsto. Para os jovens do kibutz, a institucionalização e regulamentação
representam valores relevantes ao lado do senso de hierarquia dentro da organização (EISENSTADT,
1971).
2.2 Estudos Culturais (anos 1970)
No contexto europeu, o Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS), na Universidade de
Birmingham, na Inglaterra, tornou-se uma referência naquilo que ficou conhecido como estudos culturais
nos anos 70 do século passado. Stuart Hall participou da criação do centro, em 1964, que também foi
integrado por outros intelectuais, tais como Edward P. Thompson, Raymond Williams e o primeiro
diretor do Centro, Richard Hoggart.
O Centro se dedicava aos estudos relacionados à teoria da cultura, associada em alguns
momentos ao compromisso político-democrático. Os campos de estudos do centro se constituíram de
forma interdisciplinar e incluíam diversas abordagens teóricas. Estudavam-se questões relacionadas à
televisão e consumo associado a questões de gênero, raça/etnia e classe social. Havia combinações entre
estudos de literatura comparada e etnografia. Nesse contexto, os estudos sobre a juventude e as
subculturas britânicas, realizados por Paul Willis, foram bastante difundidos (WILLIS, 2004).
Paul Willis foi o membro do CCCS que se destacou no que se refere aos estudos sobre a
juventude e sua inserção nos processos de mudança social. Sua obra mais conhecida nos estudos culturais
e na sociologia foi Learning to labour (1977), Aprendendo a ser trabalhador (1991), que destaca a
transição, da escola para o mundo do trabalho, da juventude de origem operária. Willis observou em seu
trabalho etnográfico como a escola inserida num sistema de dominação voltado para a formação de
trabalhadores não era persuasiva. Os jovens, nesse contexto, assumiam um comportamento de “oposição”
marcado pelo desprezo pela escola. Portanto, eles se voltam ao culto de seus grupos de afinidade pessoal
definido num estilo de vida peculiar, isso como consequência de o jovem reconhecer as desigualdades
como parte de um sistema econômico capitalista, que não oferece condições iguais de mobilidade social.
Breitner Tavares
21
Willis combina, em seu estudo sobre educação jovem, aspectos relacionados à estrutura social e cultura a
partir de uma abordagem etnográfica.
Sobre os estudos do CCCS, pode-se afirmar que o mesmo era pautado em duas diferentes
escolas. A mais velha delas, de cunho psicológico, estava centrada em discutir como os indivíduos fazem
a transição da infância para a maioridade na vida adulta. O jovem era pensado enquanto adolescente
envolvido no processo de maturação sexual e assimilação das obrigações relativas ao mundo adulto
(emprego e casamento). A segunda tradição, de abordagem sociológica, estava voltada para a função
social da fase da juventude com ênfase nos movimentos jovens, que seguiam o mesmo sistema de status
(peer groups) e gangues. O foco desses estudos estava relacionado normas, valores e crenças poderiam
ser pertinentes para se analisar estabilidade e mudança social (ABMA, 1991).
2.2.1 Subculturas jovens sob uma perspectiva crítica
Na segunda metade dos anos 70, no Reino Unido, surge uma nova abordagem que não incluía as
tradicionais abordagens de cunho psicológico e sociológico da juventude. Ao invés disso, essa nova
abordagem deriva de uma historiografia de inspiração marxista combinada com uma antropologia
cultural.
Em termos históricos, essa nova perspectiva de estudos das subculturas advém primeiramente de
uma tradição dos estudos culturais promovidos pelo CCCS e, em segundo lugar, de uma criminologia
crítica produzida pela Conferência Nacional sobre Desvio (Social) (National Deviance Conference), que
combinava marxismo, “abordagens americanas” e uma “teoria da reação social” (Howard Becker), além
de uma influência do interacionismo e da etnometodologia.
Para desenvolver o conceito de estilo, diversos autores como Willis (1977), Brake (1985),
Murdock (1976) e Hebdige (1979) estudaram a antiga teoria da subcultura da Escola de Chicago, bem
como a etnografia. Outros autores, tais como Clarke, Hall e Jefferson (1976) focaram-se mais nas
questões sobre as aplicabilidades da teoria marxista. Portanto, cabe assinalar que havia uma intensa
discussão entre culturalistas e estruturalistas.
Durante os anos 50 e 60, a “cultura jovem” era definida pela perspectiva do ser adolescente e
gradualmente passa a ser definida em termos de outras especificidades. A “juventude” passa a ser
considerada a partir dos seguintes atributos: idioma, estilo social e tipos de diversão e lazer. Amparadas
por políticas do bem-estar social, a chamada generation gap transformou o sentido de classe social
anteriormente baseado em fatores econômicos. A juventude passaria supostamente a se posicionar
enquanto uma nova classe em oposição ao mundo adulto (FRIEDENBERG, 1969; ROWNTREEW &
ROWNTREEW, 1968).
Por outro lado, outros autores (CLARKE et al., citados por ABMA, 1991, p. 100) consideraram
essa perspectiva como um mito, porque por trás do estado do bem-estar social os conflitos de classe
continuavam presentes de modo muito evidentes na juventude. Os jovens continuavam se agrupando em
Breitner Tavares
22
torno de valores de classe, o que os define como algo mais específico em uma subcultura. Essa dinâmica
de grupos de jovens de classe trabalhadora se evidencia por dois fatores: primeiro, pelo fim de formas
tradicionais de sociedade com o advento do capitalismo moderno, segundo, pelo surgimento de uma
indústria jovem (teenage industry) voltada para compreender como o jovem gastava seu tempo livre em
atividades de lazer. Tudo isso gerou um segmento para jovens de classe trabalhadora, incluindo-se a
criação de espaços, como discotecas, clubes jovens, concertos de rock, entre outras atividades de lazer.
Esses elementos compuseram a criação de uma autoconsciência da geração jovem.
Essa consciência da nova geração expressava-se numa variedade de subculturas, dependendo do
grau de proximidade com os tradicionais padrões de cultura parental. Essas subculturas, por um lado,
criavam uma ponte, imaginária e simbólica, entre tradição e modernidade. Além disso, elas resistiam à
infiltração e à supressão de cultura da classe trabalhadora pela cultura dominante. Sua cultura de protesto
não era verbal, tampouco política, contudo, era manifestada em rituais pelo idioma e aparência da
juventude.
Nesses termos, um estilo pode ser considerado como uma mistura de elementos advindos da
cultura do lazer para a juventude nos termos de uma indústria jovem. Como forma para descrever isso,
Clarke (1976a) recorreu ao termo bricolage, do estruturalismo de Levis Strauss, que se refere
originariamente como formas mágicas utilizadas por “povos primitivos” podem ser vistas intrinsecamente
de modo coerente, “recobrindo” seu usuário de significados. Os objetos e as práticas nesse contexto são
capazes de promover uma infinita extensão, porque elementos básicos podem ser utilizados numa
variedade de combinações improvisadas, fonte geradora de novos significados (CLARKE, 1975) que
serão contrastados na relação face a face com outros estilos culturais.
Cohen (1972), por sua vez, menciona quatro componentes essenciais para o desenvolvimento do
estilo subcultural: vestimenta, música, ritual e linguagem. Apesar da influência de uma indústria cultural,
havia a possibilidade de ressignificação desses bens materiais por parte dos seus consumidores para além
da cultura dominante. Cabe assinalar que nem todas as subculturas estavam alinhadas como uma
perspectiva de classe operária, mas se definiam também por sua capacidade de criação de grupos
específicos.
2.2.2 Mercado de bens culturais, estilo e autenticidade
Marcadamente, o CCCS era alvo de avaliações quanto a supostas limitações de suas propostas
pelos seus críticos (MURDOCK, 1967). Uma das principais críticas diz respeito à preferência do CCCS
por pesquisar estilos e subculturas “autênticos” da classe trabalhadora. Clarke (1976) era de fato
Breitner Tavares
23
consciente do limite do conceito de subcultura como algo “autêntico” devido à experiência realizada em
pesquisas sobre teddy boys, os mods, the rockers, os skinheads etc. Além disso, a idéia de subcultura
remetia a algo à parte da cultura em geral que não tivesse participação em outros níveis da estrutura
social. Sob essa perspectiva, a maioria da juventude de classe trabalhadora está além do escopo da
abordagem da categoria “subcultura”. Essa juventude possuiria também outras formas de resistência
através da delinquência.
Outra crítica recorrente era (MURDOCK & Mc CRON, citados por ABMA, 1991, p. 102) que,
apesar da definição de cultura como um “meio de vida total”, primeiramente se localizava subcultura no
domínio do lazer, o que estabelece uma situação incongruente, já que cultura de classe do jovem
repercute em outros espaços, como na escola e no trabalho, conforme demonstrou Willis (1977).
O sentido atribuído ao conceito de subcultura pelo CCCS consistiu na busca de estilos juvenis
“distintos e autênticos”, à revelia de um mercado produtor de bens simbólicos obtidos por específicos
grupos juvenis da classe trabalhadora, durante a realização de atividades no tempo disponível para o lazer.
Segundo o CCCS, as autênticas subculturas se mobilizariam para manter a distância desse processo de
assimilação mercadológica (CLARKE et al., 1976). Contudo, uma série de autores questiona essa
posição, pois os teds, mods, rockers, skinheads, subculturas consideradas autênticas, não foram de fato
pesquisadas até que seus estilos fossem descobertos pelo mercado. Portanto, aquele tipo de assertiva não
encontrava sustentação empírica, haja vista que a maioria das atividades de lazer considera,
implicitamente, que em geral o tempo de lazer consumido pela juventude de classe trabalhadora já era
influenciado pela indústria desprovida de elementos de protestos, ou seja, já estava inserido numa cultura
de massa que não era “distinta”, tampouco “autêntica” (MURDOCK, 1976). Logo, isso levava à
conclusão de que não há autenticidade na cultura de massa, porque o mercado está presente, interferindo
na construção dessa imagem de juventude nas diversas subculturas desde seu princípio.
Esse tipo de interpretação é resultado da confrontação entre diferentes posições marxistas. Para
alguns, a noção de conflito de classes é algo que se encontra desatualizado. Nesse caso, acredita-se numa
idéia romântica em que a juventude da classe trabalhadora representa uma subcultura revolucionária.
Aqui a diferença entre a moda apresentada pelo mercado de bens simbólicos e a autenticidade seria
observável através de categorias advindas do estruturalismo de Lévi-Strauss como: homologia que
consiste na identificação do grupo por aqueles elementos distintivos criados numa combinação específica,
definida como bricolagem. Essas categorias que podem ser visualizadas pelo seu discurso, estética
corporal, entre outros elementos criados internamente pelo grupo. Essas categorias, por outro lado, serão
objeto de interesses dos empreendedores do mercado de bens de consumo para a juventude.
2.2.3 Sexo ou classes
Breitner Tavares
24
Outra lacuna no quadro Teórico do CCCS consiste no lugar das “garotas” no sentido das
relações de Gênero. Críticas feministas apontam que nas publicações do Centro como resistência pensada
enquanto ideais nos estudos de Willis lidam exclusivamente com o lado masculino das subculturas. Em
verdade, sabe-se que há vários traços de cultura sexista na juventude proletária, contudo, há várias
questões sobre como as garotas participam nas subculturas jovens criando suas próprias manifestações,
que não foram discutidas mais profundamente. Clarke (1976) relaciona essas questões com outro tema
pouco abordado pelo CCCS, que diz respeito à sexualidade e à paixão juvenis.
A paixão cria a possibilidade imaginária de lidar com questões contraditórias na cultura parental,
algo que pode se manifestar na forma de uma subcultura. Isso de certa forma envolve garotos e garotas.
Enquanto o estilo específico escolhido tem aparentemente suas raízes na tradição da cultura dos pais, o
verdadeiro motivo para os rapazes da classe trabalhadora se vestirem e se comportarem de determinada
forma tende a expressar aspirações jovens tais como, “estar com os amigos” e para impressionar o sexo
oposto (ABMA, 1991).
Pode-se afirmar que há diversos autores, como Whitt, (1985), Mcrobbie (1991), Levinson (1996)
e Arnot (2002), que demonstram uma cegueira para os estudos do CCCS sobre as relações de gênero, sexblind, estabelecida desde que se considerou a juventude da classe operária como algo internamente
homogêneo. O foco nos jovens de sexo masculino ignorou as formas particulares de sexismo na
construção da masculinidade.
Segundo Arnot (2002), ocorre uma maior frequência de estudos sobre socialização e gênero nos
Estados Unidos que no Reino Unido, país de origem dos estudos culturais. Há uma resistência quanto à
investigação da área de gênero e raça nos estudos culturais britânicos, apesar de outras estruturas de
desigualdades serem incluídas como algo afetado pelo exagero dos efeitos da divisão de classe.
Consequentemente, os estudos de gênero se desenvolveram separadamente aos estudos que
priorizavam as classes sociais. Ainda hoje, não se observa um impacto considerável desses estudos sobre
as abordagens de cunho universalista como feito sobre classe social. O próprio CCCS, que aparentemente
rompeu com uma série de tradições nas pesquisas das ciências sociais, argumentando em favor de uma
nova abordagem para além da família e da economia, pouco pesquisou sobre as suas correspondentes
implicações de gênero.
A vantagem em se estabelecer uma perspectiva alternativa, em que a política econômica seja
inversa a teorias culturais, está na possibilidade de se revelar a diversidade social no interior de uma
mesma classe. Além disso, torna-se relevante a análise da natureza da hegemonia da classe ao se discutir
questões educacionais (LEVINSON, 1996). De fato, o que passa a ficar mais evidente é que os garotos e
garotas da classe operária compartilham algumas experiências na escola, como os valores da disciplina e
conformidade, e estranhamento da cultura escolar, bem como, o ceticismo quanto à possibilidade de
mobilidade individual e social prescrito pela escola.
Alguns pesquisadores têm em comum a preocupação em demonstrar que tipos de relação podem
ser estabelecidas entre teorias sobre reprodução da classe social e as divisões de gênero. O cerne de
Breitner Tavares
25
pesquisas com ênfase marxista e feminista está em se desenvolver uma reflexão sobre uma economia
política da educação da mulher, que seja capaz de superar as limitações de uma simples teoria cultural de
gênero. Para isso, alguns estudos sofreram influência de Althusser (1998), no que se refere a sua
discussão dos aparelhos ideológicos de estado e sua relação com a reprodução da força de trabalho e as
relações sociais de produção (ARNOT, 2001).
Para os estudos feministas, enfatizou-se a escolarização como parte do processo da divisão
sexual do trabalho, que segrega homens e mulheres. Contudo, internamente à classe explorada é mantida
uma hierarquia masculina que se manifesta no ambiente de trabalho, bem como na vida doméstica. Esses
espaços expressam de modo direto formas de opressão e exploração e, da mesma forma, criam culturas de
resistência em ambos os lados, para homens e mulheres.
2.2.3 Abordagens qualitativas no âmbito do CCCS
Apesar de o CCCS ter, por um lado, desenvolvido diversas pesquisas empíricas, ele é criticado
por ter desenvolvido um quadro teórico mal estruturado para uma análise das subculturas atuais. Contudo,
a relação do CCCS com a produção de um quadro teórico analítico está pautada basicamente na pesquisa
qualitativa, fortemente influenciada pela Escola de Chicago, com observação participante e entrevistas
abertas. A influência da tradição hermenêutica leva adiante a perspectiva de que mais do que
simplesmente “testar” uma teoria, o cerne de uma pesquisa está em demonstrar seu valor heurístico.
A identificação de classe com as culturas definidas como produto da ação humana
aliada à preferência pela etnografia e observação participante são traços distintivos do CCCS. Além disso,
o engajamento em correntes de esquerda marxista que marcaram sua política científica estava contra
tradições de pesquisas da pedagogia social e da sociologia da juventude, que estavam sob influência de
abordagens funcionais estruturalistas nos anos 60 pautadas em pesquisas amostrais quantitativas.
Portanto, segundo os críticos dessas abordagens, isso levava o pesquisador a uma “perda do tato” com
seus objetos de estudo, ou seja, não havia um contato mais aproximado com os sujeitos sociais
pesquisados. Diante disso, o CCCS postulou uma nova abordagem da subcultura, que incorporou um
“retorno para o mundo da vida do jovem”, como, por exemplo, através da observação participante
(ABMA, 1991, p. 108).
O CCCS se posicionava intelectualmente de modo a negar o moralismo intrínseco nas políticas
de bem-estar social para moldar e ajustar a juventude. Por outro lado, a excessiva ênfase à classe social e
o recorte das pesquisas centradas nas subculturas, tidas como grupos “autênticos”, frente ao sistema
econômico, limitaram o alcance dessas abordagens em relação a outras juventudes que não
necessariamente se constroem nessa relação de oposição ao mercado ou à moda. Em outros termos, o
Breitner Tavares
26
CCCS enfatizou seus primeiros estudos nas juventudes “espetaculares”, em seus traços marcantes de
distinção social, deixando de fora um largo segmento daqueles jovens ditos “normais”.
Apesar da dificuldade do CCCS de demarcação de um campo teórico de pesquisa e da
resistência que alguns setores acadêmicos têm em relação à aplicabilidade de uma metodologia marxista,
pode-se afirmar que as pesquisas sobre juventude continuam sendo norteadas pelas contribuições dos
Estados Unidos e do CCCS. Além disso, o CCCS ficou conhecido por uma nova abordagem crítica
iniciada no debate e com correntes dominantes de uma sociologia e psicologia do adolescente. Essa
posição foi baseada num criticismo reunido em torno da promessa de uma nova perspectiva de teoria e
pesquisa “antiburguesa” e “antipositivista”, que se opunha à generalização de uma imagem negativa da
juventude.
Breitner Tavares
27
2.3 Juventude enquanto categoria social no Brasil
Já nos idos dos anos 50 e 60, quando o Brasil já supunha estar em pleno desenvolvimentismo
econômico, com um setor industrial em expansão, cresce a noção de que o Brasil, assim como a América
Latina, teria se inserido numa ordem capitalista. Ao mesmo tempo, surgem diversas críticas, que
evidenciavam, apesar do franco desenvolvimento, que o Brasil continuava com uma grande parcela de
“destituídos sociais”, conforme Fernandes (1967).
Assim, o Brasil, em vias de sua modernização, deveria sob o novo discurso hegemônico avançar
em seu processo de democratização das instituições sociais. Nesse contexto, a juventude universitária,
identificada com perspectivas políticas de esquerda, busca um envolvimento com os movimentos sociais
das classes trabalhadoras. Desta forma, caberia a esse grupo estruturado nos movimentos sociais e nas
universidades “[…]falando ao povo (a respeito dos problemas do povo), o intelectual passava a ser
“povo” e, por conseguinte, se tornava seu “porta-voz” e então intelectual da sociedade, não intelectual da
anti-sociedade” (ORTIZ, 1985, p. 72). A busca dos “sentimentos das massas”, assim como “agir em nome
dos interesses do povo”, passou a ser a nova abordagem das questões sociais da época.
Breitner Tavares
28
[...] Ir por todos os meios, ao encontro do povo, ensiná-lo e deixar-se ensinar
por ele, fundir-se com ele e, ao mesmo tempo, oferecer-lhe um espelho onde
pudesse descobrir a imagem do que era, apesar de ainda não o saber: a
própria nação. Tudo o que pretendiam os “pensadores” do ISEB (Instituto
Superior de Estudos Brasileiros, criado por decreto em 1955) era formular o
“sentimento das massas” (PÉCAUT, 1990, p. 108).
Diversos movimentos sociais passaram a ser identificados como movimentos de uma juventude,
tida às vezes como inconformada ou rebelde. Nos Estados Unidos, estudantes se organizam num
movimento pela liberdade de expressão, Free Speech, em 1964, e, segundo alguns intelectuais, chegam a
influenciar posteriormente os referenciais para o movimento estudantil, em 1968, na Europa (SEARLE,
2008).
Mais adiante, a luta pelos direitos civis contra o regime racista baseado na leis da era Jim Crow5
e o movimento pacifista contra a guerra do Vietnã levaram milhares de estudantes a se associar e a se unir
a outros ativistas, como os afroamericanos e latinos, para ocuparem as ruas, bem como o espaço das
universidades.
Na Europa, o movimento dos estudantes parisienses de maio de 1968, em Sorbonne, irrompeu
uma série de manifestações de protestos por mudanças no sistema estudantil, bem como nos valores dá
época, como questões geracionais associadas à relação de classe, gênero e raça/etnia. Posteriormente, os
estudantes obtiveram apoio de diversas instâncias dos movimentos sociais franceses, com especial ênfase
do movimento operário, que na ocasião iniciou um movimento grevista em função de sua pauta
reivindicatória (HOBSBAWM, 1994).
De fato, com influência direta ou não das “barricadas francesas”, diversos países europeus
tiveram manifestações de cunho reivindicatório estudantil, tais como: na Alemanha Ocidental,
influenciada por movimentos ambientalistas e novas correntes do feminismo, na Itália, pelo movimento
5
A era Jim Crow trata de um conjunto de leis estaduais, instituídas nos estados do sul dos Estados Unidos,
de base racista, que separavam diversos grupos étnicos, como negros, latinos e asiáticos, da população
branca. Dentre as várias determinações da lei, estavam aquelas que exigiam a criação de escola e de
outros espaços públicos, como trens e ônibus, separados para brancos e negros. Posteriormente, essas leis
foram consideradas inconstitucionais pela Suprema Corte Americana, em 1954, e mais adiante foram
combatidas pelos movimentos pelos direitos civis norte-americanos. Para maiores detalhes, veja-se
McMillen, Neil, Dark Journey, Black Mississippians in the age of Jim Crow. Illinois Books, 1990.
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29
maggio rampante, com a adesão do operariado, na ex-Tchecoslováquia, com a “Primavera de Praga”,
movimento conhecido pela defesa de mudanças políticas contra o recrudescimento do socialismo
(HOBSBAWM, 1994).
Os ecos desse ativismo político, que estão relacionados a eventos em níveis transnacionais,
eclodiram todo um sentimento de missão e de mudancismo nas estruturas sociais latino-americanas,
inclusive na sociedade brasileira, expresso pelo setor universitário, em especial pela adesão dos jovens
aos Centros Populares de Cultura – CPCs, ligados à União Nacional de Estudantes – UNE. Toda essa
efervescência política e intelectual vivida pelo Brasil atinge diversos níveis (HOLLANDA, 1982). Esses
movimentos em geral defendiam ideais revolucionários e contrários ao regime militar iniciado em 1964.
Diversas manifestações estudantis levaram à ocupação do espaço universitário, com especial destaque
para as Universidades de São Paulo e de Brasília, que foram ocupadas e sofreram com a reação da polícia
da época.
Diante disso, em termos sociológicos, o surgimento da categoria juventude ocorreu de modo
diverso da tendência da época, voltada para outros estudos relacionados à condição de classe no Brasil,
como fazia o ISEB. O jovem no Brasil apareceria, inicialmente, a partir de uma sociologia das elites
especificamente centrada nos estudos sobre a classe média universitária.
Ocorre, naquele caso, a construção generalizada do jovem universitário, como assinalou
Bourdieu (1968), onde há um enfoque das representações sociais dessa juventude em relação a uma
cultura hedonista e idílica. As regras sociais seriam frouxas em detrimento da ênfase no lazer. Para esse
jovem fora das limitações impostas pelo ritmo das jornadas de trabalho, que estabelecem um controle
preciso do tempo típico do mundo adulto, não há datas nem horários rígidos a serem cumpridos. Esse
jovem se lança na recusa do mundo adulto de se submeter ao processo socializador que o mundo do
trabalho lhe reserva.
Em diversos artigos dessa geração de autores, além de criar certos estereótipos em relação ao
suposto desinteresse pela política do jovem das classes trabalhadoras, também invisibilizava-se toda uma
densidade das relações sociais orientadas por dinâmicas relacionadas, como as questões de gênero e raça.
Iani (1968)6 também abordou o jovem universitário, sob a perspectiva das classes médias. Geralmente
esses estudos chegavam a conclusões em que se considerava o jovem universitário “mais politizado”, ou
por ter acesso a mais informação, ou pelo próprio contexto acadêmico, que suscita a reflexão da questão
política de uma maneira mais “profunda” em relação ao operário semialfabetizado das fábricas.
No caso brasileiro, parte dessa juventude tratada nas análises assumiu, em contextos autoritários
como o do regime militar da segunda metade do século XX, a “missão” por realizar a transformação do
país, por meio do movimento estudantil de caráter revolucionário. Esses “radicais” normalmente advindos
6
Veja-se IANNI, O. O jovem radical. In: BRITO, S. (Org.). Sociologia da juventude, I. Rio de Janeiro:
Zahar, 1968, p. 225-242.
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30
das ciências humanas, que seguiam de maneira intensa seus ideais de transformação social, não o faziam
por sofrerem as consequências objetivas do sistema econômico, das quais são críticos, mas por serem
influenciados por uma ideologia esquerdista que circulava nos meios universitários. Isso é preponderante
para se manter um sistema de distinção social. Por um lado, uma elite intelectual universitária, que
chamava para si a responsabilidade de liderança pautada em perspectivas universalizantes de
transformação social de um marxismo europeu. Por outro, havia o povo semialfabetizado, proletário,
composto de uma massa homogênea e considerado incapaz de se organizar politicamente (IANNI, 1968,
p. 180).
O jovem universitário, conforme priorizado nos primeiros estudos sobre juventude no Brasil,
será em estudos pesquisadoras como Marialice Foracchi (1972). A autora pioneira nos estudos sobre
juventude no país traz uma série de contribuições em termos de análise dos processos de socialização e
inclusão da juventude no mundo adulto, bem como mostra como esse processo pode ser conflituoso em
função da rebelião que compõe o comportamento jovem. Foracchi (1972) analisou, baseando-se na
perspectiva de Mannheim, como uma mesma situação de classe propicia uma geração com valores
semelhantes, como no caso dos estudantes universitários. Além disso, a autora considera que a relativa
condição de liberdade pelo desprendimento do mundo do trabalho garantido pelo apoio financeiro
advindo de suas famílias de classe média os fazia mais “livres” para se dedicarem a questões como a
militância política. Foracchi identifica uma “nova crise” como consequência de uma suposta
“marginalização temporária”, dada a condição de crise vivida pelo estudante, ou seja, não ser mais
adolescente e tampouco adulto, aquele que enfrenta de frente a vida imposta pelo sistema (FORACCHI,
1972, p. 30).
A “recusa pelo sistema” está relacionada à possibilidade de realização de metas ainda não
alcançadas previamente pelas gerações anteriores, que pode passar até pela destruição do sistema atual. A
autora considera o jovem universitário como o “mais sensibilizado”, porém o “menos preparado” para
realizar as mudanças que propõe. Por outro lado, ela reforça ainda estereótipos sobre o suposto baixo
nível de envolvimento que os jovens de origem trabalhadora demonstram pelo pelo interesse no
engajamento político, já que os mesmos advêm de um ambiente de “pobreza cultural” (FORACCHI,
1972, p. 44).
Durante as décadas de 50 e 60 do século XX, o desenvolvimentismo como discurso político do
Estado brasileiro, perante uma grande parcela da população de excluídos, leva os setores universitários,
ocupados por jovens das camadas médias e identificados com ideologias políticas de esquerda da época, a
assumir um posicionamento de atores políticos, que deveriam estar envolvidos nos movimentos sociais da
época. Diante disso, cria-se um sentimento de “missão política” do jovem universitário, voltado para as
transformações das estruturas sociais como já ocorria nas manifestações estudantis em outros países da
Europa e América.
Esses processos influenciaram o enfoque dado pelos primeiros estudos sobre uma sociologia da
juventude no exterior (BRITO, 1968) e no Brasil, em virtude da ênfase numa juventude dos setores
médios. Contudo, esses mesmos estudos, conforme Ianni (1968) e Marialice (1972), reproduziram uma
Breitner Tavares
31
abordagem universalista, na qual jovens de outros estratos sociais, como aqueles da juventude da classe
trabalhadora, eram invisibilizados enquanto sujeitos políticos mediante hipóteses que apontavam para um
suposto desinteresse ou mesmo uma incapacidade dos mesmos no sentido de alguma mobilização de
cunho político reivindicatório.
2.3.1 Um novo paradigma da juventude nos anos 90: violência e criminalização – Uma abordagem
sobre os estudos da Unesco
Após os estudos de Foracchi (1972) e Ianni (1968), pode-se considerar, de um modo geral, que
houve uma lacuna no que se refere “a estruturação de um campo consolida de estudos sobre juventude
apesar da produção de teses e dissertações no âmbito da pós graduação brasileira. Durante os anos oitenta
e noventa, foram publicados alguns trabalhos baseados na perspectiva dos estudos culturais e, por
conseguinte, sobre subculturas, com destaque para algumas publicações como nos estudos sobre o
movimento punk no Rio de Janeiro (CAIAFA, 1985) e São Paulo (ABRAMO, 1994) e da cultura da festa
funk, no Rio de Janeiro (VIANNA, 1988).
Contudo, a retomada da juventude enquanto temática de estudos num nível mais abrangente
ocorrerá pela inserção dos estudos desenvolvidos pela Unesco no final dos anos 90. Essa instituição
alocada no Brasil estabelecerá uma articulação no que se refere ao campo institucional de pesquisas sobre
juventude, bem como no que se refere à criação e implementação de políticas públicas voltadas para o
jovem, que culminarão na criação de aparatos institucionais como a Secretaria Nacional de Juventude, em
2005 (CASTRO, 2005).
A intervenção da Unesco, enquanto agente internacional polarizador, na esfera intelectual e
política, será catalisada a partir da redefinição da categoria juventude, passando pela perspectiva da
violência e cidadania e do protagonismo jovem. De fato, a Unesco historicamente vem desenvolvendo
atividades que assimilam aspectos das pesquisas com vistas a definir planos de ação intervencionista.
Dessa forma, ela objetiva conhecer e intervir no contexto no qual está inserida para a difusão daquilo que
se consideram valores democráticos, a partir da instauração de “uma cultura de paz e não violência”.
Esses valores seriam difundidos a partir de programas em parceria com o Governo Federal e os Estados,
como o “Abrindo Espaços: construção de uma cultura de paz” (CASTRO, 2005, p. 58).
A entidade realizou também vários eventos em torno da temática da juventude, o que permitiu uma
articulação entre membros da elite política, tanto em níveis locais como nacionais, e a aproximação da
esfera acadêmica. Esses campos político-acadêmicos, ao serem articulados, foram capazes de colaborar
com a construção para um novo sentido de juventude, a exemplo da divulgação da Unesco de alguns
resultados de suas pesquisas sobre o tema, como feito nas publicações: Jovens Acontecendo na Trilha das
Políticas Públicas e Juventude, Violência e Cidadania (CASTRO, 2005). Além disso, a Unesco financiou
Breitner Tavares
32
diversas pesquisas em nível regional nos anos subsequentes7.
Essas publicações, em geral, seguiram a mesma orientação teórico-metodológica durante a
realização das pesquisas, a única ressalva fica para o Mapa da Violência (1998b), uma pesquisa
quantitativa de abrangência nacional, que se tornará uma referência para muitos estudos posteriores sobre
o tema.
Esse montante de publicações expressa o sentido de uma mobilização de um grupo de intelectuais
no caminho da (re)definição de um campo de pesquisa, difusor de imagens e conceitos em relação à
juventude enquanto categoria social e enquanto objeto de pesquisa, que ultrapassa o campo intelectual em
direção à luta política pelo reconhecimento dessas novas abordagens. Associada a essa mobilização,
estava a intenção da Unesco de implementar ações intervencionistas na esfera das políticas públicas para
a juventude.
Essas publicações foram ainda decisivas no que se refere à consolidação da Unesco enquanto
entidade de pesquisa, que, por sua vez, propiciaram que a mesma adquirisse uma posterior inserção no
campo da elaboração e execução de políticas de intervenção, baseada em seus conceitos de juventude,
violência e cidadania.
Nesse contexto, a publicação Os jovens de Brasília (1998), de Júlio Waiselfisz, pode ser
considerada uma publicação-piloto, que permitiu o estabelecimento de articulação entre diversas
instituições, bem como uma reconstrução conceitual do que vem a ser juventude. De fato, a decisão de se
pesquisar os jovens de Brasília se deu em função do marcante assassinato do índio pataxó, Galdino Jesus
dos Santos, ocorrido na cidade, cometido por jovens de classe média alta. O livro propunha a quebra de
visões do senso comum sobre a juventude, em especial das classes mais abastadas. Além disso, o autor
discute como a violência juvenil vem sendo abordada pela perspectiva da juventude pobre e
marginalizada.
Era uma proposta que nos dava a oportunidade de refletir sobre muitos de
nossos próprios estereótipos. Tínhamos nos acostumado a pensar a violência
como resultado direto da miséria. Os perigos e inseguranças vinham dos
“pobres” [...] o caso Galdino e este estudo posterior nos demonstram que a
violência, em sua expressão atual, permeia o conjunto da vida social. [...] É
uma questão global e globalizada que aparece como um dos sintomas da
nossa modernidade [...] é nesse campo que a pesquisa juventude, violência e
7
As pesquisas da Unesco, iniciadas em 1996, se chamaram respectivamente Juventude, violência e
cidadania: os jovens de Brasília (1998a), Mapa da Violência (1998b), ambos coordenados por Júlio
Waiselfisz. Juventude, Violência e Cidadania: Gangues, galeras, chegados e rappers: juventude,
violência e cidadania nas cidades da periferia de Brasília (2001), coordenado por Miriam Abramovay;
Juventude, violência e cidadania na cidade de Fortaleza (1999), coordenado por César Barreira; Os
jovens de Curitiba: esperanças e desencantos (1999), coordenado por Ana Luisa Fayet Sallas; Fala
galera: juventude, violência e cidadania na cidade do Rio de Janeiro (1999), coordenado por Maria
Cecília de Souza Minayo.
Breitner Tavares
33
cidadania objetiva contribuir: melhorar nosso entendimento da juventude
atual, no marco das mudanças e transformações que a vida moderna está a
impor (WAISELFISZ, 1998a, p. 7-8).
Waiselfisz (1998) realiza uma pesquisa qualitativa com jovens oriundos do Plano Piloto e cidadessatélites, na qual são discutidas questões relacionadas à cidade de Brasília, à vida familiar, bem como
respostas sobre valores como cidadania e violência. O autor, além disso, busca outros subsídios em
índices de homicídios para definir a violência causada pelo jovem a partir de organizações criminosas e
subculturas juvenis. Essas seriam as razões para o “sentimento de medo” e “fatores de risco”. A definição
de violência é feita de maneira ampla e difícil (CASTRO, 2005). O autor define a violência enquanto um
problema de teoria social e da prática política.
Para efeito desta pesquisa, considera-se violência como parte da própria
condição humana, aparecendo de forma peculiar de acordo com os arranjos
societários de onde emergem. Ainda que existam dificuldades e diferenças
naquilo que se nomeia como violência, alguns elementos consensuais sobre o
tema podem ser delimitados: noção de coerção ou força; dano que se produz
em indivíduos ou grupo social pertencente a determinada classe ou categoria
social, gênero ou etnia (WAISELFISZ, 1998a, p. 145).
As pesquisas da Unesco reforçam uma cultura acadêmica que mantém o enfoque de pesquisas
sobre juventude sob uma perspectiva quantitativa, como se observa em Abramovay (1999), bem como em
outras instituições, como a Perseu Abramo (2003). Nessas pesquisas, tornam-se evidentes questões que
não priorizam aspectos das representações coletivas produzidas pelos jovens no contexto de sua vida
cotidiana. Da mesma maneira, não se consideram aspectos relacionados a gênero, raça/etnia. O resultado
é que, ao se omitirem questões dessa natureza, ocorre uma invisibilidade de certos atores sociais. Alguns
trabalhos que normalmente chegam à conclusão de uma “sensação de derrota” sentida pelo jovem, em
especial o de grupos pobres, geram consequências diretas no que se refere à sua cultura política. Essas
pesquisas estão vinculadas normalmente a uma orientação teórica que não contempla aspectos vivenciais
dessa juventude.
Para a Unesco, o principal argumento no sentido da construção da juventude se assemelha às
abordagens baseadas na noção de papel social e função social desviante. Dessa forma, a violência é
resultado da desintegração do jovem na estrutura social. A falta de integração, e pessimismo são
consideradas como as princiais fatores que propiciam o surgimento de novas formas subculturais. Além
disso, Castro (2005) menciona fatores para o avanço de práticas criminosas, como o desenvolvimento das
sociedades modernas, o acelerado ritmo de urbanização, dentre outros. A pobreza segue como fator
gerador de desigualdades e do não acesso à educação ou emprego, entre outros. Portanto, a busca da
emancipação pela oposição ao mundo adulto é contrabalanceada por movimentos estudantis
reivindicatórios e delinquência, que leva a associação da categoria jovem, ao mesmo tempo, à condição
de autor e vítima da violência.
Breitner Tavares
34
Quando a definição de juventude e de jovem se interpenetra com os
fenômenos da violência, observa-se um esquema diferente. O jovem deixa de
ser pensado como um segmento em “transição” e é identificado a partir de
seus comportamentos e práticas, passando a ser considerado vítima ou
agressor de atos de violência e tornando-se, portanto, um sujeito político
importante. O ator da violência – que não havia ainda sido definido, como
visto no eixo violência – encontra no eixo juventude a sua materialidade
(CASTRO, 2005, p. 154).
Possivelmente um país como o Brasil sofreria mais com essa crise, dada a profunda desigualdade
econômica, resultado perverso de seu rápido desenvolvimento observado nas últimas décadas.
Desta maneira, no que se refere à retomada de estudos sobre a juventude, nos anos 90, pode-se
afirmar que a mesma esteve associada à participação da Unesco na formação de uma nova expertise que
desenvolve uma série de abordagens no campo da pesquisa social, com vistas a propor ações
intervencionistas no campo das políticas públicas para a juventude (CASTRO, 2005). A idéia era
redefinir o jovem e a juventude num campo discursivo, de modo a produzi-lo enquanto um
“protagonista”, ou seja, um ator social capaz de apresentar respostas aos problemas de violência sofridos
e cometidos pelos jovens na contemporaneidade. O protagonismo é construído então como uma
pedagogia democrática e pacificadora, como nos lembra a continuidade da epígrafe: “Nessa concepção,
educar é criar espaços reais para que os jovens possam empreender a construção do seu ser em termos
pessoais e sociais” (CASTRO, 2005, p. 310).
A Unesco protagonizou, portanto, a retomada da juventude como uma temática sociológica,
dialogando com distintas esferas, desde político-governamentais até setores relacionados à produção de
pesquisas e, por conseguinte, de discursos sobre a juventude. Tentando apontar para o problema da
violência num nível pluriclassista, de um modo geral, a questão da violência, sofrida e cometida pela
juventude, enquanto um reflexo das condições de classe, continuará a permear os discursos dos estudos
subsequentes.
Breitner Tavares
35
2.3.2 Para as juventudes do presente
Apesar dos números crescentes de publicações e do surgimento de grupos de trabalhos que
enfatizam de alguma maneira a categoria juventude como um referencial para se pensar em processos de
socialização e geracionais, ainda não representam além da constituição de um campo estruturado de
pesquisadores em relação ao tema (SPOSITO, 2000). Além disso, muitos desses estudos ainda trabalham
com abordagens lineares que se restringem a uma descrição superficial dos estilos de vida jovem. Poucas
são as abordagens que tentam reconstruir trajetórias “pós-lineares” juvenis a partir do discurso dos
próprios jovens, como salientam Dayrell (2005) e Pais (2005).
Breitner Tavares
36
Atualmente, algumas publicações têm chamado atenção para a juventude para além de
dicotomias entre economia e cultura, para isso, observa-se alguns trabalhos que relacionam à juventude e
trabalho e práticas estéticas, com especial ênfase para a juventude pobre e trabalhadora e seu
envolvimento com a cultura urbana, como o hip-hop (SPOSITO, 1994). Ademais, abordagens em relação
ao consumo e à sociabilidade urbana de jovens de periferia têm contribuído sobremaneira para a
redefinição dos estudos geracionais sobre juventude, outrora centrados numa ótica da juventude de classe
média (NUNES, 2007).
Diante da busca pela compreensão das novas formas de vida que uma geração imprime através
da materialização de uma juventude, verifica-se, a existência de uma pluralidade de sujeitos sociais por
vezes invisibilizados numa condição subalterna, mas que estabelecem suas estratégias criadas na fronteira
da instabilidade desse mundo precário, em termos das velhas expectativas mobilidade e controle social,
descritas nas abordagens mais tradicionais do funcionalismo. A tensão do mundo contemporâneo exige a
criatividade para a compreensão das culturas juvenis (PAIS, 2005).
Apesar de seu potencial analítico, a categoria juventude seguiu uma tradição “universalista”, em
termos de suas abordagens empíricas. Os estudos sobre juventude pouco foram empregados em estudos
relativos à raça/etnia e gênero. Desta forma, é recorrente uma invisibilidade de atores sociais, tais como
mulheres e negros. Weller (2005) argumenta que uma maior inserção de várias áreas de estudos sobre as
culturas juvenis contemporâneas permitiria uma reavaliação da noção de juventude para uma superação
de uma compreensão “pré-social”. Essa compreensão se refere a uma interpretação restrita, de base
biológica, um fator determinante de uma “crise” no processo de transição da juventude para o mundo
adulto.
Se quisermos entender o que vem a ser juventude e como ela é vivida de fato
pelos adolescentes e jovens de ambos os sexos, será necessário dedicar maior
importância às descrições e narrativas dos atores envolvidos associada à
reflexão teórico-metodológica e à análise rigorosa dos dados empíricos
(WELLER, 2005, p. 7).
Em outros termos, para uma ampliação da capacidade explicativa da categoria juventude, se faz
necessária a superação de certos estereótipos analíticos, localizados unicamente na juventude européia,
branca, heterossexual, das classes abastadas.
Assim, paralelamente à apresentação desses vários postulados, observa-se que a categoria
juventude se constitui de um modo diverso como aqui se apresentou, numa pequena amostra dessa
diversidade. Por outro lado, pode-se afirmar que, nas perspectivas mais predominantes, o sentido de
juventude ainda é definido pelo sentido de “ser desviante”, “rebelde”, alvo de programas oficias de
“inclusão” ou “ressocialização” ou, em outras abordagens, como “protagonista” transformado em
Breitner Tavares
37
“agente” de transformação de programas sociais definidos sob a perspectiva do mundo adulto. Além
disso, houve tradicionalmente uma ênfase nos estilos juvenis “espetaculares”, membros de subculturas, o
que estabelece um sentido de juventude como um sujeito social “exótico”, em permanente conflito com as
gerações mais velhas. Dessa forma, nesta década, observa-se o retorno do tema Educação, mas com
ênfase na juventude de ensino médio ou que esteja fora da escola e do mercado de trabalho. Há também
um foco na diversidade ao se abordarem identitárias, de gênero e étnico-raciais.
CAPÍTULO 3 O MÉTODO DOCUMENTÁRIO COMO REFERÊNCIA PARA O ESTUDO DAS
ORIENTAÇÕES COLETIVAS DA JUVENTUDE HIP-HOP
Breitner Tavares
38
Para o desenvolvimento da problemática sobre a cultura jovem hip-hop em Ceilândia foram
enfocados aspectos da história e da trajetória de alguns grupos de jovens que se reúnem em função do
rap. A interação social dos jovens no espaço urbano foi analisada a partir do método documentário de
interpretação, criado pelo sociólogo húngaro Karl Mannheim. Essa proposta terá um referencial teórico
metodológico na avaliação dos dados empíricos produzidos mediante entrevistas, observação participante,
bem como a partir de produção e coleta de materiais audiovisuais.
O método documentário de interpretação foi desenvolvido por Mannheim (1990), para a análise
da categoria weltanschauung, “visão de mundo”8. Trata-se de um esforço teórico para se desenvolver uma
sociologia da cultura que vai atribuir uma importante ênfase aos aspectos qualitativos das orientações
coletivas dos grupos sociais. A weltanschauung resulta de “uma série de vivências ou de experiências
ligadas a uma mesma estrutura que, por sua vez, constitui-se como base comum das experiências que
perpassam a vida em múltiplos indivíduos” (MANNHEIM apud WELLER, 2005, p. 264).
Mannheim (1990) objetivava estabelecer um método interpretativo influenciado pela
“hermenêutica romântica”, de Wilhem Dilthey, produzida entre o final do século XIX e início do século
XX, que distinguisse a lógica do conhecimento entre as ciências naturais e ciências humanas. Ele
considerava que compreender (Verstehen) para as ciências sociais e a história implicaria um “trabalho de
leitura da situação de análise do contexto ao qual a ação ou crença pertencem, compreendendo-as sob a
ótica de outras ações e crenças historicamente construídas” (SCOCUGLIA, 2002, p. 251). Outras
abordagens de cunho compreensivo nas ciências sociais ocorrem na obra de autores como Max Weber, na
fenomenologia de Alfred Schutz, na dramaturgia de Erving Goffman, entre outros.
Weller (2002) analisa o conceito de “visão de mundo”, em Mannheim, como instrumento para
compreensão das ações dos indivíduos de um determinado grupo. As visões de mundo não podem ser
construídas aleatoriamente como teorias dessa forma essas práticas são constituídas a partir do
conhecimento ateórico”. Dessa forma, a conceitualização teórica se constitui em instrumento para a
compreensão das ações coletivas que produzem esse conhecimento ateórico.
Para o autor, as experiências do mundo da cultura devem ser entendidas a partir de categorias
próprias, mas distintas da teoria enquanto tal. Refletir teoricamente, ou seja, traduzir em teoria um
fenômeno de natureza sui generis, como expressões da subjetividade de uma juventude, significa voltarse para dimensões pré-teóricas, ao nível da existência cotidiana. Nesse contexto, há uma clara tentativa de
superação da dicotomia entre a reflexão de caráter eminentemente teórico e da pesquisa que seria
simplesmente “empírica”. Isso se sustenta quando se admite que a teorização não se inicia com a ciência,
mas sim no âmbito da experiência cotidiana.
8
A categoria “visão de mundo” (weltanschauung) pode eventualmente ser associada a outras expressões
como, representações ou representações coletivas, entre outras categorias, que remetam a conceitos e
explicações advindas da vida diária no processo dinâmico das interações individuais.
Breitner Tavares
39
A teorização, pois, não começa com a ciência; a experiência quotidiana précientífica é, portanto, recolhida com pedaços da teoria. A vida na mente é um
fluxo constante, oscilando entre o pólo teórico e a-teórico. Assim a teoria tem
o seu lugar próprio, a sua justificação e o seu sentido mesmo no domínio da
experiência imediata, concreta – no domínio do a-teórico (MANNHEIM,
1986, p. 59).
Dessa forma, a visão de mundo como uma síntese, como meio para se traduzir representações de
uma coletividade, de uma geração é uma entidade ainda não contituida, localizada além do teórico. De
outra forma, as ações sociais, como modo de expressão de múltiplos sentidos, advêm do âmbito racional,
embora de natureza a-teórica. A compreensão teórica dessas ações a partir da categoria de “visão de
mundo” está além de todas as realizações de sentido, embora seja de algum modo obtida através delas.
Assim, os jovens ceilandenses, na medida de suas realizações na vida cotidiana constroem visões de
mundo a partir das ações práticas. Contudo, esses jovens se compreendem mutuamente em função de sua
convivência pré-reflexiva, tácita, sem empregarem necdessáriamente uma interpretação de suas ações.
As representações coletivas ou orientações coletivas, segundo Manhheim, derivam da
experiência conjuntiva de um grupo que possui traços de generalidade. Elas são objetivas porque
estabelecem o sentido para as possíveis experiências de um grupo, para além da psique individual. Elas
não são extraindividuais para todos os possíveis sujeitos, mas somente em relação ao grupo que está de
fato presente num “fato social”. Nesse contexto, “fato social” é definido como “experiência” em
detrimento de “coisa”, num sentido durkheimiano9. Uma “coisa” existe no espaço e está restrita a sua
9
A categoria representação possui um amplo espectro conceitual nas ciências sociais. Inicialmente, as
representações coletivas enquanto categoria criada por Durkheim (1989) se referem a um caráter coletivo
sui generis, um substrato da sociedade. Elas são exteriores às consciências individuais, assim como um
fato social; ou seja, é tudo aquilo que, afetando a mente ou emanando dela, é capaz de fixar-se com menor
ou maior grau de estabilidade. As representações coletivas em Durkheim (1989), mais adiante nos anos
60 do século XX, tornam-se um referencial para o desenvolvimento dos estudos das representações
sociais a partir de Moscovici (1961) e aprimoradas por Denise Jodelet, que irão adquirir maior
popularidade no meio acadêmico nos anos 80. Moscovici (1961) considerava as limitações das
representações coletivas frente às representações individuais. Para o autor, representações sociais são as
formas de consciência que são associadas à concepção contemporânea de senso comum, ou seja, indicam
um conjunto de conceitos, explicações e afirmações advindas da vida diária no curso de comunicações
entre indivíduos. Diante do amplo escopo de definições da categoria de representações sociais, a mais
recorrente é a de
Denise Jodelet (2002, p. 22): “As representações sociais são uma forma de
conhecimento socialmente elaborado e compartilhado, com um objetivo prático, e que contribui para a
construção de uma realidade comum a um conjunto social”. A dispersão de definições que atravessam os
estudos das representações sociais prejudica a formação de propostas metodológicas mais precisas.
Breitner Tavares
40
existência, a um específico período de tempo e espaço. Uma “coisa” não muda sua essência por si só,
como ocorre com as representações coletivas.
Uma representação coletiva incorpora a situação externa a sua funcionalidade
para uma comunidade em particular, no sentido que isso contém. Nem todos
os indivíduos podem ler essa funcionalidade. Contudo, qualquer um pode
entender suas ligações concernentes da situação original da representação
coletiva junto com o sentido que isso contém. Para as mesmas razões todos
os conceitos e representações coletivas possuem um caráter expressivo, assim
como um sentido documentário com respeito a sujeitos individuais ou
coletivos que os produzem (MANNHEIM, 1982, p. 208, tradução do autor).
Dessa forma, Mannheim (1982) argumenta que nenhum indivíduo num grupo comanda tudo que
é conhecido, que pode já estar disponível para o grupo no que se refere à forma das partes do grupo, na
sua produção de valores e conhecimento. A totalidade do que pode ser conhecido é dividido entre vários
indivíduos, cada um dos quais se envolve num segmento em particular da possível representação do
espaço de experimentação coletiva. Entretanto, a totalidade desses segmentos forma um todo orgânico
que não existe na cabeça de ninguém como um todo, mas de certa forma “suspenso” sobre o grupo.
Exemplifica-se que todo culto é uma totalidade na qual cada indivíduo tem sua função e regra, mas onde
a totalidade é algo que depende de si mesmo para a atualização e pluralidade de indivíduos que, nesta
perspectiva, alcançam algo além de uma psique individual.
3.1 Sociologia compreensiva e o método documentário
Mannheim (1986), de fato, propõe um sofisticado sistema para sua metodologia hermenêutica,
vinculado à perspectiva de uma sociologia compreensiva. Nela são estipulados três aspectos a serem
considerados no processo de interpretação do sentido das ações sociais. Para Mannheim (1986), os
fenômenos da cultura só podem ser compreendidos plenamente se observados como uma coisa em si
mesma. A observação se torna viável ao se considerar que as ações sociais revelam três “estratos de
sentido”: objetivo, expressivo e documentário. Dessa forma, o hip-hop, ao ser definido como um
fenômeno de âmbito cultural, poderá ser compreendido a partir da observação de seus estratos de sentido
que, em um primeiro contato, serão caracterizados pela objetividade para que em etapas posteriores seu
significado expressivo e documentário permita que se obtenha seu “significado total”.
Breitner Tavares
41
Essa tripla diferenciação dos estratos de sentido da “visão de mundo” será considerada no
contexto dos grupos juvenis vinculados ao hip-hop na Ceilândia. Isso será viável a partir do momento em
que a configuração social for conhecida por meio da observação. O conhecimento da configuração
objetiva será fundamental para que se oriente o processo de compreensão dos significados construídos por
essa juventude ceilandense, na medida em que ocorrerá a interação do pesquisador no ambiente onde são
construídas essas significações.
Quando se está diante de interlocutores ou de um bem simbólico, como uma letra de música, é
possível que haja intencionalidades distintas daquelas apresentadas no primeiro contato observado ao
nível objetivo. Assim, para além do significado objetivo, o ato observado poderá conter um significado
inesperado, às vezes, até contraditório. Nesse caso, o observador terá que recorrer a novas categorias para
aquilo que se apresenta de maneira dinâmica para além de sua mera “aparência”; para cada significado
novo será necessária uma categoria nova capaz de explicar a expressividade da ação definida pelos
sujeitos sociais.
O significado expressivo é relevante, pois permite observar o sentido íntimo que os indivíduos
atribuem a suas ações, sem separá-los do mundo da experiência. Dessa forma, o estilo musical rap
permite a construção de todo um meio expressivo por parte de seus interlocutores, que fazem alusão a
categorias como a pobreza, a vida na periferia urbana ou a sua identidade racial. O observador deve
perceber esse “universo íntimo” em um primeiro momento, a partir do sentido atribuído por esses jovens.
Este conteúdo expressivo, apesar do fato de não possuirmos dele um
conhecimento teórico-refletido, mas somente uma experiência direta,
concreta, pré-teórica, é ainda significante, isto é, de alguma forma
interpretável, mais do que algo meramente físico, um estado difusamente
endurecido. Pode-se compreender o significado das ações pela interpretação
sem recorrer-se ao que é subjetivamente pretendido (MANNHEIM, 1986, p.
67).
Segundo o autor, o pesquisador, ao se posicionar como “testemunha” que observa e interpreta a
cena, está em condições de partir do significado expressivo para o significado documentário, que se refere
à compreensão daquilo que é expresso pelos indivíduos de modo inconsciente, não intencional. No caso
em que se pretende documentar as representações coletivas de jovens ceilandenses vinculadas à cultura
hip-hop é relevante atentar-se, inclusive, para aspectos não verbais, como gestos, expressões faciais, o
modo de conversar. Isso porque, enquanto ocorre uma conversa entre jovens e pesquisador, em alguns
casos, o pesquisador pode perceber ou constatar a assimetria entre o que é dito e o que é expresso, tanto
no jogo corporal, como no contato ambiental do lugar. A observação desses múltiplos aspectos
expressivos dos jovens permitirá ao pesquisador uma visão mais abrangente da ação social. Isso se torna
Breitner Tavares
42
relevante para se promover uma análise documentária, ou seja, para que se compreenda a ação social
além da intencionalidade dos atores sociais.
Uma reconstrução desse nível documentário parte do sentido da ação no contexto em que ela
ocorre e em que está inserida. Aquilo que foi denominado por Bohnsack (apud WELLER, 2005) como
observação de segunda ordem, o acesso ao conhecimento pré-reflexivo dessa juventude. Como considera
Weller (2005c), essa reconstrução interpretativa parte de algumas questões estipuladas diante do nível
objetivo das representações dos sujeitos sociais.
Nessa etapa de reconstrução documentária, o pesquisador deve analisar que determinados sinais de
linguagem inscritos em gestos estereotipados não encerram simplesmente uma “gramática universal”. A
atenção, nesse caso, deve estar voltada para outros possíveis gestos que possuam uma carga expressivasignificativa para os jovens. Esses gestos individuais demandam uma interpretação, o que elimina a
tentativa de sua generalização apressada. Contudo, observar a expressividade de gestos individuais não
implica meramente uma abordagem psicológica das representações da juventude. De fato, o nível de
interpretação documentária parte da experiência psíquica dessa juventude. O sentido documentário não
demanda, necessariamente, conhecer toda a trajetória dos indivíduos, para que se possa compreendê-los
num determinado contexto das representações coletivas.
O que se faz relevante no sentido documentário não é explicar o que significa o hip-hop em
termos essenciais, mas compreender como se opera a construção de identidades; como, a partir do hiphop, uma juventude como a localizada na cidade de Ceilândia orienta suas práticas sociais. Nesse caso,
mais importante que perguntar “o quê” é perguntar “como” se operam essas construções de sentidos dessa
juventude em questão. A maneira como os assuntos são tratados em uma conversa, bem como o tipo de
seleção dada a esses assuntos em determinado contexto pode ser mais uma pista para a construção desse
sentido compreensivo.
Weller considera que, no âmbito analítico, a postura sociogenética do pesquisador corresponde
em colocar “entre parênteses o caráter de validade dos fatos sociais” (WELLER, 2005, p. 270). A vontade
de verdade reivindicada pelo discurso do informante, sua índole, não podem, nesse caso, ser um fator
impeditivo para o questionamento do pesquisador sobre as falas apresentadas pelos entrevistados em
relação às suas práticas sociais.
O sentido documentário, diferentemente do sentido expressivo, pode recorrer aspecto parcial da
representação coletiva tais como depoimentos de jovens sobre suas ações ou mesmo informações de outra
natureza como documentos produzidos anteriorment sobre essas ações como letras de música.
Informações parciais podem contribuir para a recosntrução das orientações coletivas em termos
documentáios. Nesse caso, o sentido objetivo, ou seja, o contato imediato com a juventude e suas falas
podem-se constituir aspecto relevante e explicativo, no que se refere à realização de um trabalho
analítico. Dessa forma, a interpretação documentária da juventude em Ceilândia é influenciada pelo seu
contexto, pela sua localização histórica sociogenética. Essa condição demanda ainda uma contínua
renovação da interpretação documentária. A tradução, em termos teóricos, desse conjunto de
Breitner Tavares
43
significações da vida cotidiana a-teórica ocorrerá mediante certos aspectos significativos que prevalecem
em relação a outros.
Ainda em relação às influências sobre a representatividade da interpretação, está em jogo a
posição ocupada pelo pesquisador, que tem uma afiliação teórica. O lugar de onde fala não corresponde à
neutralidade. As experiências cotidianas, bem como o reconhecimento de uma posição de classe, raça,
gênero, entre outras, não se excluem num processo de análise. Em relação ao aspecto da objetividade,
Bohnsack (apud WELLER, 2005) propõe que o método comparativo dos dados seja uma forma de
controle dessas subjetividades. Dito de outra forma, a reconstrução teórica do conhecimento a-teórico se
dá pela perspectiva comparativa de outros casos, que acaba por deixar em segundo plano o
“conhecimento teórico do pesquisador”.
A análise comparativa desempenha, assim, um papel de controle
metodológico da compreensão da realidade estranha ou distante do universo
do(a) pesquisador(a) – ‘methodisch kontrolliertes remdverstehen’ –, ou seja,
de controle das afirmações ou generalizações realizadas sobre a realidade
observada (WELLER, 2005, p. 23).
Na pesquisa sobre jovens da cidade de Ceilândia foram relaiados grupos de discussões. Essa
abordagem foi difundida pelos integrantes da Escola de Frankfurt, nos anos 50 do século passado,
principalmente por Pollok (apud WELLER, 2006). Mais adiante, nos anos 70, recebe influências teóricas
do interacionismo simbólico, da fenomenologia e da etnometodologia. A abordagem teórica dessa técnica
de pesquisa eleva o status dos grupos de discussão para um método de pesquisa.
Mangold e Bohnsack (apud WELLER, 2006) consideram que os grupos, ao se posicionarem
perante certas questões trazidas pelo pesquisador, não formulam suas respostas simplesmente pela
ocasião de uma interação; essas opiniões constituem reflexos das orientações coletivas ou visões de
mundo referentes ao contexto social dos entrevistados. Nesse caso, torna-se relevante conhecer vivências
coletivas, o habitus dos jovens. Portanto, a noção sociológica de grupo é definida pela relação de
interdependência, na qual se compartilham valores numa dinâmica que, eventualmente, enfatiza aspectos
harmônicos ou conflitantes, que são intrínsecos a um grupo estruturado (VANDENBERGHE, 2005, p.
115). De fato, na medida em que os costumes e regras compartilhados por um grupo se tornam peculiares,
observa-se sua relativa separação de outros grupos sociais em função do estilo de vida.
O método de pesquisa dos grupos de discussão, segundo Ralf Bohnsack (1989, 1999 e 2004,
apud WELLER, 2006), permite observar aspectos estruturais da sociedade. Estes “modelos” são
orientadores das experiências individuais e coletivas num determinado meio social, como é o caso da
juventude. Isso associado à perspectiva do método documentário de interpretação de Mannheim (1990)
permite dois modos de observação: um “interno”, relacionado ao sentido da ação atribuída a partir dos
indivíduos no contexto de sua interação, e outro “externo,” orientado para a representação das interações
num contexto estrutural.
Breitner Tavares
44
Ao ser retomado nos anos 80, o método dos grupos de discussão passou a ser empregado
especialmente em pesquisas sobre juventude. Os enfoques dessas pesquisas eram variados. Havia
interesse em estudos sobre desenvolvimento, gerações, formação educacional, gênero, meio social, entre
outras tipologias.
Nesse sentido, o método de grupos de discussão será relevante para que o pesquisador se aproxime
do contexto relacional dessa juventude ceilandense, expresso através de seus discursos e gestos, de modo
que se possa reconstruir teoricamente aspectos do seu meio social, histórias e trajetórias desses grupos e o
enfrentamento do racismo no contexto de uma segregação socioespacial imposta pela lógica urbana do
Distrito Federal. Será enfatizada a análise do habitus dos grupos hip-hop, com enfoque em sua
manifestação social resultante da condição geracional dessa juventude.
Para a operacionalização das entrevistas no método de grupo de discussões, foi produzido um
tópico-guia10 que tem a finalidade de combinar certas leituras relevantes com a temática da juventude hiphop em Ceilândia. Esse tópico-guia é resultante de conversações preliminares com sujeitos sociais
relevantes e tem a função de organizar o encaminhamento do grupo de discussão, bem como das
informações obtidas nesse contexto.
As perguntas apresentadas em seu corpo foram direcionadas para as representações sociais;
pergunta-se sempre “como” as ações se constituem. Essas perguntas têm a finalidade de se constituir
como um ponto inicial para a construção das falas. As terminologias empregadas são simples e
direcionadas para as práticas cotidianas de jovens que, em muitos casos, não tiveram acesso à
escolarização.
A flexibilidade é um fator importante nesse tipo de planejamento, uma vez que muitas questões, às
vezes, complexas no contexto da entrevista podem se tornar secundárias ou irrelevantes. Esse tópico-guia,
de fato, estará sujeito a inovações em função das situações vivenciadas no contexto de sua aplicação, por
outro lado, a análise das orientações coletivas dos grupos não seguiu necessáriamente a sequência das
questões elaboradas. Portanto, as mudanças e situações novas devem sempre ser registradas. Também
será aplicado um questionário com objetivo de se ter acesso a mais informações complementares das
trajetórias histórico-biográficas dos entrevistados.
Em relação à quantidade de entrevistas a serem produzidas numa pesquisa de cunho qualitativo,
alguns aspectos que a caracterizam devem ser considerados. Em primeiro lugar, a seleção das entrevistas,
diferentemente de uma pesquisa amostral quantitativa, está voltada para a descoberta de uma variedade de
posicionamentos frente a uma questão. No método documentário de interpretação, a análise das
interpretações, ou versões da realidade, mesmo que as experiências pareçam únicas nas mentes dos
indivíduos, será, em termos estruturais, resultado de processos sociais. Num primeiro momento elas são
surpreendentes; posteriormente, temas comuns começam a surgir e as surpresas tornam-se mais
infrequentes em função do processo comparativo dos dados.
Durante a pesquisa foram realizados quinze grupos de discussão com aproximadamente cinquenta
e cinco jovens, organizados em grupos de rap e street dance. Os jovens em geral se identificavam com o
hip-hop e com os grupos dos quais fazem parte e, em geral, estavam habituados a realizar apresentações
10
Vide anexo I.
Breitner Tavares
45
públicas em escolas, casas de festas ou boates. Durante o trabalho de campo, alguns jovens criaram a
expectativa de que se trataria de uma reportagem jornalística ou promocional. Essas situações exigiram
que fossem esclarecidas as devidas circunstâncias que envolviam a pesquisa em questão.
Em relação aos aspectos metodológicos, a interpretação documentária permite compreender a
partir do hip-hop e suas manifestações artísticas como a música a partir dos sentidos das ações coletivas
produzidas por esses grupos jovens em suas narrativas, bem como permite observar as representações
sociais, no gestual, não escrito naquilo que está imanente à ação.
Em relação ao critério de seleção dos grupos, levou-se em conta a qualidade das respostas
apresentadas durantes as discussões dos grupos, obtida a partir da demonstração do conhecimento dos
grupos sobre as questões apresentadas, como discute a teoria fundamentada ou ground theory
(STRAUSS, 1967, apud WELLER, 2006).
Durante o trabalho de campo, a cada entrevista era feita uma avaliação em relação aos grupos
entrevistados, de modo a construir uma amostra representativa em função dos interesses teóricos da
pesquisa. Nesse caso, foram selecionados quatro grupos de jovens que se reúnem pelo interesse musical
no rap. Além disso, os grupos apresentaram em suas respostas aspectos que permitiram a análise de suas
orientações coletivas em torno da formação geracional, relacionamento e sexualidade, bem como em
torno de suas experiências frente à discriminação e suas estratégias. Apesar de algumas exceções, os
jovens, em geral, têm entre 17 e 27 anos, são homens, se identificam como negros e vivem nos setores
considerados mais pobres em Ceilândia-DF.
Os procedimentos de coleta de dados por meio da observação participante, bem como a ênfase na
história de vida dos atores sociais entrevistados, foram utilizados para se reconstruir as visões de mundo
presentes em suas ações coletivas. Nesse caso, o método documentário de interpretação encontra
operacionalidade de diversas formas. Materiais como imagens fotográficas, documentos e a prática da
observação participante, incluindo-se a realização de entrevistas, podem constituir referenciais para o
processo de compreensão da visão de mundo dos sujeitos sociais. Essa triangulação de métodos ou de
técnicas de coleta de dados será de grande relevância para uma maior abrangência da análise das
entrevistas de grupo.
Em atenção a aspectos éticos, os nomes dos respondentes, bem como o nome dos setores onde
vivem, grupos e organizações receberão pseudônimos com vistas a garantir o anonimato, bem como para
preservar sua integridade. Portanto, pseudônimos serão utilizados para todos aqueles que participaram dos
grupos de discussão, a exceção será para depoimentos obtidos no contexto de eventos públicos. Além
disso, instituições como organizações assistenciais e movimentos sociais terão o mesmo tratamento, a não
ser que não haja a possibilidade de identificação dos respondentes.
Breitner Tavares
46
CAPITULO 4 CIDADE E DINAMIZAÇÃO E PERIFERIZAÇÃO: UMA SOCIOLOGIA
URBANA DE BRASÍLIA
Confronto
A suntuosa Brasília, a esquálida Ceilândia
contemplam-se. Qual delas falará
primeiro? Que tem a dizer ou a esconder
uma em face da outra? Que mágoas, que ressentimentos
prestes a saltar da goela coletiva
e não se exprimem? Por que Ceilândia fere
o majestoso orgulho da flórea Capital?
Por que Brasília resplandece
ante a pobreza exposta dos casebres
de Ceilândia,
filhos da majestade de Brasília?
E pensam-se, remiram-se em silêncio
as gêmeas criações do gênio brasileiro.
C. D. Andrade. Favelário Nacional In: Corpo, 1984
Enfim, o filme acabou pra você
A bala não é de festimaqui não tem dublê
Para os manos da Baixada Fluminense à Ceilândia
Eu sei, as ruas não são como a Disneylândia.
Racionais MC’s- 1998
Sobrevivendo no Inferno
Um dos debates que adquire cada vez mais relevância no contexto das novas dinâmicas do
mundo moderno diz respeito à Cidade e como este espaço apresenta novos fenômenos, muitos dos quais
são de interesse das Ciências Sociais. A cidade é expressa como um espaço heterogêneo, e pode ser
entendida pelo prisma weberiano, no qual uma relação social ou uma interação de pessoas, dá origem a
sistemas complexos de relações como a família, o Estado, uma Economia de Mercado, uma fortificação,
entre outras, que por sua configuração, só poderiam ocorrer no contexto ocidental. A cidade é um
assentamento relativamente fechado diferente de um pequeno povoado fundada em uma sede senhorialBreitner Tavares
47
territorial, especialmente uma sede principesca abastecida de um centro econômico e político como o
mercado para o comércio e aquisição de bens. Weber (1864-1920) ao se referir as cidades medievais
européias cita as feiras, como formas de mercados que não possuem a capacidade de transformar um
lugarejo em cidade. A realização da troca de bens não apenas ocasional mas regular na localidade, como
componente essencial das atividades aquisitivas e da satisfação das necessidades dos moradores a
existência de um mercado.
Tradicionalmente a categoria metropolização foi empregada para a descrição e compreensão dos
processos de socialização e desenvolvimento do espaço urbano em múltiplas frentes como a econômica,
política e cultural. O termo metrópole é derivativo de metr- (‘útero’, mãe); polis –‘cidade’. Este espaço,
que “abriga a todos”, deve ser compreendido sob aspectos multirrelacionais, sejam eles de estrutura física
ou organizacional, como os feitos por Mumford ( The culture of Cities- 1938), que abordam a metrópole
a partir de suas dinâmicas tecnológicas, comunicacionais e arquitetônicas. Outros autores, como Simmel,
estão mais voltados para aspectos mais psicossociais que se perguntam como a metrópole estabelece
novas relações sociais e promove uma nova “intensificação da vida intelectual como a reação do
indivíduo às forças urbanas despersonalizantes” (Simmel, In: O Fenômeno Urbano, 1973, 22).
A cidade de Simmel (1859-1918) é a tragédia moderna, movida pela experiência esquizóide do
indivíduo que estabelece como mediação das relações sociais a cultura do dinheiro. A grande
diferenciação social promovida pela vida metropolitana e a multiplicidade de ocupações diferem do
ambiente da pequena cidade no que se refere à vida psíquica. Relações de impessoalidade diante do
grande grupo, que representa a cidade dispersa os indivíduos assumem a atitude blasé que se caracteriza
por uma ansiedade recorrente pelo novo e um sentimento de incompletude e melancolia, que leva à
atitude reservada, quase indiferente. Nas relações de mercado da pequena cidade os produtores e
consumidores se conhecem; na grande metrópole, movida pela produção de mercado, compradores e
vendedores são anônimos. Simmel (1973) observa que esse anonimato estabelece relações prosaicas e às
vezes extremamente egoístas no plano econômico. A economia do dinheiro domina a metrópole e elimina
as relações diretas de troca de mercadorias. Portanto, a vida urbana repousa sobre uma complexa trama de
hierarquias de simpatias, aversões, indiferenças efêmeras ou mais duradouras.
A influência de autores como Simmel e Weber se torna perceptível em grupos como o da Escola
de Chicago que empreendeu várias pesquisas com grande ênfase no aspecto do trabalho empírico frente à
grande urbanização sofrida nos Estados Unidos a partir da Segunda metade do Século XIX. Aqui o
desenvolvimento comercial atraiu um grande contingente humano que levou a cidade a ultrapassar a cifra
de um milhão de habitantes até a década de 1890. Questões relativas à migração e aos conflitos entre
minorias étnicas, raciais e de gênero foram abordadas extensivamente. A cidade seria um grande
“laboratório de comportamento coletivo”. Apesar da reconhecida influência européia, em especial a
alemã, no que tange a conversão do historicismo para a sociologia, etnologia e psicologia popular, a
Escola de Chicago obteve o mérito de criar um quadro teórico americano centrado na filosofia social do
pragmatismo (JOAS:1999, 217).
Atualmente a perspectiva de análise das cidades, centrada na idéia da metropolização (como
abordada nas escolas do passado) se depara com uma nova densidade dos fatos que dificulta uma real
Breitner Tavares
48
compreensão de tais fenômenos. Um dos processos observados em meio a esse novo tipo de urbanização
foi denominado, de “megalopolização”.
Freitag(2002), fez uma definição distintiva entre as categorias da “megalopolização” e
“metropolização”. A primeira refere-se, “a uma noção não apenas quantitativa da vida urbana mas a uma
dimensão qualitativa, ou seja, uma forma específica da vida societária em cidades gigantescas, típicas
para este final de século XX.”. Essa perspectiva engloba aspectos ligados à dimensão das cidades, em
termos populacionais (acima de 10.000.000 de habitantes), crescimento acelerado da urbanização, a
constante migração de grandes contingentes populacionais que constituirá uma civilização de subculturas
em si homogêneas, mas entre si divergentes.
Nesse contexto, Brasília não constitui ainda uma megalópole em termos quantitativos– com sua
população estimada em 2 milhões de habitantes–, mas diante do ritmo de crescimento pela qual perpassa,
dos vários conflitos entre Estado e outros grupos sociais no que diz respeito à ocupação de seu solo
urbano, indaga-se se essa cidade não estaria num franco processo de megalopolização.
Modernismo e aventura em Brasília
Brasília é tida como uma aventura (SILVA, 97) que tenta dar um sentido a vida, a um ideal de
modernidade que se dirige ao “futuro mas com o olhar voltado para o passado”, uma mudança
extraordinária. Brasília é o resultado de um esforço simbólico, a materialização de uma utopia, que se
exprime em todo mudancismo dos anos cinqüenta do século vinte. O desenvolvimento difundido pela
agencia estatal Instituto de Estudos Brasileiros (ISEB), grupo de intelectuais articulados Hélio Jaguaribe
que formulou um discurso neobismarkiano de desenvolvimento econômico para o país, que deveria se
efetivar a qualquer preço. O Brasil só seria Brasil quando o litoral se encontrasse com o sertão- “o
despertar do gigante adormecido”. Por fim, Brasília deveria salvar o Brasil- “a capital da esperança”- das
forma arcaicas de civilização, do atraso do modelo colonial centrado em relações pessoais para uma
ordem impessoal e democrática.
Dessa forma, Brasília é o resultado de todo um desenvolvimentismo que dinamizou processos de
urbanização no Brasil a partir do anos 50 de acordo com Santos(1996). Já no bojo da elaboração do
projeto da nova capital ficaram evidenciadas influências de um formalismo positivista (CARPINTERO,
1998) que não levava em conta outros elementos que sustentam aspectos relacionados à vida da cidade e
seus habitantes por instituições como a NOVACAP. Tratava-se simplesmente de tomar posse do lugar: “a
concepção urbanística da cidade não será decorrência do planejamento regional, mas causa dele: a sua
fundação é que dará ensejo ao ulterior desenvolvimento planejado da região. Trata-se de um ato
deliberado de posse, de um gesto ainda desbravador”.(Costa, Relatório, Preâmbulo-citado em
Carpintero:1998-72).
No próprio projeto de Lúcio Costa, já havia uma preocupação com os aspectos relacionados à
população que não eram enunciados por ocasião do concursos que escolheria o projeto para a nova
capital. “Ela deve ser concebida não como simples organismo capaz de preencher satisfatoriamente e sem
esforço as funções vitais próprias de uma cidade moderna qualquer, não apenas como URBES mas como
Breitner Tavares
49
CIVITAS, possuidora dos atributos a uma capital, (COSTA, Relatório, Preâmbulo - citado em
Carpintero:1998-72). A idéia de urbes pode ser atribuída aos aspectos relacionados à materialidade
urbana, seus edifícios , vias de acesso, equipamentos públicos, civitas se refere a imaterialidade dos
aspectos subjetivos: a idéia de cidadania e pertencimento da vida coletiva da cidade passando pela esfera
da política e da cultura. Em termos teóricos se evidencia que existiam diferenças entre o posicionamento
frente aos técnicos da NOVACAP que se detinham a uma perspectiva formalista de se erguer uma cidade
estética e funcional, enquanto, os aspectos relacionados à população e à vida urbana estariam em segundo
plano.
A construção Brasília, acirrou um espírito de aventura extraordinária e trouxe vários grupos sociais
advindos de diversas regiões do país– em especial, do Nordeste(43% em 1958/IBGE). No período da
construção da nova capital, os acampamentos teriam um caráter provisório, ou seja, após o término da
obra deveriam ser desfeitos. A própria NOVACAP (Houston, 1993) elaborou uma estratégia em que um
terço dos operários seria encaminhado de volta a seus locais de origem, um terço seria realocado numa
área de desenvolvimento agrícola para a criação e um “cinturão verde” e o restante seria absorvido na
própria cidade no setor de serviços, contudo em 1958 esse plano foi revogado em função de um novo
plano: a criação das “cidades satélites”.
No contexto dos acampamentos improvisados de lona e madeira, abrigavam-se os operários, os
“candangos”, palavra de origem africana (quinbundo) utilizada pejorativamente na designação que os
portugueses davam aos negros no período colonial. Posteriormente, esta designação é utilizada para se
referir aos operários, no período da construção de Brasília. Contudo a conotação do termo candango sofre
uma alteração, do seu sentido original sendo empregada, no caso de Brasília, como uma referência
honrosa aos pioneiros construtores da nova capital. Há relatos de ex-operários, como no filme
Conterrâneos de Velhos de Guerra de Vladimir de Carvalho, que faz referência a uma história ligada ao
Palácio do Catetinho, no período em que aí ficava Juscelino Kubitschek segundo a qual havia um cão
vira-lata, mascote dos operários, que era chamado “candango”. Os operários às vezes se utilizavam do
termo para se referir aos colegas. Mais tarde Juscelino Kubitschek teria sabido do termo e o utilizou com
uma conotação diferente em que candango seria o cidadão operário especialmente o nordestino. Há
também outra análise (LARAIA, 96) que discute alguns mecanismos de distinção social, estabelecidos no
período da construção. Havia os termos “pioneiro” e “Candango” o primeiro foi utilizado para se referir à
elite de técnicos, engenheiros, arquitetos, autoridades políticas o segundo, era referido aos operários
submetidos às vezes a condições subumanas em longas jornadas de trabalho. Diante das condições
históricas que lhes foram impostas, reuniram-se e “passaram a interelacionar-se criativamente, formando
uma especificidade de um ambiente social (SILVA:1999, 79)”. Estes diversos grupos migrantes,
nômades, aventureiros construíram a cidade e, frente à mudança social que esta lhes impôs,
reconstituíram seus diversos valores, referenciais de identificação, muitos dos quais entraram em sérios
conflitos com aquilo que se considerou como referencial de modernidade e transformação da sociedade
brasileira.
A constituição de Brasília em termos sócio-arquitetônicos deveria ser um modelo, um referencial
de progresso e brasilidade um contraponto a uma urbanização sem planejamento prévio e sistemático.
Seria uma alternativa para o modelo do “semeador” que lança suas semente ao ar aleatoriamente sobre o
Breitner Tavares
50
solo fértil, de que fala Sérgio Buarque de Holanda (1978). Este era o tipo urbanização promovida pelos
portugueses que tiveram pouco interesse em realizar um planejamento das primeiras cidades brasileiras.
“A cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental, não chega a contradizer o
quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha da paisagem. Nenhum rigor, nenhum método,
nenhuma providência, sempre esse significativo abandono que exprime a palavra desleixo”(HOLANDA,
1978: 76).
Com o objetivo, de se fazer jus à proposta conceitual de cidade jardim e cidade linear, o plano de
Lúcio Costa incluía a necessidade de impedir a “enquistação de favelas” tanto na periferia urbana quanto
na rural”. Caberia à NOVACAP estabelecer diretrizes para assentamentos para que o Plano Piloto de
Brasília fosse preservado em suas características originais inclusive sobre os aspectos sanitários,
provendo “acomodações decentes e econômicas para a totalidade da população”. Mais adiante se inclui o
termo “cidade satélite” em substituição à idéia mais tarde reiterada em que se passa a afirmar que as
cidades satélites deveriam surgir após a total ocupação do plano piloto. (Costa, Relatório, Preâmbulocitado em Carpintero:1998-72).
A obra que estabeleceu um dos primeiros marcos de um processo de exclusão sócio espacial foi a
construção de uma estrada que contorna o plano piloto em função da bacia hidrográfica do rio Paranoá,
com o objetivo de estabelecer um fronteira, um limite físico para que se mediasse sua preservação
(CARPINTERO, 1997). Esta estrada conhecida como “Estrada Parque do Contorno” estabelecia a função
de anel sanitário em que só seriam permitidas as construções de casas isoladas com grandes distâncias de
mais de 1Km entre cada uma como previu Lúcio Costa. Esta obra deliberada pela NOVACAP
estabeleceu um referencial de preservação ambiental e norteou a expansão urbana. Esse sistema viaário
forçou a retirada de várias ocupações de favelados que ocupavam sua área geográfica, viabilizando o
surgimento de cidades como Gama, Ceilândia entre outras. Contudo, observou-se mais tarde que tal
prerrogativa ambiental não foi suficiente para impedir a inserção da classe média, que foi beneficiada
com a criação de áreas habitacionais como o Guará, Lago Sul, a ocupação da península do Lago Norte.
Portanto, o Estado assume a frente de um processo de exclusão social do espaço a partir de mecanismos
urbanísticos e ambientais como a EPCT11 que se constituiu em anel sanitário um limite da capital
administrativa do país, condição de defesa do Estado.
4.1 Segregação Sócio Espacial: A Invensão da periferia
A categoria segregação sócioespacial, foi originada pela Escola de Chicago (Park e Thomas) e foi
empregada para a descrição dos processos de urbanização no início do século vinte (anos 30 e 40). Ela
exprime uma tendência da organização do espaço com zonas de grande homogeneidade social que se
distribuem em função de critérios da diferença de classe econômica gerando “racismos espaciais”. O
11
Breitner Tavares
Estrada Parque do Contorno.
51
princípio essencial que influencia esta separação é a distribuição da moradia e locais de circulação no
espaço urbano .
Lo que es socialmente significativo no es hecho de la pobreza o de la discriminación
en si, sino la fusión de ciertas situaciones sociales y de una localización particular en
la estructura urbana. Es de esta manera com se constituye la segregación urbana en
tanto que fenomeno específico, y no tan sólo como reflejo de la estratificación social
general (CASTELLS, 1979: 207).
De fato a segregação urbana não é simplesmente a projeção direta no espaço do sistema de
estratificação, mas uma conseqüência da distribuição de renda e acesso ao espaço urbano.
No que concerne o caso de Brasília, a segregação espacial ou periferização foi estudada por
diversos autores como Paviani (1996), Sousa (1983). Estes estudos destacam o distanciamento das
populações que são removidas das localidades próximas dos serviços coletivos (públicos e privados)
como escolas, hospitais, do trabalho, do lazer entre outros e acentuam, o nível de exclusão social. A
erradicação das ocupações definidas como invasões pelo então Governo do Distrito Federal no final dos
anos 60 eliminou as favelas, do IAPI, as vilas Tenório, Esperança, Bernardo Saião e o Morro do
Querosene, para a criação de Ceilândia.
No que concerne a América Latina (PORTES & BROWING: 1976, p. 12) o processo de
urbanização, em especial a divisão do solo urbano, expressa níveis de desigualdade como o de classe
social. Esse processo incentiva, determinados grupos a se perpetuarem, apropriando-se dos benefícios da
urbanização deixados por outros segmentos marginalizados nos assentamentos sem infra estrutura. Por
outro lado, ocorre a invasão de terras por grupos de estratos sociais mais elevados e mobilizados, como
atualmente acontece nos enclaves-fortificados de vários condomínios distribuídos no Distrito Federal.
A idéia de se promoverem erradicações de favelas para instauração de assentamentos planejados,
já era recorrente na América Latina, para a solução de problemas relacionados com a imigração e o
crescimento populacional nas grande metrópoles, desde os anos 60 e 70. Na cidade do México
(MONTAÑO: 1983) foi problematizado o sentido dos “pobres de la ciudad”, como sendo as massas de
trabalhadores migrantes de característica heterogênea em termos de cultura e orientação geográfica. Aqui
as classes sociais pobres são predominantemente vislumbrados como alvos da “Campaña de erradicación
de ciudades perdidas en la ciudad de México” promovida, pelo Estado. Nesta campanha onde são tratados
aspectos políticos de assentamentos urbanos para classes populares desde os anos 70 para se eliminar “los
asentamientos urbanos espontáneos”(as favelas). No Brasil concomitante ao mesmo período
(KOVARICK: 1973) são instituídos programas de remoção de favelados sob o autoritarismo do regime
militar, exemplificadas pela a Cidade de Deus no Rio de Janeiros e as Cidades Satélites como Ceilândia
no Distrito Federal.
Em Brasília agentes imobiliários como bancos empresas construtoras bem como o próprio governo
local se articulam em torno da população definida como “agente-paciente”(PAVIANI, 1997) categoria de
sentido ambíguo que remete à situação em que a mesma população que é agente por ser trabalhadora,
consumidora e construtora de suas moradias é, por outro, lado paciente ao se curvar diante das ações do
Estado e de empresas que atuam no mercado imobiliário. Por um lado, se expandem as distâncias das
Breitner Tavares
52
novas cidades sem infra estrutura, com grandes contigentes populacionais, com baixo poder aquisitivo e
por outro lado, se concentram as atividade de alto poder financeiro e tecnológico.
A periferização planejada de Brasília estabeleceu o sentido de “cidade dormitório”. Trata-se de
espaços segregados, com precários equipamentos urbanos insuficientes para o suprimento das
necessidades locais. Isso reforçou a secundarização da vida dessas cidades que dependem da oferta de
empregos e serviços, do núcleo central representado pelo Plano Piloto. Nesta condição há um
adensamento multifamiliar por moradias divididas até por dez famílias, como nas “cabeças de porcos”,
cortiços insalubres no Brasil do século XIX. Segundo esta perspectiva de dinâmica urbana, centrada na
especulação do solo urbano e na segregação de grandes contingentes de pobres, que têm diminuído seu
direito à cidade ao serem lançados a grandes distâncias dos centros irradiadores do capital financeiro e do
trabalho, Brasília não transcendeu o ritmo das demais cidades brasileiras. Em outra abordagem,
apresentada por Nunes (1997: 14) a pobreza na forma da segregação sócioespacial seria o processo por
meio do qual se originou uma urbanização periférica, que constituiu vários problemas, tais como, a “má
qualidade dos serviços coletivos e problemas sócio-psicológicos decorrentes
das dificuldades de
adaptação dos migrantes a um novo espaço”, como saúde, educação, lazer, trabalho.
No que tange os aspectos de urbanização, com periferização, no Distrito Federal é idêntico ao que
ocorre nas demais metrópoles do país, demonstrando estarem as soluções numa escala mais ampla, a
nacional.
4.2 Ceilândia-DF: o projeto da invasão erradicada
Ceilândia, cidade fundada em 1971 tem seu nome resultante da sigla CEF Campanha de
Erradicação de Favelas, posteriormente denominada de CEI, “Campanha de Erradicação de Invasões”.
Esse projeto urbanístico tinha como propósito a remoção de invasões, termo aferido às ocupações das
várias vilas que se formaram dos acampamentos próximos à cidade do Núcleo Bandeirante (antiga Cidade
Livre). A justificativa do então governo do Distrito Federal, implementado em 1969, era a de que não
seria possível a permanência das vilas, pois elas estariam invadindo a área do chamado “anel sanitário”12,
o que poria em risco as condições de saneamento básico da nova capital. De fato, nestas vilas havia uma
situação de insalubridade séria. Não havia uma urbanização ou qualquer planejamento, essas ocupações,
mantiveram o mesmo caráter provisório dos acampamentos no período da construção de Brasília. Nas
vilas segundo levantamento feito em 1969, pela Secretaria de Serviço Social, revelou que neste contexto,
existiam quase 15 mil barracos com uma população de superior a 80 mil pessoas, sendo que 71,98%
dessas famílias tinham a renda familiar entre 0 e 2 salários mínimos (Codeplan-1969). Havia, no entanto,
uma estrutura social estabelecida. Cada vila tinha seu nome: Vila do IAPI, Vila Tenório, Morro do Urubu,
Morro do Querosene, caracterizando o lugar onde as pessoas recriavam aspectos de suas origens,
12
Área de proximidades com rios e nascentes, que abastecem o lago Paranoá que deve ser preservada
para se garantir a qualidade do saneamento básico das populações que vivem em sua proximidade.
Breitner Tavares
53
encontravam-se em barracões para dançar o forró, plantavam árvores em seus quintais e tinham seus
mercados, as feiras.
A proposta inicial, que cooptou os moradores das vilas no sentido de sua remoção, foi a de que os
próprios moradores construiriam, num sistema de mutirão, sua própria cidade. A Terracap determinou
que a “habitação provisória”( barraco de madeira) deveria ser erguida ao fundo do terreno possibilitando
que, oportunamente, na parte frente, fosse construída a casa de alvenaria definitiva, seja através do
trabalho comunitário da própria população, seja através do financiamento pelo BNH- Banco Nacional de
Habitação. Essa estratégia possibilitaria que as famílias construíssem futuramente moradias de alvenaria
na parte dianteira do lote obstruindo a visão “indesejada” dos barracos de madeira. A Comissão de
Erradicação de Favelas- CEF leva nove anos para organizar um plano e um projeto, prevendo a remoção
assim como toda estrutura e implantação dos 17 mil lotes previstos. A perspectiva para o assentamento
estabelecido em Ceilândia levaria além da questão de distribuição dos lotes e casas, idéias de remoção,
uma participação de todo núcleo familiar(...)num ambiente dotado de discurso de convencimento da
população no que concerne a construção de uma cidade que se daria ao longo de um processo de “adesão
de equipamentos comunitários básicos, que posteriormente, seriam ampliados” (VASCONCELOS1988:59).
A Ceilândia nos anos 70 constituía uma materialização espacial injusta pois estava distante da
oferta de trabalho que era basicamente na construção civil (aproximadamente 30 Km de Brasília) antes
mais acessível a partir das vilas. Exceção constituíam as atividades construtivas de moradias, às vezes sob
a forma de mutirão, um tipo de sobretrabalho, no próprio espaço de Ceilândia. Transferidos para
Ceilândia, viram desestruturar-se o mercado de trabalho, que passou a demandar demorados percursos de
mais de uma hora, além de gastos com o deslocamento que antes era feito a pé ou de bicicleta. Outra
desestruturação foi a da vizinhança, a do lazer, das feiras e das escolas. Em razão do volume de habitantes
com que conta a Ceilândia, hoje poder-se-ia afirmar que se trata da maior metrópole dormitório do Centro
Sul. (Paviani:1991).
Estudos como de Ammann (1978) relativizam o perfil social do ceilandense definindo-o como
pluriclassista. Além de fatores de cunho econômico, há laços de identidade, de sentimento comuns
contraídos no local de moradia nas relações de vizinhança que levam o morador a reivindicar o direito de
participar da vida na cidade. A cidade adquiriu visibilidade nos idos de 1978 pelo movimento dos
Incansáveis Moradores de Ceilândia, quando tomam corpo as mobilizações de cunho contestatório e
reivindicativo, quando as associações de moradores de Brasília constituíram um fato, um contraponto à
política habitacional que refletia a segregação espacial. Atualmente, como já se notava no período da
construção de Brasília, seus habitantes como em Ceilândia são oriundos de diversas localidades do país
com um predominância da região nordeste (42,6% CODEPLAN (1997).
Ceilândia é resultante da desocupação de vilas de operários, próximas a Brasília. Hoje, aos 38 anos
de existência, já possui aspectos de uma cidade densa e heterogênea (WIRTH, 1974), possui cerca de
332.445 mil habitantes (CENSO/IBGE-2000), concentrando a maior população do Distrito Federal, sendo
que, desse total, 72.521 (21,8%) são jovens entre 15 e 24 anos. Essa cidade concentra, segundo a
CODEPLAN, uma das menores rendas por chefes de domicílio do DF, 57% desses chefes de domicílio
recebiam até dois salários mínimos, em 2004.
Breitner Tavares
54
Em 1980, Ceilândia possuía 286.147 habitantes, dos quais 65,3% tinham até 29 anos, ou seja,
186.854 crianças e jovens aproximadamente (CODEPLAN). Nesse mesmo período, a renda per capita
em termos de salário mínimo era de 0,51 salário para famílias com aproximadamente 5,27 pessoas.
Portanto, é possível se considerar que Ceilândia, aos 10 anos de existência, era uma cidade com a maioria
de sua população jovem, migrante e de classe econômica pobre, situada num espaço pauperizado. Essas
diferenças sociais estabeleceram diferenciadas expectativas de vida, que por sua vez geraram um grande
impacto na formação da juventude distante do poder aquisitivo da juventude branca de classe média do
Plano Piloto.
Outro detalhe a respeito da configuração urbana de Ceilândia está sob influência do sistema de
nomenclatura das diferentes regiões da cidade, que são definidas por setores identificados por um sistema
alfanumérico, à maneira de Brasília. Portanto, não há bairros em Ceilândia, há setores com
nomenclaturas, como QNM, QNP, QNQ, QNR asociados a números que indicam as quadras dos setores
como QNO 8 ou QNM 10, como indica o mapa a seguir. Esse fato não impediu que a cidade se tornasse
estratificada e com um razoável nível de diferenciação social expresso por diversas relações de
vizinhança, assimilação e competição social que imprimiram o sentido de pertencimento e exclusão
interna de seus habitantes (PARK, 1980).
Outro detalhe relevante é que, segundo o DIEESE (2000), o Distrito Federal concentra a terceira
maior população negra do país em termos percentuais (63,7%), precedida por Salvador-BA (81%) e
Recife-PE (64%). Essa caracterização racial de Brasília pode ser mais um indício para a compreensão de
tais processos de segregação socioespacial. Ainda referente a esse aspecto da distribuição racial, em
termos geográficos, na medida em que a população possui uma configuração racial mais
concentradamente negra, outras variáveis como renda ou índices demarcadores da violência são maiores.
Em relação ao processo de segregação socioespacial, movido pela especulação imobiliária do solo
urbano em Brasília, observa-se a proporcionalidade entre variáveis como raça e violência. Como exemplo
disso, observa-se que Brasília possui 25,2%13 de sua população autodeclarada negra (ou seja, pretos e
pardos) e um índice de 12,9 mortes por homicídio por 100.000 habitantes14. Em contrapartida, Ceilândia,
com 54,2% de sua população negra, acumula um índice de 43 mortes a cada 100.000 habitantes. Essa
proporcionalidade entre concentração de população negra e pobre com a violência é observada em
diversas cidades próximas a Brasília.
Ainda em relação aos aspectos metodológicos da pesquisa, no caso dos setores de Ceilândia,
onde foram realizadas os grupos de discussão bem como boa parte do trabalho etnográfico, foi utilizada
uma nomenclatura diferente da original para se remeter aos espaços de circulação dos jovens, como
indica o quadro “Ceilândia Imaginada” abaixo:
13
Fonte: Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílio – PDAD – em 2004.
14
Fonte: Ministério da Saúde, sistema de informações sobre mortalidade, Cd-Rom, 2002 e IBGE, Censo
demográfico em 2000.
Breitner Tavares
55
CAPÍTULO 5 HIP-HOP COMO PENSAMENTO DESCOLONIAL E PÓS COLONIAL
As reflexões sobre os posicionamentos da juventude hip-hop desafiam certos reducionismos no
que se refere à separação entre cultura e política. Em relação a isso, os estudos sobre subalternos são, em
geral, mais proeminentes em relação àquelas abordagens a partir de suas próprias perspectivas e
estratégias de enfrentamento de um sistema de diferentes hierarquias sociais. Esse enfrentamento, o qual
será discutido a partir das narrativas dos próprios jovens, permite a reconstrução documentária de suas
novas formas de saber e conhecimentos definidos por alguns autores contemporâneos com pensamento
descolonial15.
15
Em relação à discussão sobre pensamento descolonial e colonialidade, bem como sua crítica a
categorias como modernidade pós-colonial ver Walter Mignolo (2003) e, mais recentemente, a tese de
doutorado de Joaze Costa-Bernardino (2007).
Breitner Tavares
56
Isso implica, dentre outros aspectos, refletir sobre os fenômenos da cultura em uma perspectiva
transdiciplinar, que permita observar que tipos de hierarquias sociais estão configuradas de modo
heterodoxo num determinado sistema de poder (GROSFOGUEL, 2005), assim como refletir criticamente
sobre a práxis social dos sujeitos submetidos à condição da colonialidade para além dos discursos de
modernidade pós-colonial, que são impostos num sistema de dominação dos povos não ocidentais
periféricos que estão dentro e fora do primeiro mundo (MIGNOLO, 2003).
Historicamente, o hip-hop se refere ao movimento cultural, produzido por jovens negros e
latinos, surgido em espaços segregados de grandes metrópoles nos Estados Unidos, Inglaterra, no final
dos anos sessenta por intermédio da influência dub16 da cultura caribenha que chegava aos EUA trazida
por imigrantes. Naquele período havia uma profusão de estilos subculturais que se estruturavam
gradualmente sob a ótica de uma cultura transnacional, globalizada, como ocorria com o rock, o reggae,
entre outros.
Como uma dessas práticas culturais difundidas mundialmente, o hip-hop é um fenômeno
cultural que engloba estéticas artísticas, como o break ou street17 dance (dança de rua), o grafite (pintura
aerográfica), o DJ (como produção musical) e o rap18 (como a combinação de ritmo e poesia cantada). De
fato, cabe ressaltar que essas diferentes manifestações estéticas foram difundidas de modo heterogêneo,
nesse caso, o rap foi o que se tornou mais difundido como uma cultura popular de uma juventude
16
Música instrumental combinada com efeitos eletrônicos.
17
Street dance ou dança de rua é um termo amplo que inclui diversos ritmos e performances corporais,
que se originaram em espaços informais, como as ruas, escolas ou boates das grandes cidades em franca
metropolização, com fluxo de imigrantes de diversas localidades que trouxeram seus ritmos tradicionais e
populares, os quais se recombinaram em novas modalidades. Em geral, street dance é associada ao hiphop criado nos Estados Unidos já nos anos 70, a partir do soul, funk, break e uma grande variedade de
ritmos (TOOP, 1984). A permanente criação de novos passos em função da interação que ocorre entre os
seus participantes promove encontros em que se formam “rodas” onde os participantes, organizados em
grupos “crews”, realizam suas performances num clima de amizade e disputa chamado “batalhas”. Em
Brasília, o grupo DF Zulu Breakers, formado em Ceilândia-DF, desde os anos 80, se destaca em
competições nacionais e internacionais. De fato, o street dance associado ao break nos anos 80
representava enormemente o hip-hop antes do surgimento e da popularização do rap, que atualmente é
predominante em relação a outras manifestações do hip-hop, como o grafite e o break, que eram
enfatizados nos videoclipes e filmes a exemplo do clássico Wild Stile (1983), que retrata a juventude
porto-riquenha e negra em bairros pobres de Nova Iorque, a qual se envolve com a pintura do grafite,
retratado como o grande referencial do hip-hop.
18
Estilo musical integrante do hip-hop que implica cantar uma letra de maneira rítmica. Rap é um termo
originário do inglês que significa rhythm and poetry. O cantor de rap é chamado rapper ou MC (master
of cerimony). O rap é normalmente acompanhado de bases rítmicas eletrônicas chamadas bases
coordenadas pelo DJ.
Breitner Tavares
57
globalizada. O hip-hop, desde sua origem, tem sido associado a uma arte voltada para segmentos
excluídos no espaço urbano, como jovens, imigrantes, negros, mulheres, entre outros.
Paul Gilroy (2001), intelectual negro e britânico, se remete à categoria diáspora como uma
proposta para os estudos culturais, com o objetivo de explicar a formação de uma cultura vernacular do
Atlântico Negro. Em sua obra, o autor analisa o estabelecimento de mecanismos de distinção cultural
adaptado às novas circunstâncias do Reino Unido, manifestações que atuam em separado e, ao mesmo
tempo, em convergência. Gilroy (2001) atesta que o povo negro se recria enquanto grupo conglomerado,
ao reinventar sua própria etnia. A retórica do poder negro foi desvinculada de seus marcadores étnicos e
diante de sua condição de explorado, passa a redifinição de seus projetos sociais frente a suas
necessidades locais e políticas, a suas histórias de lutas.
O povo negro estabeleceu novas linguagens políticas de cidadania voltadas para a justiça racial e
a igualdade. Essas linguagens ultrapassaram a esfera da tradicional luta pelo trabalho e passaram também
a se articular através do lazer. A diáspora permitiu a “transferência” de formas culturais e estruturas de
sentimentos, o que Gilroy (2001) chamou de “historicismo popular”. O autor recorre à contribuição
histórica da música negra para reconstruir essa trajetória estética e política da modernidade. Dessa mesma
história se originará o hip-hop e suas respectivas manifestações. De certa forma, essa manifestação
cultural corresponde a esse processo diaspórico de ressignificação, de agenciamento da luta, da inserção
social do negro por meio da ludicidade e da estética.
Contudo, segundo a discussão que associa a diáspora do Atlântico negro de Gilroy com a
formação do hip-hop, praticamente não se consideraram aspectos espaço-temporais presentes numa
configuração geracional (WELLER, 2009, p. 20). Além disso, o Atlântico negro do autor se refere
basicamente a experiências do Atlântico do hemisfério norte, algo que desconsidera outras
especificidades do processo diaspórico da colonialidade sul-americana, na formação de uma população
afrolatina.
Em outros termos, isso significa que jovens negros afrolatinos, como no Brasil, em função de
outros movimentos migratórios e acesso a bens culturais simbólicos, como o hip-hop e o rap norteamericano, estabelecerão outros elementos constituidores de uma identidade geracional em torno do hiphop nas grandes metrópoles brasileiras. Portanto, a formação de geração jovem em torno do hip-hop não
ocorre simplesmente num processo de assimilação de novos valores numa perspectiva de centro e
periferia. O hip-hop produzido de modo diverso sofrerá influência em sua composição, inclusive pela
combinação de elementos musicais advindos de outros estilos musicais já existentes e consumidos pelos
jovens (SANSONE, 2004, p. 169).
O sentido atribuído à modernidade, enquanto apreciação da racionalidade técnica de valores
universais eurocêntricos, influenciou através de um sistema mundial toda cultura existente através da
colonialidade (QUIJANO, 2000). Dito de outra forma, esse projeto monolítico de modernidade ocidental
imprimiu valores que se relacionam às outras culturas e povos a partir de uma posição de superioridade e
incapaz de perceber através de cosmologias e epistemologias de um mundo não ocidental
Breitner Tavares
58
(GROSFOGUEL, 2007).
Diante disso, o hip-hop produzido por uma juventude negra da diáspora em grandes centros
urbanos, em regiões com na América Latina, apresenta respostas a partir da subalternidade imposta pela
colonialidade de um sistema mundial de valores e produtos simbólicos centrado numa modernidade
ocidental. Essa resposta se materializa através da recriação de estilos e novas formas de pensamentos e
estratégias de ação nas esferas simbólicas, políticas e econômicas de um sistema em escala mundial.
Portanto, esse conjunto de práticas constituídas pela juventude contemporânea remete a uma forma de
pensamento fronteiriço, que é em parte influenciado pelas condições de opressão estruturadas
historicamente. Contudo, essa mesma situação permite uma reflexão e criação de novas estratégias e lutas
pela liberação (DUSSEL, 2008) e redefinição do próprio sentido de humanidade, estruturado
hierarquicamente a partir de categorias, como gênero, raça, classe, entre outras.
Mecanismos simbólicos de inserção: luta por reconhecimento
Como observa Amorim (1997), o hip hop tradicionalmente se restringia a idéia de movimento
político à esfera de grupos e instituições ligados às classes trabalhadoras, à ação social de adultos.
Movimentos étnicos e de minorias seriam considerados “pré-políticos” ou “pseudopolíticos”. O hip-hop
também acaba sendo marginalizado sob essa perspectiva da racionalidade ocidental ou da política
estratégica de cunho universalista e eurocêntrica. Contudo, nova forma de agenciamento promovida no
campo simbólico pela juventude tem um potencial de mobilização da sociedade civil, na luta pelo
reconhecimento no espaço público. A população negra aglomerada nas periferias urbanas tem
apresentado novas possibilidades de reagir a essas dificuldades, uma vez que está em contato com as
transformações acarretadas pelo desenvolvimento da indústria cultural e do capitalismo ocidental.
Enfrentar a discussão relativa às origens do hip-hop significa ir além da “realidade mítica” de
uma música que nasceu nos guetos negros dos territórios dos Estados Unidos, pois esse estilo musical já
se encontra difundido tanto no Brasil, como em outras localidades, na forma de um produto da indústria
cultural globalizada.
O hip-hop, expresso pelos jovens rappers costuma veicular através da música a construção de
uma consciência política. Eles falam em nome de uma geração sem voz, periférica, estigmatizada. Nesse
caso, a prática cultural do rap propicia a emergência de uma consciência social dos indivíduos em termos
de diversas perspectivas, relacionadas a gênero, raça/etnia. Essa postura combativa definine um
sentimento de pertencimento coletivo em termos de uma espacialidade injusta materializada na periferia
urbana. Isso significa que, mesmo estando em diferentes países ou cidades, a juventude hip-hop poderá
redefinir suas questões geracionais estabelecendo semelhanças e contrastes em relação ao seu
envolvimento com os grupos de rap, bem como ao enfrentamento de situações discriminatórias, como
observado entre jovens rappers de São Paulo e Berlim (WELLER, 2009).
Breitner Tavares
59
O rap é um estilo musical que é relativamente acessível aos jovens que não dispõem de muitos
recursos para investir numa produção musical. Isso ocorre em função dos artifícios tecnológicos que
simplificam sua elaboração e difusão. Esse conjunto de possibilidades expressos pelo rap enquanto um
estilo proveniente da música eletrônica o torna mais popular à juventude . Isso é menos frequente em
outros estilos, que demandam maior conhecimento técnico ou a aquisição de equipamentos, como
instrumentos musicais, estúdio, entre outros.
No caso brasileiro, em relação a outros gêneros de música popular de identidade negra, como o
samba, o pagode, o axé, entre outros, o rap assume um discurso ao mesmo tempo de orgulho do povo
negro e de crítica ao racismo, denunciando, num tom autobiográfico, sua revolta contra a ordem
estabelecida e contra um “destino” de contínua exclusão (CARVALHO, 1994, p. 32).
Esses grupos, portanto, aparecem como uma alternativa aos grupos juvenis; constituem uma
nova forma de rebelião, na qual se reúnem em “galeras” que não possuem a organização própria das
gangues. Ao contrário, podem servir como uma opção efetiva para o jovem situar-se no espaço público no
debate sobre a sociedade e conferem um caráter de visibilidade às aspirações dos diferentes grupos que
englobam.
Esses movimentos geralmente são conhecidos por movimentos alternativos, contraculturais,
subculturais ou marginais, ou ainda movimentos underground. São caracterizados por uma luta travada
no campo da representação simbólica, da significação e da estética. Grupos sociais que não detêm o
poder, nem cultural nem econômico, desafiam a ordem hegemônica, expressando-se, geralmente, por
meio da música, da dança, das vestimentas, das artes visuais e da linguagem escrita. O “movimento” hiphop seria um movimento dessa natureza, com a característica de assumir também uma atitude de repúdio
à discriminação e à exclusão social na qual se encontram os jovens negros e imigrantes que vivem nas
periferias urbanas.
O hip-hop, de fato, reúne em suas manifestações alguns aspectos que o aproximam daquilo que
passou a se definir como “novos movimentos sociais”. Esses movimentos “mais soltos”, a que se refere
Gohn (2004), são flexíveis, abertos em termos de valores e ideologias. Gohn (2004) observa que os
movimentos sociais na atualidade se articulam mediante redes estabelecidas por pequenos grupos, que
numa relação de compreensão mútua constroem suas demandas na vida cotidiana, em que a afetividade e
a identificação pessoal passam a ser a base para práticas inovadoras da cultura. Contudo, o hip-hop não
pode ser definido enquanto um movimento social unívoco, pois na medida em que ele se organiza no
sentido de suas demandas de reivindicações, para ações específicas, seus membros passam a articular e
veicular suas falas a partir de redes externas, como instituições vinculadas ao local geográfico: os
“movimentos da periferia”, ONGs (CUFA –Central Única das Favelas, MH2O – Movimento Hip-hop
Organizado, Grupo Atitude, entre outras), pequenas e médias empresas, como gravadoras de vários
segmentos da indústria fonográfica, Igreja, escola, entre outros setores.
Os interesses são diversos dependendo do grupo social, da mesma forma, as estratégias de
agenciamento dos atores sociais são diversas. Aparentemente, esses jovens ligados ao hip-hop reagem à
marginalidade estabelecendo meios de integração de modo específico, convertendo a falta de perspectiva,
Breitner Tavares
60
a falta de utopia em elemento de identidade e a utilização ostensiva e violenta desta como forma de
conquistar respeito no espaço de discussão política propiciado pela indústria cultural e pelos veículos da
mídia. O hip-hop revela um tipo de alternativa de inserção pelo viés simbólico, em que uma estetização
da política abre um novo campo de possibilidades para a materialização da cidadania. O jovem pode
apontar para novos caminhos além do tradicional mandonismo do mundo adulto.
Gênero e Raça e hip-hop
O hip-hop representa, a partir de sua estética, propostas políticas, um tipo de arte social, com
apelos frente à questão da exclusão social (classes), da marginalização no espaço urbano expressa através
da construção de um imaginário da periferia (FORMAN, 2002), frente à questão da segregação racial e,
mais recentemente, à questão de gênero (POUGH, 2004). No hip-hop, e em especial no rap, há um
discurso voltado ao jovem das classes sociais populares e, em especial ao negro, configurando um meio
de expressão afirmativa. Contudo, mesmo os estudos pós-coloniais, como os enunciados por Gilroy
(2001), atestam a conotação misógina e masculinista que expressa uma relação de conflito entre homens e
mulheres (negros e negras) no contexto norte-americano, como discutidos por Ferguson (2007) e Rosa
(2006).
O discurso originário da emancipação racial negra tem entrado em certas ocasiões em
dissonância devido à construção conflitante da sexualidade. Parece cada vez mais inviável uma separação
destas questões raciais e de gênero, presentes nas articulações estratégicas advindas do repertório de
procedimentos enunciativos do rap.
Os estudos multiculturais historicamente lidaram com a desconstrução da categoria “classe” de
aspecto generalizante, ao afirmar que essa só poderia ser vivenciada por indivíduos dotados de “raça”. A
questão do conflito instaurado por um masculinismo no hip-hop chama atenção para outro aspecto a ser
problematizado: “o gênero é a modalidade na qual a raça é vivida” (GILROY, 2001, p. 180), em outros
termos, o corpo é fator significante que dá lugar a conteúdos variados, portanto ao considerar questões de
gênero desvinculadas dos aspectos de racialidade corre-se o risco de outro tipo de universalismo.
A diferença estabelecida pela raça constrói novas variantes simbólicas nas relações masculino e
feminino, as quais são naturalizadas no interior da vida familiar patriarcal e da mesma forma reproduzem
referências de identidades raciais, consideradas estáveis.
Essas identidades de gênero passam a exemplificar diferenças culturais que
aparentemente brotam da diferença étnica absoluta. Questioná-las e
questionar sua constituição da subjetividade racial é imediatamente ficar sem
Breitner Tavares
61
gênero e colocar-se fora do grupo de parentesco racial (GILROY, 2001,
p.180) .
O hip-hop permite a circulação em termos planetários do discurso de uma identidade racial como
manifestação proveniente da diáspora africana, que é agora reinterpretada sob configurações de gênero e
sexualidade.
O hip-hop, enquanto um bem simbólico produzido no contexto da produção estética da
juventude negra na modernidade, trouxe aspectos de reconstrução e positivação dos negros e excluídos. A
questão de gênero e especificamente da misoginia presente em relações desiguais da juventude,
estabelece novas frentes por uma mobilização que contemple respectivamente as demandas de atores
sociais contrários ao racismo e ao sexismo.
CAPíTULO 6 ETNOGRAFIA URBANA: JUVENTUDE HIP-HOP NO DISTRITO FEDERAL
O hip-hop como um fenômeno global está associado historicamente a um imaginário social de
grupos subalternizados, como negros e latinos de grandes metrópoles americanas, como Nova Iorque ou
Los Angeles (FORMAN, 2002). A segregação racial e espacial teria criado condições para uma nova
conformação cultural desses sujeitos sociais submetidos à diáspora africana que cruza o Atlântico em
diversos níveis, inclusive no musical (GILROY, 2001).
Breitner Tavares
62
O hip-hop se posiciona de modo divergente à perspectiva dos estudos culturais que enfatizaram os
estudos de subculturas nas gerações jovens com posicionamento de vanguarda frente ao mercado de
consumo da indústria cultural. Em relação a isso, o hip-hop no Brasil , especificamente em Brasília,
sempre esteve inserido num mercado de bens simbólicos e materiais, como discos, roupas e acessórios
veiculados pelos meios de comunicação de massa. A exemplo disso, observou-se toda uma série de
programações em rádios especializadas em Brasília ou programas de entretenimento na TV com
videoclipes em cadeia nacional. Em geral eram musicas e vídeos de grupos norteamericaneos que que
delinearam toda a construção de um gosto pelo consumo de bens culturais da juventude que passa a se
identificar o hip-hop em grandes metrópoles brasileiras.
DJ Antigas
[:normalmente, os lançamentos do Michael Jackson paravam tudo, o clipe do Michel
Jackson, naquele tempo até que com o tempo começou a passar o Break na TV mesmo
existia um Programa, era de um camarada chamado Jota Silvestre lá de São Paulo, aí
tinha um concurso de break em 1982, a gente ficava louco assistindo aquilo ali, e as
paradas e os caras fazendo as ondas assim, e as músicas, e a gente enlouquecia porque
não tinha acesso, a gente assistia direto19.
O hip-hop surge em Brasília concomitantemente a outras metrópoles brasileiras, como Rio de
Janeiro e São Paulo. Contudo, Brasília devido às suas especificidades de capital federal, bem como pela
presença massiva das embaixadas, propiciou um intercâmbio entre jovens de uma classe média alta com
acesso a viagens internacionais, ao consumo de discos, videoclipes, bem como ao acesso a tecnologias de
produção musical que inexistiam no país até aquele momento. O consumo de discos de funk e rap por
jovens da classe média brasiliense trouxe os primeiros materiais para suprir as rádios. Filhos de artistas ou
servidores públicos, esses jovens estavam mais próximos das inovações tecnológicas e estéticas já no
início dos anos oitenta.
Pode-se afirmar que Brasília, devido ao seu projeto de abrigar uma classe burocrática dirigente,
estava mais voltada paras as questões nacionais (NUNES, 2004). Sua dinâmica urbana era restrita ao
Plano Piloto. A sociabilidade urbana com as demais cidades do Distrito federal se dava mais em função
da oferta de mão-de-obra para prestação de serviços domésticos e para a construção civil. As cidades do
Distrito Federal eram invisibilizadas no que se refere a sua produção local de cultura e outros bens
simbólicos.
19
Nesta seção, parte da visão de mundo da juventude hip-hop será recuperada a partir de fragmentos
retirados de duas entrevistas com dois DJs dos anos oitenta, apresentados com nomes fictícios. DJ
Antigas tem 40 anos e é morador de Ceilândia, atuou em diversos grupos de rap nos anos noventa, é
casado e vive do seu trabalho como DJ. O DJ Virada tem 39 anos, é morador do Plano Piloto de Brasília e
pertence à classe média que introduziu o hip-hop como bem de consumo na cidade, na forma de discos e
gravações. Ele é casado e trabalha como produtor musical.
Breitner Tavares
63
Pensar o surgimento do hip-hop no Distrito Federal significa, dentre outras coisas, se lançar no
movimento pendular das migrações diárias que inscrevem, física e metaforicamente, o sentido de centro e
periferia do espaço urbano. Contudo, o caminho de desenvolvimento seguido pelas cidades cria espaços
cada vez mais heterogêneos e, portanto, complexos.
Aquivos jornalísticos e a imagem da juventude no Distrito federal
Durante a realização da pesquisa, foi feito um levantamento junto a arquivos jornalísticos em
Brasília, especificamente do jornal Correio Braziliense. Foram pesquisados arquivos das edições diárias
de 1985 a 1994. A seleção esteve voltada para artigos que tratassem de temas relacionados à juventude,
lazer nas cidades-satélites, em especial, em Ceilândia-DF.
De fato, as dezenas de horas de trabalho permitiram a constatação de que, até os anos oitenta, as
atividades de lazer, bem como a produção cultural do Distrito Federal se restringiam ao Plano Piloto de
Brasília. O jornal possuía um caderno chamado “Brasília”, no qual eram reportados fatos da cidade,
incluindo-se as atividades de lazer. Havia também o caderno “Dois”, relacionado a uma escassa
programação cultural também concentrada em Brasília, o caderno “Cidades” só seria criado no início dos
anos noventa. Nesse período, os acontecimentos relacionados às demais cidades-satélites e à sua
juventude se restringiam aos cadernos policiais e esportivos.
Os artigos tratavam basicamente de fatos envolvendo tráfico de drogas, acertos de contas,
homicídios, dentre outros crimes, que, em sua maioria eram cometidos ou sofridos por jovens. Além
disso, havia a associação de diversos grupos de jovens ligados a manifestações culturais nas cidadessatélites com a violência e a formação de gangues.
A juventude envolvida no hip-hop, especialmente em grupos de break, era criminalizada a partir
da perspectiva das gangues e tribos urbanas. As matérias utilizavam-se de um jargão técnico para
descrever as terminologias dos grupos, bem como aspectos relacionados aos estereótipos da indumentária,
como cabelos e/ou roupas. Contudo, as trajetórias sociais e orientações coletivas dos jovens eram
suprimidas, em seu lugar generalizações de cunho policialesco associavam todos os jovens à delinquência
e referenciais de um imaginário de “gangues nova-iorquinas”.
A própria constituição das imagens das matérias referentes as figuras 2 e 3 já induzem a uma visão
criminosa dos jovens, que são apresentados com uma tarja preta sobre seus rostos. Algo bastante utilizado
para se referir aos menores infratores. Além disso, ao lado da matéria há um ícone de um personagem
com uma tarja preta e um revólver.
Paralelamente à invisibilidade e criminalização da juventude negra das periferias de Brasília pela
mídia jornalística, surgiram, nos anos oitenta, alguns programas de rádio que se tornaram um veículo
representativo das atividades relacionadas ao lazer da juventude das cidades-satélites. Essas rádios
Breitner Tavares
64
promoviam programas especializados em ritmos como o funk e rap, relacionados ao estilo hip-hop, e
eventos como festas, “sons”20, em diversas localidades. Além disso, essas rádios promoviam concursos de
gravações de mixagens que eram produzidas por pequenas equipes de sonorização espalhadas pelas
cidades e responsáveis por pequenas festas locais.
DJ Antigas: Mais do início do esquema aqui em Brasília era as rádios FM que é a Antena 01 hoje da 93.7,
Atlântida FM tinha um programa que chamava dance night. Ele era sexta-feira de 23h A
00h e dia de sábado de 00h a 1h da manhã.(...) Então o que chegavam pra gente era o que
os caras falavam era o que a gente entendia.
Dentre esses vários programas, o “Mix Mania”, do DJ locutor Celsão, era um dos mais ouvidos.
Celsão, além de locutor de rádio, era DJ de várias festas que aconteciam à noite, nas boates, ou durante o
dia, conhecidas como “ruas de lazer” ou simplesmente “lazer”. Nestas festas, diversos grupos organizados
apresentavam performance de break em concursos que ofereciam premiações. A organização dos jovens
em grupos que disputavam através da dança o reconhecimento dos seus interlocutores era associada
genericamente a gangues.
Os primeiros espaços representativos para as festas com música funk e rap ocorriam em Brasília,
em bairros nobres como o Lago Sul, num espaço conhecido como “Gilbertinho” e na “Fonte do Bom
Paladar”, onde ocorreram os primeiros encontros em torno do break e rap, que eram reproduzidos nas
rádios. Jovens de diversas cidades como Ceilândia, Gama, Guará, entre outras, se encontravam e
estabeleciam contatos e criavam grupos por afinidade em relação ao estilo hip-hop.
Até o final dos anos oitenta, o rap enquanto gênero musical internacional não tinha a carga crítica
que iria adquirir a partir dos anos noventa, como visto em grupos americanos, como o Fat Boys. As letras
em geral tratavam de temas lúdicos, desprovidos de carga crítica, conhecidas no Brasil como “melô”21.
Essa perspectiva mais lúdica sem um discurso politizado influenciava o Brasil, que chegava a se utilizar
do gênero como recurso publicitário ou humorístico. Já havia algumas propagandas que se utilizavam do
rap como meio comercial em São Paulo e no Rio de Janeiro, mas o primeiro grupo de rap a produzir um
disco no Brasil foi o grupo DJ Raffa e os Magrelos, formado por jovens do Plano Piloto e Guará. Em
20
Sons era o termo atribuído a festas informais, familiares, que ocorriam em casa de particulares nas
cidades-satélites nos anos 80. Em geral, eram festas locais em que tocavam ritmos como funk, rap ou
outros gêneros musicais. Os sons devido ao seu caráter local eram ferquentados pela vizinhança e
normalmente não havia a necessidade de um convite formal para participar.
21
Os melôs eram músicas que tomavam uma base de um ritmo funk norte-americano e sobrepunham
sobre a melodia e ritmo uma letra em português que tratava de temas simples do cotidiano e, em geral,
remetiam ao sentido cômico. Um dos pioneiros desse gênero foi o “melô do tagarela”, de Miéle. Os melôs
também são associados a um hip-hop acrítico, que será posto em cheque pelo “rap consciência”
(CARVALHO, 1994), mais conhecido posteriormente como “rap nacional”.
Breitner Tavares
65
seguida, surgiram outros grupos em São Paulo, como o do Thaide e DJ Hum e Pepeu, dentre outros.
DJ Antigas:
Foi daí que começou o esquema e a galera ficou conhecendo o primeiro movimento
forte, forte assim onde todo mundo de Brasília se encontrou. Foi ali que todo mundo
começou ver a cara um do outro, uma foi no Gilbertinho numa boate que chama
Legróbio lá, o primeiro encontro Hip-hop passou até na rádio! “Caraca véio” tenho que
ir lá, lá era uma boatezinha pequeninha estava Rap, estava Wave, estava galera que
antigamente era da banda do ( ) que era (
) o Kid, os Ventanias, a galera toda, o Jony
que... eu nunca tinha visto alguém fazer scratch, estava lá o Leandro arranhando o
aparelho de scratch, tá ligado, foi o primeiro cara que eu vi fazendo scratch.
Nesse contexto, a criação dos primeiros espaços para encontro de jovens envolvidos no hip-hop
através do break e do rap ocorreu no Plano Piloto de Brasília, bem como o pioneirismo dos grupos do DJ
Raffa e os Magrelos demarcam um momento relevante para pensar o hip-hop brasiliense como um
fenômeno de classe média. Por outro lado, seu público era majoritariamente da periferia das cidadessatélites que iam em busca de entretenimento e das inovações musicais que a cidade passa a ofertar.
Nesse período muitos jovens formaram grupos de break e rap e muitos jovens das cidadessatélites passaram a interagir com os jovens de Brasília interessados em break e rap. Em meio à “capital
do rock”, como Brasília era conhecida, por seu grande número de bandas, os poucos jovens do Plano
Piloto que se interessavam por hip-hop decidiram frequentar festas, “sons” nas cidades-satélites. Em
geral, esses jovens se identificavam mais com os jovens das periferias. Portanto, isso interferiria em sua
sociabilidade local no conjunto das Superquadras de Brasília, onde seus melhores amigos passaram a ser
os “filhos dos porteiros”, que também tinham o mesmo tipo de afinidade musical.
DJ Virado: De repente eu comecei a me sentir muito mais em casa nesses lugares, era muito mais bem
recebido, não tinha frescura, eu me identificava com as pessoas. Estranhamente a minha
vida toda começou ir pra lá, praticamente eu só morava aqui, mas eu não tinha praticamente
amigos. Pra você ter uma idéia, você pode até achar engraçado, mas os meus melhores
amigos aqui na quadra eram filhos de porteiro e a minha mãe confirma isso. Então, não sei
o que que acontecia, a minha afinidade social era diferente.
A interação entre os jovens de famílias mais abastadas do Plano Piloto e dos jovens pobres de
periferia das cidades-satélites gerou uma polarização de um campo de produção do hip-hop que uniu DJ,
b-boys, rappers e grafiteiros no sentido de estabelescer contatos com um circuito mais estruturado. Isso
ocorreu primeiramente nas boates em Brasília, como a Kremelin (Cruzeiro), o Galpão Dezessete
(Sobradinho), Paradão e City (Taguatinga), o Primão e o Quarentão (Ceilândia). Posteriormente, após um
Breitner Tavares
66
circuito estruturado de boates e meios de divulgação, como as rádios, as produções do rap brasiliense
passam a polarizar, em nível nacional, a partir de grupos como gravadoras fonográficas, nesse caso,
localizadas em São Paulo, através da Equipe Cascatas.
Essa associação entre diversos jovens permitiu a inserção de alguns grupos que irão
posteriormente estabelecer outro centro geográfico da produção de música popular como o rap para além
do Plano Piloto. Portanto, gradualmente, os espaços representativos do hip-hop no Distrito Federal irão se
voltar mais para as cidades-satélites, como foi o caso de Ceilândia, representada pelos grupos de break
como Reforços, DF Zulu Breakers, grafiteiros e rappers, como os do grupo Câmbio Negro.
Essa nova dimensão do movimento hip-hop no Distrito Federal, agora articulada nas cidadessatélites, em especial em Ceilândia, cria uma situação inusitada no campo da produção cultural do
Distrito Federal, já no final dos anos oitenta e no início da década de noventa. Ceilândia se torna uma
cidade representativa em termos de um circuito de produção do rap nacional que lançará diversos grupos
como GOG, Câmbio Negro, Álibi, Cirurgia Moral, Viela 17, Tropa de Elite, entre outros. Diversos
grupos que iriam definir um campo de produção do rap nacional, como os Racionais MC ou Thaide
passaram por Ceilândia. Essa diversidade de grupos desenvolveu uma cadeia de produção realizada por
jovens da própria cidade que contatavam os grupos de outros estados que vinham se apresentar no
Distrito Federal, às vezes, sem passar pelos espaços da cultura oficial de Brasília. Essa relativa autonomia
de Ceilândia, constituída no campo da produção do rap, representa um esforço coletivo de diversos
grupos do Distrito Federal no sentido de mobilização de jovens da periferia que se identificavam com o
estilo hip-hop.
Inicialmente, o Distrito Federal não contava com gravadoras e produtores profissionais, o que
levava os grupos inicialmente a se dirigir a São Paulo para uma carreira profissional. Posteriormente,
surgem algumas gravadoras em Brasília, como a Discovery. Contudo, em geral os jovens envolvidos no
rap tinham a criatividade, mas pouca experiência como empreendedores, de fato não há dados precisos
disponíveis sobre tiragem de discos, apesar de mais de vinte grupos que gravaram nos anos noventa.
Entretanto, poucos realmente lograram o sucesso financeiro correspondente.
DJ Antigas:
Ele (o proprietário) vendeu a gravadora para um cara, ele abriu mão de tudo em vez de
dispensar os artistas, não, ele deixou tudo na mão do cara e está na mão do cara até hoje
os direitos, está tudo lá na mão do bicho. Aí o cara continua fazendo e ganhando, a
gente não tem direito a nada, ele fez a gente assinar documento pra sair da gravadora, a
gente tinha que assinar documento, a gente assinou, veio, aí estava lá constando que a
gente não recebia nada, que a gente não recebe mais dele.
Trajetórias Juvenis/Marcos Geracionais: Fúria Funk na Periferia de Ceilândia -DF
Breitner Tavares
67
Nos anos 80, as cidades do Distrito Federal possuíam poucos recursos destinados às atividades
de lazer para a juventude, dessa forma a cidade de Ceilândia se destacava como um referencial para a
compreensão da juventude que frequentava os chamados “sons”, que ocorriam normalmente em casas de
particulares aos sábados. Estas festas familiares reuniam a vizinhança. Dificilmente alguém buscava
diversão fora da cidade22.
Nas tardes de domingo, ocorria sempre o que se chamava rua de lazer ou simplesmente lazer,
como preferiam os mais assíduos. Esse tipo de festa pode ser considerado como prática estética
organizadora de formas de sociabilidade e experiência constitutiva de uma base subjetiva nas sociedades
urbanas contemporâneas. De fato, esses encontros ocorriam em diversos espaços urbanos, Em cidades
como Nova Iorque ou São Paulo, jovens de diversos bairros se encontravam para dançar break e funk23.
Nessas cidades, os encontros normalmente ocorriam no centro metropolitano, próximo a estações
rodoviárias ou de metrô (FERGUSON, 2007; VIANNA, 1988).
No Distrito Federal, os jovens se encontravam em boates ou próximos a espaços comerciais,
como o Conic e o Conjunto Nacional (AMORIM, 1997). Em cidades como Ceilândia ocorriam festas,
normalmente, em áreas, às vezes sem qualquer pavimentação, próximas ao comércio local, onde se
reuniam muitas galeras (grupos de jovens) de várias localidades. Os mais virtuosos se revezavam
dançando o break e o funk. Havia as chamadas ‘equipes de som’; compostas por DJs e alguns auxiliares,
que eram verdadeiros técnicos em sonorização. Havia desde a pequena “Vôo Livre” até a famosa “Smurfs
Disco Dance”, considerada a maior equipe de som de Brasília, desde os anos 80, cuja administração é
realizada por ‘Marquinhos’. Era comum uma disputa entre as equipes, o reconhecimento da melhor
equipe era mediado pelo critério do tamanho e qualidade do equipamento, em termos de equalização,
volume, bem como a seleção das faixas pelos DJs.
No cenário funk, existiam regras que definiam o lugar de cada um no contexto da festa. Os
funkeiros, como eram denominados genericamente, buscavam elaborar uma resposta diferenciada
daquelas disponíveis no mercado. Esses jovens se apropriaram de forma peculiar dos objetivos providos
pelo mercado, pela indústria cultural, imprimindo neles novos significados, pela inversão de uso ou pela
reunião de diferentes objetos num conjunto inusitado, criando assim um estilo subcultural peculiar. O
lazer pode ser considerado como um tipo de festividade carnavalesca: “forma primeira, marcante, de
civilização humana [...] onde há uma abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios,
regras ou tabus” (BAKHTIN, 1999, p. 17). A categoria hibridismo tem sido utilizada para definir as
culturas diaspóricas dentro da lógica da tradução com considera Bhabha (2003).
22
Ceilândia contava com poucas opções de lazer, contando com apenas dois cinemas. As escolas
dispunham de livros em suas bibliotecas e eventualmente ocorria o Projeto Platéia, destinado à população
estudantil das cidades-satélites, envolvendo música, teatro, dança, folclore e literatura. O que, guardadas
as devidas proporções, continua sendo regra até os tempos atuais.
23
Estilo musical definido pela combinação de vários elementos rítmicos e melódicos, a partir de um
instrumental tecnológico que passou a ser disponibilizado a partir dos anos 70, principalmente pela
juventude negra norte-americana.
Breitner Tavares
68
Não é simplesmente apropriação ou adaptação; é um processo através
do qual se demanda das culturas uma revisão dos seus próprios
sistemas de referência, normas e valores, pelo distanciamento de suas
regras habituais ou “inerentes” de transformação (BHABHA apud
HALL, 2003, p. 74-75).
O Quarentão foi um dos espaços mais representativos da cultura hip-hop existente nos anos 80 em
Ceilândia. Tratava-se de um prédio que pertence à Administração Regional. Localizado na parte central
da cidade, ao lado do comércio regular e cercado pelo comércio informal dos camelôs nos anos 80, era
uma espécie de salão de múltiplas funções, utilizado para vários fins sociais. Aos domingos, à noite,
aconteciam os “sons” animados pelo DJ Gersom. Por sua posição central, tornou-se um pólo irradiador
dos funkeiros de todos os bairros de Ceilândia, bem como de outras localidades fora da cidade. Só era
permitida a entrada de jovens acima de 18 anos. O local era famoso por ser uma das únicas opções da
juventude, geralmente oriunda de classes sociais populares, e por ser espaço de confronto entre jovens de
diferentes localidades.
DJ Antigas:
Quarentão era um esquema, é lógico que rolava o rap, mas o esquema do Quarentão era
da galera, dos bandidão velho24, o quarentão era dos bandidão doido, era por isso que o
Quarentão era muito louco, era por isso que os bandidos tudinho iam, curtiam no
Quarentão velho, lá dentro quase não tinham desavenças, as paradas eram lá fora
mesmo, muita gente que morreu e tal, mas lá dentro era tenso, mas era prazeroso estar
ali no meio.
O Quarentão foi um dos responsáveis pelo surgimento de um cenário artístico hip-hop em
Ceilândia. Logo à frente do local onde se localizava o Quarentão, existia uma espécie de anfiteatro onde
jovens se reuniam para treinar coreografias de break, o que era promovido pela entidade social DF Zulu
Breakers. Havia o desenvolvimento de projetos relacionados ao grafite, como realizados por artistas
como o Satão e o Supla e “S”; também compareciam alguns músicos como DJ Jamaica, ‘X’, Japão, Gog,
entre outros que, nos anos 90, foram referências do rap dentro e fora do Distrito Federal.
DJ Antigas:
Tipo assim velho, o Quarentão, os grandes nomes do rap já passaram por lá, já passou o
Racionais, o Câmbio Negro já tocou lá, Thaide ((
24
)). Jackson na época era rap e a
“Velho” é um termo utilizado para se referir a uma pessoa qualquer, algo como “cara”, “sujeito” ou
“meu caro”.
Breitner Tavares
69
gente estava a fim de curtir os metralhas e assim uma galera mesmo.(( )) Os caras
tudinho, era massa velho, mas todo mundo conhecia todo mundo, então era só os caras
de novo, a galera não queria ver não, a galera queria ver era bagaceira, o som velho era
as rodas de show, isso é que era onda de doida, não era nem roda de (( )) era roda de
soul.
Atualmente o Quarentão, então convertido em uma das unidades dos Restaurantes Comunitários
do Governo, não representa mais esse espaço para a juventude; existe apenas como um fragmento na
memória de uma geração que vivenciou a experiência de ser jovem nos anos oitenta em Ceilândia.
Nos anos noventa, inicia-se uma estruturação de vários grupos de rap que deixaram de lado as
letras cômicas, como as presentes no melôs, e passaram a aderir a narrativas que abordavam problemas
sociais, usando um tom ao mesmo tempo de denúncia e de reivindicação de mudanças sociais. No Distrito
Federal, surgem vários grupos de rap com letras que abordam questões como o racismo e o problema da
violência nas periferias urbanas entre os jovens. Apesar de não haver uma vinculação direta de um
movimento hip-hop envolvido diretamente com os movimentos sociais, há alguns grupos e/ou indivíduos
envolvidos em participações com ONGs, como MH2O (Movimento Hip-hop Organizado), Grupo Azulin,
CUFA (Central Única das Favelas). Portanto, a música nesse contexto possui uma conotação de discurso
conscientizador.
Nesse período, o Câmbio Negro liderado por jovens de Ceilândia foi um dos grupos a alcançar
maior repercussão frente à juventude. Contudo, antes do sucesso comercial do grupo, bem como do seu
reconhecimento pela juventude do Distrito Federal, o Câmbio Negro, assim como alguns grupos de
break, como o DF Zulu Breakers e Reforços, é citado na mídia como uma dentre várias gangues de
delinquentes, que estariam “espalhando o terror” no Distrito Federal25 (FERREIRA, 2002, p. 24). Na
matéria, há um mapa em que grupos de rap e break aparecem ao lado de outros grupos de jovens
acusados de prática de crimes no Distrito Federal.
25
No ano de 1993, ocorre em Brasília a morte do jovem Marco Antonio Velasco por uma gangue de
lutadores de artes marciais do Plano Piloto, chamada Falange Satânica. O caso revela a existência de
gangues de jovens de classe média envolvidos em atos de violência e crimes. Diante disso, a impressa
local cria um estereótipo em que todos os grupos de jovens existentes no Distrito Federal passam a ser
tratados como disseminadores de violência.
Breitner Tavares
70
O grupo Câmbio Negro marca o período de estruturação do rap produzido no Distrito Federal e no
país, junto com outros grupos, como Racionais Mc, de São Paulo, e MV Bill, do Rio de Janeiro. Tal
grupo, criado por jovens negros de Ceilândia, produziu um rap que atingiu diversas camadas sociais,
inclusive as classes médias, especialmente a partir da música Sub-Raça, 8a faixa do 1º álbum, relevante
para definir a entrada de uma linha discursiva sobre a exclusão racial em Brasília. Trata-se da construção
do imaginário da periferia da capital do país, que reproduz todo um quadro de exclusão social, objeto do
discurso crítico frente a toda segregação social típica das grandes metrópoles, como ocorrido no Distrito
Federal ao longo de sua trajetória. A música Sub-Raça discute a questão da exclusão sob a ótica da
segregação racial e sugere uma “consciência negra”.
Sub-Raça (1994)
Câmbio Negro
Agora irmão vou falar a verdade,
A crueldade que fazem com a gente,
Só por nossa cor ser diferente.
Somos constantemente assediados pelo racismo cruel,
Bem pior que fél, é o amargo de engolir um “sapo”, só por ser preto, isso é fato.
O valor da própria cor não se aprende em faculdades ou colégios que ser negro nunca foi um defeito
será sempre um privilégio.
Privilégio de pertencer a uma raça,
Que com o próprio sangue construiu o Brasil...
Sub Raça é a puta que pariu!!!(...)
Breitner Tavares
71
Sub-raça, sim é como nos chamam aqueles que não respeitam as caras, dos filhos dos pais, dos
ancestrais deles, não sabem que seu bisavô como eu era escuro, e obscuro: será o seu futuro se não agir
direito,talvez seja encontrado em esgoto da CEILÂNDIA com três tiros no peito.
O papo é esse “mermo”; a realidade é foda”.
Não dê um bote mal dado se não CÂMBIO te “boda”, fique esperto racistas se “liga na fita”,
Somos “animais” “mermo” se “foda” quem não acredita. Sub-raça é a puta que pariu!!! (Refrão).
Na letra de Sub-Raça há um trecho em que se afirma: “Não se aprende em faculdades ou colégios
que ser negro nunca foi um defeito”. Nesse verso apresenta-se a falta de referencial de identificação racial
por parte de instituições como a Escola, resultante de um racismo que não vislumbra a categoria raça
como resultado de uma construção política e social. “É a categoria discursiva em torno da qual se
organiza um sistema de poder socioeconômico, de exploração e exclusão – ou seja, o racismo” (HALL,
2003, p. 69). A letra se posiciona de maneira contrária ao discurso de inferioridade racial negra. Sub Raça
reage à condição subalterna da diferença em um jogo que supera o tradicional binarismo
dominador/dominado. Apesar de a afirmação em relação a uma negritude ser freqüente, isso não significa
que essa juventude como um todo se reconheça ou mesmo se afirme “negra”. A categoria negro, na
verdade, não é homogênea, mas resultado de construções que podem apresentar certas ambigüidades,
como discutem Carvalho (1996), Fanon (2008) e Sansone (2004).
No ano de 1994, a inserção do grupo Câmbio Negro chega ao público do Plano Piloto com
apresentações nos espaços mais representativos do campo musical de Brasília. Isso permite uma
redefinição da imagem social do grupo junto aos meios de comunicação. O grupo, que outrora era citado
nas páginas policiais do caderno “Cidades”, passa à matéria de capa dos cadernos de cultura, o “Caderno
Dois”.
Numa dessas edições, há uma matéria em que o vocalista do Câmbio Negro, “X” (Equis), junto
com outros rappers do Distrito Federal, como GOG e Dino Black, intitulado “Sem papas na língua”, na
qual os rappers falam de suas expectativas de futuro sobre a política nacional com a eleição do novo
presidente, em ano de campanha eleitoral. Em outras matérias, os jovens lançam comentários antirracistas
e contra a segregação socioespacial de Brasília. Além disso, alguns deles assumem suas posições políticopartidárias.
Geralmente, o rap procura manter uma posição de arte social a serviço de uma conscientização da
juventude excluída; observa-se quase que permanentemente o apelo à “periferia negra de Brasília”. O
estigma do lugar perpassa todo o imaginário hip-hop como o lugar onde se materializam todos os males
da modernidade, desde a violência urbana às drogas, assim como a falta de perspectiva e o racismo.
Até o final dos anos oitenta, a representação das cidades do Distrito Federal através dos meios de
comunicação de massa partia exclusivamente de um princípio de negatividade das cidades-satélites, tendo
Ceilândia como um referencial de um imaginário urbano e estigmatizado que criminalizava a juventude
através de estereótipos da formação de gangues de delinquentes. Diante disso, o hip-hop especificamente
através do rap, no início dos anos noventa, permitiu a formação de grupos de jovens em torno do estilo de
Breitner Tavares
72
vida hip-hop, que assume uma luta concorrencial pelos espaços de difusão da cultura local.
Gradualmente, esses grupos adquirem relevância no campo artístico regional e nacional, que lhes conferiu
um status diferenciado, de artistas produtores de cultura. Essa inserção da juventude de Ceilândia no
início dos anos noventa permitiu que através de um movimento cultural se polarizassem questões numa
esfera política.
Os jovens passaram a denunciar, através de um discurso antirracista, diversos aspectos da
segregação socioespacial vivida pela juventude, não apenas de Ceilândia, mas de qualquer periferia
urbana que tivesse suas características. Dessa forma a juventude negra redefine a imagem criminalizada
de uma das cidades satélites que sob essa nova perpectiva de autoafirmação aquirem o sentido de
“centros” difusores de um novo sentido para a música popular e, ao mesmo tempo, constituiu uma
liderança representativa da juventude. Esse processo de inserção política de uma juventude em busca de
reconhecimento social para suas questões através do rap possibilitará, dentre outras coisas, a inclusão de
questões relacionadas à juventude da classe trabalhadora, bem como o lançamento de alguns candidatos
ao parlamento local oriundos do hip-hop ou que se utilizam dessa indumentária para a construção de sua
plataforma política, como ocorreu com X (Câmbio Negro), pelo PPS, em 2002, e Flávio Rap, pelo PP, em
2006, os quais concorreram a uma vaga na Câmara Legislativa do DF.
Novas configurações geracionais no rap no Distrito Federal
No final da década de 90, com a popularização de novas tecnologias informacionais, que
substituíram os antigos discos de vinil pelo CD, associada à prática da pirataria geraram-se impactos
decisivos na produção e difusão de novos grupos. Novos programas de informática permitiram a criação
de estúdios de gravação mais simples e econômicos. Diversos grupos passaram a produzir seus próprios
trabalhos, construindo redes de distribuição em toda parte. Comunidades virtuais como Orkut ou My
Space, dentre vários outras, se tornaram fóruns de divulgação e discussão do rap como música
independente.
Em feiras livres, como na Feira do Rolo, em Ceilândia, é possível encontrar produtores locais
vendendo CDs com bases rítmicas prontas, criadas com baterias eletrônicas e samplers digitais, dessa
forma, com um aparelho de som doméstico e algumas letras, pode-se criar um estúdio de ensaio e criar
novos grupos de rap. Com a relativa popularização de câmeras digitais, os novos jovens cineastas do hiphop já produzem seus próprios videoclipes. A distribuição fica a encargo de espaços de divulgação, como
o sítio de internet You Tube, para vídeos digitais. A exemplo da configuração desse campo em que grupos
produzem seus próprios clipes que são divulgados em meios como You Tube, o sucesso “Carro de
malandro”, do grupo Tribo da Periferia26, com quase dois milhões de acessos de ouvintes do clipe na
página do You Tube, é um grupo desconhecido dos grandes circuitos comerciais do rap nacional, mas se
26
Link para o clipe “Carro de malandro” na internet: http://www.youtube.com/watch?v=X7FE1RQ-ueg
Breitner Tavares
73
constitui com um referencial para juventude pobre que frequanta as lan houses para compartilhar sua
produção independente.
A facilitação dos meios tecnológicos de produção e a pirataria, de fato, não eliminaram a grande
indústria fonográfica, mas sem dúvida a tornaram mais heterogênea e complexa. No Distrito Federal,
ainda há a influência de produtores, chamados por alguns de “padrinhos”, que dispõem de prestígio social
junto aos meios de divulgação tradicionais, bem como junto ao atores que fomentam a cultura, como o
Estado e empresários das grandes gravadoras. Entretanto, atualmente há muitos grupos que produzem rap
em suas comunidades, utilizam a Escola, ONGs e outros espaços públicos para divulgar seus trabalhos,
bem como apresentar seus trabalhos. Esses jovens vinculados ao estilo hip-hop produzem seu rap e criam
grupos, as “famílias”. Os jovens, dessa forma, estão relativamente envolvidos enquanto lideranças nas
questões locais das cidades que vivem. Eles participam de movimentos sociais ou de trabalhos sociais em
ONGs. O habitus constituído em torno do seu estilo de vida irá configurar suas estratégias de denúncias e
propostas para o enfrentamento de problemas sociais, como a violência urbana e o racismo.
DJ Antigas:
Tipo assim, antigamente pra você gravar um disco no DF só tinha dois caras que
produziam: um era o Raffa, o outro era o Leandrônico. O Leandrônico largou de mão o
esquema, casou e tal, aí sobrou pro Raffa, aí o Raffa montou na égua, lavou a égua,
todo mundo que queria produzir tinha que ser com o Raffa. Aí ele cobrava o que ele
queria cobrar, ele ganhou dinheiro demais da galera. Aí cerca de 10 anos pra cá, a
parada mudou, porque a galera foi tendo acesso a computador, acesso a software.
Antigamente ??? era uma paradas pra fazer num era ??? tinha que ter tudo, era tudo
externo. Hoje não, você compra ??? todos os teclados do computador, as baterias do
mundo inteiro, qualquer tipo de bateria você tem dentro do computador, e tudo, vai a
orquestra inteira dentro de um computador. Aí quer dizer, acabou, se ele cobrava mil
reais por música, hoje ele cobra trezentos, entendeu?
DJ Virada:
Eu fui começando a entender que a técnica não era importante mais pra essa geração, o
importante era mostrar o trabalho, era mostrar as músicas, era cantar, era mostrar as
letras e que eles não tinham acesso a bons produtores e à informação pra fazer boas
músicas de qualidade. Antigamente a própria periferia não dava valor aos artistas
locais, só para os grandes, e hoje eles dão valor ao artista local muito mais do que
antigamente, principalmente no Rap.
Em relação ao gosto musical dos jovens, apesar dos mesmos reiterarem sua predileção pelo rap,
em conversas informais eles admitem frequentar outros ambientes, especialmente rodas de pagode e,
eventualmente, forró, quando querem se divertir e encontrar outras pessoas. No que se refere à influência
de ritmos diferenciados, como samba ou maracatu, apesar de serem considerados referenciais de uma
negritude, são menos difundidos entre os jovens pobres da periferia. De fato, há grupos de rap, como o
GOG, que realizam parcerias com músicos associados ao conceito mais geral de música popular brasileira
Breitner Tavares
74
(MPB), como Maria Rita ou Lenine, contudo, esse tipo de parceria leva o rap para o público consumidor
universitário de classe média, mas não populariza necessariamente esses estilos em meio à juventude de
classe popular.
O hip-hop, enquanto uma escolha existencial, permite a construção de uma linha narrativa sobre
suas expectativas de futuro, o amor e a sexualidade. Esse estilo de vida expresso a partir de uma
subcultura apresenta uma configuração específica de relacionamento entre os jovens em que o sexismo,
às vezes, é desafiado. Nos últimos anos, desde, o reconhecimento da participação feminina no hip-hop
tem sido mais enfatizado a partir de grupos, como Vera Verônica, Atitude Feminina, BsB Girls, entre
outros, que tematizam a questão da mulher no hip-hop, denunciando a misoginia que atravessa a relação
entre jovens nesse estilo de vida.
CAPÍTULO 7 ORIENTAÇÕES COLETIVAS E GERACIONAIS DE JOVENS RAPPERS NO
DISTRITO FEDERAL
(...) Se tem problema, aqui não tem esquema,
aí eu te pergunto pra você,
qual é o seu dilema: morrer na ambição sem dó e nem perdão,
se entregar tão fácil assim?
Escuta aí irmão!
Não sou poeta, mas dou a idéia certa
Não sou doutor, mas eu vou te falar quem eu sou
Breitner Tavares
75
Eu sou igual a você aí daquele jeito,
ódio e a maldade guardada no peito
É com rancor. Assim não se segue a vida.
Eu sei como é que é ter que conter a ira:
de detonar, de espalhar o terror na favela
Aí eu me lembro o quanto a vida é bela.
(...) Não vai dar nada, se der, é pouca coisa.
Rei – Cirurgia Moral 2007.
7.1 Orientações Coletivas e Geracionais: estilo de vida hip-hop e o envolvimento com trabalho social
Grupos BR45 e Rap Comando
Para a construção de um tipo analítico das orientações coletivas dos grupos selecionados, serão
enfocados aspectos relacionados às questões de sua estrutura familiar e sua vivência na região onde
vivem. Esse enfoque permitirá que se observe como a família e as relações interpessoais de amizade são
relevantes para a construção de um sentido de pertencimento, observado a partir das orientações coletivas
dos jovens em torno do estilo hip-hop, em especial pela apreciação do rap como forma de expressão
estética. O espaço urbano em sua complexidade, bem como as semelhanças no que se refere à condição
de classe dos grupos, permitiram que os jovens se identificassem numa experiência intersubjetiva
geracional.
As orientações coletivas em relação ao estilo hip-hop revelam que, em geral, os grupos tentam
definir sua identidade em oposição a outros grupos. Isso ocorre a partir da indumentária que constrói um
corpo com seus aparatos e gestos, além de um discurso no sentido de um movimento de protesto e
denúncia, que caracteriza o sentido de “missão” que esses grupos pretendem para suas ações. Os jovens
em diversos momentos se voltam para estereótipos criados por eles como meios distintivos de outros
grupos subculturais, como “pagodeiros” ou “roqueiros”. Contudo, informalmente, observa-se que nos
espaços de sociabilidade, como escolas, festas ou o setor onde vivem, esses jovens rappers interagem
com outros grupos e estabelecem vínculos de socialização que ultrapassam o sentido sectário observado
em alguns momentos de seu discurso.
O sentido das orientações coletivas dos grupos de jovens envolvidos com o rap se situa no
contexto comparativo realizado entre outros grupos selecionados. Os resultados encontrados sobre suas
Breitner Tavares
76
orientações geracionais, portanto, correspondem à sua visão de mundo frente a questões relativas às suas
práticas culturais em relação à musicalidade do rap e outros componentes do hip-hop27.
Grupo BR45: trajetórias familiares e envolvimento com o trabalho social
Resumo do trabalho de campo na QNZ28 com o grupo BR4529
Após as festas de fim de ano de 2006, voltei a ligar para Augusto, o instrutor de rap do grupo
Amarras, com o qual eu já havia feito contato anteriormente para tentarmos remarcar um encontro para a
entrevista do seu grupo: o BR45. Augusto havia me perguntado anteriormente se poderíamos produzir
umas fotos para a produção do novo álbum de seu grupo, imediatamente eu aceitei a proposta. Então,
combinamos um encontro para o sábado seguinte, no período da tarde. Nessa ocasião, nós faríamos a
entrevista e, logo após, realizaríamos um ensaio fotográfico.
No dia combinado, eu organizei meu material e fui à QNZ. Chegando lá, adentrei as ruas
estreitas onde quase não havia espaço para calçadas, além disso, reparei que todas as casas eram
fortemente gradeadas, de modo irregular. Na rua, não havia espaço para árvores ou plantas. A árida
paisagem era composta pelo asfalto, paredes sem pintura e ferro de cor zarcão.
Apesar de ser a segunda vez que eu ia à casa de Augusto, me perdi durante o percurso e tive que
ligar para ele para poder me localizar. Ele me informou que sua casa era no conjunto 101 e foi muito
gentil ao me oferecer várias referências para chegar até lá, percebi que ele demonstrava ter um amplo
domínio sobre o espaço local. Ao chegar à casa de Augusto, esperei um pouco na entrada até que me
convidaram para entrar. Atravessei uma pequena área coberta, que servia de garagem e de área livre. Ao
lado dessa área ficava a sala, onde entrei em seguida. Num ambiente com pouca iluminação, ali estavam
uma prima e uma irmã de Augusto. Elas assistiam ao programa “Caldeirão do Huck” que acabava de
iniciar. Faço menção ao programa, pois, coincidentemente, a primeira atração era justamente os rappers
cariocas da Cidade de Deus (RJ), MV Bill e Kmilla, que cantaram a música Estilo vagabundo. Augusto e
27
As respostas relacionadas às orientações geracionais dos jovens rappers, apesar de serem definidoras
de seus próprios estilos de vida, por outro lado não são algo que seja necessariamente exclusivo desse tipo
de subcultura. Em outros termos, grupos de jovens envolvidos com o samba ou rock podem apresentar
elementos comparativamente semelhantes às orientações coletivas de jovens rappers, apesar da diferença
expressa pela superficialidade de sua indumentária.
28
Todos os nomes dos setores ou bairros onde os jovens habitam foram modificados por pseudônimos ao
longo do texto. A única exceção ocorre com Ceilândia, que é abordada enquanto uma totalidade.
29
Todos os nomes dos grupos ao longo do texto foram modificados por pseudônimos.
Breitner Tavares
77
um de seus irmãos, Bantu, que chegou em seguida, ambos do BR45, assistiram a tudo, sempre elogiando
a música de Bill. Eles observavam e comentavam sobre sua performance e roupas, dentre outras coisas.
De vez em quando, Augusto me perguntava se eu estava com pressa. Eu lhe dizia que não havia problema
e que eu mesmo queria assistir ao programa também. Como eu já conhecia de vista o irmão de Augusto,
Bantu, devido a outras apresentações que já haviam feito no X Norte, simplesmente nos cumprimentamos
e continuei acomodado no sofá assistindo ao programa. Nessa estreita e quente sala havia três sofás.
Fiquei em um de frente para Bantu. Estávamos aguardando Elmo e um outro integrante chegarem. Na
sala, estava também Duarte, sempre discreto, de poucas palavras.
Enquanto aguardávamos as entrevistas, Bantu me perguntou sobre a câmera, sobre seu modelo e
características em geral. Mas, a princípio, não demonstrou curiosidade sobre a entrevista que
realizaríamos.
Ele passou a conversar com Duarte sobre uma festa que ocorreria naquele sábado, num barracão
na QNX e disse que lá não era lugar para levar namorada, pois o dono da festa só chamava piriga,
piriguete30. Uma das primas de Bantu interveio na conversa e disse, num tom de gracejo, que isso era um
absurdo. Além disso, enfatizou ainda com tom de gracejo que Duarte não deveria ir, pois era um rapaz
casado. Todos riram com a situação. Pouco depois Bantu começou a se referir à sua prima, empregando
palavras de duplo sentido, como sacudo31. Diante disso, sua prima passou a se mostrar constrangida com
o que Bantu dizia, especialmente devido à minha presença, uma visita desconhecida, um observador.
Bantu ainda fez outro gracejo dirigido a sua prima, quando chegou a insinuar que alguma mulher, naquela
casa, estaria deixando absorvente íntimo no chão do banheiro, algo que lhe causava repulsa.
Inicialmente, os pais dos jovens não estavam presentes na casa. Enquanto Bantu e sua prima
continuavam a caçoar-se reciprocamente, eu me mantive quieto, como um bom ouvinte, eu só fazia
alguns gestos indicando compreender a situação, eu chegava a expressar isso através, até mesmo, de
alguns risos, risos amarelos (constrangidos). Isso porque eu realmente não ficaria à vontade zombando de
alguém que não conhecia e, principalmente, para não prejudicar a entrevista em questão.
Algum tempo depois, passados uns quinze minutos, chega Elmo, também irmão de Augusto e
Bantu. Com olhar indireto, fala pausada e mais direta, ele adentra a sala observando minha presença. Ele
me cumprimenta de forma breve e deixa a sala em direção à cozinha. Ainda não podíamos iniciar a
discussão, pois aguardávamos Cenin.
Desde a minha chegada, esperamos mais de uma hora, pois os rapazes ainda resolveram,
sequencialmente, tomar banho e almoçar. Augusto chegou a me convidar para comer, agradeci o convite,
mas recusei, até porque eu já havia almoçado e, portanto, estava sem fome. Enquanto esperávamos os
outros, Augusto chegou a me pedir para irmos ao X Norte para buscar uns adereços como cordões e anéis
30
Piriguete significa mulher vulgar. Piriga é uma abreviação de piriguete.
31
Termo que é usado para se referir à genitália masculina, algo como “saco grande”.
Breitner Tavares
78
de prata para seu irmão poder utilizar durante o ensaio fotográfico. Eu concordei, contudo sugeri que
fizéssemos a entrevista primeiro.
Elmo, que ouviu meu diálogo com Augusto, ficou um pouco reticente diante de minha resposta,
porém não fez qualquer comentário. Ele deixou a sala e entrou em um dos dois quartos que a casa possuía
para comportar uma família de, pelo menos, 12 integrantes, incluindo seus pais. Posteriormente, eu soube
que, além da família de Elmo, sua casa era um espaço frequentado constantemente por vários outros
jovens, que viviam nas redondezas da QNZ. Inclusive, eles dormiam costumeiramente por ali, às vezes,
por alguns dias até voltarem para suas casas.
Pouco depois, cada um dos membros do BR45 se apresentou com uma indumentária hip-hop.
Eles exibiam seus chapéus, tênis, botas com pintura personalizada, jaquetas e blusões, cordões de prata e
ouro, tudo aquilo que, por um lado, os representava enquanto um grupo de rap, por outro lado, aquele
estilo era destoante ao mais comum naquela região, apesar dos adereços se remetem a idumentária hip
hop. De fato, era visível que poucos eram os jovens ali naquela região que poderiam investir em tal
elaboração estética. Para o BR45, essa indumentária carregada pela identificação do hip-hop era ao
mesmo tempo bem arrojada e expressava algo acerca de sua autoimagem, o sentido de pertencimento
daquela juventude, em especial, que buscava se distinguir de uma certa forma de outros grupos de jovens
da mesma região.
Augusto me convidou para irmos para a área externa da casa, pois estava muito quente dentro da
pequena sala, além disso, suas irmãs assistiam a um programa de televisão. Bantu deu-se conta de que já
era um pouco tarde e ainda reclamou sobre a organização das atividades para aquele dia. Ele questionou a
escolha de se fazer uma entrevista antes da sessão fotográfica, que naturalmente passou a ser o mais
importante. Nesse momento, eu tive que explicar de maneira enfática meus objetivos para podermos
iniciar o grupo de discussão. Eu realmente temia pela dispersão do grupo, caso eu atendesse a todas as
reivindicações.
Contexto da entrevista com o grupo BR45
A entrevista com o grupo BR45 foi inusitada por diversos aspectos. A princípio, iríamos realizar
a entrevista na escola local. Contudo, a direção da escola não foi localizada para a liberação do espaço,
além disso, eu já havia realizado duas experiências anteriores em escolas e em ambas as situações eu tive
problemas com a captação de áudio, pois havia eco nas salas, o que interferia na qualidade do som,
portanto, decidimos realizar a entrevista na casa de Elmo. No momento esperado para a realização do
grupo de discussão fomos, em alguns momentos, interrompidos por amigos, vizinhos e até carros de som
de propaganda que passaram pela redondeza em frente à garagem onde estávamos. De fato, o que ocorria
era que aquele espaço era um ponto intermediário entre estar em casa e estar na rua. Isso causava
interrupções sucessivas. Além do mais, Bantu ora atendia ao telefone, ora se levantava para atender a
Breitner Tavares
79
alguém que chegava ao portão. Apesar desses “ruídos” externos, pudemos realizar a conversa em torno
das questões propostas, além disso, a qualidade do áudio ficou muito boa devido à acústica do local.
No decorrer da entrevista, algumas das irmãs e amigas de Elmo chegaram e se juntaram ao
grupo, mesmo sem participarem com considerações verbais. Elas se aproximavam e observavam
silenciosamente a fala dos rapazes, de fato, às vezes ocorriam risos ou mudanças repentinas de olhares,
mas como os rapazes estavam praticamente de costas para elas, eles notavam sua presença, mas não
sofriam interferências do poder comunicador dos gestos. Considero isso relevante, pois como o grupo é
formado apenas por homens, a presença das mulheres, mesmo que de forma silenciosa, impôs certo
encaminhamento ao diálogo. A discussão era apresentada por homens e para outros homens, mas com
uma presença latente das mulheres, que levavam a uma, mesmo que sutil, rearticulação das falas dos que
ali estavam presentes. Em boa parte da conversação, pude observá-los rindo ou olhando de forma
cabisbaixa para a audiência que estava a nossa volta. Bantu chegou a comentar, num tom de brincadeira,
que sua casa parecia “boca de traficante”, pois toda hora havia alguém entrando e alguém saindo. Esse
comentário foi realmente ilustrativo do ambiente dual vivido por uma família que, apesar das precárias
condições materiais, objeto de uma estigmatização por parte da própria vizinhança, se mostrava receptiva
e participava na vida daquela comunidade.
Logo após a realização do grupo de discussão, os pais de Augusto chegaram. Sua mãe, dona
Maria, vinha do restaurante onde ela trabalha como cozinheira, seu pai, seu Luis chegou de bicicleta.
Ambos foram simpáticos e receptivos com minha presença. Eu os cumprimentei com apertos de mão,
primeiramente a mãe e depois o pai. Após alguns instantes, ao conversar com seu Luis e Bantu, eu soube
por acaso que seu Luis havia sido contemporâneo de Nelson Triunfo32, que teriam participado de rodas de
32
Nelson Triunfo é dançarino, coreógrafo, educador social, é considerado por muitos um dos fundadores
do hip-hop no Brasil. De origem nordestina (Alto da Boa Vista - PE), cresceu envolto a uma atmosfera
favorável à dança. Aprendeu vários ritmos tradicionais como frevo e maracatu, contudo, Nelson se
destacou pela combinação do ritmo soul de origem norte-americana e o frevo. Essa combinação ficou
conhecida como “original funk soul”. Nelson deixou Pernambuco e durante os anos 70 viveu na Bahia e,
logo após, em Brasília, mais propriamente em Ceilândia e Sobradinho. Em Ceilândia, participa da equipe
Super Som 2000, organizando vários eventos na cidade, onde permanece até 1977. Ao se mudar para São
Paulo, fundou o grupo de dança Funk & Cia, resultado da seleção dos melhores dançarinos de soul da
época. O Funk & Cia, no início dos anos 80, mesmo sob a tensão do regime militar que restringia
manifestações culturais em praça pública, leva a dança dos salões de baile para o espaço da rua,
promovendo as primeiras rodas de break dance na rua 24 de Maio, em São Paulo, um dos espaços que se
tornaram representativos da cultura hip-hop nacional. Triunfo atualmente está desenvolvendo diversos
projetos relacionados à dança popular e à educação de comunidades em periferias urbanas em São Paulo
(DIP, junho de 2004, p. 13).
Vejam-se alguns links abaixo para maiores informações:
Breitner Tavares
80
dança em salões comunitários nos anos 70, como o Paradão33. A mãe de Augusto, por sua vez, estava
sempre próxima. Sempre muito simpática, ela distribuiu entre os jovens algumas gomas de mascar e
pastilhas como Halls.
Estávamos no meio da rua, quando comecei a planejar umas fotos. Tirei algumas na rua e depois
subimos no telhado de uma casa ao lado para fazermos fotos captando os telhados da QNZ. Em seguida,
descemos e entramos, aproximadamente sete pessoas, num carro e fomos para uma quadra abaixo com
um grafite, que, por sinal, é o único de toda a QNZ. Esse grafite possuía o nome do grupo, eles queriam
um fundo personalizado com a arte do grafite para as fotos34. Após realizarmos algumas fotos, eu sugeri
que fizéssemos outras dentro da casa de Augusto, mas observei nele certo desinteresse. Também sugeri
que fizéssemos o mesmo em outro lugar como, por exemplo, a Ponte JK, o que fez com que eles se
entusiasmassem. Ainda quando estávamos no paredão com o grafite começou uma chuva fina que nos
levou de volta para o carro. Então, voltamos à casa de Bantu. Chegando lá, fomos descarregar as fotos no
computador da casa, que ficava no quarto de Bantu, creio. Ali, como no resto da casa, não havia qualquer
acabamento da construção. Tijolos expostos sem reboco e o contrapiso ainda no cimento bruto abrigavam
duas camas e um velho guarda-roupas. Num canto, ao lado da cama, havia um velho vídeo de
computador, que possuía conexão de internet banda larga. A conexão de internet rápida vinha por um
cabo que chegava ao pequeno cômodo através de um misterioso furo na parede, provavelmente vindo da
casa de um vizinho. Mais tarde constatei que essa conexão era compartilhada por vários vizinhos da
redondeza. O computador era uma das atrações que mantinha a casa onde moravam os integrantes do
http://dynamite.terra.com.br/arquivodohiphop/site/page.cfm/nelson-triunfo
http://www.youtube.com/watch?v=wVK7Z0nnPa8&feature=related
http://andreadip.files.wordpress.com/2006/06/otriunfoedonelson.pdf
33
Paradão era o nome de um galpão comunitário em Ceilândia onde ocorriam diversos bailes nos anos
70.
34
Isso é curioso, pois quando se fala em grafite como um elemento representativo do hip-hop, observa-se
que o mesmo não é tão presente como se pode pensar baseado em estereótipos criados pela cena
novaiorquina retratada no filme Wild Style (1982), em que o grafite é o principal elemento motivador da
juventude negra e latina no South Bronx. De fato, observa-se que tanto no caso brasileiro, quanto no
norte-americano, o rap se consolidou como o elemento mais representativo dessas juventudes. O grafite
se tornou uma produção mais frequente em meio a uma juventude branca, de classe média das grandes
metrópoles.
Breitner Tavares
81
BR45 sempre cheia, funcionando como uma espécie de lan house35. Sempre havia algum amigo da
vizinhança querendo checar as mensagens de e-mail ou seu perfil no Orkut36.
Enquanto eu preparava a câmera para baixar as fotos, Bantu negociava com uma de suas irmãs
que estava utilizando o computador. Ela estava na página do Orkut observando o perfil de outros amigos,
todos da mesma vizinhança, agora digitalizada. Ela reclama e diz que ela tem sempre que dar preferência
para Bantu e seus amigos.
Assim que baixamos as fotos e todos puderam ver o resultado, houve um grande entusiasmo, o
que provocou a troca de figurino de alguns presentes. Bantu enquanto se vestia, mencionava o valor da
roupa que vestia, o quanto tinha sido cara (R$120,00). Enquanto isso, a chuva parou e então pudemos sair
novamente. Fomos, desta vez, a uma parte nova da QNZ na qual havia uma ocupação de catadores de
papel e carroceiros que haviam sido desalojados de uma outra ocupação, devido a um incêndio que
destruiu vários barracos. Os barracos de madeira, plástico e papelão eram muito pequenos e se
aglomeravam de forma quase orgânica em meio a um vazio urbano, antes destinado a uma praça ou à
construção de uma escola.
Ao nos aproximarmos, Augusto foi a uma casa que não fazia parte da invasão. Lá vivia um de
seus amigos de outro grupo: o Rap Comando. Ao que me pareceu, esse jovem teria a função de nos guiar
entre os barracos em segurança, pois como aquela ocupação era nova, não havia de fato sido
estabelecidos vínculos de sociabilidade entre os moradores, pois ninguém se conhecia. Ao entrarmos no
emaranhado de barracos, alguns moradores, homens, apareceram e passaram a observar à distância.
Outros abriram as portas assustados com nossa presença e nos questionaram. A presença dos jovens do
grupo BR45 e o fato de eu estar munido de uma câmera, ou seja, executando uma função de “fotógrafo
oficial” me fez sentir autorizado a explicar àquelas pessoas o que ocorria.
Eu me aproximei de uma família e então disse que se tratava da produção de fotos de um grupo
de rap da cidade e que não tínhamos intenção de prejudicar ninguém da comunidade. Ninguém do BR45
disse uma só palavra. Então percebi que eles ou estavam assustados ou eram tão estranhos quanto eu
naquele lugar, algo que evidenciava que num mesmo espaço segregado há diferentes formas de
hierarquias sociais. Os moradores que perguntaram se sentiram satisfeitos com minha resposta e disseram
que estava tudo certo. Contudo, isso não era garantia de que outros moradores não se sentiriam invadidos
pela nossa presença, pois entre os barracos não havia uma “rua” no sentido de um espaço público, o que
havia eram pequenos e estreitos becos, vielas, que permitiam somente o acesso a pé. Elas se
35
Espaço comercial onde se alugam computadores com conexão de rede de internet. Normalmente, os
usuários pagam por pacotes que lhe garantem descontos na utilização dos computadores, que é cobrada
por hora, além de terem acesso a outros serviços como impressão de documentos. As Lan Houses se
tornaram um espaço relevante de encontro para as juventudes de classe popular digitalmente excluídas.
36
Orkut é um site de relacionamento público da empresa Google, que permite aos seus usuários criarem
comunidades virtuais. Essa ferramenta é utilizada por pessoas de várias idades, sendo bem popular entre
os jovens.
Breitner Tavares
82
entrecruzavam dentro de áreas que eram ocupadas especificamente pelas famílias. Ali estavam alguns
varais de roupa e utensílios de cozinha. Pelo chão ainda corria o esgoto, pois não havia qualquer infraestrutura para uma ocupação que tinha um caráter provisório e emergencial. Diante dessa imposição
arquitetônica, os rappers preferiram sair do interior da favela e tirar fotos apenas com ela ao fundo, já
“distanciada”.
Enquanto fazíamos as fotos, um grupo de homens se formou novamente, um pouco distante, eles
nos observavam atentos enquanto várias crianças brincavam ao nosso redor. Elas sorriam e tentavam se
comunicar conosco, demonstravam um certo desejo em serem fotografadas, mas não me senti à vontade
para fazer tal coisa, principalmente sem autorização de seus pais, que não estavam ali presentes para isso.
Cheguei a expressar verbalmente essa minha posição para o pessoal do BR45, pois alguns deles também
sugeriram que eu fotografasse algumas crianças pobres e sujas que estavam brincando ali. Eles não se
opuseram à minha perspectiva. Ao terminar a atividade, voltamos para a casa de Augusto para ver o
resultado. Durante nosso retorno, perguntei a eles se não haveria interesse de realizar um show para
aquela comunidade. Alguns disseram que a idéia era interessante, mas Bantu foi taxativo ao dizer que ele
era “um profissional” e tinha que ir onde seu público estava, portanto, para ele não seria conveniente
tocar ali, já que aquele público não se identifica de fato com o seu trabalho. Apesar de o grupo BR 45
defender uma cumplicidade com a periferia e os excluídos sociais, nesse contexto, o grupo manifestou
uma distinção em que se valoriza um público jovem, que tenha uma identificação específica com o hiphop, algo que não teria sido constatado naquela pequena comunidade de catadores de lixo.
Quando voltamos à casa de Bantu, baixamos as fotos no computador e eles as viram e fizeram
várias considerações sobre as imagens. Além disso, Bantu passou a me mostrar material sobre o BR45,
nesse momento, sua mãe, dona Maria, entra no quarto e me pergunta que tipo de refrigerante eu gostava.
Eu lhe disse que não precisava se incomodar comigo e que eu gostaria mesmo era de um pouco de água.
Ela deixou o quarto e logo voltou com uma garrafa pet com água parcialmente congelada e me serviu um
pouco num copo. Bantu aproveitou para mencionar que sua mãe ia a todos os shows do grupo, que
gostava e procurava participar de tudo. Minutos depois, dona Maria volta com refrigerante sabor laranja e
vários pães de sal e de queijo, então todos ali comeram. Enquanto eu agradecia à dona Maria, ela me
pergunta se eu bebia cerveja, eu acenei positivamente e daí ela disse que eu não poderia sair até seu
retorno. Após alguns instantes, ela volta com um copo de vidro, pois estávamos bebendo em copos
descartáveis e uma garrafa de cerveja gelada. A cada gesto, ela expressava sua generosidade anfitriã.
Antes que eu terminasse de beber o primeiro copo, ela retornava com a garrafa e punha mais cerveja, eu
passei a recusar, mas não adiantou. Notei que só Duarte e eu, além, é claro, de dona Maria, estávamos
bebendo. Tive a impressão de que seus filhos poderiam estar me reprovando, pois nenhum deles tinha o
costume de ingerir bebidas alcoólicas. Bantu chegou até a dizer que “ela é assim mesmo!”, num tom
depreciativo. Dona Maria voltava e passava a falar de suas dificuldades financeiras, mas que muitos
rapazes naquela comunidade preferiam ficar em sua casa a ficarem nos seus lares de casas bem
construídas. Ela estava fazendo alusão ao costume de ter sempre a casa cheia, independentemente das
dificuldades financeiras que houvesse. Na verdade, eu percebi que isso realmente se sustentava. Em
alguns momentos observei as pessoas fazendo uma vaquinha, arrecadando dinheiro para comprar bebida
Breitner Tavares
83
ou algo pra comer. Era a efetiva aplicação do sistema de dádiva de prestações e contraprestações. Ao
perceber isso, cheguei a me desculpar, pois naquela ocasião eu não trazia dinheiro comigo, mas dona
Maria disse que isso era desnecessário, já que eu estava “fazendo um bem” para os filhos dela. Então
chega seu Luis e se junta a ela. Maria falou de muitos jovens que ela conheceu que se perderam na
criminalidade e que, graças a Deus, seus filhos seguiam outros caminhos. Ela expôs um pouco a luta por
esse objetivo. Eu então comentei que os pais que lutam por seus filhos deveriam receber um prêmio por
isso. Maria disse que isso seria bom, contudo, Raimundo disse que isso era desnecessário, pois o
verdadeiro prêmio eram os próprios filhos. Eu realmente achei muito inteligente a resposta de seu
Raimundo, apesar de ter me sentido um pouco constrangido, afinal eu tinha feito o comentário jocoso
sobre a premiação dos pais. Sua resposta simplesmente reforçava a idéia do valor do sentido de
comunidade e integração dentro da esfera familiar, tudo isso à revelia de qualquer precariedade material
existente.
Algum tempo se passou, quando Maria disse que eu seria convidado para um churrasco na casa
dela. Eu lhe disse que ficaria satisfeito com o convite. Então, para minha surpresa, ela já havia decidido
que o churrasco seria no dia seguinte para comemorar o trabalho que eu e o BR45 tínhamos feito. Nesse
instante, descobri que dona Maria, como mãe, seria a melhor produtora que o BR45 poderia ter. Em
relação ao convite, eu o recusei argumentando já ter compromisso para o domingo. Ainda assim, ela
sugeriu que eu dormisse ali, naquela noite, já que segundo ela era tarde. Eu novamente recusei dizendo
que minha família estava me esperando e que, de fato, não estava tão tarde assim, afinal eram só 8 horas
da noite. Bantu concordou comigo, mas ela retrucou e disse que na próxima ocasião não poderia deixar de
fazer isso. A conversa esfriou um pouco e algum tempo depois, eu fui mais incisivo em dizer que iria
embora. Augusto ainda insistiu na minha permanência dizendo que eu estava “ruim” (bêbado). Eu de fato
não estava “ruim”, eles só estavam tentando me persuadir, além disso, eu já estava decidido. Eu aleguei
que minha família me aguardava. Bantu disse para sua mãe que eu tinha razão e que ela não deveria mais
insistir. Depois disso, agradeci pela gentileza de todos e logo em seguida fui embora para casa naquela
noite chuvosa de sábado.
Breitner Tavares
84
O perfil dos jovens do grupo BR4537
Augusto (Am)38 é cantor e uma das principais lideranças ao lado de Bantu. Augusto trabalha
como empresário do grupo e costuma atuar na produção de festas locais. Ele tem 20 anos, é negro e vive
em Ceilândia com seus pais. Além disso, menciona possuir uma namorada, apesar de não ter declarado
37
Esses dados foram, em geral, obtidos mediante a aplicação de um questionário ao final dos grupos de
discussão. Ocasionalmente algumas outras informações foram obtidas na observação participante durante
o trabalho de campo. Para maiores informações, sugere-se consultar o apêndice.
38
Durante a transcrição das entrevistas, foi utilizado um sistema de identificação dos jovens por ordem
alfabética em que a letra maiúscula representa a primeira letra do pseudônimo atribuído ao entrevistado(a)
e a segunda se refere ao seu sexo, “m” para masculino e “f” para feminino. O entrevistador foi
identificado pela letra “Y”.
Breitner Tavares
85
isso no questionário. Antes dela, teve outro relacionamento de quatro anos que resultou num filho que
tem um ano de idade. Augusto possui 7 irmãos, dentre eles, Bantu e Elmo, ambos do BR45. Possui ensino
fundamental incompleto e não frequenta a escola atualmente. Trabalha como oficineiro, coordenando o
grupo Rap Comando. Tem o rap como lazer preferido e está no grupo há 10 anos. Costuma se encontrar
com os outros integrantes em casa e na escola onde formou o grupo. Seu pai veio do Piauí, possui ensino
fundamental incompleto e trabalha como serralheiro. Sua mãe veio de Goiás e também possui o ensino
fundamental incompleto. Ela trabalha como cozinheira e empregada doméstica.
Bantu (Bm) é cantor e uma das lideranças do grupo. Ele tem 27 anos, é negro, sem religião e
vive em Ceilândia com seus pais. É solteiro, não tem filhos, possui 7 irmãos, dentre eles Augusto e Elmo.
Bantu possui o ensino médio incompleto e está fora da escola. Bantu realizou um curso profissionalizante
em vigilância (reparador predial) e está desempregado. Ele estava desenvolvento há dois meses atividades
comunitárias subsidiadas pelo Governo Federal no projeto Segundo Tempo, ministrando aulas de jiujitsu. Ele pretende cursar educação física. Seu lazer preferido é capoeira e jiu-jitsu e está no BR 45 há 10
anos. O grupo reúne-se 3 vezes por semana, em quadras de esporte. Bantu conheceu o rap e se motivou a
formar o grupo na escola através de uma oficina de rap, oferecida por um projeto chamado Jovem
Consciente, promovido por uma organização internacional.
Cenin (Cm) é cantor. Ele é o mais jovem do grupo, tem 17 anos, é negro, católico e vive em
Ceilandia com os pais. Ele é solteiro, não tem filhos e possui quatro irmãos. Possui o ensino médio
incompleto e está fora da escola. Cenin está desempregado e pretende ser cineasta. Seu lazer preferido é
praticar street ball (basquete de rua), está no grupo BR45 há dois meses e costuma se encontrar com o
restante do grupo na quadra. Ele conheceu o grupo no centro comunitário e na vizinhança. Seu pai é de
Belo Horizonte (MG), possui o ensino fundamental completo e trabalha como servidor público. Sua mãe
também é de Belo Horizonte (MG), possui o ensino fundamental incompleto e atua como dona de casa.
Duarte (Dm) cantor e um dos principais compositores do grupo, é o membro do grupo com
maior conhecimento em informática, além disso compõe as bases eletrônicas do grupo. Ele tem 24 anos,
é branco, católico e vive em Ceilândia com seus pais. É solteiro, sem filhos e possui quatro irmãs. Duarte
possui ensino médio completo e trabalha em manutenção predial, já realizou curso de informática e
pretende cursar sistemas de informação. Seu lazer preferido é cantar rap. Está no grupo BR45 há 11 anos,
ele se encontra com o grupo nos fins de semana, na casa de Bantu. Conheceu o grupo numa oficina de
rap, na escola, no projeto Se liga, Galera. Seu pai é de Caraíba (PB) e possui o ensino fundamental
incompleto. Sua mãe é de Goiânia (GO) e também possui o ensino fundamental incompleto.
Elmo (Em) cantor, 23 anos, é negro, católico, reside em Ceilândia com seus pais e tem 7 irmãos,
dentre os quais Augusto e Bantu. Ele é solteiro, não possui filhos e está ficando com uma garota
(namorando), apesar de não ter mencionado isso no questionário. Possui o ensino fundamental completo e
está empregado como instrutor de basquete no programa Segundo Tempo. Elmo pretende cursar
Educação Física, seu lazer predileto é jogar street ball. Além disso, ele participa de uma ONG há dois
meses, chamada Lutadores. Costuma se encontrar com os membros do grupo em casa e nas quadras de
Breitner Tavares
86
esporte locais, 3 vezes por semana. Ele entrou no grupo a partir de uma oficina para jovens num centro
comuntário, através do grupo BR45.
Figura 8 Sociograma do grupo BR45
A família contra o mundão: a formação do Grupo BR45
Durante a passagem inicial39 do grupo de discussão, foi lançada uma pergunta para o grupo para
obter sua impressão sobre a formação do BR45. O grupo BR45 menciona com satisfação que se
conhecem há quase dez anos através de uma oficina para jovens realizada na escola próxima as suas
residências. Naquela ocasião, em 1999, já existia vários grupos de diferentes localidades, dos quais
poucos seguem, atualmente, uma carreira profissional. O sentido de grupo é definido pela palavra
“família”, que é agregada ao nome BR45, portanto, “Família BR45”.
Am:
 (1)O BR45 é um dos poucos grupos que:::que teve o privelégio de nascer (.) de sair de uma
escola né? Hoje a gente vê várias ONGs incentivando oficinas de rap nas escolas(1). E a gente
tem o prazer de falar isso pra todo mundo: “o BR45 saiu de uma oficina de rap também”.
Então:: é:::, o grupo é tipo uma família, vai ficando, né? Vai ficando, vai ficando a família, o
grupo vai virando uma família (.) As pessoas que::: se dá mais certo umas com as otras é::: em
relacionamento elas vão ficando. Aí: mexer com ser humano é embaçado, que nem o pessoal
costuma dizer, é difícil mexer com ser humano e::: essa formação aqui foi, é, a que deu certo.
39
Para a transcrição das entrevistas foi utilizado um sistema de códigos que tem como objetivo valorizar
a carga expressiva da entonação de voz, bem como aspectos não verbais e gestuais que, de alguma
maneira, possam contribuir com o processo de análise dos dados qualitativos. Para facilitar a leitura dos
trechos das entrevistas, é recomendável consultar as normas de transcrição localizadas no apêndice.
Breitner Tavares
87
Em 2000 a gente(.), a gente formou(.), formou o grupo novamente e saímos da escola (.) agora,
pras ruas, né.
O emprego da palavra “família” serve para indicar uma relação que transcende a mera formação
de um grupo que tenha o interesse musical. Aqui está em questão a intimidade, a natureza desses laços. A
família é seletiva, portanto, ficam aqueles indivíduos que durante o processo de naturalização e
ressignificação de suas práticas vão se consolidando em torno de uma ideia, mesmo que provisória, de
uma unidade, de um grupo. Esse grupo é identificado através de um estilo que é pautado numa abstração
do que vem a ser o hip-hop. Contudo, essa abstração é reconstruída cotidianamente de forma tão
exclusiva quanto excludente a partir de suas práticas no que se refere ao gestual, aos trajes e ao tipo de
rap que produzem.
Isso se observa pela proximidade entre pessoas que se identificam, “se dá mais certo umas com
as outras”. Para o grupo, isso representa um desafio definido pela ideia de que é difícil lidar com o ser
humano, como indica o termo “é embaçado”. Portanto, a seletividade de diferentes indivíduos dentro de
um sistema de gosto estabeleceu uma formação, que o grupo considera como a que deu certo. Algum
tempo depois da primeira formação do BR45, a partir de um projeto educacional numa oficina para
jovens em 1999, os jovens decidem deixar o projeto pedagógico, que era restrito ao espaço da escola, e
passam a se apresentar em outros espaços, Eles vão “pras ruas”.
O sentido pedagógico associado à formação de um grupo de rap e o desejo de uma autonomia no
sentido de suas práticas criativas levam o grupo a assumir o discurso que os jovens, outrora alunos, não
estão mais no espaço da escola, que representa duplamente um espaço seguro de amparo, mas também
significa um espaço temporário num processo de socialização, de consolidação do jovem enquanto sujeito
social. O sentido de se “formar” e “ir para as ruas” implica a ideia de maturação, resultado de uma
seleção de pessoas que foi complexa, “embaçada”, mesmo que o grupo ainda mantenha uma estreita
conexão com a escola, agora eles assumem uma outra posição para além da condição de alunos, o status
de educadores comunitários constituídos dentro da “família”.
De fato, o sentido de “família” é empregado frequentemente para designar diversos grupos de
rap no Distrito Federal e em outras cidades. Esse termo teria o mesmo sentido de posse, de uma
agremiação de pessoas em torno de algum projeto, seja meramente estético ou de cunho assistencial.
O processo de interação social e criação do grupo se dá por escolhas individuais frente às
dificuldades tidas como próprias dos seres humanos. Constrói-se uma imagem do passado em relação a
outros grupos que participaram do grupo, mas que saíram por estarem envolvidos com o abuso de drogas,
como a maconha, e com a pichação.
Katula, Samado, Mec, @e vários
Em:
outros aí@. Aí ficou os cinco aqui, isso tinha mais porque a relação de ser humano é difícil. Uns
Breitner Tavares
88
queriam tá na pichação, outros queriam tá na maconha, outros (.) por incrível que pareça
assimila rap com droga ((ruído de carro de som)) pensa que rap e violência andam juntos, né?
Que o rapper tem que fumar um pra ser o rapper muito louco. Pra tocar umas músicas mais
(violentas). Muita gente fica indignado, só porque fuma um e o BR45 não. Tem até uma letra
que eu falo isso que:: uns procuram a glória né? A glória escrevendo o nome na parede. Muitos
chamam de pichação, outros falam que é arte. Eu não posso julgar, pichação é arte. Eu tenho
meu modo de me aparecer. Eu me apareço através do rap, eu falo meu nome através do rap, me
orgulho disso. E muita gente se orgulha também (.) né? Fazendo pichação, fazendo, outro se
orgulha fazendo grafite, outros fazendo bleique, break, e assim vai, né? (.) O BR45 surgiu dessa
maneira, e:::: através do nosso pensamento de fugir de drogas, muitos têm esse problema. Uns:::
entraram, outros conseguiram sair, outros tão nas droga até hoje, e a gente tá no rap, né? A gente
continua no rap e vamo ver o que vai dá (5).
Para o grupo, o uso de drogas e a disseminação da violência são aspectos usados frequentemente
para se definir uma imagem estereotipada do jovem, nesse caso, o rapper. Elmo considera que há uma
imagem de que o rapper precisa usar drogas para parecer louco perante os outros e tocar músicas
violentas. Entretanto, ele alega que o BR45 não tem essa postura, portanto, isso seria um fator que
causaria repúdio e surpresa em outras pessoas, o que denota um aspecto distintivo em relação a outros
grupos locais. O grupo alega que, como retratam algumas de suas letras, há pessoas que buscam ser
reconhecidas através da pichação em muros, o que seria considerado arte para elas. Ele não discute se isso
é ou deixa de ser arte, apenas reitera que seu modo de aparecer é através do rap, o que representa um
motivo de seu orgulho.
O pensamento do grupo está voltado para “fugir” das drogas, bem como de pessoas que têm esse
problema. Os jovens afirmam que algumas das pessoas que conheceram conseguiram sair das drogas,
contudo outros continuam envolvidos com esse problema. Paralelamente a tudo isso, eles continuam
envolvidos com o rap, que lhes permite a criação de um espaço alternativo em relação àquilo que é visto
como trivial e indesejável em relação a outros jovens que pertencem ao setor onde vivem.
É relevante assinalar que, no grupo, os três irmãos, Augusto, Bantu e Elmo, todos se abstêm de
usar drogas e têm em comum o mesmo pai, seu Luis. Ele, por sua vez, é um homem que vive um drama
pessoal relacionado ao alcoolismo, motivo de constrangimentos na região onde moram. No entanto,
muitos que frequentam sua casa vão ali, pois encontram um espaço de sociabilidade e, apesar do grupo
não fazer apologia ao uso de bebidas alcoólicas, muitos de seus amigos o fazem. Portanto, para o grupo, o
rap é definido de uma maneira essencialmente contrária ao abuso de drogas. O rap, nesse caso, seria um
contraponto, aquilo que garante integridade e convicção de uma escolha, uma aposta no futuro, que, nesse
caso, foi a abstinência. Elmo usa a expressão no final de uma de suas falas “vamu ver no que vai dar”,
que está relacionada à possibilidade de escolhas que o rap propicia e o sentido de determinação de levar
essas escolhas adiante, mesmo sem um conhecimento muito claro de suas implicações futuras.
Breitner Tavares
89
Ao continuar a discussão, o grupo define o hip-hop como uma assimilação de várias culturas.
Exemplifica-se essa condição através da capoeira, dado o seu status marginal no passado, teria passado à
condição de cultura ao ser assimilada como um patrimônio imaterial. Nesse contexto, o grupo faz uma
redefinição do sentido de cultura que consiste naquilo que é aceito em diversas escalas sociais,
especialmente aquelas que historicamente têm tido o controle sobre a definição de tais categorias, como o
mercado da indústria cultural ou o meio intelectual acadêmico, como já enunciavam os primeiros
trabalhos dos estudos culturais (WILLIS, 1977). Além disso, o hip-hop para o grupo, assim como a
capoeira, são postos num mesmo contexto em termos de status sociais. Ambas as manifestações estão
associadas à ideia de ser negro ou simplesmente de negritude e, segundo o grupo, só adquirem status de
cultura posteriormente. Nesse caso, não só para os negros ou pelo menos para parte deles, mas para uma
grande margem de consumidores interessados em consumir bens simbólicos marcados por uma estética
multicultural. Para o grupo, essas culturas são definidas como as mais fortes combinações no Brasil e no
mundo.
Y:
Como vocês interpretam o hip-hop? (todos se põe a pensar )) (2).
Bm:
Eu interpreto o hip-hop como uma (2), como se diz(2), como a assimilação de várias culturas,
né? Várias culturas. Por exemplo, a capoeira (2), ela era marginalizada (e) já virou cultura.
Cultura né? A capoeira vem da cultura como a música é cultura também. Como isso aí. O hiphop juntou (.) é uma das combinações mais forte que tem no Brasil. No Brasil não. No mundo,
né? No mundo porque o hip-hop é mundial, passa confiança. A combinação mais forte porque é
a única que trata, mexe com projeto social, mexe com isso, aquilo outro. E pra mim o hip-hop
passa confiança pra quem tá participando. Passa confiança né?
O grupo redefine a sua maneira, os sentidos do surgimento do hip-hop ao longo do tempo como
a combinação cultural mais “forte atualmente” e isso estaria associado a uma suposta relação desse estilo
com a criação de projetos sociais capazes de envolver o jovem negro, localizado em comunidades pobres,
em movimentos sociais no sentido de sua emancipação política.
Augusto afirma que, entre os anos de 1997 e 2000, antes do sucesso do grupo Troops, o hip-hop
era considerado como o break. Essa concepção seria algo cunhado pela elite que está aderindo ao estilo
através dos seus mecanismos de mercado e difusão cultural. Hoje, por outro lado, o break teria deixado
essa posição para que o rap cantado em inglês, chamado “rap gringo”, que tem letras que tratam, segundo
o grupo, de temas considerados pelo grupo como levianos, “besteiras”, ocupasse essa posição. Ele, em
verdade, considera isso como de pouca importância, pois ninguém no grupo sabe sequer inglês. Contudo,
o grupo, independentemente disso, gosta de rap gringo, especialmente por que ele próprio não
Breitner Tavares
90
compreende as letras, “ºeu não entendo mesmo, eu gostoº. Né?” como afirma Augusto em tom de
sussurro.
Am:
E o engraçado que de 1997 até 2000 e::: essa época que a gente tá, agora que o Tropa de Elite
estorou, antes de o Tropa de Elite estourar, o hip-hop era o break né? entre aspas na língua de: (.)
da:: (.) elite né? Tudo bem, eles tão aderindo isso, é bom, a gente gosta disso. Só que
antigamente o hip-hop era o break, né? Eles falavam. Hoje o hip-hop é aquela música gringa que
eles gostam de ouvir (.) Os gringos falando um monte de besteira. Não que eu não goste, eu
gosto bastante, ºeu não entendo mesmo, eu gostoº. Né? (1) Aí o povo achava que o hip-hop era a
dança, hoje eles acham que o hip-hop é a música, o break e o grafite é o rap e o dj são quatro
elemento que:: que::: formam essa cultura. E se você for prestar atenção, o hip-hop é uma das
únicas culturas que se encontra no mundo todo, entendeu? Tem muita gente que fala que o hiphop não é organiza::do, mas como é que uma coisa desorganizada pode chegar a tal
ponto?(2)Né? O hip-hop é uma cultura e a gente quer deixar bem cla:ro que o hip-hop não é
música, o hip-hop não é dança, o hip-hop é uma cultura aonde tem quatro vértices: rap, DJ,
break e grafite.
De fato, para o grupo, o que está em jogo é uma redefinição desse hip-hop, que faz parte de um
sistema de símbolos mundial, nos seus próprios termos. Isso se faz representativo para a autoidentificação
do grupo enquanto tal. Assim, o grupo se identifica com o “rap”, que nesse caso implica o “rap nacional”
em detrimento do “hip-hop” que possui um caráter mais fluido e está associado ao modismo que o grupo
não assimila. Ao mesmo tempo, o hip-hop, mesmo adquirindo uma identidade local e sendo considerado
como “não organizado”, consegue adquirir uma repercussão mundial, a partir de sua motivação para os
movimentos sociais nas suas manifestações estéticas definidas pelos quatro elementos: rap, DJ, break e
grafite.
Ao ser questionado sobre seu cotidiano no setor QNZ, o grupo se posicionou de forma a
generalizar os problemas que ali ocorrem. Para o grupo, em geral, não há na cidade condições para as
crianças e jovens terem acesso ao lazer. Faltam equipamentos públicos para essa finalidade. Essa
precariedade levaria crianças e até adolescentes a se envolverem com o crime, com as drogas e com o
alcoolismo, por falta de ocupação, de atividades. Diante da constatação de que no bairro não havia
nenhum projeto voltado para a juventude, o BR45 criou, por iniciativa própria, projetos sociais para a
comunidade com atividades, como oficinas de rap, jiu-jitsu, basquete, entre outras.
Y:
Como é que vocês veem a vida aqui no setor QNZ? Como que é o QNZ?
Bm:
 ((pigarro)) Bom, eu que eu vejo aqui na QNZ aqui, ou qualquer periferia X Norte, Setor Ø,
Ampliados. A gente vê muito mais é (.) as crianças sem ter o que fazer e nisso sem ter o que
Breitner Tavares
91
fazer, sem ter lazer. Não tem área de lazer aqui na QNZ aqui, eu acho que não tem muita área de
lazer na Ampliados também no X Norte. Isso coloca as crianças, coloca (.) até um adolescente
(.) coloca na vida do crime, na das drogas, do álcool. Entendeu? Não tem o que fazer. Por isso
que a gente inventa de colocar algumas coisas aqui pra colocar tipo as crianças no caminho
certo, no caminho correto. Como no. Colocar os projetos sociais, dá aula de jiu jitsu, street ball,
é:: basquete, capoeira, vai indo, aula de rap, entendeu? Pra tirar. Pra ajudar a tirar essas crianças
desse caminho aí. É aqui tá escasso, isso aí porque aqui o povo só::: eu acho que o povo tá
investindo mais em droga (.) o pessoal ali pra baixo ali. O pessoal ali pra cima em álcool. O
pessoal só tá investindo (em si mesmo), só qué saber de embelezar sua casa, embelezar o carro,
comprar um carrim, deixar bunitim. Qué saber do deles. Que nem fala a Bíblia, só qué vem a
nós, ao vosso reino nada. Não que não tá olhando pelo menor que tá(1) precisando de alguma
coisa, que tá precisando de estrutura. Não querendo ajudar aquelas criança que tá precisando de
atenção, de carinho, de esporte, de lazer, de uma cultura na vida delas. O povo daqui da QNX ou
de qualquer tipo de periferia só qué tá querendo saber só mais (.) da vida deles, da vida deles,
não tá procurando ajudar o próximo. Entendeu? E a gente tá querendo ajudar o próximo com o
nosso jeito de agir. Colocando ONG, fazendo uma, uma combinação dos nossos talentos.
Dm:
Dando lazer, né?
Essas atividades ajudam, segundo Bantu, a evitar que as crianças se envolvam no caminho da
criminalidade e das drogas. Bantu alega que na QNZ há mais investimentos voltados para as drogas e o
álcool. Além disso, as pessoas estão mais voltadas a investir nelas próprias, em termos individuais e de
consumo, como comprar um carro, ou em valores estéticos, “andar bonitinho”. Bantu afirma que na QNZ
não há um interesse da população em oferecer carinho e estrutura de lazer para as crianças.
O grupo se afirma como uma entidade comunitária voltada para promover uma ação social em
seu setor de moradia. Para isso, seus membros se utilizam de talentos individuais. De fato, ocorre aqui a
tentativa do grupo em se engajar num trabalho social que tenta atingir uma frente relacionada ao direito à
cidade pelo viés do lazer, do esporte e do entretenimento, que é definido como “colocar no caminho
certo”. Essa postura reflete a própria história do grupo, que surgiu de um projeto assistencial há dez anos.
Bantu intervém e exemplifica o tipo de trabalho que o grupo realiza através de oficinas de lazer, como de
capoeira, street dance, rap e futebol. Isso deixa as crianças, adolescentes e até mesmo adultos “mais à
vontade” na periferia onde moram, pois isso torna a comunidade mais “segura” para se viver. Estar “mais
seguro” aqui implica um sentido mais amplo do que o policialesco. Esse tipo de medida teria a
capacidade de resolver tensões sociais em torno da violência gerada pelo ócio materializado pela “falta de
lazer”. Portanto, a Educação pautada em vínculos solidários é difundida por atores sociais que
compartilham do mesmo espaço de sociabilidade.
O BR45 retoma mais adiante a discussão sobre o que definiria um rapper, para além da
exterioridade da indumentária e da música propriamente dita. De fato, ocorre que ser rapper implica ser
Breitner Tavares
92
solidário, no sentido de compartilhar os valores de positividade para sua comunidade local. Algo que
possa ser um meio de tirar as crianças do mundo das drogas, “do mundão”. Nesse caso, podemos utilizar
o termo “mundão” em oposição à “família”. Enquanto “mundão” denota um distanciamento da relação de
laços vicinais de amizade e cumplicidade, que levam o jovem a se envolver com aquilo que é considerado
negativamente para aquele grupo, como as drogas e a criminalidade numa vida “mundana”, por outro
lado, pertencer à família é fazer parte do grupo e participar de uma rede de apoio mútuo. O grupo
considera que um rapper não canta a verdade porque isso pertence ao campo da relatividade da
indefinição, pois “cada um tem a sua verdade” definida em função do que vive. Ele exemplifica ao dizer
que não se pode cantar a periferia se não se vive na periferia. Isso não seria cantar rap. Elmo recorda de
um outro grupo da QNZ, o Resistência Periférica, que define rapper como aquele que se envolve com as
lutas de sua comunidade. Finalmente, ele diz que um rapper se define pelo que fala e faz, principalmente
pelo que faz, pois, segundo o grupo, é com a ação que se mostra o verdadeiro caráter.
Em:
E essa preocupação nossa de passar o que a gente aprendeu, isso sim é ser rap. Ser rapper não é
subir no palco e fazer peso(.) cantar a verdade, porque cada um que canta rap é o que vive, né?
Exemplo (
) ele não vai falar coisas da periferia se ele não vive na periferia? Isso
não é cantar rap.Cantar não é falar o que você vive. Cantar (rap). Eu quero ver ser um rapper.
Essa palavra foi dita pelo pessoal do SR e até hoje eu não esqueço disso. Eu quero ver você, (.)
você bater a perna e dizer eu sou um rapper, quando o povo tiver derrubando uma escola na sua
comunidade e voce tá lá no meio, não deixa (derrubar) eu não vô deixá. Entendeu? Fazê o
mutirão, chegar com o pessoal. Eu não vô deixá. Eu quero ver você ser um rapper na hora de
você passar pra ele algo que você sabe, algo que você entende, que você tem certeza, que vai,
tira do caminho das drogas, do caminho que o mundão oferece na verdade, né? Ser rapper não é
apenas você levar uma verdade apenas que você vive. Ser rapper é você agir, é você ajudar a
comunidade, é você::: é você::: falar, fazer, né? Principalmente fazer. Porque o agir é o que
mostra o seu caráter. Que você é um rapper ou não.
Os membros do grupo BR45 consideram que, além de dinheiro e fama, é importante representar
a comunidade. Ele diz que através do “microfone”, ou seja, através de argumentos pode-se “evangelizar”
as pessoas. Isso implica em se reconhecerem enquanto atores políticos que podem, através da estética,
imprimir novos valores na sua comunidade.
O rap pode influenciar o uso das drogas, consideradas como o lado mal. Descreve-se essa
situação ao mencionar letras que falam em ser bandidos ou o chefe da máfia, isso estimularia crianças a
se identificar com a postura gângster, ou seja, daqueles identificados com a violência como mecanismo de
interação social.
Breitner Tavares
93
AM:
É representar. Saber representar a comunidade né? Porque:: não adianta a gente:: (.) ficar
cantando rap e representando e só querendo fama e dinheiro e não se preocupando com a
comunidade, se preocupando com a área que a gente vive. E::: eu acho também que quem tá com
o microfone na mão tem o poder de evangelizar as pessoas. Se a gente quiser levar o pessoal
pro::: lado mal.
A vida na periferia não é feita só de tristeza. Há os momentos de confraternização com a família
e os amigos. Ali existe um tipo de política que está pautada simplesmente em ações pontuais em datas
comemorativas. Para o grupo, essa é uma postura equivocada, pois se deve de fato “cuidar da periferia
todo dia”, completa Augusto em um tom discreto. De fato, assumir um compromisso no sentido de uma
missão permeia a fala do grupo, que mais adiante discute as possibilidades do que é viável a ser feito para
ajudar a comunidade, mesmo sem dispor de recursos financeiros. Fala-se em “arrumar a rua”, torná-la
mais “bonitinha” para se retirar a visão “velha e feia”. O grupo propõe ações como ajudar os vizinhos a
capinar, ensinar capoeira, ligar um aparelho de som e realizar uma festa ou convidar as crianças para a
realização de uma palestra, essas seriam, portanto, algumas possibilidades de se ajudar a periferia. Os
jovens ainda mencionam que a aquelas pessoas que dispõem de recursos poderiam realizar doações para
comprar material escolar para crianças necessitadas.
Em:
O rap também (é alegria), a vida na periferia não tem só tristeza, não tem só tristeza. A gente
também tem nosso momento de alegria, o momento de confraternização com a família, com os
amigos que nem a gente tá aqui reunido aqui.
Bm:
Tem a política é isso aí. Não tem só o momento da periferia que é estragada, só tem violência,
droga rolando. Não(.). Tem o momento de alegria também. O momento de confraternização.
Tipo o pessoal só se une pra se confraternizar, se une, pra tipo fazer caridade, tipo no natal,
reveillón, dia das crianças, dessas coisas, só em datas: datas marcantes. Não. A gente tem que
procurá cuidá da periferia(1)
Am:
 ºtodo diaº.
Bm:
 Todo dia. Todo dia. Oh. O que que eu posso fazer? Eu não tenho grana. Mas o que que eu
posso fazer pra ajudar essa área, essa rua aqui? A gente pode fazer pra ajudar essa rua aqui. Que
é fazer, pra ficar mais bonita, a rua, pra tirar essa visão, véia feia. Ajudá os vizinhos a capinar
aquelas planta, faz um grafite aqui, ensina uma capoeirinha, põe um sonzinho aqui, faz uma
festinha, ou então chama um monte de crianças, chama as crianças e dá uma palestra sadia. Isso
é ajudar a periferia ajudar a comunidade, tem um monte de criança carente doida pra entrar na
escola, nu tem condições de comprar material, a gente tem que ajudar. Ajuda oh, pô ele não tem,
eu tenho condições, tá sobrando aqui em casa, vamos doar praquele pessoal ali.
Breitner Tavares
94
Durante o diálogo, Bantu fez muitas intervenções e por isso passou a chamar a atenção dos
outros para que também participassem do diálogo, diante disso, o grupo abordou outro aspecto no que se
refere ao estilo rap. Elmo em seguida toma a palavra e faz um contraponto ao discurso assistencialista
feito anteriormente, ao chamar a atenção para a necessidade das pessoas que vivem na periferia, diz que
devem “valorizar o rapper”, especialmente aqueles envolvidos com suas comunidades. Ele argumenta
que as pessoas que vivem na periferia só valorizam aqueles rappers que já estão inseridos na mídia. Isso
remete ao problema do “modismo”. Há que haver uma contrapartida da comunidade em relação ao apoio
ao rapper. Deve-se demonstrar um reconhecimento por suas ações em prol das comunidades.
Am:
@Né Em? (2), Bora Em vamos falar aí pô.@ ((bate palma)).
Em:
ºNãoº. Eu acho, no meu ver, também ((que)) a periferia também tem que dá valor nos rapper
da (periferia) quem tá movimentando a periferia, entendeu? A periferia só dá valor quando você
tá (.) você tá na mídia, você tá tocando
Am:
 modismo.
O reflexo do castelo no lago do guerreiro: a relação de jovens com a família e conexões
intergeracionais
Y lança uma pergunta sobre a relação com as pessoas mais velhas. De fato, o grupo considera
que as pessoas mais velhas têm uma grande capacidade de influenciar as mais jovens. Bantu considera
que as pessoas mais velhas podem influenciar sua visão de mundo positiva e negativamente a partir de
suas referências, assim como “um espelho” elas têm maior experiência de vida em relação às dificuldades
superadas, diante disso, elas já consolidaram uma visão de mundo daquilo que se pode chamar de “seu
castelo”. Além disso, o grupo considera importante a contribuição das gerações mais velhas no sentido da
construção de sua autoimagem enquanto jovens ao associar as pessoas aos professores. Nesse caso, os
Breitner Tavares
95
jovens fazem menção à vida para além da esfera familiar no espaço que se considera como “mundão”.
Para eles, a vida no “mundão” também já é por definição cheia de ensinamentos, definida como
“professora”. Portanto, parte da valorização da companhia das pessoas adultas está no sentido de que elas
detêm, segundo sua interpretação, o conhecimento acumulado das regras do mundo social. Apesar de o
grupo estar em grande parte de seu tempo na companhia de outros jovens em sua vida diária, considera-se
que aí ocorre uma maior propensão a influências indesejáveis, como o uso de drogas, definidos como “o
caminho inverso”.
Y:
Como é que é o relacionamento com seus irmãos e irmãs? E eu aproveitaria também pra
perguntar como é a relação de vocês com os mais velhos?
Bm:
Eu no meu ver eu vejo nos meus olhos assim que a pessoa mais velha é::: dependendo da
pessoa é um espelho pra mim. Porque eu vejo a pessoa mais velha, aquela pessoa que sofreu a
vida toda e fez o seu castelo, seu mundo cresceu e eles são mais experientes. Eles têm muita
coisa boa pra passar pra gente, muita coisa ruim também, entendeu? Porque eles têm
experiência. Eu vejo a pessoa mais velha como::: como professor, um professor. Porque a vida é
professora. A vida, a gente já é professora. Porque quem vive já aprende tudo na vida no
mundão. Mas a pessoa mais velha (tem experiência). Eu prefiro tá mais perto de pessoas mais
velhas conversando com ela que eu aprendo muito, que das pessoas mais novas que ao invés de
me guiar pro caminho mais certo, me guia pro caminho inverso né? Pro caminho contrário. Que
deixa a gente (
) tem a pessoa mais velha (.)
Em relação ao relacionamento entre irmãos e irmãs, o grupo considera que o relacionamento é
bom, o que indica um sentido de integração, mas que é ocasionalmente interferido por brigas e discussões
entre seus membros. Bantu diz que há as discussões entre irmãos, especialmente com relação a Augusto,
que é o mais novo e o único que já possui um filho. Contudo, o que prevalece é a amizade. Muitos dizem
que quase não há brigas na família e que é chamada pelos amigos de a “família perfeita”. Nesse contexto,
os laços parentais estendem o sentido de integração e família, pois o grupo menciona que, de fato, alguns
amigos, mesmo não pertencendo à família, frequentam sua casa e são tratados com os mesmos vínculos
de intimidade como de uma família comum. Eles comem, dormem, passam boa parte do tempo juntos.
Eles recebem aquilo que ficou definido como “tratamento de irmão”.
Y:
E a relação entre irmãos e irmãs como é que se dá?
Bm:
 Tem as discussão. Que a gente discute mais com esse cabeça dura aqui ó @(.)@. Cabeça dura
aqui mas é tranquilo. A amizade aqui ( ) um monte de gente fala que::: ( ) sei lá nem parece
que vocês brigam. Que nem o Cabeça quando chegou aqui, achou aqui em casa aqui. Achou que
a gente era uma família perfeita. Nunca viu a gente discutindo nada. Ele chegou aqui em casa
Breitner Tavares
96
aqui. Viu a gente brincando, brincando um com o outro, conversando. Aí quando chegou ali na
feira, ele chegou ali na feira, ele viu eu e o Ronin((discutindo)). Ah sim até que enfim eu
encontrei um defeito em vocês. Eu pensei que fossem uma família perfeita.
@()@ BM: O
Y:
Chico aqui não foi? Chegou bem assim e comentou isso aí. Por que é difícil a gente brigar, a
gente discutir aqui. Ainda mais () a gente como fala? A gente adotou esses dois aqui como
irmãos também, família BR45, que esse aqui ( ) não sai daqui ele mora no X Norte e deixa de
fazer a janta na casa deles pra jantar aqui, tratamento de irmão mesmo de fé, de coração mesmo
de fé. (2) Normalmente tu que fala pra caramba, véi. Eu bebi água de chocalho mesmo. @( )@
Bantu, representando a fala do grupo, considera que deseja trabalhar muito, pois seus pais são
“guerreiros”, especialmente seu pai, porque tem duas famílias, uma em Ceilândia e outra em Samambaia,
uma com seis e a outra sete filhos respectivamente. Ele teria assumido as duas como um “guerreiro”. Ele
menciona que seu pai sempre se mostrou receptivo com primos, amigos e vizinhos, ele teria “adotado”
todos. Ele acrescenta ainda que sua casa era considerada como ponto de venda de drogas, devido ao fluxo
contínuo de pessoas. Ele alega que, de fato, sua mãe sempre conviveu com a casa cheia de amigos, onde
todos se ajudam mutuamente, numa rede de apoio. Ele considera que sua casa é humilde fisicamente e
que isso lhe causa certo embaraço, mas pior que isso é tentar mostrar uma imagem que, segundo ele
mesmo, não corresponda com o que ele é realmente.
Bm:
(retoma o tema família) no meu ver eu pretendo trabalhar muito porque meu pai é guerreiro pra
caramba, minha mãe é guerreira, principalmente meu pai, porque meu pai tem duas famílias tem.
Af:
sete aqui.
Bm:
sete filhos aqui e:::
Af:
 mais seis lá.
Bm:
[mais seis lá na Samamba, tem mais seis, pra mim esse cara é guerreiro mesmo, assumiu as duas
famílias, sem tirar nem por, chegou, guerreou mesmo e eu não quero:::
Am:
 E adotou mais um.
Bm:
E adotou mais um, fora de adotar os primo, os filho e adota os vizin também. Né Cm? @(.)@
Adota os vizinhos e colegas entendeu? Muita gente já chegou a falar que a gente tava traficando
droga, que é um entra e sai direto, um entra e sai, aqui nunca fica vazio, aqui é um entra e sai
direto, muita gente achou que a gente trafica droga. Por que? Minha mãe sempre conviveu com a
casa sempre cheia, movimentada, e ensinou a gente, tipo assim, a ajudar o próximo mesmo que
você não tenha, ajudar o próximo ali, sem egoísmo, a pessoa entra aqui em casa, óh a casa é
humilde, a ponto de vez em quando chega um povo aqui, eu sinto até vergonha da casa, tá assim
mas eu vou mostrar uma coisa que eu não sou pra eles? Eu prefiro mostrar o que eu sou do que::;
mostrar coisa que eu não sou entendeu?
Breitner Tavares
97
A escolha da casa de Bantu enquanto um espaço de encontro dos jovens no setor onde mora
reflete aspectos de uma estrutura familiar não hegemônica. Por um lado, seu pai representa
simbolicamente duas famílias, a partir da imagem de “guerreiro” patriarcal. Contudo, o mesmo não
provém as condições materiais para uma habitação de acordo com as expectativas dos seus filhos, que se
sentem constrangidos “numa casa humilde”, mas que é aberta e receptiva a todos os seus amigos, que a
elegem como um lugar onde eles convivem em família, entre jovens e com pessoas mais velhas, como os
pais de Bantu.
Sobre o convívio familiar dos membros do grupo, aparentemente há certas descontinuidades em
relação à assimilação de papéis atribuídos pelos pais aos seus filhos. Duarte, por exemplo, alega que sua
mãe quer que ele imponha uma conduta moral a sua irmã, que segundo ele, “está naquela idade”, ou seja,
entre 16 e 17 anos, idade que supostamente remete a um maior interesse em estabelecer relações afetivas,
como: “ficar” e “namorar”. Apesar do bom relacionamento com sua irmã, ele considera que ela está
começando a “dar trabalho para seus pais”. Ele alega que não tem interesse em atender ao pedido de sua
mãe para que ele a “coloque na linha”, ou seja, para que ele imponha, enquanto irmão mais velho, o tipo
de comportamento moral que se espera de uma jovem de 16 ou 17 anos, porque isso, segundo ele, caberia
a seus pais. Nesse momento, Bantu faz um gracejo que deixa Elmo um pouco encabulado, todos riem e
mencionam que sua irmã nunca se impôs sobre suas ações, mas o riso de seus amigos remete a uma
ambiguidade, pois Duarte como irmão mais velho estaria abdicando de um papel patriarcal, ao não tentar
“pôr sua irmã na linha’. Por outro lado, ele não questiona o sistema de status relacionado à sexualidade de
sua irmã, pois ele admite que sua irmã causa “problemas” e que a disciplina em relação ao seu
comportamento é responsabilidade de seus pais.
Em:
Na minha casa mesmo só sobrou eu também, eu e minha irmã, meus outro irmão meu já casaram
tudo. Aí só tá eu e minha, mas o relacionamento da gente é bom, mas ela tá naquela idade.
Bm:
@(2)@.
Dm:
((Minha irmã já tem)) 16, 17 anos já começando a dar trabalho e tal, meus pais já tão
;começando a brigar com ela e tal. Aí minha mãe chega ni mim, qué cobrar de mim “Tu não faz
nada não? Você quer que eu chegue e fale?” Entendeu? Colocar ela na linha.
Em:
@Quando era tu ela não fazia nada@.
Dm:
Ela qué eu deixe minha irmã na linha. Eu não posso fazer nada. Eu não gosto de me intrometer
na vida entendeu? (
) Eu deixo pro meu pai e minha mãe, meu pai resolver. Mas o convívio
meu é tranquilo lá em casa, com meus pais, meus irmão.
Elmo também ri e faz um comentário em que considera importante aquela discussão que,
segundo ele, revela que, ao contrário do que se pensa comumente, o grupo não se identifica com uma
postura “rebelde”. Para isso, ele apresenta outro exemplo sobre sua família em que haveria uma certa
Breitner Tavares
98
dificuldade em convencer sua mãe a não ir aos shows de rap, pois seus pais insistentemente procuram
frequentar suas apresentações. O grupo alega que os shows são parte do trabalho que realiza, portanto,
não há como conciliar as apresentações com a presença de seus pais. Em função disso, há discussões
quando ela é impedida de estar presente, situação em que ela “fica estressada”, mas acaba aceitando a
situação, ficando “tranquila”. Por outro lado, essa assertiva, apesar de remeter ao discurso de integração
dos jovens, traz elementos que reivindicam a constituição de um ambiente específico para as práticas
sociais dos jovens. Em outros termos, isso significa que há um esforço deles de constituírem um espaço à
parte do espaço familiar. Em outros termos, as orientações coletivas se tornam uma performance
profissional, ela se torna parte exclusiva das trajetórias juvenis expressas pelo estilo rap voltado para uma
audiência específica, que não compactua necessariamente com a presença de adultos.
Em:
E por incrível que parece isso é importante né? É algo que o pessoal tem curiosidade pra saber
mesmo. Como um músico de rap, né? Considerado, considerado vagabundo, marginalizado
como eles convive, convívio com a família. É dez. Isso é bacana. Esse é um papo bacana de se
discutir.
Bm:
Eu acho que eles deve pensar que tu não dá certo com seus pais, que não dá certo com seus
pais.
Em:
Que você é um rebelde, a gente é aqueles rebelde. Né?
Em:
@Rebelde@.
Cm:
Pelo contrário (
Bm:
Aqui em casa a gente briga com minha mãe, pra ela não ir assistir nosso show. Que todo show
).
se deixa ela vai. Ela, meu pai. Todo show. Se deixar ela vai. Ela e meu pai. A gente fala: “Não
mãe, a senhora tem que entender que isso é um modo de trabalho nosso. É nosso trampo. A
senhora não vai levar a gente lá pra trabalhar no restaurante com a senhora, vai? Pra ficar lá
atrapalhando a senhora, vai? Então quando der a senhora vai” aí ela fica estressada, tranquila.
Por que ela gosta (
) e a gente aqui em casa também (
) totalmente unido, unido pra
caramba. Tem nossas desavenças, certo. Todo ser humano é um animal domesticado que nem eu
te falei aqui né? Tem momento que estora, tem otros que tem pavio curto, tem outros que é mais
calmo, outros ficam só comendo pelas beradas. Ser humano pra mim todo mundo é legal.
Durante o trabalho de campo, encontrei, de fato, a mãe de alguns dos integrantes do grupo BR45
em shows de rap. Ela estava normalmente bebendo cerveja e dançando, demonstrando estar bem à
vontade enquanto os jovens estavam preocupados com os detalhes da apresentação e os contatos que
desejavam fazer com o público e produtores para viabilizar sua participação em futuros shows, além
disso, notei que às vezes ela era deixada sozinha, pois os jovens se deslocavam para falar com outros
grupos e pessoas, num tipo de dispersão comum em festas desse tipo.
O relacionamento entre os jovens do grupo BR45 e suas famílias indica que os mesmos possuem
vínculos de proximidade resultantes do processo de socialização vivenciado por eles. Esse sentido de
Breitner Tavares
99
proximidade é expresso pela ideia de “castelo” que remete à maturidade e a “espelho” que influencia
indivíduos de gerações precedentes, mas que compartilham do mesmo espaço de convívio que, neste
caso, é a família. No ambiente familiar, pais e filhos encontram certa estabilidade moral, que é uma
alternativa a outros espaços sociais externos à família, definida como “mundão”, em que há múltiplas
influências que podem encaminhar para o caminho inverso.
A relação entre irmãos e irmãs é definida em termos formais por determinadas hierarquias. Elas
podem variar em função da idade, em que os mais jovens, “cabeças dura”, são orientados pelos mais
velhos, e em função do gênero, em que o irmão mais velho deveria intervir na conduta de suas irmãs mais
novas, “colocá-las na linha”, especialmente em relação a sua vida amorosa e, por conseguinte, sua
sexualidade. Contudo, essa assertiva é limitadora ao se observar que nas famílias dos jovens alguns dos
mais novos já constituíram família ou tiveram filhos antes de seus irmãos mais velhos, além disso, apesar
de um discurso patriarcal, de fato, as garotas têm mais possibilidades de interação frente a uma postura
liberal de seus irmãos mais velhos.
Uma estrutura familiar em que o patriarca, “guerreiro”, representa duas famílias, ambas
numerosas, associadas a vínculos familiares heterodoxos, irá criar condições para um ambiente onde
prevalecem laços de uma fraternidade que ultrapassam a unidade dos vínculos familiares, criando uma
atmosfera aberta, em que todos os amigos e amigas são “tratados como irmãos e irmãs”. Essa fraternidade
cria diversas possibilidades de comunicação entre as diferentes gerações em seus processos interativos.
Pais e filhos compartilham das mesmas experiências dentro do estilo rap. Contudo, tal integração é
provisória quando os jovens decidem estabelecer outros vínculos a fim de construir um espaço de
interação de membros de mesma idade, sem a presença de pessoas mais velhas, especialmente em se
tratando de seus pais.
Grupo Rap Comando: Rap é resistência: a gente fala o que a gente vê
Empreendedorismo social e estilo de vida
Descrição do trabalho no bairro setor QNZ
Desde o início de dezembro de 2006, eu estava decidido a retomar minha pesquisa, que havia
interrompido a mais de um mês, em função de outras atividades acadêmicas. Então resolvi buscar
informações sobre um grupo chamado BR45 do Setor QNZ da Ceilândia. Na verdade, eu já tinha algumas
informações sobre o grupo que chegou a se apresentar numa escola em que trabalhei no X Norte. Na
ocasião me aproximei do grupo e fiz contato, o que ocorreu por volta de 2004. Eu conheci um dos
integrantes do grupo, conhecido como Thiago, um pouco antes como capoeirista de um grupo da cidade.
Contudo, no meio hip-hop ele era chamado de Bantu. Eu cheguei a acompanhar as atividades desse
grupo, oportunidade em que conheci muitos jovens também ligados ao rap.
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Depois de conversar com várias pessoas em Ceilândia, eu cheguei à conclusão de que as rádios
locais possuíam uma função importante na difusão de novos grupos que produziam na cidade. Portanto,
eu resolvi começar a minha busca através da Doctor FM, a mais ouvida pelos jovens, com que tive
contato através da capoeira e da escola de ensino médio local. Ao sintonizar a rádio, logo descobri o
nome do seu radialista, Black Kart, bem como seu telefone. Ao ligar para Black Kart, apesar de ele não
ter o telefone do grupo, ele me passou o contato de um rapper, chamado Lebre, que talvez pudesse me
ajudar. Dessa forma, também liguei para Lebre, me apresentei como pesquisador e mencionei a figura do
Black Kart. Ele foi gentil e se prontificou a colaborar, informando o número de Liba, um dos membros do
Rap Comando; além disso, combinamos fazer uma entrevista, assim que fosse possível, pois Lebre alegou
que naquele momento estava de mudança para outro endereço.
Descrição do trabalho com o grupo Rap Comando
Com o objetivo de encontrar o contato para a entrevista com o grupo de rap na QNZ, eu liguei
para Liba. Eu me identifiquei como pesquisador e propus a realização da entrevista. Coincidentemente,
Liba disse que haveria uma atividade promovida por uma ONG, chamada Juventude Negra, na qual ele
trabalhava. Ele mencionou que poderíamos aproveitar o contexto da oficina para realizarmos a entrevista
naquele mesmo dia; Liba era, além de rapper, uma liderança local que coordenava uma oficina em que se
ensinavam rap e street dance para jovens da QNZ de 14 a 20 anos. De fato, fiquei surpreso, pois em
alguns casos levei mais de um mês para conseguir agendar uma entrevista, e, nesse caso, tudo foi
arranjado logo de imediato.
Combinamos de nos encontrar às 14 horas, daquele sábado, dia 09 de dezembro de 2006.
Durante nossa conversa ao telefone, notei algo curioso em sua fala ao dizer: “pode trazer a câmera e
filmar. A rapaziada vai tá toda lá”. Na verdade, isso ocorria sempre quando pensavam que eu estava
fazendo uma reportagem jornalística ou cinematográfica. Nesses casos, eu tinha que explicar a natureza
“sociológica” da minha pesquisa e, inclusive, o anonimato em nome da ética na pesquisa. Nesses casos,
alguns costumavam dizer que não haveria problema, outros já se sentiam mais à vontade para falarem de
assuntos mais “delicados”. Notei que o interesse de alguns grupos de rap por jornalistas estava
relacionado à sua tentativa de inserção no meio artístico, além da possibilidade de uma projeção social da
Juventude Negra, que oferecia recursos para o trabalho de oficineiro de rap, coordenado por Liba.
Às 14 horas, cheguei ao lugar combinado. Era um Centro de Ensino Fundamental, numa das
regiões mais pobres de Ceilândia, que atuava como um centro de práticas educativas desenvolvidas por
ONGs, como Juventude Negra e Juventude e Paz, envolvidas num projeto do Governo Federal, intitulado
Breitner Tavares
101
Segundo Tempo. Na QNZ, bem como em outras localidades pobres do Distrito Federal, eram
desenvolvidas atividades, tais como: artesanato de cestaria, pintura, capoeira, jiu-jitsu, rap e break.
Ao entrar na escola, observei que alguns garotos estavam pelo pátio aguardando o início das
atividades. Logo em seguida, um rapaz negro, de estatura média e robusto, 20 anos, se apresenta como
“Liba”, ao seu lado estava outro rapaz, branco, filho de nordestinos, 19 anos, conhecido como Rubão,
ambos coordenadores do grupo e membros de outro grupo de rap chamado Rap Comando. Havia alguns
garotos próximos que também cumprimentei. Em poucos minutos, re-expliquei a natureza da pesquisa,
disse que não se tratava de uma “filmagem”, como alguns esperavam, mas que eu havia trazido uma
câmera fotográfica e que poderíamos tirar algumas fotos ao final da entrevista.
Na escola, estavam ocorrendo algumas atividades ligadas a artesanato. O portão ficava aberto
para que houvesse o acesso da comunidade ao evento. Liba estava esperando a presença de alguém da
direção da escola para obter a autorização para ocupar uma das salas, pois a escola estava em meio a
preparativos para uma atividade comunitária chamada Festa da Família. Após a chegada da coordenadora,
imaginei que eu deveria me apresentar, mas ela nem sequer se deu ao trabalho de perguntar quem eu era
ou o que eu estava fazendo ali, nas imediações da escola, com um grupo de jovens adolescentes40. Por
fim, obtivemos uma chave para abrir uma das salas disponíveis. Além disso, a escola também cedeu um
aparelho de som para os jovens ensaiarem uma apresentação que ocorreria na festa no domingo próximo.
Entramos todos na sala e providenciamos um círculo com as cadeiras, para a realização do grupo
de discussão, enquanto isso, outros jovens chegavam, ainda sem entender muito bem o que ocorreria ali
naquela “quebra de rotina”. Liba, assumindo sua posição de liderança, solicitou que todos se sentassem e
se apresentassem, eu fui o último a fazê-lo. Aproveitei a oportunidade para falar a todos de minhas
intenções enquanto pesquisador. O grupo de treze pessoas era majoritariamente masculino, mas, no
grupo, também havia uma garota chamada Amanda (Af), de 19 anos. Posteriormente, chegou outra
garota, chamada Bruna (Bf), uma garota branca e punk-rocker41, que frequentava as oficinas, mas não
pertencia à família42. Ela, moradora do Plano Piloto, era estudante no curso de Artes Plásticas da
Universidade de Brasília (UnB) e desenvolvia um trabalho em umas das ramificações do projeto Escola
Aberta. Durante o diálogo com o grupo, Bruna usou dessa distinção social para não responder às
perguntas, ou simplesmente para se posicionar como “analista externa” ou “outsider” das respostas dos
40
De fato, em nenhuma das escolas em que estive presente, me foi solicitada qualquer identificação por
parte dos funcionários ou mesmo da equipe pedagógica.
41
O estilo punk-rocker caracteriza-se pelas calças justas, ‘skinny’, com botas militares e roupas de cor
preta com estampas com mensagens de protesto ou de bandas. Bruna estava usando um par de tênis
Adidas, o que já induz a uma outra variação estilística, uma redefinição. O estilo punk em Brasília atrai
mais jovens brancos das classes médias.
42
O termo família é utilizado de forma a se identificar o grupo. Por exemplo, Família Rap Comando. Em
outros contextos também se utiliza o termo posse para representar a organização de um ou de vários
grupos de jovens dentro do hip-hop.
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102
outros jovens. Além de Amanda, havia outra garota pertencente ao grupo, Carla (Cf), namorada de Liba,
mas ela não esteve presente durante a entrevista.
Em relação às características desse grupo, ele foi o mais numeroso com que já trabalhei,
aproximadamente 13 pessoas, e a maioria tinha menos de 18 anos. Havia alguns meninos, de dez a doze
anos aproximadamente, que estavam ali apenas como observadores, como amigos dos membros oficiais
do grupo Rap Comando.
Apesar das respostas terem sido mais “curtas” em algumas situações, a discussão foi adquirindo
força na medida em que todos foram adquirindo confiança na atividade desenvolvida. A princípio, Liba
aparentou um certo nervosismo ao tentar manter a centralidade das respostas. Ele procurou por diversas
vezes limitar a resposta em uma única frase e, em seguida, solicitar que eu apresentasse a pergunta
seguinte de modo que os demais ficavam sem se pronunciar. Em outros momentos, Liba apontava para
alguém solicitando sua consideração sobre a pergunta. Normalmente as respostas eram apresentadas
sequencialmente, no sentido horário. Isso se alterou nas mudanças de foco, quando alguns quebravam a
sequência tacitamente estabelecida e passavam a apresentar suas falas.
Apesar de terem sido contados treze participantes no grupo Rap Comando, apenas sete
integrantes responderam ao questionário. Os demais alegaram ser simplesmente amigos do grupo. A
estudante da UnB alegou estar ali simplesmente para desenvolver uma oficina e, portanto, não gostaria de
responder ao questionário.
Descrição dos participantes dos grupos de discussão Rap Comando
Liba (AM) líder do grupo, compõe as letras e organiza as apresentações, tem 20 anos, reside em
Ceilândia, tem um filho, 5 irmãos, vive com os pais, está fora da Escola, é oficineiro de rap, possui
ensino fundamental incompleto. Pai: mineiro, ensino fundamental incompleto, serralheiro. Mãe: mineira,
ensino fundamental incompleto, empregada doméstica, cozinheira em restaurante.
Bruna (Bf) observadora do grupo, tem aproximadamente entre 20 e 25 anos, mora no Plano Piloto, se
identificou como estudante de Artes Plásticas da Universidade de Brasília, e, apesar de ter participado do
grupo de discussão, não pertencia ao grupo Rap Comando. Ela apenas ministra oficinas para jovens como
um trabalho relacionado à ONG brasiliense Resistência Negra. Além disso, ela se recusou a preencher o
questionário de identificação dos jovens.
Bruno (Bm) cantor, tem 16 anos, reside em Ceilândia, não tem filhos, três irmãs, nasceu Pernambuco
(PE), vive com os pais, está fora da escola e desempregado, seu lazer preferido é hip-hop e bailes, faz
parte de outro grupo há quatro meses. Conheceu o grupo na vizinhança, encontram-se nos sábados e
domingos em casa. Mãe: ensino fundamental incompleto, doméstica, pernambucana; Pai: ensino
fundamental incompleto, carpinteiro, pernambucano.
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103
Carla (Cf) cantora tem 19 anos, mora em Ceilândia com os pais, tem dois irmãos, freqüenta a escola,
cursa o ensino fundamental, desempregada. Participa de um grupo de dança – street dance – há 3 anos,
está no Rap Comando há 3 meses, encontram-se duas vezes por semana (sábados e domingos) na escola.
Conheceu o grupo na escola. Mãe: ensino fundamental incompleto, doméstica. Pai: ensino fundamental
incompleto, pedreiro.
Carlos (Cm) cantor e compositor, tem 19 anos, nasceu em Ceilândia, não tem filhos, possui 3 irmãos,
vive em Ceilândia com os pais, está na escola, cursa o ensino médio, está desempregado. Aprecia aulas de
rap, street ball, está no grupo há 6 meses, se encontra com o grupo duas vezes por semana, na escola.
Conheceu o grupo na vizinhança, através de amigos. Mãe: ensino fundamental incompleto, dona de casa,
cearense. Pai: ensino fundamental incompleto, aposentado, cearense.
Manu (Mm) cantor, tem 17 anos, mora em Ceilândia, é solteiro, não tem filhos, tem uma irmã (Af),
católico, brasiliense, mora com os pais, possui ensino fundamental incompleto, está desempregado. Pai:
goiano, ensino fundamental incompleto. Mãe: goiana, ensino fundamental incompleto.
Amanda (Af) cantora e dançarina de street dance (b-girl), tem 15 anos, mora em Ceilândia com os pais, é
solteira, não tem filhos, tem um irmão (Fm), é católica, brasiliense, possui ensino fundamental
incompleto, está desempregada e deseja cursar artes cênicas ou medicina veterinária. Participa de outro
grupo de dança – street dance – há 3 anos, está no Rap Comando há 3 meses. Encontram-se duas vezes
por semana na escola. Conheceu o grupo na escola. Pratica capoeira. Pai: goiano, ensino fundamental
incompleto. Mãe: mineira, ensino fundamental incompleto, camareira.
Galego (Gm) cantor e compositor tem 15 anos, mora em Ceilândia há 3 anos, é solteiro, não tem filhos,
tem um irmão, é católico, gamense, possui ensino fundamental incompleto, deseja ser bombeiro militar.
Gosta de futebol e cantar rap, reúne-se duas vezes por semana (Sab-dom) na escola, conheceu o grupo
através do professor. Pai: tocantinense, ensino fundamental incompleto, pedreiro. Mãe: tocantinense,
ensino fundamental incompleto, empregada doméstica.
Rubão (Rm) cantor e disc jokey, alem de lidera o grupo junto com liba, tem 23 anos, é branco, católico,
vive em Ceilândia com seus pais. É solteiro, não tem filhos, possui 2 irmãs. Rubão possui ensino médio
completo e trabalha como pedreiro. Seu lazer preferido é cantar rap. Está no grupo há um ano, se
encontra com este nos fins de semana, na casa de Liba. Conheceu-o numa oficina de rap na escola no
projeto Juventude Negra. Tanto seu pai, como sua mãe possuem o ensino fundamental incompleto.
Formação do Grupo Rap Comando: envolvimento com estilo e o movimento hip-hop
Breitner Tavares
104
Y lança uma pergunta ao grupo sobre sua formação, ou seja, como os integrantes o compuseram.
Os jovens mencionam que o grupo foi criado há seis meses, a partir de um trabalho social mantido por
uma ONG local, chamada Resistência Negra. Os jovens, ao entrarem em contato com a ONG,
apresentaram interesse em desenvolver um trabalho em torno dos elementos do hip-hop, mais
especificamente em torno do rap. Eles definem a formação desse grupo, como menciona Liba (Am),
como a realização de um “sonho”, o grupo deveria ser como um “comando militar” com seu propósito
transformador, daí o nome Rap Comando.
Am: O Rap Comando foi montado há seis meses, tudo começou assim, eu trabalho com o projeto social
né, aí eu ganhei uma bolsa pra dar aulas de rap, ou o que seja, aí eu escolhi o rap, dar aula de rap eu
sempre tive vontade, eu sempre tive um sonho de montar um verdadeiro exército que você tá vendo
aqui. O exército não só eles que você tá vendo aqui, mas são os alunos que entram na aula, não é um
grupo, é o verdadeiro Rap Comando, é isso aí.
Y lança uma pergunta sobre o sentido de hip-hop para o grupo. Os jovens passam a apresentar
sua versão para a formação do hip-hop, definem a idéia dos quatro elementos que são: DJ, o grafite, break
e o MC. O grupo discute o que para ele representa um equívoco quanto à compreensão do hip-hop e do
rap. O primeiro seria a conjunção de diversos elementos estéticos, mas que atualmente é confundindo
como rap norte-americano. O rap teria ficado restrito ao sentido do que é cantado em português, ou seja,
o “rap nacional”. Eles mencionam uma história em que um rapper norte-americano que teria vindo ao
Brasil considerou o “rap nacional” como o rap mais autêntico, “verdadeiro”, devido ao seu apelo político
de denúncia das desigualdades sociais.
Cm:
O rap faz parte do hip-hop, mas tem muita gente que chama o rap gringo de hip-hop. A própria
música americana.
Am: Tem muita gente que gosta de diferenciar o rap gringo do rap nacional. Teve um rapper gringo que
chegou em São Paulo pra cantar e falou que hoje “eu conheci o verdadeiro rap, o rap brasileiro.
Esse que é o verdadeiro rap pra mim”.
Cm: Rap e hip-hop são duas coisas diferentes que não têm nada a ver.
Y lança uma pergunta sobre como é o cotidiano no setor onde o grupo vive. O grupo está
comprometido com a busca de seus objetivos, “correndo atrás”. Suas falas argumentam no sentido da
configuração de um grupo que compartilha das mesmas experiências geracionais. Há aqueles que sofrem,
mas o grupo tenta agir como uma família. Os jovens comentam que se algum integrante no grupo está
“feliz”, todos se sentem “felizes” e, por outro lado, se alguém está “triste”, todos também sentirão
“tristeza”. Para eles, independentemente das dificuldades, eles se mantêm unidos. Essa orientação que
conduz o comportamento coletivo do grupo define um sentido mais abrangente para o rap, considerado
por Liba como “resistência”. O sentido da resistência para o grupo é descrito a partir da potencialidade
de mobilização que o rap propicia aos jovens como meio de expressão do que eles vêem.
Breitner Tavares
105
Uma das razões para a mobilização do grupo está em se buscar estratégias para enfrentar a
violência com a qual eles convivem na região em que moram. Essa violência, segundo eles, pode se
manifestar de diversas formas, pode estar relacionada ao fato de serem negros ou não terem estudado,
aspectos que explicariam situações de humilhação.
Y:
Como é o dia-a-dia aqui na QNZ?
Am:
O dia-a-dia aqui na QNZ é como todos os outros dias, todo mundo correndo atrás. Tem uns que
sofrem, os sofredores, e a gente somos uma família. Um tenta ajudar o outro. Se você tá feliz, eu
tô feliz com você, se você tá triste, eu tô triste com você e assim por diante.
Gm:
Não importa a dificuldade, mas a gente tá junto.
Bm:
Rap é resistência.
Cm:
Também através do rap a gente tenta dizer tudo o que a gente vê que a agente convive, a
violência que a gente sofre às vezes por ser negro ou não ser bem estudado. Tem pessoa que que
aproveita que a gente não tem estudos técnicos pra humilhar a gente. Na verdade pra gente que
tá tentando fazer algo verdadeiro. A gente tá aqui lutando, buscando apoio. Eu tenho o meu
grupo, mas eu tô aqui também ajudando o Rap Comando e ao mesmo tempo eu tenho ajudado
todo mundo. ((
)) A gente tá tentando mobilizar todo mundo aqui na periferia, pra ter mais
gente no rap. Quanto mais gente tiver no rap melhor ainda vai ser pra gente.
Para o grupo que compartilha da mesma situação de classe e experiência geográfica, o rap é um
meio para arregimentar outros jovens para uma mobilização na periferia para a construção de algo
autêntico, definido por eles como “verdadeiro”. O rap é instrumento que permite ao grupo avaliar as
condições sob as quais estão submetidos e que tipo de agenciamento pode estabelecer no sentido de
enfrentamento dessas condições. Os jovens narram em suas letras situações que envolvem a pobreza e a
violência que os atinge na região onde vivem. Portanto, o rap é definido simultaneamente como
diagnóstico, projeto e o próprio sentido da existência do grupo. Em grupo os jovens estabelecem suas
estratégias, a partir da subjetividade e da dimensão lúdica que o rap lhes oferece como meio de inserção
no espaço público e concorrencial. Isso implica agir enquanto jovens empreendedores, participar de
shows em espaços públicos, além de tentar buscar algum patrocínio para a produção de um CD ou vídeo
do grupo. O Rap Comando é estruturado por alguns jovens que, inclusive, advêm de outros grupos que
estão engajados na formação de um coletivo maior, o “Comando”, que usa o rap para demonstrar o que
há de negativo e positivo no contexto existencial do grupo e de sua comunidade local.
Y lança uma pergunta sobre o relacionamento do grupo com seus pais. Liba quer saber se a
pergunta é sobre a relação antes ou depois do envolvimento dos membros do grupo com o hip-hop. Y
responde que os dois momentos são importantes. Diante disso, o grupo informa que, de modo geral, o
relacionamento familiar não é afetado por seu envolvimento com o rap, contudo, os jovens admitem que
houve inicialmente uma certa resistência e até mesmo uma interpretação negativa dessa escolha com
Breitner Tavares
106
relação ao estilo hip-hop. Os pais dos jovens associavam o estilo hip-hop a um comportamento típico de
bandidos, “coisa de bandido”. Para eles, quem cantava rap era bandido. Os jovens argumentam que, de
fato, cada um tem seu estilo, “ninguém é parecido com ninguém”, e independentemente do estilo, seja
“forró” ou “pagode”, qualquer um pode ser bandido. Os jovens associam estilo à crença religiosa, ao
mencionar que deve-se ter dúvida até mesmo da igreja.
Am:
Graças a Deus, graças a Deus, meu relacionamento é ótimo com a minha família (1) no
começo: tinha aquela né, meus pais olhavam rap como ((coisa)) de bandido, Quem cantava rap
era bandido. Não tanto no rap quanto no pagode e no forró, seja lá qual for o estilo qualquer um
pode ser bandido, até na igreja você tem que ter dúvida. Ninguém é parecido com ninguém, cada
um tem seu estilo. No começo rapaz, eu nem queria cantar rap, eu subia no palco e queria cantar
que nem o Michael Jackson, quebrava geral e só queria saber de agarrar as mulheres, sério. A
partir de hoje ((
)) eu comecei a entender o que que é rap, agora eu canto rap desde de 1994.
Eu comecei a entender o que que era rap agora, agora eu posso virar pra você e falar “agora eu
sei fazer rap” porque rap não é so subir no palco e falar que canta não. Rap é você correr atrás.
Rap é você fazer uma parceria com os outros, montar um projeto com os meninos entendeu, rap
não é subir no palco não, quem começou a cantar, quem lançou o rap no Brasil o rap é correr
atrás, não é não, Rubão?
O grupo redefine rap como uma forma de engajamento, alguns jovens consideram que só
compreenderam o rap muito recentemente, eles consideram que no passado a única intenção era de
promover entretenimento, de “dançar como o Michael Jackson”. O hedonismo era o elemento norteador
do habitus juvenil do grupo. O que importava era o flerte e a paquera com as garotas. Por outro lado, o
grupo busca outras referências para sua conduta social. O envolvimento com o rap ultrapassa o sentido do
mero entretenimento ou a performance no palco. A estrutura de habitus do grupo é definida pela seu
comportamento político voltado para a elaboração de estratégias de enfrentamento da pobreza urbana
dentro de uma lógica comunitária definida pelos jovens como “correr atrás”.
Os jovens, de um modo geral, relatam que suas famílias, apesar de manifestarem certa
desconfiança em relação ao estilo escolhido por seus filhos, também depositam confiança e apoio a seu
esforço para se tornarem cantores de rap. Carlos (Cm) menciona que sua família nunca o discriminou
alegando que rap seria coisa de malandro. Ele admite que quando iniciou a cantar se sentiu “emocionado”
pela aceitação de sua família em relação a sua escolha. Sua família lhe disse que se esse era seu desejo,
ele deveria ir em busca de sua realização, além disso, todos queriam acompanhar cada detalhe de sua
produção, como letras e apresentações públicas. Ele alega que o esforço para a mobilização dos jovens
através do rap, chamado de “luta”, está voltado para o bem-estar deles mesmos e, além disso, é um
indicativo de que a associação à malandragem não se sustenta, “coisa de malandro, isso não existe não”.
Breitner Tavares
107
Segundo os jovens, há uma discussão entre eles e suas famílias sobre o envolvimento com a
música e eventual possibilidade de inserção num circuito profissional do grupo de rap. Em relação a isso,
alguns pais criticam a escolha de seus filhos sobre a remota possibilidade de sucesso profissional pela
escolha de se trabalhar com o rap comercialmente, devido ao fato de o mesmo não obter a mesma
visibilidade no mercado como outros ritmos musicais produzidos por jovens da classe trabalhadora, como
o pagode. Contudo, os jovens contestam tais assertivas, alegando que gradualmente estão adquirindo
notoriedade na região onde vivem, em meio a juventude, através dos trabalhos sociais realizados através
do rap, definido pela expressão “pessoal chega na rua, pega na (nossa) mão e comprimenta”.
Para os jovens do Rap Comando, apesar de não haver um reconhecimento na forma de capital
econômico pelas apresentações que realizam em locais públicos, como escolas, há por outro lado o
reconhecimento local de outros jovens que se identificam com a música do grupo. Isso, por sua vez, gera
um prestígio social que mantém os vínculos de sociabilidade do grupo em função do estilo hip-hop.
Diante dessa discussão, o grupo recorda-se de uma ocasião em que uma vizinha chamou a
polícia para acabar com uma festa que os jovens estavam realizando em uma casa. Eles ficaram
apreensivos, entretanto, comentam que os policiais ficaram a seu favor e que a festa poderia seguir em
frente, ao menos até o horário permitido, 10 horas da noite. Quanto à mulher autora da denúncia, ela
poderia reclamar o quanto quisesse, pois a polícia não faria qualquer intervenção até aquele horário. Esse
comportamento da polícia foi interpretado como um indicativo de que as coisas haviam mudado no
tratamento que costumava ser destinado a eles. Essa mudança no tratamento da polícia é definida por
Rubão como um aumento da aceitação porque o rap tem se popularizado, “chegando com tudo”.
Rm:
Meu pai falava que rap não dava resultado porque era algo que não estava na mídia como
pagode. Mas depois que a gente insistiu o pessoal passou a nos conhecer e quando chega na rua,
chega, pega a mão e cumprimenta.
Am:
Teve um tempo que chamaram foi a polícia pra gente, barraram mesmo. Sabe que o PM falou?
((que nada até 10 horas ((da noite)) ela pode ficar reclamando à vontade passou ela (( uma
vizinha descontente com o barulho da festa)) pode chamar a gente. Qué sabe a coisa hoje mudou
totalmente.
Rm:
hoje em dia tá mais aceito. Por que o rap também tá chegando com tudo.
Em relação a um reconhecimento positivo do grupo envolvido com hip-hop, não há um consenso
absoluto dentro do próprio grupo. De fato, uma das metáforas de foco do grupo continuou a girar em
torno da associação dos jovens com o estilo hip-hop. O próprio grupo reconhece que a aceitação da
família em relação a sua escolha ocorre a partir de uma interpretação diferente do estilo, eles “vêem de
um modo diferente”, porque “pegaram outro horizonte”.
Rm:
Na maioria das vezes, os pais incentivam muito. Eles veem de um modo diferente, mas por
causa das roupas folgadas e tudo mais aí eles pegam o horizonte de que os caras é bandido e
Breitner Tavares
108
tudo mais. Antigamente os malandros usavam roupa folgada, mas graças a Deus meus pais
nunca me criticaram por andar com as pessoas que curte rap e tudo mais, mas tem sempre aquela
desconfiança, será que eles vai fazê isso ou aquilo, eles sempre perguntam entendeu? Graças a
Deus meus pais sempre apoiaram.
O estilo hip-hop, compreendido no seu habitus corporal, com a forma de se vestir e gesticular, é
um dos aspectos que geram uma rejeição por parte dos pais em relação à escolha dos filhos. As roupas
folgadas, segundo o grupo, antigamente eram utilizadas por malandros e seriam, portanto, a principal
razão para o preconceito. Além disso, apesar da concessão dos pais em relação ao envolvimento dos
filhos em grupo de rap, permanece uma relação de desconfiança no que se refere às possíveis ações dos
jovens, base para questionamentos constantes de suas atitudes.
Sobre a construção da imagem do grupo construída e apresentada aos seus pais, os jovens
argumentam, em primeiro lugar, que é importante se “passar uma boa impressão”. Dessa forma, um
jovem pode conviver com outros que fazem coisas consideradas erradas. O que importa é demonstrar que
apesar das companhias, o jovem não se envolve em tais “coisas erradas”, portanto, “passar uma boa
imagem ajuda”.
Cm:
A coisa anda também, se você passa uma boa impressão pra eles, que pode ter, você pode até
andá (.) com os cara que faz coisa errada e tudo, mas se você mostra pra eles que você andando
mas não tá fazendo (.) com certeza eles vão te apoiar. Que nem lá em casa ((meu pai)) já ajuda,
nunca discriminou. Eu penso assim né? Se você passa uma boa imagem, ajuda.
Em contraposição a esse discurso da criação da “boa imagem”, o grupo afirma que alguém não
pode simplesmente fazer o que quiser, “fazer o que ele faz”. Argumenta-se em favor de uma ética do
trabalho, em que o jovem deve também estudar e produzir economicamente. O grupo desmistifica a idéia
de um sucesso fácil como cantor de rap. Segundo ele, muita gente inicia uma nova atividade e abandona
outras ainda em curso, pois muitos acham equivocadamente que o rap seja uma atividade rentável, mas
isso não corresponde à verdade. Desta forma, deve-se encontrar o rap através do trabalho. Um trabalho à
parte será responsável pelo financiamento da produção musical no rap, como, por exemplo, um
videoclipe.
Rm:
O cara não pode parar de fazer o que ele faz, tem que trabalhar, estudar, entendeu? Porque muita
gente começa fazer uma coisa e larga as outras entendeu? O cara para de estudar, de trabalhar só
pra ficar no rap entendeu? Por achar que o rap dá dinheiro. ((Ele)) tem que encontrar o rap com
Breitner Tavares
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seu trabalho, com suas coisas. Fazer com que ele possa sustentar o rap, porque o rap você quer
fazer uma música, um clipe, você tem que pagar né?
Alguns membros do grupo aproveitam para se orgulhar de sua trajetória, pelo seu envolvimento
com o rap que lhe provém o sustento. Liba ainda afirma que aquele que souber rap bem ganha dinheiro.
Ele diz que está vivendo bem, mas que inicialmente é necessário algum investimento.
Am:
Hoje eu posso dizer valeu a pena olhar prá trás e dizer valeu a pena, porque vivo de rap. O rap,
ele dá dinheiro pra quem sabe fazer rap. Graças a Deus eu tô vivendo bem, rap dá dinheiro dá,
mas no começo você vai ter que gastar.
De fato, no grupo Rap Comando há a estruturação de uma ética do trabalho, que tenta combinar
aspectos de uma responsabilidade social de “lutar pela periferia”, com uma postura empreendedora no
sentido de viabilizar a produção do rap, que passa inevitavelmente por aspectos econômicos, “gravar um
cd”.
Numa tentativa de reflexão sobre a dinâmica de reconhecimento e projeção social, o grupo
considera que o rap tem dificuldade de inserção no mercado fonográfico devido ao seu apelo crítico
contra os problemas sociais do mundo capitalista. Portanto, aqueles músicos que não cantam rap com
essas temáticas seriam mais bem sucedidos. A partir de uma perspectiva de assumir essa posição num
campo competitivo da produção artística, aliada à busca de uma autoimagem positiva, o grupo considera
que rap não se restringe a “dizer palavrão”.
Bm:
Tentar influenciar os máximo as pessoas de dizer que o rap não é xingar aquilo, xingar
palavrão,. ((Rap)) é mesmo poesia, é um protesto da periferia, às vezes o rap não vai pra mídia
por causa disso, porque luta contra o capitalismo, fala muito sobre a desigualdade social e aí vai.
O Marcelo D2 que fala coisas legais, o Gabriel Pensador que é pop que muitas vezes não fala o
que é protesto mesmo igual Racionais.
Durante a discussão, os jovens falaram sobre sua relação com o trabalho. Muitos no grupo não
trabalham, mas eventualmente se envolvem em atividades informais com vistas a contribuir com o
pagamento das despesas domésticas.
Em relação a isso, a situação de Manu ganha destaque. Ele alega que está desempregado e
trabalha só quando surge uma oportunidade de emprego temporário. Ele afirma que sua família está em
Breitner Tavares
110
grandes dificuldades. Seu pai, em função do alcoolismo, já não trabalha há sete anos, portanto, todas as
despesas em relação à família recaem sobre sua mãe. O jovem afirma que vai em busca de trabalhos
eventuais para ajudar nos pagamentos das despesas. Manu ainda menciona uma experiência em que
iniciou uma atividade numa fábrica de confecções de uniformes de policiais, que tinha que lidar com
produtos químicos. Segundo ele, não foi possível aguentar trabalhar de pé todo o dia aspirando
substâncias químicas, como cola e solventes. Manu continua procurando emprego. Diante do seu
depoimento, Liba como uma liderança dentro do grupo aproveita para retomar a concepção de “sonho”
dentro do grupo. Ele enfatiza o desejo de todos ali em trabalhar com o rap e o grafite e que, após o curso
de formação, no qual estão inseridos, todos vão receber um diploma e serão readmitidos dentro do projeto
mantido pela Juventude Negra. Ele promete ainda que todos sairão no final do curso num vídeo postado
no You Tube43.
De fato, o sentido de realização do “sonho” está voltado para uma ética do trabalho em que os
jovens do grupo agem como empreendedores, ou seja, agem objetivamente no sentido de elaboração de
uma apresentação que desperte interesse de outros jovens em se envolver com o trabalho da ONG na qual
o grupo está associado ou em difundir sua produção musical.
Para os jovens do Rap Comando, receber um “diploma” e ter a possibilidade de ser “readmitido”
no projeto de uma ONG implica uma profissionalização com vistas a uma inserção num mercado de bens
simbólicos de músicas, videoclipes e shows. A promessa de Liba em relação a produzir um vídeo para ser
postado numa comunidade virtual, como o You Tube, significa dentre outras coisas a consolidação do
grupo num espaço em que diversos outros grupos buscam o reconhecimento profissional, e além disso,
implica inserir o grupo numa escala de luta pelo reconhecimento mais amplo, o global.
Portanto, o estilo hip-hop assumido pelo grupo e recriado a partir de suas múltiplas interações
nos espaços de sociabilidade do grupo envolve elementos de organização estética política, que dialoga
com a luta concorrencial do mercado.
Apesar da formação e consolidação do grupo perpassar diversas dinâmicas de socialização dos
jovens por intermédio das relações vicinais, na escola ou áreas de lazer correlatas os jovens mencionam
que os primeiros contatos com o rap enquanto um estilo musical ocorreu em casa por influência dos pais,
tios ou irmãos mais velhos, algo que causa grande satisfação nos jovens do grupo. Bianca diz que não tem
intrigas com seu irmão, pois ambos fazem a mesma coisa em termos de envolvimento com o rap. Bruno
por sua vez reconhece que há uma relação de “passado e geração” em relação a seu tio, que escutava rap
quando ele era criança, algo que, segundo ele, o influenciou, “até hoje eu curto”; por sua vez, ele
influencia seu irmão mais novo, que gosta de rap, assim como sua mãe, “passando direto de geração a
geração”, “Mó massa”. Carlos argumenta que passou a ouvir rap por influência de seu pai, que
atualmente o apoia e acompanha seu trabalho como músico. Ele admira seu pai gostar de rap, “massa”.
Galego admite que há momentos em que briga com seus irmãos, mas que em geral tudo acaba bem, “sem
43
You Tube é um sítio de internet que oferece uma ferramenta que permite a seus usuários inserirem
imagens e criar fóruns de discussão sobre o material exposto. Vide: www.Youtube.com
Breitner Tavares
111
muita treta”. Seus irmãos gostam de rap e sua irmã gosta de rock, informação que despertou o riso dos
outros presentes. Em relação ao relacionamento com os mais velhos, em geral, o grupo considera
importante o respeito mútuo em relação às escolhas de cada um.
7.2 Grupos Revolução MCs e Resistência Periférica: estilo de vida e configuração urbana
Grupo Revolução MCs – Mudar de atitude sem mudar o jeito: orientações coletivas da amizade e o
rap como formas de resgate
No mês de junho de 2006, dediquei-me a fazer contato com diversos grupos. Nesse caso, o
grupo foi encontrado por intermédio de um produtor musical de Ceilândia. Personalidade marcante dentro
do rap em Brasília, Ruanda me sugeriu que eu contatasse o grupo Revolução MCs do Setor QNY de
Ceilândia, liderado por Amaro. Ruanda o definiu como “a pessoa com mais revolta de que já havia
conhecido”, mas que seria uma boa entrevistá-lo, pois ele tinha boas idéias, seria uma pessoa ativa no
movimento em termos musicais. De fato essa foi a minha primeira entrevista com jovens durante o
trabalho de campo, também foi a primeira utilizando um gravador digital.
Ao chegar à QNY numa quanrta feira a tarde, notei um silêncio típico de cidade do interior,
poucos carros, algumas pessoas andando pelas ruas, praticamente todas pavimentadas. Ambiente quase
bucólico e o imaginário de violência naturalizado por muitos criava um tom ambíguo referente ao apelido
do setor, chamado de “Fazendinha”, em alusão à favela carioca Rocinha ou ao clima interiorano. De fato,
tratava-se da última parte da cidade, a mais distante dos recursos que uma cidade costuma oferecer, salvo
pela presença de um posto de saúde e uma escola de ensino fundamental.
A entrevista foi marcada na casa de Amaro (Am). Tínhamos marcado a entrevista para as 3
horas da tarde, cheguei no horário e fui recebido por Blink (Bm) que, logo no início, foi muito simpático
e atencioso. Era uma casa simples, construída nos fundos do terreno, no quintal havia árvores, tais como,
mangueiras, espadas de São Jorge, ervas medicinais e alguns arbustos. Na casa estavam suas irmãs e, logo
em seguida, chegou sua mãe.
Eu necessitava de pilhas para meu gravador, daí Blink resolveu me levar ao supermercado local,
oportunidade em que aproveitamos para conversar um pouco. Ele tinha a pele clara e um semblante meio
abatido, mas era só aparência, pois ele demonstrava atenção a tudo o que eu lhe dizia. Ele aproveitou para
perguntar sobre a pesquisa e quem eu era. Eu lhe expliquei sobre o financiamento da bolsa que me
permitia a dedicação exclusiva aos estudos e ao trabalho de pesquisa. Blink chegou a me fazer elogios,
Breitner Tavares
112
“vejo que você é inteligente”. Blink também considerou que até a sétima série costumava tirar boas notas,
contudo, logo em seguida, ponderou, ao explicar sua apatia e afastamento do mundo da escola: “É, depois
que eu levei um tiro no ombro, tive que me afastar dos estudos; eu não conseguia escrever. Isso foi muito
difícil”. Em seguida, ele muda de assunto, apontando a direção do caminho que deveríamos percorrer até
o comércio local. A princípio fiquei estarrecido, mas procurei não insistir no assunto, pois teríamos o
momento da entrevista, o qual poderia ser oportuno para retomar a questão. De fato, mais tarde surgiram
as condições para um maior detalhamento do incidente que, ao que parece, foi decisivo para o
afastamento de Blink da escola e da Fazendinha, pois ele já estava vivendo há um ano em outra parte de
Ceilândia, segundo ele “pra ver quando alguém vai sentir saudade”. Ele estava buscando se esconder de
outro jovem com o qual teve uma desavença que culminou numa tentativa de homicídio contra sua vida.
Ao retornarmos à casa de Amaro, fomos para seu quarto, lá havia toda uma decoração com
cartazes de eventos do hip-hop, um aparelho de som, CDs espalhados e roupas espalhadas pelo chão.
Blink se sentou na cama de casal e eu fiquei numa cadeira ao lado, pouco depois, chega um outro rapaz, o
Conde (Cm), que não participa do grupo como cantor, mas é considerado pelos seus amigos como um
“irmão”. Novamente sou questionado quanto aos meus objetivos, enquanto aguardávamos a chegada de
Amaro, que leva ainda uma meia hora para chegar.
Finalmente, quando iniciamos as perguntas, passamos por vários aspectos, desde a inibição
inicial, passando pelo entusiasmo, até um certo cansaço após uma hora e vinte minutos de dicussão.
Logo após o grupo de discussão, Amaro me mostrou uma cópia do seu CD. Era uma foto de dois
jovens, meio de perfil, um deles esguio e numa posição mais baixa, que logo reconheci como sendo o
Blink, o segundo era diferente. Ele usava uma touca que cobria todo o cabelo, o olhar era cerrado, a
expressão tensa. Em relação a descrição do rosto, os lábios eram volumosos, o queixo não era do tipo
proeminente e a pele era escura, portanto, tratava-se de uma foto de um estereótipo, de uma personagem
masculina negra. Daí eu perguntei ao grupo de quem se tratava naquele retrato. Imediatamente, Blink
solta uma risada e diz categoricamente que aquela foto era de Amaro. Então eu disse que havia alguma
diferença, porque Amaro era cearense e branco, de baixa estatura, além disso, seus lábios eram finos e
tinha o queixo mais exposto, portanto, seus traços fenotípicos não correspondiam ao da imagem. Blink
continuou a rir e disse que Amaro queria ser “negão”, por isso pediu para alterarem sua foto. Amaro sorri
meio sem jeito e desconversa, “Eu queria fazer uma pose cabulosa”.
Um fato curioso foi a posição de Amaro quanto a seu pai, para ele, “esse cara tava por fora, não
tinha e nem queria ter conhecimento”. Ao que parece, seu pai nunca teve participação em sua vida. Mais
tarde quando falamos de polícia, Amaro foi crítico quanto à legitimidade e à violência praticada por essa
instituição. Ao final da entrevista, quando terminamos, Blink revelou nos bastidores que o pai de Amaro
era policial militar no Ceará. Eles tiveram um encontro no passado, mas segundo o próprio Amaro nunca
se entenderam.
Breitner Tavares
113
Descrição do Grupo Revolução MCs
Amaro (Am) tem 19 anos, é branco, reside em Ceilândia, não tem filhos, uma irmã, está namorando,
nasceu no Ceará (CE), mas vive no Distrito Federal há 6 anos, com a mãe e o padrasto. Está cursando o
ensino médio, está desempregado, mas pretende se tornar um músico profissional cantando rap e/ou
sendo DJ, seu lazer preferido é escutar rap e tomar cerveja. Participa de atividades de conscientização nas
periferias, está no grupo há 5 anos. Conheceu o grupo na escola, encontra-se diariamente com os
integrantes do grupo em casa. Estado de origem de sua mãe: Ceará, ensino fundamental incompleto,
faxineira.
Blink (Bm) tem 17 anos, é branco, mora em Ceilândia com os pais, não tem filhos, 4 irmãos, solteiro,
paraibano, vive em Brasília há 17 anos, possui fundamental incompleto e está fora da escola, trabalha
como camelô, gostaria de se tornar um produtor musical de rap, seu lazer preferido é frequentar bailes de
rap/hip-hop. Participa de uma associação que visa mostrar a realidade do nosso cotidiano, está no grupo
há quatro ou cinco anos, costuma se encontrar com este diariamente, na rua ou em casa. Conheceu o
grupo na vizinhança, foi o fundador do grupo. Seus pais são da Paraíba (PB) e possuem o ensino
fundamental incompleto, sua mãe é cozinheira e seu pai trabalha com manutenção.
Conde (Cm) tem 20 anos, é negro. Devido a problemas pessoais, Conde evadiu-se antes do término da
entrevista e não respondeu ao questionário.
Formação do Grupo Revolução MCs
Inicialmente é apresentada uma pergunta sobre a formação do grupo. Amaro (Am) diz que o
grupo surgiu em 2002 e que originariamente compunha letras que, de fato, estavam relacionadas a
questões levianas definidas como “besteiras”. Para o grupo, o mais importante era cultivar laços de
identificação, de amizade a partir de um estilo relacionado ao hip-hop. O grupo de amigos é diversas
vezes reconfigurado, pessoas entram e saem a partir do encontro entre os jovens. Após a entrada de Blink
(Bm), o grupo define um nome que os identificasse, que já tinha passado por vários temtativas, como
“Faca” e “Fala Intimidatória”, e finalmente decide pelo nome Revolução MCs.
Y:
Vocês têm um grupo né, e, como que vocês resolveram criar um grupo de rap? Essa seria a
primeira pergunta.
Breitner Tavares
114
É diz aí, quem fala tu ou eu? (.) A princípio que hoje a
Am:
gente não fala, o grupo surgiu em junho de 2002 né, mas começou com eu escrevendo umas
besteiras assim, começou a gente, a gente levava pro social, mas a formação que foi a gente já
tinha como amizade, o Stink, outros integrantes também que hoje não faz parte e, de imediato a
gente não tinha recurso pra gravar como muitos grupos não têm hoje, e::::, aí apareceu o Blink e
a primeira formação não veio com nome Revolução MC, veio com outros diversos nomes.
As diversas mudanças do nome do grupo expressam as mudanças de atitudes e a busca de um
sistema de referência em comum para seus participantes. Essa falta de consenso ou identificação em
termos de gosto e conduta é definida pela ausência de um “posicionamento” do grupo sobre o que se
desejava “defender”. Portanto, inicialmente as “emoções” conduziam seu trabalho até que com o passar
do tempo se descobriu o “compromisso”, ou seja, o conjunto de atitudes que permitiriam ao grupo se
sobressair enquanto tal, a partir de seus objetivos e práticas. Parte dos aspectos que norteavam a definição
do grupo estava relacionada ao interesse do mesmo em se apresentar, motivação essa que levou seus
membros a se depararem com as dificuldades típicas de um grupo musical, como a de gravar um CD.
Am:
É , mas é porque a gente não tinha estrutura firmada, a gente não sabia o que tava defendendo,
é, por muitas vezes a gente levava mesmo só pela emoção e, que que com o passar do tempo que
vei chegar o compromisso, e isso aconteceu certas coisas pra levar a gente até o nome rebelde
como a gente reconhecia que os outros nomes não representava o que a gente queria pregar,
hoje, como hoje vocês têm como ponto de vista como Nelson Mandela, Zumbi, Malcon Ex,
então, são pessoas que há poucos anos a gente vei conhecer, a gente vei dá valor, isso é o que
representa hoje o Revolução MC, é. Rebeldes não é só dentro de casa, com os pais, com a
vizinha, nem o vandalismo na rua, a gente prega revolução, revolução através das palavras,
palavras pra nós são armas, isso que é terrorismo da informação, é isso aí.
A mudança do nome do grupo refletia, de fato, a mudança de seu comportamento no sentido de
assumir um compromisso em relação ao grupo. Os outros nomes não refletiam aquilo que o grupo queria
difundir, “pregar”. O grupo para definir seu sentido de consciência e compromisso cita algumas
personalidades negras, como Nelson Mandela, Zumbi dos Palmares e Malcom X. Todos esses nomes
foram gradualmente conhecidos e valorizados, o grupo os valoriza e os cita, “passa a dar valor”. O
sentido de revolução enquanto premissa para o compromisso do grupo não ocorre no âmbito da relação
com a família, ou
na vizinhança, tampouco isso está associado ao vandalismo. Para o mesmo, a
revolução ocorre através das palavras. Para o grupo, “palavras são como armas” que podem ser usadas
num “terrorismo da informação”.
Breitner Tavares
115
Ao serem questionados sobre como o grupo se identifica com a cultura hip-hop, o mesmo passa
a descrever o sentido do hip-hop a partir de suas diferentes modalidades, “os quatro elementos” (grafite,
break, rap, DJ). Contudo, para além da descrição formal, o grupo define o rap como “sua vida”, para isso
Blink comenta que “vai até o final” cantando rap ou atuando como DJ. Neste contexto, faz-se uma
diferença entre o hip-hop e o rap. O estilo atua como um elemento constitutivo na visão de mundo do
grupo, que orienta suas ações. Para isso, Amaro enfatiza a diferença entre o hip-hop e o rap. Para o grupo
há uma identificação com o rap que vai além da roupa ou da música. É a partir do rap que se estabelecem
outras vinculações dentro do hip-hop.
Am:
É bicho, é o seguinte, o rap se enquadra nos quatros elementos do hip-hop, já eu o que eu prego
é o seguinte o rap faz parte do hip-hop, mas eu represento mais o rap do que o hip-hop, porque
eu me identifico não só com a roupa, não só com a música, com rap, eu me identifico com tudo,
tudo mesmo, porque o rap vem como forma de resgate, o rap entra como uma forma de missão,
a gente passa a ser inteligente, aprende a conversar, prestar é, como é que se fala, confia mais na
auto-estima, é isso o rap, o hip-hop é uma coisa, o rap é mais que o hip-hop, porque o rap cabe
no hip-hop e é o que se expande mais entendeu? É os quatro elementos é a dança, tudo e o hiphop em geral já é um resgate (2) Falando do hip-hop a palavra é resgate, porque é, a gente tem
amor pelo que faz, você todo dia tem amor pelaquilo, você dança, você tem prazer, você canta, é
prazer demais, pra gente é liberdade.
Bm:
Aí né uns já jogava bola ali. Uns começou com essa onda aí.
O rap, o rap veio, é na
Am:
fase que gente brincava, uns jogava pipa, o outro gostava de jogar bola, então o rap pegou a
gente muito novo, tanto é que a gente veio, é. Eu tenho seis anos que moro aqui em Brasília ,
tem gente que mora aqui a vida toda, o rap pra nós agora que vai fazer uns quatro anos que a
gente tá no rap, claro que quando você está no rap e isso pra gente é como se fosse uma
eternidade, uma eternidade de dedicação e amor ao movimento.
O rap é definido como algo que vem como uma “forma de resgate”, ou mesmo uma “missão”. O
rap motiva o aumento da inteligência, amplia a capacidade de comunicação, de “conversar” e
proporciona uma maior autoestima. Para o grupo, o rap, apesar de ser um elemento do hip-hop, acaba por
encobri-lo, o que também representa um resgate a partir dos seus outros elementos. Isso implica que toda
experiência do grupo em relação ao hip-hop se dá quase única e exclusivamente pela perspectiva do rap.
Resgate significa restabelecer o amor como parte integrante da vida. Isso é materializado nas práticas
sociais como a dança, a música, que seriam meios expressivos da liberdade.
Breitner Tavares
116
Mais adiante, discutiu-se sobre o encontro dos jovens que possibilitou a criação do grupo e como
isso estava relacionado à vida cotidiana na QNY. Ali os jovens compartilhavam outras atividades de lazer
para além daquilo que se poderia considerar restrito ao hip-hop. Amaro em resposta menciona que
conheceu seus amigos jogando bola à noite ou soltando pipa na região onde moram. Desde muito cedo,
eles passaram a se interessar pelo rap, alguns passaram a fazer parte do grupo posteriormente depois de
virem ao Distrito Federal como imigrantes nordestinos e, logo em seguida, se juntaram ao grupo. O grupo
afirma que já está junto há quatro anos, esse tempo de convivência foi fundamental para a formação desse
sentido de “missão” e “resgate” enquanto estrutura de suas ações a partir do estilo hip-hop. Esse tempo é
definido como algo perene, duradouro, como comenta Amaro, “pra gente é como se fosse uma eternidade
de dedicação ao movimento”.
O sentido de “missão” ou mesmo “resgate” apresentado pelo grupo ganha dinamismo a partir do
sentido atribuído à “revolução”. Para se interpretar isso dentro de suas orientações coletivas, recorre-se à
idealização de um passado no qual o grupo estava envolvido com o uso de drogas e álcool, esse
comportamento é visto como ter a “cabeça desorganizada”. Amaro conta que quando era menino
conseguia recursos de modo obscuro para continuar a se drogar. Após algum tempo, promoveu uma
mudança de comportamento a partir da conversão à religião evangélica, definida como uma “revolução”
em sua vida, em sua trajetória. Ele reconhece que houve uma perda parcial de sua vida durante o tempo
da regeneração. Cita o abandono da escola pelo alcoolismo, aos 17 anos. Suas experiências anteriores
ficaram no passado. Entretanto, a conversão religiosa gerou preconceito por parte de outras pessoas. Para
elas, a conversão interfere na configuração do estilo rapper, mas para o grupo “a igreja muda suas
atitudes, mas não muda o seu jeito de ser”. Esta possibilidade criada pelo grupo entre ser e fazer é a base
para seu sentido de revolução.
Am:
A cabeça não estava organizada, é tipo, no tempo era só um grupo de menino, era tudo da
mesma idade, aí falava não, vamos comprar um negócio ali pra nós, e tal, ninguém trabalhava,
ninguém tinha dinheiro e do nada aparecia dinheiro, e entrava no meio desse mato aí e usava
droga e voltava de novo. Aí tipo depois que aconteceu essa revolução na minha vida e tudo
mudou totalmente, eu não encarei aquilo como uma trajetória de vida, eu encarei como se nada
tivesse acontecendo.Tipo, foram coisas assim quando eu fui pra igreja que eu vi, e eu falei pô,
perdi uma parte da minha vida que, mais aquilo lá já foi passado já era, bola pra frente, não
mudei com nenhuma das pessoas que eu conheço até hoje, igual o Stink, o Antônio, o menino da
quebrada é o, como é o nome dele é o. Porque muitos acham que eu mudei, que eu estou através
da Bíblia, os outros joga na sua cabeça pra você mudar sua religião. Você tem uma religião?
Y:
Tenho.
Am:
Igual chegaram em mim e, porque você está na igreja e não sei o que e tal, se você é do mesmo
jeito que você é, e você tem que mudar é seu jeito de ser, é seus atos, se você aprontar você tem
que deixar aquilo tudo pra trás, igual eu, que bebia, fumava, usava droga e deixei aquilo tudo pra
trás, você tem que mudar nos seus atos e não no seu jeito de ser, modo de viver, você vai mudar,
se eu falava com você, eu não vou mais falar com você porque eu virei evangélico. Taí uma
Breitner Tavares
117
coisa que eu do meu ponto de vista acho totalmente fraco. Eu virei evangélico, mudei de atitude,
meu jeito de ser continua o mesmo.
Am:
De vez em quando fica nas broncas ainda. Ó aí, Deus é nosso guia, aqui na terra são os amigos
que a gente se apega, se eu tô com problema eu passo pro Stink, se ele tá com problema ele passa
pra mim, e nos dois juntos vai e passa pro Daniel, o Daniel vai e passa as idéias e desse jeito vai
um se ajudando aqui.
Amaro menciona Deus como um guia no campo metafísico. Contudo, segundo o grupo, Deus
está vinculado às pessoas, é nelas que ele encontra seu próprio reflexo. A partir da interrelação com
outras pessoas e grupos que uma pessoa e reconhece e encontra o sentido de “Deus”, ao fazer parte de
uma coletividade. Dito de outra forma, o indivíduo abstrai o sentido de sociedade na medida de sua
interação conscientemente voltada para aspectos individuais, mas que indiretamente estabelecem um
sentido, uma configuração da vida social. A amizade constituída dentro de uma estrutura geracional cria
uma cadeia de interações que dá o puro sentido para “o estar junto” na companhia de amigos. A
religiosidade, para além de sua metafísica, é um forte elemento norteador da vida coletiva, assim como
permite a reelaboração do estilo hip-hop.
Pra quem sabe chegar e pra quem sabe sair: construção de uma ética urbana dos humildes
A vida na QNY é abordada como referência para a formação do grupo. Y lança uma pergunta
sobre como é o dia-a-dia no setor QNY. Blink diz que é “tranquilo”, mas é completado por Amaro, que
diz que há eventualmente problemas no bairro, definidos por eles como “desacertos”. Ele exemplifica que
eventualmente há festas e que se pode ouvir sons de disparos de arma, chamados de “tecos”. Amaro
define o lugar como não violento, e tampouco seguro, como define a expressão “não é um lugar de paz,
mas também não é um lugar de guerra”. O sentido de desacerto está relacionado a eventuais conflitos,
“encrencas”, com outros jovens relacionados à vida na escola ou no futebol. Quando esses jovens se
envolvem na “criminalidade” promovem brigas e até mesmo morte.
Y:
É, aí eu queria perguntar pra vocês, que vocês falassem mais um pouquinho, é como é o dia-a-dia,
como é o dia-a-dia na QNY?
Bm: É o dia-a-dia aqui é tranquilo é, tranquilo de vez em quando:::::
Cm: Um desacerto
Bm: É de vez em quando um desacerto, rola uma festinha dos meninos de vez em quando ali. Um téco.
Am: [ É, é neguinho diz que é tranquilo pra nós, a gente conhece todo mundo, conversa com todo mundo
a gente aqui. É, lá é tranquilo.
Breitner Tavares
118
Y: Como é, desacerto?
Cm: É, se gente fosse fazer uma colocação, se gente fosse fazer uma colocação a gente diria que aqui
não é um lugar de paz, mas também não é um lugar de guerra. Desacerto que a gente fala é que às
vezes a gente vê um camarada, que até mesmo encrenca com a gente, jogando bola ou estudando,
se envolver com crime, então é desacerto que a gente fala é, briga, é morte mesmo.
Para o grupo o sentido de resgate está associado a preservar sua família. A narrativa do grupo,
por um lado, naturaliza a violência que é intrínseca à vida diária durante a representação dos papéis mais
simples. Aqueles que se envolvem em atividades criminosas, “parada errada”, tendem a sofrer os
desacertos. Amaro menciona que a rua é o lugar de inspiração dos desacertos. Por outro lado, quem está
na rua deve sempre buscar evitá-los e proteger sua família. Amaro afirma que é inevitável sair às ruas,
pois ele precisa ir a lugares como a padaria e a escola, encontrar amigos para conversar. Portanto, é lá no
“cotidiano normal” que “vez por outra” ocorrem os desacertos.
Durante a conversação, a questão dos conflitos entre os jovens foi frequente quando o grupo
trouxe uma história relacionada ao distanciamento de Blink da escola. Ele conta que estudou até a sétima
série e que eventualmente reprovava por não entender o conteúdo, segundo ele, não por falta de
inteligência ou dedicação. Por outro lado, o que o afastou da escola não estava relacionado ao currículo
ou às provas. Na verdade, Blink se envolveu num “desacerto”, que ele prefere chamar, neste caso, de
“acidente”. Ele inicia dizendo que havia outros jovens que desejavam matá-lo. Amaro então intervém no
diálogo e desconversa. Ele diz que na verdade o problema não era diretamente ligado a Blink, este por sua
vez, ao perceber a intervenção de Amaro, muda o tom da conversa. Em seguida, Blink conta que um dia
estava com quatro amigos “chegados”, bebendo num bar pertencente a seu pai, quando outro jovem se
aproxima e passa a discutir com Blink e seus amigos, em seguida surge outro jovem e dispara na direção
do grupo, atingindo Blink no Braço. Ele foi socorrido e, mais tarde, se dá conta de que seus companheiros
na verdade estariam em “desacerto” com o outro jovem, que deixou sequelas nos movimentos do seu
braço. Neste momento, todos se olham reciprocamente, demonstrando certo incômodo com a história e
preferem não entrar em maiores detalhes.
Apesar da história, Blink define hoje a quadra onde vivem como “80% tranquila”. Conde (Cm)
completa e diz que sua quadra é a melhor de toda a cidade, ele explica que o que torna o lugar seguro é o
fato de estar separado fisicamente do restante da cidade por um vazio urbano, “um matagal”.
Bm:
 É, se você for ver na escala, porcentagem assim, é uns 80% tranquilo:::: (.)É:::.
Cm:
Eu tenho no meu ponto de vista que uma das melhores quadras aqui em Ceilândia.Vale a pena
colocar copa-quadra. No meu ponto de vista essa quadra aqui é a melhor, devido ela ser separada
Breitner Tavares
119
das outras quadras mas ter um matagal do lado de cá, e uma quadra pra lá, ter outro matagal pra
lá, ainda acho que aqui é uma das melhores quadras que tem, aqui é, gera menos violência.
Am:
[Aqui é como se fosse, é pra gente sobreviver é normal, aqui todo mundo se conhece pelo nome,
se duvidar até pelo sobrenome, todo mundo aqui se conhece. Se conhece, se você chegar pra lá e
perguntar quem é tal tal pessoa com certeza alguém vai saber, não porque eu canto rap, porque o
lugar é pequeno.
Bm:
Aqui , aqui nunca foi sempre assim não, aqui já foi cabuloso já, já chegou a morrer sete, seis
pessoas numa semana só, agora chega aqui aí tá aprendendo a sobreviver as leis e tá de boa
assim, por enquanto todo mundo assim, quem era mais doidão foi embora ou então tá preso já
tem tempo.
O grupo menciona que todos ali se conhecem pelo nome. Blink, porém, reconsidera e diz que
nem sempre houve uma comunidade, que no passado era comum ocorrerem mortes. Segundo ele, agora
as pessoas estavam aprendendo a “sobreviver”, pois os mais violentos, chamados “doidões”, já haviam
mudado ou estariam presos. Mas ele completa que para eles é tranquilo. O sentido de aprender a
sobreviver está relacionado às estratégias criadas pelo grupo, a partir de uma indumentária proporcionada
pelo estilo. Isso lhes permite articular os conflitos com outros grupos.
Am:
Porque Ceilândia mesmo é só até ali assim né, mas como cresceu, se expandiu, ali, aqui né até
ali ficou mais mais, hoje como é que fala né, fazer uma comparação com a favela do Rio de
Janeiro né, o morro lá, fazer uma colocação que antes que era violento. A periferia que a gente
vê, a gente cresceu junto com periferia onde tem pobreza miséria, onde tem é polícia, onde a
polícia chega atrás da gente com malícia, onde tem pai de família trabalhador, onde tem
desempregado, é onde se concentra como é, é onde se concentra a marginalização, é que a gente
está à margem da sociedade, a gente fala.
Cm:
Levando pro lado que ele falou da Fazendinha aí no, em uma das reunião que tava tendo lá em
baixo, tinha um pessoal de Sobradinho, parou um carro da polícia e, por isso que eu falo que
aqui é tranquilo, parou um carro da polícia e perguntou onde é que fica a QNY e o cara, cê tá
doido, cê tá descendo o barranco numa hora dessa, e o pessoal chegou aqui espantado e falou é,
quer dizer que por aqui o negócio é perigoso mesmo, e olhando prum lado e pro outro e o
próprio cara que tá lá embaixo falou, não, aqui é tranqüilo, eu chego aí, deixo o carro, aí entro
pra casa das pessoa, ando na rua tranqüilo, tem a segurança que anda comigo é pra prevenir
alguma coisa, mas aqui é totalmente tranquilo, se depender de mim eu ando sem segurança. O
cara que tava falando com ele, ele mesmo falando que se dependesse dele, ele vinha sem
segurança, porque aqui é tranquilo e o policial botando aqui como perigoso, devido ao nome
QNY que é separado da, das outra quadras porque aqui pra nós aqui, quem mora pra cá mora na
favela mesmo, é favela, é Fazendinha tem outro nome não.
Breitner Tavares
120
Em:
 Porque, se mora um tio ali, com certeza ele respeita aquele lugar, aquele eu que usa tôca, os
cara que fuma, os cara que bebe, a gente é uma pessoa normal, a gente é do rap, mas a gente pode
chegar num bar pode beber, posso sair pra passear com meus colegas sem medo nenhum, eu sou
vítima também como qualquer outro da polícia, da polícia que chega e ao invés de fazer seu
trabalho, faz é abusar, então lá é um bom lugar conforme as leis.
O grupo cria uma idealização de seu espaço urbano a partir de referências como o bairro e as
favelas do Rio de Janeiro. Amaro descreve o bairro como tendo a presença de uma “polícia maliciosa”,
“pais trabalhadores” e “desempregados”. Para o grupo, a marginalização seria o fator definidor da
existência das favelas e, consequentemente, das periferias. Diante disso, Conde apresenta um exemplo,
relatando uma reunião com políticos de outra cidade, que estavam à procura da localização da Fazendinha
e para isso perguntaram a policiais que lhes advertiram que ali era um lugar muito perigoso e que deveria
ser evitado. Contudo, mesmo amedrontados, seguiram em frente até encontrarem Conde, que os receberia
para uma reunião para tratar de ações comunitárias no setor. Ao se encontrarem, perguntaram se ali era
realmente perigoso como consideraram. Conde conta que convidou o visitante para percorrer as ruas que
seriam, segundo ele, tranquilas. Após isso, reconhece-se que se tratava de exagero da polícia. O político
concluiu que realmente o lugar era tranquilo e que só estava acompanhado de um de seus seguranças
porque era algo normal em seu cotidiano. Finalmente, diz que a associação com a Rocinha carioca
prejudica a imagem da QNY. Enquanto Conde falava, Blink e Amaro o observavam atenciosamente sem
risos ou brincadeiras.
O sentido de missão do grupo está intimamente arraigado em uma ética dos humildes que é
construída em função de uma noção geracional e geográfica. Nesse espaço idealizado pelo jovem, outras
hierarquias da vida social, como pobreza, racismo, e violência, são deixadas de lado, para que todos
possam compartilhar de um espaço de convivência de maneira relativamente harmônica.
Para o grupo Revolução MCs, ninguém é melhor que ninguém, contudo, há aquelas pessoas que
não sabem chegar a lugares como a favela e a periferia. Amaro usa o termo “playboy” como forma de
idealização da imagem desse outro generalizado, que não pertence às mesmas condições de classe ou
estilo dos jovens da QNY. Nesse contexto, descrevem os “playboys” como aqueles que possuem a mesma
idade dos jovens do Revolução MCs, ou seja, entre 10 e 15 anos. Esses jovens chegam ao setor e não
respeitam os demais, “ficam de pagação”.
Nesse espaço, a maioria das pessoas é considerada como simples, de “coração humilde”, que não
vão cometer nenhuma violência, como roubar. No entanto, há aqueles que, estando supostamente bem
trajados, “com pinta de playboy”, não serão bem-vindos, ou seja, sofrerão algum tipo de agressão, “os
cara vai encosta e vai enquadrá”, expressão que significa que estranhos visitantes serão abordados e
submetidos a um esquema de diferenciação social, baseado nos valores daquele grupo em questão. O
indivíduo, ao ser identificado num esquema de negatividade, nesse caso, como “playboy”, passa a ser
Breitner Tavares
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desumanizado e merecedor de algum tipo de violência, o que é um fato lamentável, mas corriqueiro,
segundo o grupo. Portanto, o grupo cria uma imagem daquilo que expressa diferentes interpretações
sobre sua condição de jovens, mesmo estando numa mesma faixa etária, definidas por jovens que, apesar
de terem idades semelhantes, têm condições de vida distintas no que se refere à classe, raça e posição
geográfica. Consequentemente, isso os leva a estabelecerem padrões de comportamento distintos de
outros jovens.
O grupo Revolução, nesse caso, usa o termo “playboy” como uma categoria negativa de outros
jovens que podem até mesmo ter idades semelhantes às do grupo “10, 15 anos”. Contudo, em função de
sua indumentária inscrita no corpo, ou pela forma de se vestirem, “bem trajados”, e se comportarem de
modo arrogante, com “pagação”, tornam-se incompatíveis com os valores compartilhados pelo grupo, que
preza por aspectos como ser “humilde”. Ainda em relação aos aspectos sobre diferentes unidades
geracionais, Blink completa que a favela é um lugar bom, mas é um lugar para aqueles que “sabem
viver”, em outros termos, a favela é um lugar “pra quem sabe chegar e pra quem sabe sair, como em todo
lugar”. Nesse caso, as condições de opressão e pobreza levam os jovens a criar suas próprias regras,
articulados pela existência do grupo em torno do estilo que lhes permite refletir a violência e os muitos
valores que daí decorrem.
O contraponto da idealização do “playboy” se dá pelo jovem que mora na periferia e compartilha
da mesma visão de mundo que outros jovens que ali estão. Segundo o grupo, esse jovem que assume um
estilo e um comportamento, adotando o uso da touca, que fuma e bebe bebidas alcoólicas, está dentro
daquilo que ali é considerado “normal”, pois é conhecedor das regras do lugar, e, por conseguinte, é
respeitado até mesmo pelos mais velhos, pelo “tio”. Nesse espaço, o jovem identificado com o estilo hiphop pode sair “sem medo” em grupo com seus amigos do setor onde vivem. A única ressalva vem pelo
temor de se tornar “vítima” da violência policial, para o Revolução MCs a polícia não faz o seu trabalho
corretamente, devido ao “abuso” de poder. Desta forma, o grupo define seu lugar como sendo bom em
função de determinados códigos estabelecidos na relação entre os moradores que ali residem, seus
visitantes e a presença do Estado na forma da polícia.
Da multidão dentro de casa aos pontos que não batem: relação entre jovens e pessoas mais velhas
Inicialmente foi apresentada uma pergunta sobre o relacionamento com os pais para o grupo
Revolução MCs. O grupo, a princípio, considera que o relacionamento é bom, pois há diálogo. Contudo,
os jovens ponderam; Amaro menciona ter um ótimo relacionamento com sua mãe, mas não tem contato
com seu pai, além disso, ele às vezes impõe suas ideias à sua mãe, fato que o grupo considera normal no
ambiente familiar. Em toda família há alguém que tem ideias contrárias às dos demais irmãos e irmãs,
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122
como a “ovelha negra da família”. Porém, Amaro desconversa ao dizer que não se identifica com tal
perspectiva.
Y:
Bom, essa pergunta aqui é em relação aos pais, vocês moram com seus pais? Seria a primeira
pergunta e como é a relação de vocês com seus pais ?
Cm:
É, eu moro com meu pai e com a minha mãe e tenho um irmão só, é, pra mim, minha família
sempre foi tudo muito bom, todo mundo conversa com todo mundo, a relação é ótima.
Am:
Não, eu acho que é o cotidiano normal, eu moro com meus pais, quer dizer com minha mãe, eu
não sei nem onde anda meu pai por falar nisso, eu acho um cotidiano normal, sem briga sem
discussões mas, às vezes eu falo isso e é aquilo, não vai.
Bm:
Acho que é toda família né?!
Am:
Toda família tem um que é do contra, tem um é a ovelha negra da família, eu não me auto
intitulo a ovelha negra. Sou o filho mais velho, tenho mais consciência de certas coisas, tento
passar o que eu sei pros mais novo inclusive, de uma forma diferente, pode até encarar como
grosseria ou ignorância, é o jeito que eu aprendi, é a tradição que eu trago, meio que o passado
da minha família, a gente leva uma vida normal, eu curto minha mãe, gosto da minha família, é
isso acho, que é um cotidiano normal.
O grupo considera relevante a influência das gerações mais velhas em relação às mais novas. Há
vários indícios sobre isso quando se trata da relação entre os irmãos mais velhos e mais novos. Amaro
menciona que na condição de filho mais velho transmite aos mais novos aquilo que sabe que pode ser
encarado como grosseria ou ignorância. Durante a entrevista, ele às vezes gritava com suas irmãs, lhes
impunha que abaixassem o som da televisão ou que elas deveriam realizar tarefas domésticas, como
“cuidar da casa”.
A relação com a mãe é bastante reforçada como a pessoa mais importante da família. Blink diz
que vive com sua mãe, que é considerada como a mais importante, “é tudo na vida”, além do irmão e do
padrasto com o qual diz ter um ótimo relacionamento, desde a infância. Por outro lado, afirmam que
também existem as diferenças, pontos discordantes no relacionamento, que servem para aprimorar o
convívio, “os pontos que não batem”. Sobre os pontos de discordâncias, Conde diz que apesar do bom
relacionamento com seus pais, já brigou fisicamente com seu irmão. Amaro, em tom de ironia, diz que
isto é “adrenalina”. Diante dessa assertiva, Conde acena de modo a concordar com Amaro. Ele, por sua
vez, reitera tal perspectiva ao dizer que discute com suas irmãs de modo agressivo, mas sem incorrer em
violência física, algo que logo em seguida é superado. Tudo isso ocorre em momentos instantâneos da
vida diária, situações definidas em alusão ao efeito causado pela “adrenalina”. Conde fala que segue as
orientações de sua mãe sobre frequentar festas, pois ela tem um bom senso, “eu tô sentindo para você não
ir”. Ele diz que esses conselhos eram dados quando ele era menor de idade, algo que eventualmente lhe
causava certa irritação. Ele completa dizendo que responde à altura dos que se aproximam de modo a não
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123
lhe respeitar. Contudo, ele reconsidera e diz que atualmente, quase aos 21 anos, nunca agrediu
fisicamente sua mãe, no que ele define por “levantar a mão” ou “levantar a voz”.
Am:
Mas essa diferença que tem em casa, em qualquer família, que é normal né?
Bm:
Isso serve pra aprimorar né.
Cm:
É, tem aqueles pontos que não batem, fica assim né?
Y:
[Mas como é que é isso, como isso funciona?
Cm:
 Tipo assim não é com minha mãe, nem com meu pai, mas já aconteceu com irmão meu de a
gente se pegar lá na porrada, mas, mas tem motivo aí que não tem graça tem que ter (.)
Am:
Adrenalina né?
Cm:
Adrenalina é, mas graças a Deus nós estamos de boa...
Am:
E a vida é louca!
Bm:
Ôche!
Am:
É igual eu e minhas irmãs, só que eu não rolo na porrada né, eu brigo, é sai daqui, não conversa
comigo mas não, meia hora depois já estamos conversando de novo como se nada tivesse
acontecido. Ôche, você que falou deve ser adrenalina .é mais entre irmãos né, tipo eu (.) ((Ele se
volta para Cm, e lhe passa a palavra )) Pode falar ((olhando para Cm).
Cm:
Tipo eu respeito minha mãe pra caramba, se ela falar que é pau eu tenho que falar que é pau,
também não adianta eu falar que é pedra, se minha mãe que é minha mãe que me botou no
mundo tá dizendo que é pau. Tipo o conselho que tinha eu não discutia, não falava nada, ela
falava que não era pra mim ir no tempo que eu era de menor, e eu falava então não vou, ficava
chateado, ficava injuriado mas não ia, não teimava com ela, eu nunca respondi minha mãe, tenho
20 anos, vou fazer 21 em outubro, nunca cheguei a levantar a mão pra minha mãe, a levantar a
voz, tem hora que eu fico muito nervoso se você vem falar comigo eu vou te responder à altura,
se você manso, eu sou manso, se você alterar eu altero.
Para os jovens do Revolução MCs, a conversão religiosa constitui uma mudança de conduta,
uma escolha ética que está relacionada a uma integração com a família. Conde exemplifica, diz que se
envolveu com drogas e pichação, coisas reprováveis, segundo ele, “um mundo que não era pra mim”.
Esse envolvimento ocorreu quando era mais novo, período que considera difícil tomar decisões, “a cabeça
não pensava”. Ele diz que o envolvimento com a pichação o levou a ter problemas com outros jovens e
que teve de deixar a cidade para se proteger de represálias indo para Goiás. Havia pessoas querendo
matá-lo, mas que desistiram por também estarem envolvidos em outras rixas com jovens. Diante das
circunstâncias alegadas e por influência dos amigos, passou a frequentar uma igreja evangélica, que mais
adiante passou a ser frequentada por suas irmãs e seu padrasto, naquilo que ele define como “a revolução
de Jesus”.
Breitner Tavares
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Am:  Eu entrei num mundo que não era pra ser meu, eu entrei no mundo das drogas, me envolvi mesmo,
entrei de cabeça e fui descendo quando eu vi que aquilo ali não era vida, que eu entrei no mundo
da pichação também, que foi o que mais me quis me tirar daqui, entrei no mundo da pichação só
que no tempo eu era novo, a cabeça não pensava, era o que vinha, o que vinha tava, tava, se você
falasse vai ali e escreve no caderno daquele neguin ali, eu ia lá, eu não tava nem aí, e isso aí foi
gerando uma briga e eu tive até que mudar daqui de Ceilândia, eu fui morar no Goiás, eu morei no
Goiás um ano, depois eu voltei e aí tipo, neguin que queria me pegar, mataram o neguin ou
fugiram porque tiveram outros desacertos. Tipo eu entrei num mundo que não era meu mesmo,
tipo bebendo, fumando, usando droga, naquele mundo totalmente errado, e do nada, Jesus vai e faz
uma revolução na minha vida, fui pra igreja, comecei a ir pra igreja, não fui só eu, foi eu, minhas
irmãs, meu irmão e meu padrasto, tudo de uma vez assim. Coisa maravilhosa.
A influência sobre os irmãos mais novos é considerada pelo grupo. Os jovens assinalam que
gostariam de participar nas suas decisões daquilo que é definido como “trabalhar a mente”. O grupo
justifica que o rap enquanto um estilo de vida que pode estar associado à sucessão social no que se refere
à busca por um bom emprego, algo que expressa uma justificativa ao discurso que marginaliza o rap
como uma atividade ainda não profissionalizada, numa escala mais ampla da indústria cultural na cidade.
Entretanto, o rap enquanto um conjunto de valores relacionados à vida no espaço urbano é apresentado
como um patrimônio a ser transmitido às gerações mais jovens, a partir de elementos constituidores de
um determinado padrão de gosto social, que envolve a apreciação pela indumentária hip-hop, que passa
por um modo de se vestir distinto de outros estilos jovens, assim como um gosto musical específico,
como o rap.
A família é o grupo social definido pelo jovem como uma “multidão dentro de casa” com a qual se
compartilha os problemas e se encontram as soluções. Amaro define a multidão de dentro de casa como
aquela em que encontra amparo na família, em especial na presença do pai. O contraponto da multidão de
casa é a “multidão da rua”, onde prevalece uma mentalidade centrada no indivíduo mediatizado por
relações econômicas e simbólicas e concorrenciais e, eventualmente, na rua há sempre o risco da
desilusão. O pai como imagem protetora não é encontrado nesse espaço. Amaro, por seu turno, não tem
contato com o seu pai biológico, “eu nem sei o que é dia dos pais”. Ele diz que será muito orgulhoso
quando se tornar pai, pois não abandonará seu filho, não irá “virar as costas” . Ele diz que sente por um
lado ódio de seu pai ausente, e por outro, o amor de sua mãe com a qual convive.
Am:
 Que encara o cotidiano normal, que é aquilo ó, aquela multidão, multidão dentro de casa, que
você pode tá dentro dela, aquela multidão da rua você não aguenta é grande demais a da rua,
você não pode considerar a rua como uma casa, já a rua é uma multidão, dentro de casa também
é multidão, mas é uma que você aguenta estar 24 horas. Vale tudo.
Bm:
 agora?...
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125
Am:
É, é isso, a multidão que eu falo do lado de fora, do lado de fora você não encontra pai, do lado
de fora você encontra pai, pai eu não sei nem o que é o dia dos pais pra mim, eu quero chegar
um dia e dizer, o dia que for pai vai ser a melhor coisa do mundo, não vou virar as costas pro
meu filho, se precisar eu vou passar fome junto, eu nunca vou virar as costas como meu pai fez
pra mim, por falar do meu pai na verdade eu sinto ódio, não tenho amor de pai, eu tenho amor de
mãe.
A relação do grupo com pessoas mais velhas é definida pelo respeito condicionado à sua
reciprocidade. Os jovens questionam o abuso de algumas pessoas baseadas na crença de que se deve
respeitar os mais velhos. Eles reconhecem que há diferenças, mas elas não devem corresponder a ofensas
aos valores das pessoas mais velhas. Amaro diz que pode ceder o seu lugar para uma pessoa mais velha
num ônibus, isso representa um gesto de respeito, além disso, cita que ele fala gíria, mas isso não
representa um desrespeito com os mais velhos. Ele diz que tem suas ideias hoje e que será velho um dia.
Ele considera que os velhos têm muito a passar para ele. Há um exemplo de um senhor que sempre está
nas proximidades e que conta sua história de quando chegou ao Distrito Federal antes da construção de
Brasília. Amaro diz que tem um carinho especial por este senhor, que não lhe incomoda ou pede qualquer
coisa em troca pela sua companhia. Além disso, Amaro ainda menciona que foi criado pelos avós
maternos, que hoje são velhos, e ele os considera como pessoas maravilhosas. Contudo, o grupo assinala
que não é pelo fato de alguém ser mais velho que o faz merecedor de respeito.
As relações intersubjetivas que definirão uma unidade no sentido geracional do grupo se
constróem não numa relação de oposição entre seus indivíduos e as gerações mais velhas, mas a partir de
um convívio mutuo e a partir da familia. De fato, ocorrem situações de continuidades em que o mais
velho é tido como aquele que transmite os valores que definem o sentido dos grupos sociais, como a
família, definida por laços de intimidade, “a multidão dentro de casa” e os laços de impessoalidade e
concorrência em que a insatisfação e o sentimento de traição são eminentes, “multidão da rua”. O medo e
o envolvimento com atividades consideradas pelos jovens como negativas e prejudiciais, tais como o uso
de drogas e a pichação, são utilizados para justificar a relevância da família e determinados vínculos
estabelecidos através desse tipo de grupo social. A conversão religiosa de fato seria uma dessas situações
em que a diferença entre as gerações não impediria um diálogo intergeracional das diferentes percepções
de mundo dos pais e filhos, definido pelos jovens como a “revolução de Jesus”.
Por outro lado, os jovens pontuam sua visão de mundo através de seu aparato linguístico, “falar
gírias”, como um elemento identificador do seu estilo. Diante desse tipo de situação, surgem os “pontos
que não batem”. Há predominante ausência da figura paterna que lança seus filhos na solidão do mundo
imaginário da “multidão da rua”. As mães provedoras de suas famílias, apesar de assumirem um lugar
privilegiado, enfrentam as discordâncias dos jovens, os quais ainda se sentem inseguros quanto às suas
posições, “a cabeça não pensava”. O rap enquanto um sistema inconsciente de atitudes define um lugar
do jovem, em que este se defende de determinados dispositivos de distinção social estabelecidos pelo
Breitner Tavares
126
mundo adulto. A experiência de contato entre gerações distantes como, entre avós e neto, é citada de
modo a ser caracterizada como menos conflituosa nesse contexto de relações intergeracionais.
O respeito às pessoas mais velhas está condicionado ao reconhecimento de sua identidade jovem
enquanto uma redefinição de valores por uma nova conduta nos espaços onde diferentes gerações
interagem, como na família, na escola, no trabalho, na rua, entre outros. Existe uma expectativa em
relação à transitoriedade para um mundo adulto e até mesmo para o mundo dos velhos, mesmo de modo
idealizado. O grupo assume uma missão no sentido de construírem novos valores a partir do rap. Seus
irmãos e irmãs mais novos constituem o foco dessa ação de se “trabalhar a mente”. Quando esse jovem
não é respeitado dentro de seu sistema de valores, reage de modo a garantir sua identidade frente ao
mundo adulto.
Grupo Resistência Periférica
A gente se trombou e a gente se firmou: Relações vicinais e a identificação pelo estilo hip-hop
Descrição do trabalho de campo
Churrasco, rap e campanha eleitoral: Aproximações com produtores culturais
Num domingo do mês de setembro de 2006 fui convidado para um churrasco. De fato, soube
desse evento a partir da ligação de Emanuel (Em), um produtor cultural de bailes hip-hop que,
coincidentemente, foi meu aluno anos atrás e que a partir do qual obtive contato com alguns membros do
hip-hop. Ele me disse ser um dos produtores que traziam ao Distrito Federal os Racionais MC. Quando
Emanuel soube de minha pesquisa, entrou em contato comigo para informar-me sobre a atividade de
outros grupos em Ceilândia. Dessa vez, eu tinha sido convidado para um churrasco na casa de outro
produtor, chamado Chakal. Contudo, para minha surpresa, quando chego ao churrasco, vejo que se
tratava de um evento político para apoiar um candidato com propostas para amparar famílias de
presidiários em Brasília. Muitos dos convidados eram familiares de pessoas nessa condição. Durante o
churrasco, a conversa girava em torno da produção artística do rap e em relação à questão dos maustratos e dificuldades das famílias para acompanharem seus parentes encarcerados. Alguns rappers
presentes estavam apoiando um candidato que propunha projetos em defesa dos direitos humanos nos
presídios. Eu realmente não sabia que se tratava de uma campanha eleitoral.
Durante o churrasco, reconheci outro ex-aluno, o Nelson da QNV, que me convidou para ficar
em sua mesa. Conversamos sobre várias coisas, inclusive sobre meu trabalho atual envolvendo a
juventude. Nelson, desejando colaborar comigo, me passou seu número de telefone e pediu para que eu
ligasse para conversarmos em outra ocasião sobre o assunto. Ele inclusive chegou a me propor que eu
conhecesse sua comunidade e que saíssemos juntos para tomarmos umas cervejas.
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Mais tarde, a pequena garagem de Chakal já estava toda ocupada por várias famílias de jovens,
todos de alguma maneira ligados ao rap. O churrasco estava sendo preparado do lado de fora da casa,
numa rua que ficava em frente a uma pista que separava a quadra residencial de uma enorme vala, parte
das obras do metrô ainda inacabadas naquela época. Alguns dos presentes, logo em seguida, tomaram a
iniciativa de ligar um som, preferencialmente no volume máximo. As músicas apresentadas eram dos
próprios grupos ali presentes, um deles era o Resistência Periférica, com o qual eu fiz contato mais
adiante; além disso, fiz alguns contatos e anotações na agenda que, posteriormente, serviram para a
viabilização de outras entrevistas.
Mais tarde chega o candidato e, então, todo o diálogo se voltou para a questão prisional das
famílias e as propostas do candidato Dr. Freedom. Observei tudo e, ao final da fala do candidato, me
despedi dos que estavam mais próximos e me retirei.
Sobre a entrevista com o grupo Resistência Periférica
Numa ocasião à noite, encontrei com os membros do grupo Resistência Periférica (RP), grupo
formado por Amauri (Am), Boca (Bm), Conrado (Cm) e Denis (Dm). Conhecemos-nos a partir do
contato feito por Emanuel (Em), um produtor cultural de bailes hip-hop, no fim de semana anterior.
Combinamos que a entrevista seria na casa de Amauri, que ficava na QNV 20, creio que a última quadra.
Marcamos a reunião para as 20 horas, mas me atrasei 10 minutos. Eles já estavam achando que eu não
chegaria mais. Imediatamente, pedi desculpas pelo atraso, Boca que estava à minha espera disse que não
havia problema, ademais, segundo ele, os outros parceiros tinham ido à redondeza e logo estariam de
volta. Amauri tinha ido receber seu pagamento no mercado da esquina, onde trabalhava como vigia. Boca
disse que ele era recomendado, pois conhecia toda malandragem local. Isso lhe atribuía um status
privilegiado em termos de respeito e segurança ao mesmo tempo, no bairro onde morava.
Enquanto esperávamos em frente da casa de Amauri pelos demais integrantes do Resistência,
aproximou-se um homem que era amigo de Boca. Seu nome era Spagueti, o irmão mais velho de Amauri.
Boca disse que “a história de Spagueti dava um livro”, pois ele já teria “aprontado muita coisa”, sabia
muito sobre como era a vida social de um jovem naquela região, “a vida ali na quebrada”. Spagueti
aparentava já estar na casa dos quarenta anos. Boca puxou conversa, daí Spagueti disse que iria sair com a
sua mulher para tomar umas cervejas. Ele então passou a contar parte de sua história, comentou sobre
casos de morte na área, sobre os antigos locais de lazer que ele costumava freqüentar, como o salão do
Quarentão e sua ida para a QNV. Ele explicou que as “guerras”, ou seja, os conflitos entre jovens na
região, começaram por causa de roubo de bonés, “Um tomava o boné do outro”, “Todo mundo queria ter
roupa de marca, mas ninguém tinha dinheiro”. “Eu já vi gente morrer por um boné”, disse. Spagueti
explicou que as guerras eram motivadas pelo desconhecimento de quem roubava: “Malandro às vezes
Breitner Tavares
128
roubava de outro malandro sem saber”, “aí começavam as guerras, as mortes”, justifica. Ele se dizia
alguém de sorte por continuar vivo.
Instantes depois, nossa conversa foi interrompida, pois surge na entrada da casa uma senhora. Eu
imaginei que ela fosse a sogra de Amauri, pois era branca e se assemelhava um pouco com sua
companheira. Ao se aproximar de nós, Boca comentou, com uma leve expressão de riso, sobre os antigos
problemas de Spagueti na QNV. Essa senhora de aparência idosa e com semblante fatigado, foi reticente
e só confirmava o que dizia Boca sem maiores comentários. Diante do sarcasmo de Boca e o silêncio da
velha senhora, Spagueti demonstrou certo constrangimento e reiterou mais uma vez que tinha um
encontro com sua mulher. Boca, sem dar crédito, ainda aproveitou para zombar dele dizendo: “vocês vão
pra igreja?”. Spagueti discretamente gesticulou com a mão direita, sinalizando silenciosamente com o
polegar, indicando que iriam beber. Por outro lado, em sinal de respeito à senhora ali presente, ele
confirmava verbalmente: “sim, vamos à igreja!”. Logo após isso, ele se despediu e saiu caminhando pela
rua mal iluminada por lâmpadas de luz amarela e, mais adiante, desapareceu de nossas vistas. Boca ainda
lançou um último comentário: “Deus tem um plano na vida desse cara, pois ele já aprontou muita coisa,
ele era considerado o terror”.
Esperamos por mais alguns minutos, quando chegaram Amauri e Conrado e um outro jovem
amigo do grupo. Cumprimentamo-nos, eu me desculpei novamente pelo atraso e, logo em seguida,
entramos na casa. Ficamos numa confortável sala onde nos acomodamos num sofá. Assim que sentamos,
eu passei a explicar um pouco sobre meu trabalho, eles, por sua vez, questionaram se eu estava
escrevendo um livro ou se se tratava de um trabalho profissional. Eu procurei esclarecer todas as suas
dúvidas sobre a finalidade, bem como sobre os procedimentos implícitos na realização de um grupo de
discussão. Antes de começarmos, chegou o Denis, mais um integrante do RP, acompanhado de um
amigo, Fábio (Fm).
Nessa ocasião, aproveitei para testar um elemento motivador para a dinâmica do grupo de
discussão. Propus que antes do início das perguntas assistíssemos ao filme Rap, o Canto de Ceilândia44.
Perguntei-lhes se conheciam o filme e se desejariam assisti-lo. Todos concordaram. Durante a
apresentação, observei que eles diziam coisas do tipo: “Somos a terceira geração do rap”, “Meu pai
passou para mim e vou passar para meu filho”. Também diziam coisas do tipo: “Conheço aquele lugar,
aquela pessoa. Poderíamos ter participado disso”. De um modo geral, eles se reconheceram naquela
imagem produzida sobre a Ceilândia. O filme remetia a uma construção da memória coletiva da
juventude local e, em especial, dos jovens envolvidos com o rap.
44
Filme dirigido por Adirley Queiroz, ganhador do prêmio de melhor documentário no Festival de
Cinema de Brasília em 2005, o filme narra algumas trajetórias dos fundadores do hip-hop do Distrito
Federal. Como todos esses músicos advêm de Ceilândia, o filme se tornou um marco iconográfico em
relação à autoimagem da juventude local dessa cidade. Além disso, Adirley é morador de Ceilândia e se
identifica com a causa de desenvolvimento de uma produção local de audiovisual em comunidades de
periferia, o que implica uma reformulação do sentido de produção do audiovisual.
Breitner Tavares
129
Quando, de fato, iniciamos o grupo de discussão, notei duas coisas: a primeira é que eu não
precisei recorrer ao tópico-guia, pois já havia internalizado as questões. Também notei que muitas das
perguntas foram contempladas espontaneamente sem que eu necessitasse apresentá-las. Eles mesmos
estavam discutindo suas experiências. Notei que Denis falava pouco. Ele era o membro mais recente do
grupo e, além disso, vivia em Águas Lindas (GO), portanto, suas experiências, apesar de semelhantes às
dos outros, foram vividas em outra comunidade. Boca, Conrado e Amauri, por outro lado, cresceram
próximos à QNV. Amauri assumiu desde o início uma postura de liderança e centralidade na discussão.
Ele normalmente realizava suas narrativas num tom de seriedade, acompanhadas por todos atentamente.
Conrado, por sua vez, comentava as falas de Amauri de um modo mais brando, às vezes, tentando manter
uma atmosfera de tranquilidade e, às vezes, de humor, como contraponto à extrema seriedade de Amauri.
Conrado também zombava de Denis, que tentava se defender sem contra-atacá-lo.
Após uns quarenta minutos de entrevista, chegaram mais três pessoas a convite do RP. Emanuel
(Em), Hélio (Hm) e Gabriel (Gm), músicos e produtores locais, amigos e parceiros do Resistência
Periférica. Eles chegaram silenciosos e gradualmente passaram a intervir nas questões apresentadas.
Quando os assuntos violência policial e discriminação racial surgiram, houve um alvoroço, o que
podemos assinalar como uma mudança de foco, pois todos queriam falar ao mesmo tempo, muitas
opiniões eram discordantes entre si, mas procurei ficar em silêncio, alguns se exaltavam, se irritavam,
mas tudo num contexto de equilíbrio e respeito mútuos.
Ao final, foi reapresentado o filme para os que não tinham visto no início, e enquanto isso, os
demais preencheram os questionários. Depois fomos para fora da casa, onde a sogra de Amauri serviu
pipoca para todos. Eu me senti num ambiente muito amigável. Também aproveitei para tirar algumas
fotos dos presentes. Agradeci a todos pela entrevista e finalmente me retirei. Denis e seu parceiro ainda
pegaram uma carona comigo até o Centro, a uns 8 km de onde estávamos, pois eles voltariam para Águas
Lindas. No percurso, eles comentaram que lá havia vários grupos, mas a cidade não oferecia qualquer
oportunidade. Mencionaram também a existência de algumas rádios comunitárias na região. Ao chegar ao
Centro, nos despedimos, eles agradeceram e parti em seguida.
O perfil dos jovens do grupo Resistência Periférica
Amauri (Am) é o líder do grupo, cantor e compositor das letras. Ele tem 24 anos, é negro, casado, tem um
filho, possui 7 irmãos, vive atualmente com sua companheira. Possui o ensino médio incompleto e está
desempregado, mas pretende estudar direito e advogar no futuro. Amauri gosta de jogar futebol, de
frequentar samba e tomar cerveja, além de curtir rap. Ele atua num grupo que trabalha a conscientização
popular em seu bairro há dois anos e meio. Costuma se encontrar diariamente na casa dos amigos do
Breitner Tavares
130
grupo. Ele conheceu este grupo na vizinhança onde mora por acaso, a partir da afinidade musical pelo
rap. Sua companheira possui o ensino fundamental completo, seu pai possui o ensino fundamental
completo e definiu sua mãe, em termos educacionais, como analfabeta.
Boca (Bm) é cantor tem 23 anos, é negro, casado, possui 3 irmãos, tem um filho e vive com sua
companheira em Ceilândia, cidade onde nasceu. Concluiu o ensino médio e trabalha como estoquista e
cantor de rap, ele gostaria de trabalhar numa profissão que “incentivasse” as pessoas, como exemplo
desse tipo de profissão, ele cita a de professor. Seu lazer predileto é cantar rap, informa que está
envolvido em atividades comunitárias no bairro e que ajuda a juventude a mudar sua perspectiva, definida
por ele como “ajudar os irmãos”. Boca informa que conheceu o grupo nas ruas, “vivendo o dia-a-dia da
Ceilândia”, explica. Ele mencionou participar de organizações na cidade voltadas para a juventude, como
o Grupo Atitude e CUFA (Central Única das Favelas). Sua companheira possui o ensino médio
incompleto e é dona de casa. Seu pai, falecido, era de Belo Horizonte (MG) e sua mãe, também mineira,
não concluiu o ensino médio e é dona de casa.
Conrado (Cm) é cantor, tem 21 anos, é negro, separado, não tem filhos, possui 4 irmãos e vive com os
pais em Ceilândia há 13 anos. Ele diz que, em termos de religião, se “identifica com o evangelho”.
Conrado não concluiu o ensino médio e está fora da escola, atualmente está desempregado, mas pretende
se tornar professor no futuro. Ele tem como principal lazer cantar rap. Ele não participa de nenhuma
associação comunitária, ele diz que está no grupo há 6 anos e se encontra com seus parceiros quase
diariamente na casa de Amauri. Conrado diz ter conhecido o grupo na vizinhança a partir de conversas
com outros jovens, “na rua, trocando idéias”. Seu pai é de Goiânia (GO), concluiu o ensino médio, e sua
mãe é de Taguatinga (DF) e também concluiu o ensino médio.
Denis (Dm) tem 27 anos, é branco, vive com sua companheira e tem uma filha. Denis nasceu em Brasília
(DF), mas vive em Águas Lindas (GO) há 14 anos. Ele informa ter irmãos, mas não diz quantos. Denis
informa que não está na escola no momento e que trabalha como motorista de transporte alternativo em
Águas Lindas. Não informou sobre as atividades que gostaria de exercer no futuro. Seu lazer preferido diz
respeito a tudo que envolva o rap. Denis está no grupo RP há 8 meses e se encontra com seus parceiros 2
vezes por semana na QNV. Menciona que conheceu o grupo através de bailes que ocorriam na
vizinhança. Sua companheira não concluiu o ensino fundamental. Seu pai é da Paraíba e não concluiu o
ensino médio, sua mãe é de Minas Gerais e não concluiu o ensino médio.
Fábio (Fm) tem 19 anos, é branco e piauiense. Ele é solteiro e sem filhos, vive em Águas Lindas de Goiás
com seus pais e possui 5 irmãos. Concluiu o ensino médio, participa do programa Primeiro Emprego e
gostaria de se tornar um disc jockey (DJ) profissional. Fábio gosta de ouvir música nas horas de lazer.
Seus pais são do Piauí e possuem o ensino fundamental incompleto.
Emanuel (Em) tem 32 anos, é branco, casado e tem 3 filhos. Ele vive em Ceilândia, onde nasceu, com
seus pais e sua companheira e tem 7 irmãos. Possui o ensino médio completo e não está estudando no
momento, mas pretende cursar direito. Trabalha como representante comercial há 12 anos, o que inclui a
produção de eventos, como shows de hip-hop. Encontra-se com o grupo 3 vezes por semana na Ceilândia
Norte. Ele conheceu esse grupo em sua vizinhança, através de reuniões comunitárias. Sua companheira
Breitner Tavares
131
possui o ensino médio completo e trabalha como secretária. Seu pai é de João Pessoa (PB), possui o
ensino fundamental incompleto e é bombeiro hidráulico, sua mãe é de São Luis (MA), possui o ensino
fundamental incompleto e é dona de casa.
Gabriel (Gm) tem 27 anos, é branco e afirma ser cristão. Ele vive com sua companheira em Ceilândia,
onde nasceu, e não possui filhos. Ele tem 5 irmãos. Gabriel concluiu o ensino médio e não está estudando
no momento, além disso, está desempregado, mas pretende se tornar produtor musical. Seu lazer predileto
é jogar bola e cantar rap no grupo que já está há 7 anos. Ele costuma encontrar com seu grupo 1 ou 2
vezes por semana em seu barraco. Conheceu o grupo na vizinhança, através do interesse mútuo pelo rap.
Sua mãe é de Barra do Corda (MA), trabalha como doméstica e possui o segundo grau incompleto, sua
companheira não concluiu o ensino fundamental e é auxiliar de serviços gerais.
Hélio (Hm) tem 30 anos, é negro, casado e tem dois filhos. Afirmou não ter religião, disse possuir irmãos,
mas não informou quantos. Ele concluiu o ensino médio e informou que trabalha como agente
penitenciário para adolescentes e pretende obter um emprego público no futuro. Helio é capoeirista há 15
anos e se encontra 3 vezes por semana com esse grupo, que conheceu no centro comunitário.
Figura 11 Sociograma do grupo Resistência Periférica
A formação do Grupo Resistência Periférica
Y pergunta sobre a formação do grupo. Os membros do grupo se apresentam, informando seus
nomes e idades. Denis (Dm) informa seu nome e idade e, logo em seguida, menciona que está no grupo
desde 1997, quando o grupo tinha o nome Liberdade MCs. Ele informa que canta rap desde os 12 anos de
idade e que agora está com 27. Em seguida, Boca (Bm) informa que também está no grupo desde sua
formação original, que já chegou a ter quinze componentes. Com a sua entrada, o grupo definiu seu nome
atual, Resistência Periférica.
Y:
Como começou o grupo de vocês? Antes disso, também gostaria de saber o nome e a idade de
vocês.
Breitner Tavares
132
Am, Bm, Cm, Dm, Em: (3). Pode ser nome e apelido?
Y:
Sim. Pode ser apelido, sim.
Dm: Meu nome é Dm, eu tô no SR de 2001, mas minha correria no rap é desde 97 quando eu formei o
grupo Liberdade MCs com mais três muleque. Desde os doze anos que eu canto rap, e tô com
vinte e um anos de idade. (2).
Bm: Pois é. Meu nome é Bm. (2). Tipo, desde o começo, né Am? Os muleque formo um grupo de uns
quinze. A QNX todinha participava @( )@. Altas quebrada, os tipo, os muleque fez uma gangue.
Formô um grupo, né Am? Aí quando eu caí pra dentro nós formô o SR que só foi três muleque que
montô. Daí vei a parceria mais forte que foi com o Cm e o Am.
Y:
Bm:
Pode crê.
A gente vai chama a RH vai ter a participação do Exp. ClA A, L Crim, do Racio R, do Maro, do
Jord, do Wld boy. China. O China é como se fosse o @padrinho pra nós@ @(1)@.
Y:
Pode crê.
Bm: É padrin que eu falo, assim mais próximo.
Am: Próximo @(1)@ ((interrompe Bm, brincadeira, remete a um duplo sentido a relação de
apadrinhamento do grupo com China)).
O interesse pelo rap, enquanto um estilo que representa um habitus voltado para uma juventude
pobre e de periferia, levou a um envolvimento de vários jovens na QNX. O interesse dos jovens locais e a
interação que os vínculos vicinais permitiam entre vários jovens da QNX definiram, a partir de uma
afinidade, uma seleção de alguns jovens que compuseram a atual formação do grupo, definida como uma
“parceria mais forte”, que “tomou o rumo certo”. Para além da formação de um grupo com quatro
integrantes, há toda uma cadeia produtiva envolvendo desde os músicos rappers, passando por produtores
musicais especializados na mixagem de um CD, agentes organizadores de festas e eventos. Além disso,
há a participação de outros jovens que frequentam os eventos, como shows de rap ou bailes, que apreciam
as melodias do grupo, que está identificado com o rap feito por eles mesmos, de modo independente, em
nível local.
Em relação às práticas sociais de mobilização dos grupos, com vistas a uma produção local,
mencionam-se várias parcerias que ocorrem dentro de um sistema precariamente estratificado de agentes
que compartilham alguma influência no grupo dos produtores. O grupo define os indivíduos com maior
influência de “padrinhos”. Eles são os principais agentes, capazes de propiciar o avanço de grupos
amadores ainda sem prestígio ou reconhecimento. Os padrinhos podem ser rappers mais experientes que
já gravaram um CD, alguns são radialistas de rádios comunitárias, com transmissão local ou regional,
outros são promotores de eventos como shows ou bailes. Em geral, os padrinhos são pessoas que já detêm
um capital social responsável pela capitalização de recursos que permitirão uma relativa mobilidade dos
grupos de rap em termos de produção e formação dos mesmos. Portanto, os padrinhos são definidos
como aqueles que estão “mais próximos”. Durante a entrevista, o termo padrinho gerou certa tensão no
Breitner Tavares
133
grupo. Vários nomes de rappers foram citados, alguns com renome nacional. Alguns jovens ironizavam a
expressão “estar mais próximo”, com expressões de duplo sentido, em relação a uma suposta tutela do
padrinho ou mesmo em relação a algo que punha em xeque a identificação do grupo com a
masculinidade.
Bm: Vai lá. Dá a sua idéia. ((passando a palavra para DM)).
DM: Meu nome é Dm do Exp CA, tenho vinte e sete anos (3).
Am, Bm, Cm @(1)@.
Bm: @Todo mundo aqui é velho@.
Dm: Eu comecei no rap desde antigamente. A primeira letra que eu fiz foi aquela(
) lá de
antigamente aquela.
Cm: “Cuidado não sei o que pá”.
Dm: A primeira letra que eu fiz nesse estilo foi em 97, que inclusive eu nem gravei (2). Aí eu fiz a
formação com os muleque lá da Prive, inclusive com o “L” que morava aqui e mudou pra lá. Aí a
gente gravou o primeiro som em 2001, daí entrô o E. que morava aqui também, e agora mudou pra
Samambaia. A gente tá tentando seguir o mesmo caminho do SR e com fé em Deus um dia a
gente chega lá.
Ainda durante as apresentações, Denis diz que tem 27 anos, faz uma pausa, e isso desperta o riso
dos demais, que afirmam que todos ali são velhos. Isso gerou alguns comentários sobre a origem do
grupo, os jovens relembraram trechos das primeiras letras que não foram gravadas. O grupo demonstra, a
partir de seus exemplos, o grau de envolvimento entre diversos grupos na região na elaboração de uma
linguagem em torno do rap com vistas a criar uma representação para a juventude local. A preocupação
com os detalhes da produção e distribuição do trabalho do grupo é discutida a partir desses vários
encontros ocasionais em Ceilândia originariamente e, posteriormente, envolvendo grupos de Samambaia
(DF) e Águas Lindas (GO).
O grupo apresenta várias narrativas que se voltam para as situações que propiciaram a formação
do grupo. Amauri, ao narrar as primeiras experiências do grupo, conta que era extremamente tímido e não
gostava da idéia de subir num palco para cantar rap. Contudo, o seu interesse pelo estilo e a amizade com
os jovens do setor QNX o levaram a enfrentar sua timidez e a investir no grupo, se tornando um dos
principais vocalistas, “MCs”. Quando se encontraram, “a gente se trombô”, a princípio, houve certa
desconfiança entre ele e os demais integrantes do grupo, como define Amauri: “(o grupo) ficou de
segunda comigo”. Ele conta que na verdade havia até certa inimizade que o envolveu em problemas,
como rixas. Contudo, isso logo foi superado e a afinidade em comum pelo rap uniu o grupo. Mais
adiante, o grupo menciona que fez contato com um importante rapper da cidade, que lhes passou uma
base rítmica e melódica produzida por ele para que fosse cantada com uma letra produzida pelo grupo em
estúdio musical. Isso propiciou a primeira apresentação do grupo, que ocorreu numa escola pública da
QNX. Ele conta que se sentiu muito nervoso, mas foi aí que o grupo realmente se firmou.
Breitner Tavares
134
Am: E o bagulho é interessante, né Bm? Tipo assim, eu nunca tinha cantado rap.
Bm: Aí tem história muleque.
Am: A história foi cabulosa, não foi Bm? A gente se trombô, não foi ?m ? ele até ficô de segunda
comigo. Aí os caras: “vamos pegá”. E ninguém me pegava. Aí eu falei vamu fugi. @Eu parecia
uma minhoca@. Depois disso nos começamos a trocar ideia (1) esse negócio de que gostava do
rap. Falava pra ele que gostava do rap e coisa e tal. Eu falei que gostava do rap desde pequeno e
tal. Aí ele falô que queria até me contratar, me dá uma força. Aí eu falei pra ele que tava com o
muleque, mas ele era devagar pra carái, o Em tal lá da 22 da Ceilândia. Aí beleza. Aí um belo dia,
o Nei chega aqui, não é Bm? “Aí muleque qué trombá com nois, o outro muleque lá saiu. Até Em
ficou de segunda ((mudança na entonação de voz para brincar com Em)) @(1)@. Aí ele me deu a
base e disse, você vai cantar isso aí. Aí eu cheguei no estúdio, passei a voz e deu certo. Aí eu fui
fazer a primeira apresentação foi aqui na 17 na escola. Eita Bm e só as perninhas tremendo. Aí eu
falei: “ou vai ou racha”, amarelinho. E foi lombra, isso aí. Tamu aí na caminhada até onde Deus
permitir.
Bm:
 O mais cabuloso foi ouvir no microfone o Am cantando rap ((todos riem)).
Am:
 Se tivesse sido em outra quebrada tinha sido mais fácil.
O grupo em diversas passagens relembra situações relacionadas a seu convívio familiar. Em
geral, em suas famílias, há um histórico da ausência paterna. As mães, como chefes de domicílio,
trabalham como empregadas domésticas e, em quase todos os casos, há na família algum irmão que se
envolveu em atividades criminosas. Em relação a isso, Boca se emociona e conta que começou a trabalhar
aos sete anos como engraxate para ajudar sua mãe com as despesas da casa.
Além disso, Boca menciona Spagueti, irmão de Amauri, como um jovem que era envolvido
anteriormente com a criminalidade, como assaltante e homicida, ficando conhecido na região por isso,
“ele apavorava”. O fato de ter um irmão nessas condições fez com que Amauri fosse estigmatizado ao ser
associado a seu irmão no Setor QNX. Contudo, Amauri pondera e diz que ele mudou significativamente.
Diante disso, o grupo discute como pessoas de famílias envolvidas no crime, que “mete assalto”, são
prejudicadas por uma imagem negativa. As pessoas dessas famílias sofrem preconceitos. Nessas
comunidades, as outras pessoas se afastam por temerem ser agredidas de alguma forma, “já vira as costas,
não quer nem andar perto”. O grupo alega que a população local tinha um prognóstico negativo em
relação a Amauri, um jovem que teve uma trajetória de vida bastante conturbada. Contudo, a formação do
grupo foi um meio encontrado para a superação da imagem negativa através do rap, de um novo status
social constituído a partir do estilo hip-hop.
Breitner Tavares
135
O grupo afirma que a vida de seus integrantes foi igual, “é a mesma coisa”. Diante disso, Boca
menciona que seu pai faleceu quando ainda era criança, assim como ocorreu com Amauri. Boca, para
ilustrar a dificuldade enfrentada por sua família, cita um trecho do depoimento do rapper Japão45, do
filme Rap, o canto da Ceilândia, em que ele considera que “sua mãe teve que limpar muita bunda de filho
de barão”. Boca conta que sua mãe trabalhava fora como empregada doméstica, nesse caso, ela dormia no
trabalho, ao menos três dias por semana, e não tinha, portanto, como “controlar seus filhos”. Ele conta
que vivia boa parte da sua vida na rua e um de seus irmãos se envolveu com a criminalidade, segundo ele,
“caminhou pro lado errado”. Contudo, Boca pondera sobre o comportamento de seu irmão ao dizer que
ele nunca cometeu um homicídio, ele “não tem maldade no coração”.
Sobre as guerras na QNX: Eles gosta de curti a lombra deles
Trajetórias familiares e o envolvimento dos jovens em conflitos locais
O grupo em diversos momentos apresenta histórias vivenciadas na QNX que apresentam
elementos para a constituição de um habitus a partir da socialização vivida no setor. A influência dos
irmãos, a imagem social do jovem na região, em geral associada ao banditismo, são exploradas como
forma de ilustração desses vínculos, ao mesmo tempo afetivos e estigmatizados.
Durante a discussão sobre o envolvimento de seu irmão na criminalidade, Amaro interrompe e
diz que eles tinham seu próprio modo de ser, “eles gosta de curtir a lombra46 deles”. Boca então
demonstra sentir orgulho dos seus irmãos, segundo ele, porque sempre lhe orientavam sobre os riscos da
criminalidade, dos quais ele deveria se manter distante. Ele relembra que, em algumas ocasiões, já quis se
envolver no crime, mas foi interpelado por seu irmão mais velho. Além disso, ele recuperou algumas
lembranças de quando seu pai ainda era vivo, mas não oferecia as condições necessárias para o sustento
da casa, “meu velho chegava (em casa) e não dava nada”.
Boca ainda menciona algumas ocasiões em que presenciou seu irmão mais velho usando drogas,
a ponto de se acidentar dentro de casa devido aos seus efeitos. Sobre esse aspecto, ele admite que também
havia experimentado drogas antes. Por fim, comenta que somente um de seus irmãos não se envolveu na
45
Japão é o nome de um rapper de Ceilândia. Ele é membro do grupo Viela 17, que já tem vários
trabalhos lançados no circuito comercial do rap de Brasília e nacional. Além disso, Japão é membro da
ONG Central Única das Favelas (CUFA), que foi fundada na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, e que
tem sucursais em diversas capitais do Brasil. Japão, portanto, é uma referência regional da CUFA e
possui várias entradas na formação de um campo político orientado por questões da juventude das
periferias urbanas, como Ceilândia.
46
“Lombra” se refere a um estado psicológico alcançado, em geral, pelo uso de drogas, mas nesse caso a
palavra se refere às escolhas existenciais dos jovens, com algo que causa prazer.
Breitner Tavares
136
criminalidade e que atualmente já está casado. Para Boca, essas experiências foram decisivas para sua
decisão de não envolvimento na criminalidade.
Contudo, logo após seu último comentário, Boca é interrompido por Amauri. Ele alega que, de
fato, todos ali estão de alguma forma “no crime” já “que é uma questão de sobrevivência”. Ele se refere a
estar numa comunidade com muitos problemas envoltos à criminalidade, que levam alguns jovens a
tentar se desviar constantemente desse tipo de apelo.
Bm:
Tipo assim, se você pega a história do Am, a minha e a do Cm.
Am:
 é tudo a mesma coisa.
Bm:
A do Am. Ele não teve pai. Tipo assim, ((ele)) morreu novo.
Am:
 eu fui criado com a minha mãe.
Bm:
 O meu pai eu perdi com sete anos(.), foi que nem o China falou, minha mãe teve que limpá
bunda de filho de barão, né? Eu cresci com quatro irmão, praticamente na rua. Porque não tem
condição, uma mãe que dorme no serviço, minha mãe dormia três dias no serviço e ficava os
outro em casa. Aí, tipo assim, não tem como controlar quatro filho. Tipo assim eu tive dois
irmão meu que caminharam pro lado errado, mas graças a Deus eles ((ruído externo)) não têm
maldade no coração, nunca matou ninguém, essas coisa assim.
Am:
ºEles gosta de curtir a lombra deles, né vei?º
Bm:
É isso que eu tô falando. Tipo assim, hoje eu bato parabéns até pra eles mesmo. Porque foi eles
quem me ensinô. Às vezes eu queria ir pro crime fazê as coisa errada. Aí o Cabeça falava, não tu
não vai não. (ele) ficava até chorando, o apelido dele era até Chora Rita.
Am:
E tipo assim, eu agradeço pelos exemplo que eu tive dentro de casa. Tá ligado? ((Eu))Vendo
meu velho assim pá. Chegava e não dava nada. Nois passava o maior veneno. E tipo assim, eu
via meu irmão usando droga e tal. Eu já experimentei, não vou menti não. Carái, meu irmão tá
) ºCaráiº meu irmão tá daquele jeito. O único que
daquele jeito. Caiu esse dia e tal. (
não deu trabalho foi o Jú gordin que já é casado e tal. Mas rapaz se eu (
) se eu não
tivesse tido esses exemplos de repente hoje eu tava no crime (.) mais aprofundado, tá ligado?
Bm:
No crime a gente já tá irmão. ºÉ questão de sobrevivência aí.º.(
) Tem que ir, tá ligado?,
desviando, parecendo super herói @(1)@. Isso é de rocha mesmo. Às vezes cê tá passando ali. O
Am pá.(
). Daqui pra:lí (
)Tipo assim. A gente tá subindo daqui pra 70. Os muleque da 79
não gosta dos da 70. Entendeu como é que a história? mas a gente tem que passa:li véi. O que
que a gente vai fazê? Tem que desviar, né véi? Falar e aí véi? Tranquilo? E aí pá. Passar por um
e por outro.
Durante a discussão com o grupo, surge uma metáfora de foco em relação à formação do grupo e
um aparente paradoxo criado por seus próprios discursos. Em diversos trechos, os jovens expõem como
Breitner Tavares
137
em suas famílias e comunidade onde vivem a criminalidade se constitui enquanto um problema a ser
evitado ou sanado. Para o grupo, “estar no crime” implica assumir uma trajetória de vida marcada pela
marginalização de jovens numa periferia como a QNX ,em Ceilândia, e redefini-la a partir da constituição
do estilo hip-hop.
O grupo discute como é a vida dos jovens na região onde moram. O grupo menciona que na
QNX já houve muitas divisões e rixas entre jovens das quadras 76 e 70. Os jovens do grupo, apesar de
viverem na quadra 70, alegam que não tomaram partido nessas diferenças, contudo, em diversas vezes,
eles tiveram que se identificar e cumprimentar os jovens das quadras rivais de modo a se evitar o conflito.
Afirma-se que, de fato, muitos jovens na QNX antipatizam-se reciprocamente.
O grupo comenta que as rixas eventualmente ainda ocorrem em função da ascensão econômica
de alguns indivíduos, que encontram emprego e passam a comprar roupas e produtos inacessíveis para a
maioria da população local. Isso, de certa forma, incomoda outros que não lograram o mesmo êxito, “eles
crescem o olho”. Nesse caso, gravar um CD ou videoclipe pode gerar algum tipo de contenda no setor
contra o grupo. Essa rivalidade se manifesta em geral por críticas na forma de comentários negativos
difundidos à revelia do grupo, feitas “pelas costas”.
Y:
Am mora na 79?
Bm:
Não. O Am mora na 80. (
Am:
Na verdade::na verdade assim, muita gente aqui não gosta de ninguém, véi.
Bm:
ºNão gosta de ninguém, você entendeu qual que é a idea?º
Am:
Não pode começar a ganhar uma micharia, num pode começá a fazê uns correzim, compra um
) na 17 e Cm em Águas Lindas.
tênis pá. Que os cara começa (1 )
Cm:
ºA crescê o olhoº.
Am:
ºA crescê o olhoº. Tá ligado? Muita gente fala por falar, mas gostá não gosta não.
Bm:
Se tu gravar o CD então, complica, @(1)@.
Am:
[(
Cm:
Tem uns que dá uma força e tem outros que cresce o olho.
Am:
Não. Mas tem aqueles que fala carái o clipe de vocês é doido e tal(
Cm:
mas ao mesmo tempo pelas costa ( ).
Am:
É real.
) é real.
).
Em relação à rivalidade entre as quadras 70 e 76, definidas como “guerras”, o grupo menciona
que houve, certa vez, um confronto entre os grupos na QNX em que morreram alguns amigos seus, de
ambas as quadras. Entretanto, o grupo buscou se manter numa posição de neutralidade, “a gente curtia
normal”. Isso era possível porque o grupo, através do rap, agradava os jovens das localidades com letras
que abordam problemas, como a vida na cadeia, a violência sofrida pelos jovens de periferia. Contudo,
havia certas restrições. Os jovens da 70 que gostavam do rap do Resistência Periférica alegavam que os
Breitner Tavares
138
mesmos estavam frequentando uma boate, “inferninho”, controlada pelo grupo rival, nesse momento, o
grupo desconversa sobre as possibilidade de retaliações impostas por um dos grupo envolvidos na
“guerra” local.
O grupo comenta que, eventualmente, era convidado a se apresentar em uma área controlada
pelos jovens da 76, mas sempre desconversavam por temerem as possibilidades de algum tipo de
emboscada. Nesse momento, eles descrevem o perfil de jovens, menores de idade, portando pistolas nove
milímetros, que eventualmente pegam qualquer um como bode expiatório, “pra vê se sente a dor”.
O grupo comenta que, em meio a essa história de confrontos, muitos morreram ou foram presos,
mas que felizmente esse conflito havia terminado. No entanto, o grupo ainda apresenta alguns
depoimentos sobre experiências que, segundos eles, motivavam o envolvimento de jovens na
criminalidade e na violência. O grupo apresenta sua versão dos tipos de situações que levam a juventude
local a se envolver com a criminalidade. Boca comenta num baixo tom de voz que as coisas haviam
mudado. O grupo relembra novamente Spagueti, irmão de Amauri, para tentar uma elaboração sobre a
origem das guerras que atingem os jovens na QNX.
Bm:
Pra tu vê. Lá onde nois mora Dm, entre a 76 e a 70, foi uma guerra que morreu camarada meu,
morreu camarada meu que morava do outro lado também que eu conhecia, tipo assim, morreu
muito tá ligado Am? Né Dm? E a gente, a gente ficava praticamente no meio véi. Mas só que a
gente ficava no meio (.)
Am:
Neutro.
Bm:
Tipo neutro.
Am:
 ºA gente curtia normalº.
Bm:
No meio, porque a gente, assim a gente morava na 70, e os muleque da 76 curtia o nosso rap
(1). Entendeu qual que é a história? Os muleque da 16 falava que a gente tava num inferninho
que era tipo uma boate lá (.) Só que a gente já não ia pra não dá motivo, entendeu? Pra não falar
pô. Se a gentefor pra lá os muleque (
) aí tipo assim ( )
Em:
(
Bm:
Os muleque de menor que anda com uma nove milímetro cheio de munição mermo, na cintura.
).
Você mora na Ceilândia, já sabe como é que é. Aí tipo assim, eu falava, aí Am é melhor a gente
ficar neutro na história, pá. Nois fazia nosso rap e os muleque da 76 curtia, mandava ( ). Os
muleque falava, manda os muleque do RP pra cantá aqui pra nois e tal. Aí nois falava(.)
Dm:
ºQuem vier vai levarº.
Todos: @(2)@
Bm:
@Sabe o que nois pensava?@ (
) Vamu não Bm. os cara vai querer pá (.) cum nois((
armando alguma coisa)). É tipo assim, os cara pega qualquer pra vê se alguém sente a dor (1).
Breitner Tavares
139
Dm:
Essa é a verdadeº.
Bm:
Entende só?
Dm:
 Muleque de dez anos (
Bm:
Tipo assim, foi uma coisa que a gente sobreviveu. Acabou, graças a Deus. Muitos foi preso,
).
muitos morreu. Tá ligado?
O grupo exemplifica o surgimento das guerras e descreve que numa ocasião alguém rouba uma
jaqueta de um jovem sem conhecê-lo previamente, pensando se tratar de uma vítima passiva. Contudo, a
vítima do assalto recorre a seus amigos, que, nesse caso, se mobilizam, para se proteger, adquirindo
armas, “ele junta um exército com ele”. Em seguida, ele busca uma revanche junto ao que efetuou o
roubo de sua jaqueta, que pode se sentir coagido, “ficando pequeno” e, portanto, dando início à “guerra”.
Bm:
Exatamente, ºnão seiº, no assunto, no Spagueti que nós tava trocando idéias no começo ((antes de
começar a entrevista – mundo do crime, falta de oportunidade)). Igual eu falei, a Expansão, com
três, sete anos de idade, eu andava na rua, já trabalhava, ((eu)) engraxava (
). Ah;(.) o
Spagueti;(.), já apavorava, incomodava praticamente ( ) né?
Am:  Um muleque que mudô né?
Bm: Aí o Am foi mais conhecido por ser até irmão né?
Y:
Só.
Bm:
De tá numa família, tipo assim. Se o Am tem uma mãe que é correria. Tipo assim, pro lado do mal,
que mete assalto ((Ela)) vai afetar ele também. Nem todo mundo vai vê só a mãe dele. Vai vê ele
também. (( todos comentam rapidamente)) Já vira as costa não qué nem andar perto. Entendeu?
Então todo mundo vê o Am no palco. Hoje em dia.
Am:
 Hoje em dia eu chegando naquela quadra lá Bm é cabuloso. Juntando um monte de gente na
frente dizendo “eu só quero ver”. Parecia que era o cabuloso.
Bm:
(
) uma fita meio estranha. Por isso que eu falei ((que)) parecia dois muleque. A gente chega
no palco e vai tratar o Am tipo assim: “seu filho da mãe”. Aí depois vai lá (
tal foi mal coisa e tal. Aí então chega no palco (
) não de boa ( )
) um puxa o outro. Tipo assim coisa das
antiga. Rolamo junto e deu certo.
Am:  (
) a nossa infância foi um bagulho cabuloso.
Em relação ao exemplo trazido pelo grupo, relembra-se o irmão de Amauri, Spagueti, que se
envolveu com a “malandragem”. Segundo o grupo, ele costumava trabalhar honestamente e com algum
dinheiro podia consumir roupas e acessórios de marca, como tênis Adidas, camisetas e casacos da moda.
Contudo, havia um traficante local, chamado Cião, que sempre o abordava e lhe roubava seus pertences.
Breitner Tavares
140
Em função de ter sido alvo de sucessivos assaltos, Spagueti decide comprar uma arma, na ocasião, um
revólver calibre 22, para se defender. Passado algum tempo, Spagueti presenteia seu irmão mais novo,
Amauri, com duas pipas coloridas, daí ambos decidem soltá-las próximo à casa deles, quando, de súbito,
são surpreendidos novamente por Cião, que lhes toma as pipas, além de um par de tênis de Spagueti.
Nisso, Amauri começa a chorar e Spagueti, sem dizer uma só palavra, o leva de volta para casa. Em
seguida, ele deixa a casa sem informar seu destino quando, algum tempo depois, Amauri é informado de
que ele havia matado Cião a tiros. Dessa forma, o grupo conclui que seu irmão se tornou um criminoso
por causa de um par de tênis. Após esse incidente, Amauri conta que seu irmão teve que se mudar para
outra cidade, São Paulo, para escapar das represálias locais e da polícia. Apesar do jovens reconhecerem a
malandragem como um caminho incerto Spagueti é idealizado a partir de uma dupla moral como
assassino e herói.
Dm: ºJá faz tempo agora mudou mais. Agora mudouº.
Bm: O Muga, Gaveta, Steel. Muleque de 16 anos perdeu a vida por causa de besteira, morreu. E igual o
Spagueti falou no início. Às vezes na guerra Am, tipo assim, o cara entende. O cara chega ali e te
assalta essa jaqueta tua. Gosto dessa jaqueta de couro. O cara vê o Am passando, só que ele não
conhece o Am. Chega “bora=aí é um assalto”. Aí pensa que tá assaltando qualquer um. Mas aí vai
vê, o Am junta um exército com ele, Eh=aí.
Am: Cabuloso
Bm: Fica pequeno.
Am: Meu irmão mermo entrô na malandrage, ó Bm, por causa disso aí.
Bm: ºEntão, tô ligadoº.
Am: [Ele trampava, tá ligado Bm? Antigamente tinha uns Adidas tratozin, né? Tal as peitas, os
moletonzões. Aí tinha um bicho que era traficante aqui, o Tião e dona Graça, que morava num
sobrado ali.
Bm: @Ei::ta@.
Am: Lá onde que o Wal mora ali, tá ligado? Aí: pá, toda vez que esse bicho via o Spagueti (ele) brec,
tomava, dava cabada, tomava as ropa tudo, o Spagueti vinha de cueca. Aí uma vez Spagueti
trabalhô um mês e compro um vintedoiszão argentino ( ) 13 tiro.
Bm:  @Ei::tá@.
Am: Naquele tempo quem tinha um 22 daquele era=era o (.) Zorro moço.
Bm: @(.)@.
Am:  @Era o cabuloso@. Aí o Spagueti me chamô e comprô duas pipa. Eu lembro até hoje. Uma do
Flamengo, e outra vermelha. E fomo soltá. Tamu lá soltanu as pipa lá, aí chega esse Tião ( . ) e
pára o Spagueti de novo e toma os tênis e as pipa (1). Eu venho chorando, nois viemos de boa,
né? º Aí belezaº (1) Certo dia nois tá aqui e só vê (.) meu irmão liga não sei pra quem aí avisa( )
ºtô chegando não sei da:on::de (1) acabei de matá o Tião dentro da casa dele e talº, maió lombra,
por causa de um tênis.
Breitner Tavares
141
Bm:
º(
) falando pra tu, eu já fui até carregado por um caminhão de lixoº.
Am:
 Cabuloso. Aí ele foi pará em São Paulo (
) e depois teve que volta de novo. Maió
lombra.
Após a narrativa de Amauri sobre sua história associada à de seu irmão, Boca define o sentido da
existência do grupo, “sua essência”, a partir de suas histórias de jovens que “cresceram nas ruas” da
periferia. Ele mais uma vez remete à memória de seus irmãos. Um deles costumava se dirigir ao outro
setor vizinho, chamado QN-OZ para roubar bicicletas. Boca conta que naquela época sempre queria
acompanhar seus irmãos mais velhos. Segundo ele, seu irmão nunca permitia sua companhia nessas
situações, por outro lado, ele lhe presenteava com roupas, “andava arrumado”. Diante disso, Boca conclui
que vê seus irmãos como “heróis”, não por seu envolvimento com a criminalidade, mas por seu esforço
para impedi-lo de não aderir a ela, todavia, ele pondera e reconhece que eles poderiam ter feito diferente,
mas eles não tiveram as devidas oportunidades de estudar e trabalhar.
Bm:
Porque a idéia que a gente tá dando aqui é tipo uma essência de tudo, né véi. Por que SR? Porque
a gente porra, gente cresceu no dia-a-dia na rua, eu mesmo véi, se eu for contar meu tempo pra cá,
de muleque mesmo assim, eu já tive uma (força) daquelas (
) agradeço meus irmão, né véi? Por
não ter deixado eu entrá pelo lado do crime. Querendo ou não ( ) os muleque ia robá(.) . ºRobá
mesmoº eu já ( robei) pá, ºvamu lá no Setor Oº robá bicicleta. Ia três. Eu doidim pra ir, e meu
irmão “ vai não, vai não”. Meu irmão ia, eu queria ir e ele não dexava, tá ligado, qual que é a
idéia? Ele cresceu me dava ropa, andava arrumado, e tal ( ) mas não gostava (( do envolvimento
no crime)). Eu acho que o Am e o Dm. Eu acho que a gente vê nossas família ( ). Tipo eu não vô
briga com meu irmão porque ele foi pro lado errado. Pelo contrário. Eu vejo ele como um herói,
de questão de não deixá eu ir também (1). Tá ligado? Não por que (
). Ele não foi certo. Pra
mim ele não foi certo. Ele podia ter estudado e trabalhado. Mas como é que você vai estudar e
trabalhar se você não tem condições.
Boca discute algumas experiências na escola. Nesse momento, o grupo fica em silêncio e o
observa atentamente. Boca relembra momentos em que, enquanto sua mãe trabalhava, alguns de seus
irmãos eram infrequentes na escola, mas sua mãe lhe dava uma atenção especial por ser um dos irmãos
menores. Ele alega que era sempre cobrado a ter bons resultados e isso lhe faz sentir bem. Isso lhe
permitiu ir “caminhando” no sentido de construir uma história diferente das dos seus irmãos. A disciplina
para os estudos que lhe permitiu concluir o ensino médio. A experiência na escola também foi importante
para o esforço criativo na elaboração de letras das primeiras letras de rap, bem como a criação do grupo.
O envolvimento com o rap é definido pelo grupo como um meio de alertar outros jovens quanto
à luta por justiça. Eles, num tom de riso, dizem que se tornaram os “advogados dos muleques”, ao se
Breitner Tavares
142
referirem à importância de não se permitirem ser humilhados e viabilizarem meios para a denúncia das
injustiças. Eles ainda mencionam que já acompanharam algumas trajetórias de jovens envolvidos nas
drogas que se recuperaram a partir do envolvimento com o rap.
Bm:
E antigamente, e antigamente (
Am:
Ela batia moço, a bicha era aloprada, (
Bm:
 E minha mãe né Em? Trabalhava né? Como é que cuida de quatro filho? (2) Né? Trabalhando
) minha mãe Am.
) pra cá, era aloprada.
mermão. E meus irmão ia pro colégio, às vezes não ia. E eu cresci, graças a Deus terminei o
segundo grau. Tá ligado? Eu fui um muleque, mas assim eu me sinto bem, minha mãe sempre
cobrava. Pelo menos da gente, de mim e do menorzinho. A gente sempre foi cobrado. Daí a
gente foi caminhando, tá ligado? Montamo o rap, começamo a escrever rap. Aí a gente saiu
mesmo assim. Isso aqui é pra nos alertar. A gente já começô a ser os a:::, como é que é? ( . )(( a
ser)) os @advogado do muleque@. Não porra, não é assim não, não dá mole não, vai, se a
polícia te bater, vai vai atrás, tipo assim, não fica sendo humilhado não porra.
Am:
Oprimido, né véi?
Durante a discussão o grupo trouxe um tema que se tornou uma metáfora de foco importante em
relação ao seu envolvimento na mobilização e solidariedade, mediante práticas de lazer na comunidade
onde vivem. Além de um grupo de rap, o Resistência Periférica desenvolve outras atividades relacionadas
ao entretenimento e, além de se divertirem em bailes e shows em diversas localidades, o grupo também se
envolve na promoção de eventos para a juventude local. Em relação a isso, o grupo realizou uma festa
para angariar fundos para a família de um jovem que havia sido preso recentemente em função do seu
envolvimento com os conflitos no setor. Ele havia deixado sua família sem qualquer recurso. Nesse caso,
ainda havia um agravante em relação à Ana Lú47, companheira do jovem preso, mãe de três filhos, pois
ela estava grávida e prestes a dar a luz ao quarto filho.
A relação de Ana Lú com o grupo se deu em função de sua participação na produção de um CD
como segunda voz, backing vocal. Portanto, sua situação gerou uma mobilização do grupo no sentido de
produzir um evento de lazer em torno do drama vivido por aquela família vinculada ao grupo. Mais
adiante, de modo amadorístico, o grupo produziu a festa. Encontrou um velho galpão num setor de
indústria próximo à QNX, elaboraram um cartaz e buscaram algumas rádios locais para a divulgação do
evento, além de terem convidado todos na região para prestigiá-lo. O grupo menciona que o espaço para a
festa ficou repleto de pessoas e que não houve nenhum incidente grave, apenas uma situação envolvendo
briga, isso porque, segundo o próprio grupo, eles mesmos produziram a festa, assim como sua segurança,
com permissão oficial da polícia.
47
O nome utilizado foi inserido pelo autor, pois o grupo não cita os nomes das pessoas envolvidas como
uma forma de preservar suas identidades.
Breitner Tavares
143
Bm: É. Que a gente fez tipo um frevo tipo pra ajudar a famílias dos preso. Dos cara que tava preso. Tipo,
porque. a dona que participou do nosso CD que é a Ana Lú, ele tinha o parcero dela que tava
preso, o marido. Ela tinha três filho com ele e tava pra ganhar nenê. Inclusive ela passô o bode de
quase ganha nenê. Aí ela tipo chego ná gente, trocô uma idéia e a gente, pô. o que a gente vai fazê
pra ajudá ela? Salário não dá. O Am não trabalha, não dá. Ninguém, eu tenho filho (
) Vamo
fazê um evento. Nóis fez um evento num @galpãozão tipo abandonado@.
Am: Não deu nada, graças a Deus.
Dm: Se a gente faz unido, entendeu?
?m: Deu uma briga.
Em: Deu uma briga mesmo ainda Fm.
O grupo menciona que todo dinheiro obtido com a festa foi revertido para pagamento das
despesas com o evento, tais como: divulgação, a reserva dos espaços e para ajudar Ana Lú. De fato, o
acontecimento da festa chegou ao conhecimento de vários presos da Papuda, algo que gerou um
reconhecimento para o grupo, que tematiza a questão carcerária em suas letras. O grupo menciona que
através dessa festa pôde conhecer vários outros jovens que tinham experiências semelhantes as suas no
sentido de terem perdido amigos e familiares que se envolveram no passado com o crime. Boca
menciona, inclusive, que alguns jovens mortos nesse tipo de conflito eram mais novos que ele algo que o
deixa sensibilizado, pois o remete à sua antiga condição “de irmão mais novo” que foi orientado sobre a
importância de não ir “para o caminho errado”.
Am:
E essa idéia é tão cabulosa Bm, que ontem chegou uma carta lá do presídio do Fabim pra nois,
óh. Obrigado pela força Família (
Bm:
) viu, tá aí viu ?m?.
[ Aí. É isso que eu tô falando. Tipo assim. Tá ligado nessa fita aí que
a gente fez muleque? Foi uma fita pomposa véi, a gente não ganhô nada.
Am:
ºTá bem aquiº ((mostrando um trecho da carta para ?m)).
Bm:
Eu achei massa pelo seguinte. Querendo ou não, querendo ou não, tu=tu vai olhar assim: pô, os
cara tão tudo preso, é tudo marginal. É que nem teve pessoa que virô pra mim e disse: “tu vai
ajudar marginal mermão, tu tá doido, pega esse dinheiro e investe”. Aí eu fiquei pesando. Pô
muleque, eu tô querendo dá um trampo pra família dos cara tá ligado, família dos cara, tá
ligado?; que necessita, a dona tava perto de ganhar neném e não tinha uma fralda, uma ropa.
Am:
Pô, Bm, naquele dia eu fiquei até sentidão. Você chegou em mim e : (
Bm:
Não tinha uma ropa, quer dizer, não era papel nem nosso.
).
O grupo menciona algumas histórias em que jovens foram mortos nas guerras, em alguns dos
detalhes discutem-se detalhes de mortes ocorridas com jovens no setor. Os jovens contam que um jovem
chamado Batata, mais conhecido como Tata, presidiário e amigo de Boca, recebeu uma permissão para
Breitner Tavares
144
visitar sua família no dias das mães. Tata tinha uma contenda, “guerra”, com jovens da quadra 70. Tata
vai à casa de Boca, contudo, ele não estava em casa para recebê-lo, quando Tata resolve deixar o local,
ele é visto por um desafeto, que lhe mata a tiros. Ele deixou dois filhos.
Os jovens comentam que a festa, que tinha como um dos objetivos apoiar a família de um
detento, gerou uma boa repercussão. O grupo recebeu cartas de agradecimentos de presidiários pelo
esforço do grupo em dar algum apoio às famílias de presos. Boca ainda reconhece que teve dúvidas
quanto a sua atitude, ele conta que se perguntou por que ajudar marginais presos. Alguns de seus amigos
ainda lhe sugeriram que ele investisse o dinheiro no próprio grupo. Entretanto, ele alega que, ao pensar na
condição de Ana Lú, ele se remeteu a sua própria trajetória, quando era soldado das Forças Armadas e foi
forçado a sair prematuramente devido a problemas disciplinares com a corporação. Dessa forma, o jovem
que sonhava seguir carreira militar, tinha ficado naquele momento desempregado, estava prestes a se
tornar pai, pois sua companheira naquela ocasião estava grávida, assim como a companheira de seu
amigo preso mais recentemente. Boca conta que naquela ocasião contou com a ajuda de seu irmão, que
acabava de deixar a prisão e iniciava um novo trabalho. Essa situação o levou a tomar a decisão de ajudála, ao invés de simplesmente ficar com o dinheiro para si mesmo.
O grupo conclui que as pessoas que têm dinheiro, um “riquim”, não compreendem a realidade
que o jovem enfrenta numa periferia como a QNX, portanto, eles se põem a criticar. Para o grupo, como
menciona Boca, caso uma dessas pessoas viesse à QNX e se mantivesse ali por uns dois meses, ela
descobriria que a realidade é bem diferente, “chegaria com outra cabeça”. O grupo conclui que nem todos
os presos encarcerados se comportam comportam como crianças, muitos ao serem perguntados por suas
atitudes homicidas e de assaltantes se põem a chorar. Boca conclui que a condição de preso “não é vida
não”.
7.3 Sobre as orientações coletivas dos jovens dos grupos analisados: algumas considerações
conclusivas
Os grupos de rap apresentaram diversas semelhanças, o que não implica um caráter homogêneo
no que se refere à sua formação e envolvimento com o rap. As relações vicinais estruturadas pela escola e
pelas limitações geográficas que os bairros impuseram foram decisivas para a realização de um encontro
dos jovens. Há um protagonismo jovem que chama atenção para um envolvimento no sentido da mudança
social em suas vizinhanças e famílias. Os jovens buscam assumir a responsabilidade por aquilo que, às
vezes, chamam de “revolução” ou “correr atrás de algo verdadeiro”. Além disso, o ambiente familiar se
configurou como um espaço relativamente importante para a socialização e contato com gerações mais
velhas, representadas pelos pais, mães, padrastos ou irmãos. Contudo, apesar da ênfase dada à família e
ao respeito aos mais velhos, esse tipo de argumento paralelamente informava o desejo e as atitudes dos
jovens no sentido de construção de um contexto geracional específico, de um espaço paralelo ao mundo
adulto, onde eles pudessem construir sua identidade a partir do seu estilo de vida, com suas respostas aos
problemas enfrentados em seu cotidiano.
Breitner Tavares
145
Sobre a formação dos grupos, o BR45 e Rap Comando se originaram de maneira semelhante,
ambos a partir de projetos promovidos por instituições assistenciais que atuam em escolas no setor QNZ,
onde os jovens residem. Os projetos envolviam a discussão de problemas locais associada a uma noção de
cidadania, utilizando a estética hip-hop e, mais especificamente o rap, para mobilizar os jovens num tipo
de empreendedorismo, já que o objetivo era motivar os jovens a trabalhar com música. O grupo BR45,
formado há mais de dez anos, frequentou esse tipo de oficina até decidir deixar o ambiente da escola para
atuar como artistas locais representantes do estilo rap. O grupo Rap Comando, por sua vez, é um grupo
formado recentemente, há seis meses, e ainda frequenta o espaço das oficinas como uma possibilidade de
se encontrar nas vizinhanças, bem como uma forma de aprender aspectos técnicos que envolvem o rap e
o grafite enquanto estéticas do hip-hop, importantes para o grupo.
Contrariamente, os grupos Revolução MCs e Resistência Periférica surgiram da relação vicinal
entre jovens que se encontravam nas redondezas do setor onde vivem, em quadras esportivas, jogando
futebol ou em bailes. Eles compartilham das mesmas experiências que os motivaram a criar o grupo.
Diferentemente dos jovens do BR45 ou do Rap Comando, o Revolução MCs e Resistência Periférica não
foram produzidos no interior de programa assistenciais ou ONGs, mas a partir da iniciativa de grupos de
afinidade que passaram a agir como jovens empreendedores locais e que compartilhavam das mesmas
situações existenciais de pobreza e exclusão social. Todo o processo de elaboração desses grupos,
passando pela elaboração de um nome representativo, bem como pelo tipo de letras que iriam abordar,
dentre outros aspectos da formação de um sistema de gostos expressos por suas orientações coletivas, está
associado ao processo de autoaprendizagem a que os grupos se submeteram na busca de uma identidade
em comum e de determinados fins para sua práxis estética.
Em relação à elaboração de um projeto político-pedagógico, os grupos estão voltados para um
conjunto de práticas lúdicas e consumo de bens identificadores com os sentidos de uma missão
transformadora. Diante disso, o grupo BR45 discute seu processo de formação seletiva, em que muitos
não resistiram devido a seu envolvimento com o uso de drogas e a pichação, prática contrària à ética do
grupo. Criar um grupo de rap foi o meio encontrado por esses jovens para apresentar um contraponto,
uma aposta num futuro livre desses problemas. Além disso, o envolvimento com o rap, com a capoeira
permitiu ao grupo se reconhecer como um produtor de “cultura” no sentido de um conjunto de práticas
identificadoras de uma negritude. Essa combinação entre rap e capoeira é definida como a “mais forte
atualmente”, dado o seu potencial de envolvimento e ação política da juventude submetida à espoliação
nas periferias urbanas.
Os jovens do Rap Comando argumentam que o rap é uma forma de expressão artística e política
dos problemas que enfrentam em sua cidade. O sentido de mudança social para esses jovens se expressa
no sentido de “correr atrás” de algo “verdadeiro”. A crônica social elaborada nas letras do grupo
representa um meio de organização e mobilização locais pelas mudanças que julgam necessárias para
superar os constrangimentos sociais, definidos como as “humilhações”.
O grupo Revolução MCs, de modo semelhante ao grupo BR45, reivindica o sentido de uma
missão política para realizar o resgate daqueles envolvidos no “vício do álcool e das drogas”. O meio para
Breitner Tavares
146
essa mudança de atitude está relacionado ao potencial lúdico e atrativo que o hip-hop apresenta para a
juventude. O rap enquanto uma forma política de identidade adquire uma conotação mais efetiva em
termos de sua capacidade de transformação quando associado à conversão religiosa protestante. A
orientação religiosa redefine os vínculos afetivos de amizade entre os jovens e suas famílias, o que gera a
capacidade de mobilização social para lograr suas finalidades políticas de “resgate social”.
O grupo Resistência Periférica enfatiza as trajetórias familiares de seus integrantes, bem com de
outros jovens que compartilham das mesmas condições de violência enfrentadas na QNX. O
enfrentamento desses problemas seria o eixo norteador de uma formação geracional em relação ao hiphop e ao rap, com vistas a criar uma representação política a partir de manifestações estéticas.
Em geral, o sentido de missão política voltada para a mudança social assumida pelos grupos,
apresentada de diversas maneiras, tais como “revolução”, “cultura forte”, “buscar algo verdadeiro”, entre
outras, não passa pela perspectiva dos movimentos sociais político-partidários ou de uma esquerda
política institucional, com ideais revolucionários tradicionais. De fato, os jovens se organizam de modo
autônomo e defendem uma intervenção de natureza assistencialista através de ONGs nas regiões onde
vivem, com um meio ambiente urbano desprovido de equipamentos públicos voltados para o lazer e
programas sociais para a juventude.
Em relação à visão do espaço social urbano, os jovens dos grupos denunciam que, mesmo em
sua região, os valores individualistas prevalecem em detrimento de valores associativistas e comunitários.
Mesmo vivendo em meio a um setor desprovido de infraestrutura e falta de lazer, as pessoas estão mais
preocupadas em “andarem bonitinhas”. Os grupos defendem uma intervenção no sentido de se garantir o
direito à cidade por práticas lúdicas de lazer e esportes. Essa seria a garantia de uma redução do quadro de
violência nas cidades onde vivem.
Os jovens dos grupos, em geral, defendem um protagonismo jovem, em que o rapper assumiria
o caráter formal de uma liderança comunitária no sentido de defesa dos interesses locais. Essa prática se
daria pelo rap como uma forma de veiculação de protesto e engajamento em defesas dos jovens, como
mencionado na expressão do grupo Resistência Periférica: “ser os advogados dos muleques”. O sucesso
enquanto empreendedores musicais também deveria ser consequência da criação de uma nova cultura
política. Por outro lado, os grupos reconhecem a dificuldade de se alcançar o ideal de uma transformação
frente a valores que primam por relações mais impessoais e individualistas, mesmo na periferia da
metrópole. Os jovens, de maneira geral, não desferem uma crítica direta ao Estado enquanto forma
representativa de governança, eles simplesmente discutem a ausência dessa governança e se mobilizam
como entidade associativista, capaz de mobilizar a população local em práticas sociais, como o mutirão
para a solução das demandas locais.
Em relação à percepção do espaço urbano e de possíveis interações sociais, os grupos descrevem
os valores que são predominantes numa periferia em duas diferentes abordagens. Em relação à primeira,
de tom distópico, os jovens afirmam que os desacertos ou rixas são frequentes como forma da
materialização da violência que atinge, principalmente, os jovens em seu cotidiano na escola, nos campos
de futebol, na esquina, nos bailes, entre outros. A violência entre jovens é naturalizada como parte da
Breitner Tavares
147
rotina cotidiana, base para o discurso de “resgate” social. Existe uma mitificação dessa representação
social da violência a partir de estereótipos urbanos, onde há criminosos e policiais corruptos, de um lado,
e a população refém de um estado de descontrole social, de outro. Em relação à segunda abordagem, essa
está relacionada a uma mobilização, “correr atrás” ou “ser os advogados dos muleques”, o que se
relaciona ao item discutido anteriormente sobre protagonismo jovem e sentido de mudança social. Em
geral, os jovens enfrentam grande dificuldade para realizarem seus projetos como produtores locais e
como lideranças políticas em potencial.
Em relação ao enfrentamento de uma perspectiva urbana e distópica materializada, definida pela
violência, os grupos defendem uma reelaboração das regras sociais, em que a humildade e o sentido de
existência do grupo passam a ser parte da etiqueta urbana. Para isso, cria-se um conjunto de gestos, o que
seria um atributo do estilo rap, uma estratégia jovem de sobrevivência, que é materializada corporalmente
pelo vestuário característico do estilo hip-hop.
Durante as discussões com os grupos de rap, ao apresentarem suas queixas sobre os problemas
locais, como pobreza e violência, bem como ao falarem da dificuldade para uma mobilização social, os
jovens construíram uma categoria de uma alteridade que seria em parte responsável pela dificuldade na
mudança social que vislumbram. Trata-se da categoria “playboy”. Essa categoria, “o playboy” ou, às
vezes, “o riquim” (riquinho), é utilizada para tratar do outsider, ou seja, daquele jovem que não
compartilha o mesmo status social dos jovens que vivem na periferia como parte de um sistema
classificatório. Segundo eles, o playboy não reconhece as regras locais e ostenta um privilégio de classe e
eventualmente se envolve em conflitos com os jovens da periferia, “os humildes”.
Além disso, os playboys são aqueles que não se envolvem nos projetos sociais na periferia,
definidos por aqueles que “só querem andar bonitinhos” e que estão atrelados a vínculos de sociabilidade
relacionados à valorização e ostentação de poder econômico.
Observa-se, em geral, nos grupos
entrevistados, a tentativa de se construir uma imagem negativa do jovem envolvido em outros estilos de
vida, outros vínculos de sociabilidade que, eventualmente, se chocam com a visão de mundo dos jovens
de periferia envolvidos no hip-hop e no rap. Nesse caso, a depreciação do “playboy” é parte da luta
concorrencial pelo reconhecimento que demarca o pertencimento ou não dos jovens que compartilham o
mesmo estilo de vida vinculado ao hip-hop.
Sobre a relação dos grupos com pessoas mais velhas, ou seja, que pertencem a diferentes
gerações, os grupos apresentam respostas aproximadas. A relação com pessoas mais velhas é sempre
considerada como importante, especialmente no que diz respeito ao acesso à experiência acumulada
durante os processos socializadores. Por outro lado, também se observa, nos dois grupos, a tendência a
buscar espaços de circulação e de troca de experiências que sejam exclusivamente jovens. A relação entre
diferentes enteléquias geracionais, ou seja, diferentes construçõs do sentido de visão de mundo, como no
caso dos rappers e seus pais, está condicionada a uma abertura para o reconhecimento das alteridades,
baseada naquilo que os jovens definem como “respeitar para ser respeitado”.
Sobre a relação familiar, a mãe é representada como alguém de extrema importância,
principalmente em se tratando de famílias cujos pais estão ausentes. A idealização do pai, às vezes passa
Breitner Tavares
148
por uma extrema depreciação, especialmente quando este é ausente da família, contudo, mesmo nesses
casos, o sentido do pai enquanto patriarca, provedor, prevalece, trata-se do pai “guerreiro”. O
relacionamento entre irmãos e irmãs está condicionado a padrões hierárquicos tradicionais, em que se
valoriza o mais velho e o sexo masculino como corresponsável pela educação dos mais jovens, todavia,
observam-se certas limitações em que os mais jovens e as meninas subvertem esse legado patriarcal. Em
alguns casos, os irmãos mais velhos são apresentados como referenciais para a socialização dos jovens no
hip-hop ou são construídos como “heróis” que protegem seus irmãos mais novos do envolvimento com a
delinquência.
Em termos da constituição dos grupos enquanto uma subcultura, os jovens entrevistados
expressaram estar vinculados a um determinado padrão de gosto social que envolve a apreciação pela
indumentária hip-hop, que passa por um modo de se vestir distinto de outros estilos jovens, assim como
um gosto musical pelo rap. Os jovens desses grupos, apesar de manifestarem em algum momento uma
posição sectária em relação a outros estilos, como o “pagodeiro” ou o “roqueiro”, em conversas
informais, admitiram frequentar outros espaços, onde circulam outros tipos de jovens, como os
shoppings, definidos como espaço dos jovens “playboys”. Portanto, isso deixa implícito que uma
identidade como a de uma subcultura é menos restrita do que se poderia supor. Apesar dos jovens
elegerem um discurso de “missão”, em termos de envolvimento nas atividades sociopolíticas em suas
comunidades, eles eventualmente se envolvem com outros grupos como os de jovens que apreciam o
pagode, forró ou outros ritmos tocados em bares nas redondezas. Esses jovens, de outra maneira, não
trazem nenhum discurso “revolucionário”, típico do hip-hop, mas abordam, por outro lado, o hedonismo e
o amor romântico, temáticas pouco comuns nas letras dos grupos de rap nacional, que em geral tratam de
problemas sociais na forma de um “protesto cantado”. Portanto, os grupos de rap transitam entre outros
jovens, mas demarcam seus referencias a partir de um conjunto de elementos estéticos que compõem o
hip-hop.
CAPÍTULO 8 ESTILO E RELACIONAMENTO: DEMARCADORES COLETIVOS EM TORNO
DO TEMA SEXUALIDADE
Breitner Tavares
149
The language of lovers can puncture through the everyday narratives that tie
us to social time and space, to the descriptions, recitals, and plots that dull
and order our sense insofar as such social narratives are tied to law.
Chela Sandoval – Methodology of Oppressed (2000)
8.1 Grupos Rap Comando e BR45: Ficar, namorar e projeções de futuro
Os jovens dos grupos selecionados em diversos momentos expressaram em suas respostas
informações que propiciaram a reconstrução documentária de suas orientações coletivas em torno da
sexualidade masculina. A construção de um tipo masculino e jovem define no âmbito das relações de
gênero a construção e distribuições de papéis femininos e masculinos especificamente na esfera da
sexualidade e do relacionamento afetivo.
Os grupos apresentam em suas orientações coletivas elementos no sentido de uma interação
entre o estilo de vida hip-hop e as definições de papéis hierárquicos entre homens e mulheres. A
misoginia e o sexismo, enquanto valores masculinos, assumidos pelos grupos, não inviabilizam a
construção de discursos afetivos em que as mulheres estabeleçam outras diretrizes, seja no sentido de uma
inversão de poder patriarcal ou mesmo na construção de novas utopias que possam interferir na solução
de problemas enfrentados pela juventude, como o pessimismo quanto ao futuro ou à violência.
Grupo Rap Comando: Relacionamento afetivo e estilo
Um dos temas que despertou interesse e maior participação do grupo refere-se ao assunto
relacionamento amoroso. Quando perguntados sobre o tema relacionamento e namoro, houve uma
motivação entre os jovens, muitos rapazes falaram a respeito de tal assunto, entretanto, a participação não
foi tão recorrente entre as garotas. A pergunta lançada em relação à vida afetiva e ao namoro gerou toda
uma atmosfera de inquietação, que não se observava com relação a outros temas, como escola e trabalho,
por exemplo. Os jovens se puseram a rir e a olharem uns para os outros. Liba (Am), que era o mais velho
do grupo e o instrutor da oficina, foi o primeiro a tomar a palavra.
Y:
Como é que é a relação de vocês com as namoradas ou namorados de vocês?
Am:
@Rapaz, eu tô enrolado nessa@.
Todo:
@(2)@
Am:
Eu tô enrolado. Sabe por quê? Porque se agora eu não posso nem (.) Eu não posso nem mentir
pra mulher mas em casa mas, porque ela canta rap também. Então não tem mais nem como
Breitner Tavares
150
deixar a mulher. Aí rapaz minha relação com ela é nota dez. Graças a Deus eu ajudo ela, e ela
me ajuda. Sempre surgindo novas idéias. É isso aí.
Todos(1)
Bm:
O cara quando canta rap e arruma uma namorada ele nunca pode deixar ela levar ele (.)
Am:
Ele é que tem que levar ela.
Bm:
 Pra sair. Porque tem namorada que faz isso. “Quer ficar comigo não vai fazer isso aí não ( )
que não sei o que. O cara tem que arrumar aquela que apóia. Sei lá, às vezes atrapalha. Eu não
vou deixar de cantar rap por causa de uma pessoa. Ou me apóia ou não tá comigo.
Am:
 Foi que nem aconteceu com meu irmão. A namorada chegou para ele e disse ou você fica com
o rap ou fica comigo. O que ele escolheu fulano? Ele tá com o rap até hoje.
Rm:
Tem muitas que não aceita. Você vai fazer o show. Elas não aceita que você vai, ás vezes não
dá pra levar. Às vezes ela quer ir e não dá. Aí acaba querendo sair mesmo ( ) fica turbulento. Aí
você vai escolher o que você mais gosta, o que é melhor pra você. Foi o que eu fiz. Eu tô aí hoje,
eu tô com uma menina, tá comigo e tal (
) ela curte de tudo, mas se ela (
) querer criticar. É o
seguinte eu já fiz uma vez (separar) eu posso fazer de novo.
Am:
 Ela não tem como te criticar, ela põe o símbolo do grupo na calça, na camisa.
Bm
Ela é toda doida.
Todos: @(1)@
Cm:
Eu tinha uma namorada que eu comecei a mudar o conceito dela, porque ela era pagodeira
aquele jeito moleca, marota. Por eu cantar muito às vezes (
) aí ela começou a escutar rap
também. Pelo estilo que eu ando eu fui falar com o pai dela, pra namorar com ela. Então ela logo
me pediu pra eu fingir ser playboy, ((ele relembra seu comentário)) “porque assim você não vai
causar uma boa impressão pro meu pai”. Aí eu pensei em ir de um jeito assim bem simples, mas
não deu pra ir. Eu fui no meu estilo.
DM:
Minha namorada mora lá na Ceilândia e eu aqui na QNZ. Eu faço toda a bagaceira e ela não vê,
mas eu não fui falar com o pai dela ainda não.
Os depoimentos remetem à valorização do estilo dentro de um sistema de habitus, como algo
determinante das ações dos indivíduos do grupo em relação à escolha de uma parceira, “arrumar apoio”.
Nesse caso, a produção artística dentro de uma conformação geracional definirá determinados padrões de
comportamento em termos de masculinidade dentro do grupo.
A expectativa dos jovens de sair desacompanhado da namorada ou companheira para um show é
reconsiderada, caso ela “apoie” o estilo de seu companheiro. De fato, o sentido “apoiar” está definido sob
a perspectiva de assimilação de valores sexistas definidos no hip-hop, como expresso por Bruno: “O cara
quando canta rap e arruma uma namorada ele nunca pode deixar ela levar ele”, e completado por um
sussurro de Liba: “Ele é que tem que levar ela”. Nesse caso, não cabe à namorada conduzir o
relacionamento, mas deixar ser conduzida pelo companheiro.
Breitner Tavares
151
Conforme Rosa (2006), elementos sexistas são recorrentes no rap. Isso implica na consideração
da mulher enquanto um “bem” pertencente ao homem, que o “ajuda”. Além disso, o apoio ao estilo é uma
premissa a ser seguida pelas garotas, o que não ocorre necessariamente em relação aos rapazes para com
suas namoradas. Para eles, o hip-hop e o rap enquanto um estilo de vida definem um sistema de distinção
e seleção social em que o relacionamento afetivo na forma de namoro é apropriado, portanto, como uma
forma de constituição de uma estabilidade moral.
Quando um rapaz está envolvido num relacionamento afetivo com uma garota que não
compartilha do mesmo estilo é o momento em que se põe em xeque a adesão do rapaz ao estilo, bem
como ao grupo. Uma relação implica um tipo de cumplicidade em que a garota adepta de outro estilo,
como o pagode, é depreciada como “moleca” ou “marota”, mas, ao ouvir rap e acompanhar seu
namorado, muda, assim, o “seu conceito” em relação ao estilo.
Além disso, assumir um relacionamento com uma garota pode implicar a negociação do estilo. O
hip-hop, devido à sua associação como elemento de negatividade, pode ser um entrave para se assumir
um relacionamento, um namoro formal reconhecido pela família da garota. Isso implica tentar negociar o
estilo, mudando alguns elementos como o vestuário para parecer “playboy”, ou seja, um estilo que estaria
envolvido num sistema classificatório que seria supostamente mais aceito, por estar vinculado a uma
maior posse de bens materiais ou status social.
Cabe ressaltar que, durante a discussão sobre relacionamento, as duas garotas, Amanda e Bruna,
não se pronunciaram. Diante disso, Y reitera sutilmente que elas também poderiam falar caso quisessem.
Y:
Como as meninas veem isso? (Questão do relacionamento, namoro).
Bf:
Eu estou aqui mais como ouvinte, eu vim aqui para uma oficina de teatro então é melhor deixar a
galera falar.
Af:
Ah. Normal como todo mundo né. Mesmo estilo e coisa e tal. Eu gostaria de fazer os quatro
elementos no hip-hop, mas tamos aí no rap, e estamos aí pra o que der e vier.
Am:
 Ah. Se você namorasse comigo você ia ficá sem roupas porque eu ia pegar emprestado
tudinho.
Bf:
Mas tem o olhar de fora, o fato de perceber tem muito integrante nesse grupo e pouca menina.
Não generalizando, mas (1) eu já troquei idéias com uma galera do hip-hop e eles costumam ter
o posicionamento deles machista (.) tirando a galera do Ataque Belize48 (3) perceber que eles se
deixam permear por esse posicionamento mais aberto. É muito engraçado que eles falam que
cantam rap como música de protesto, estão lutando contra o preconceito, mas tem um
48
Grupo de rap formado por alunos e ex-alunos da Universidade de Brasília, que produzem rap para a
audiência universitária, ou seja, mais difundido e reconhecido neste circuito de distribuição de bens
simbólicos, como festivais de música universitária, como o Finca - UnB.
Breitner Tavares
152
posicionamento machista. Eles estão lutando contra uma forma de preconceito e estão fazendo
uma sobreposição de outro. (2) Do caralho.
Todos:@(2)@.
Amanda fez apenas um breve comentário, o qual foi motivo de gracejos por parte dos
companheiros homens, especificamente quando Liba mencionou que, se caso ele a namorasse, ela “ficaria
sem roupa”, pois ele as “tomaria emprestadas”, o que deixou uma implícita conotação de masculinização
do estilo de Amanda. Esse comentário em relação à Amanda despertou o riso dos rapazes. Diante disso,
ela sorri meio envergonhada, cruza os braços e abaixa a cabeça, olhando os demais de modo indireto, sob
a aba de seu boné. Bruna, a estudante da UnB, a princípio usou de sua posição enquanto universitária para
evitar uma resposta e também para ajudar Amanda que não soube reagir aos comentários de AM, mas
chamou atenção para o problema do machismo que supostamente não seria trabalhado pelo hip-hop. Em
vista de sua assertiva intelectualizada, ninguém demonstrou interesse na fala da estudante. Alguns só
abaixaram a cabeça e fizeram silêncio.
Na sequência, foi feita uma pergunta relacionada ao interesse no casamento. As respostas
continuaram nas mesmas perspectivas das respostas sobre a experiência do namoro.
Y:
Vocês pretendem se casar, como vocês veem o casamento?
Dm:
O que adianta você pensar em casá se você não tem a pessoa certa?
Cm:
Eu tenho namorada mas não passou pela minha cabeça casar ainda.
Todos: (2) @(1)@.
Bf:
Eu quero terminar a faculdade primeiro, eu não penso em casar mesmo.
Af:
@Eu não penso em casar agora não véi, eu quero curtir primeiro@.
Todos:
@(2)@.
AM:
 Negão olho nela.
Todos: [@(2)@.
As respostas foram direcionadas no sentido de se pensar o futuro enquanto uma combinação
possível de se “encontrar alguém”, estabelecer um relacionamento. Em relação a isso, para Amanda e
Bruna, o que importa é a realização de um objetivo (terminar a faculdade) e desfrutar da vida pela
perspectiva do lazer e da vivência no interior do estilo hip-hop, como foi mencionado anteriormente por
Amanda, o que foi definido pela expressão “curtir primeiro”. Essas respostas, diferentemente das
apresentadas pelos meninos, foram alvo de risos e gracejos por parte dos rapazes. O irmão de Amanda,
chamado Manu, que estava presente, foi advertido num tom irônico por Liba: “fica de olho nela”, o que
implicou uma posição patriarcal e limitadora das ações de Amanda. Ela, por sua vez, reagiu ao
comentário sorrindo e aparentando estar meio envergonhada, os outros riram por alguns instantes. Após
Breitner Tavares
153
isso, ela praticamente não se manifestou durante a entrevista, o que reforça o sentido sexista de que cabe à
mulher dever “ajudar” ou ser “levada” pelo homem numa relação desigual.
A entrevista seguiu seu curso com algumas passagens de foco interessante. Contudo, ao verificar
o arquivo de áudio, notei que a qualidade ficou aquém do que se esperava. Isso ocorreu dadas as
condições acústicas da sala, que refletiam um pouco de eco. Ouvia-se muito ruído vindo do lado de fora
onde crianças brincavam, os entrevistados estavam mais distantes do que o normal do gravador, e, além
disso, falavam demasiadamente baixo. Penso que nesse caso teria sido melhor levar um gravador
acessório de fita cassete para garantir um melhor resultado49.
Ao final da entrevista, agradeci a todos e distribui alguns questionários. Depois disso, fomos ao
pátio e tiramos algumas fotos, as quais repassei ao grupo mais tarde via e-mail. Voltamos à sala e então
os jovens iniciaram um ensaio das músicas que seriam apresentadas no show de domingo.
Liba sugeriu um novo arranjo da sala para simular o espaço de palco. O grupo Rap Comando
passou a apresentar sua performance, enquanto Liba ficava à frente do grupo ao lado do aparelho de som.
Ele observava os passos e eventualmente aprimorava os passos e a impostação de voz, dentre outros
detalhes da produção. Na porta da sala se aglomerava uma dezena de crianças que observavam atentas ao
que ocorria ali. Outros jovens ficavam próximos a Liba como espectadores.
Houve um momento em que Liba interrompeu o ensaio, pois estava insatisfeito com a falta de
ritmo de alguns integrantes do grupo. Então propôs um exercício em que ficamos reunidos em um círculo,
sentados em cadeiras. Realizamos alguns exercícios rítmicos batendo palmas e cantando ou contando
números com o objetivo de trabalhar a sincronia individual e coletiva. Eu apreciei muito o exercício. Ali
cada um pôde expressar suas percepção rítmica, assim como aperfeiçoá-la. A estudante da UnB foi
convidada a participar e a sugerir algo, mas ela hesitou e preferiu tecer apenas um comentário enfatizando
a autopercepção corporal que cada um deveria trabalhar, além disso, ela fez um comentário num tom
depreciativo em relação ao nome do grupo: “Rap Comando? Não sei se gosto disso. É brincadeira!”
Ninguém comentou sua fala. Após o exercício rítmico, o grupo voltou para o palco e reiniciou o ensaio da
música. Essa atividade terminou por volta das 18 horas.
Quando terminamos, ainda pude ouvir um comentário irônico de Liba sobre a estudante da UnB
que já havia ido embora. “Nunca vi alguém como ela. Ela não fala nenhuma gíria. Na hora de apresentar
alguma coisa ela foi fraca, mas ela é gente fina”. Amanda ainda completou ironicamente: “É... gente fina
ela é mesmo”. Amanda estava ao mesmo tempo se referindo à magreza de Bruna e ao seu
comportamento, recebido de forma negativa, além disso, Amanda era o tipo de mulher negra, mais
robusta.
49
Eventualmente farei uso dos verbos em primeira pessoa para tentar recriar a atmosfera de intimidade
estabelecida durante a pesquisa de campo.
Breitner Tavares
154
Nesse momento, me preocupei com a situação que estava em jogo. A estudante era do Plano
Piloto e representava outro estilo, assim como outras gírias e expressões corporais, uma outra visão de
mundo, que é mais usual no meio universitário, especialmente de quem circula no “meio artístico do
Plano Piloto”. Ela também foi criticada em relação à sua opinião negativa em relação ao nome do grupo
“Rap Comando”. Percebi nessas falas a relação assimétrica entre percepções de mundo que estavam em
jogo naquele momento. A garota escolarizada que frequentava as oficinas e ensinava teatro frente à
juventude da QNZ, que estava sob outras condições de acesso a bens materiais e imateriais.
Após o ensaio, os jovens foram dispensados, então segui para a casa de Liba. A idéia surgiu
quando mencionei que trazia comigo um DVD sobre rap, que Liba se interessou em assistir. Fomos ao
meu carro e passamos por ruas com curvas e, às vezes, sem saída, algo bem característico e distinto para
um dos bairros mais recentes da cidade. Por essas pequenas vielas, por onde tínhamos que passar devagar,
outros jovens jogavam futebol na rua, todos cumprimentavam Liba e sabiam que eu era um visitante.
Chegando à casa de Liba, sua mãe estava logo na entrada fumando um cigarro. Ela foi bastante
simpática logo nos cumprimentou e convidou para entrar. Eu notei que a construção era bem precária.
Um portão de ferro sem pintura, a casa tinha um reboco incompleto e nenhuma pintura ou acabamento no
piso de concreto. A parte interior era escura com um furo no telhado que cortava a sala com um feixe de
luz. A escuridão também era resultado de um aumento da cobertura da área externa. Havia uma pequena
lâmpada que iluminava precariamente a sala e ao mesmo tempo um quarto ao lado. Isso era possível
porque havia entre os cômodos um vão na parte superior que permitia compartilhar a mesma lâmpada,
assim como ouvir sons de conversas em outros quartos.
Na pequena sala, estava sentado o pai de Liba, “seu Matias”, um senhor com barba branca e um
olhar cansado, de pouca conversa a princípio. Eu o cumprimentei e pedi licença para adentrar à sala. Logo
me acomodei num sofá coberto por um forro. A sala logo foi ocupada por alguns dos que estavam na
oficina. O pai de Liba estava deitado no sofá, onde continuou, apesar da entrada dos rapazes.
Num determinado momento Liba, ao cruzar a sala, levou um chute na bunda de seu pai, que
ainda lhe disse: “tá pensando o quê, seu folgado?”. Liba não disse qualquer coisa e saiu para chamar mais
alguém para assistir ao filme. Naquele momento tive a impressão de que todos ficaram constrangidos,
alguma coisa não estava bem com a nossa presença ali. Tínhamos invadido a privacidade da casa, mas
logo seu Matias ponderou e resolveu sentar para permitir que mais alguém sentasse no sofá para assistir
ao DVD, que ficava sobre um velho armário de madeira, improvisado como estante para objetos, roupas e
eletrodomésticos.
Na porta veneziana meio torta, havia um adesivo escrito “Lula Presidente”, era o único enfeite
aparente na sala. O DVD e a TV colorida eram relativamente novos e contrastavam com seu tom prata na
sala onde predominavam tons opacos e sombrios da parede ainda a ser rebocada. Apesar de escuro, o
ambiente não parecia quente, mas era abafado. Havia algumas crianças, duas meninas de uns seis anos.
Elas transitavam pela casa, assim como algumas garotas as quais não soube se eram da família. O
barraco de alvenaria, num lote 8x8 m, tinha que comportar umas 10 pessoas.
Breitner Tavares
155
Quando todos estavam acomodados, foi exibido um clipe do BR 45 e o filme Rap, o Canto de
Ceilândia. Os dois filmes causaram vários comentários por parte dos jovens, principalmente em relação
ao ambiente dos filmes, todos gravados em Ceilândia. Em diversos momentos, surgiam comentários do
tipo: “Eu conheço essa quebrada!”, em relação às quadras do bairro que apareciam no vídeo, “É o
Markim do Tropa50, é a galera das antiga, é de responsa51”. Depois disso, Liba se interessou em fazer uma
cópia do DVD, eu disse que poderíamos ver se era possível, então fomos à casa de outro membro do
Comando. Entramos no carro e continuamos a andar pela QNZ. Nas ruas estreitas, as pessoas
transitavam. Havia em muitas esquinas galeras praticando golzinho52. Muitos ficavam nas portas
observando a rua. Alguns bêbados ficavam na esquina, alguns comentavam que um dos alcoólatras era
uma “pessoa de bem” e que agora estava “naquela” situação. Algumas garotas que trafegavam eram
abordadas pelos jovens, eles aproveitavam para comentar sobre elas. Todos ali se identificavam se
reconheciam.
Quando chegamos, um dos jovens do Comando, o Galego, desce do carro e entra sozinho em sua
casa para tentar utilizar um computador. Ele era o único do grupo a possuir um computador capaz de
copiar um DVD. Nós ficamos do lado de fora, quando alguém comentava: “a mãe desse cara é chata pra
carái53”, “Ela não gosta da gente”, “Ele não convida nem a pau para entrar”. Na janela, uma mulher,
provavelmente a mãe de Galego, observava quem estava em frente à sua casa. Havia um portão de ferro
com grades que iam do chão ao teto, embaixo algumas chapas de ferro galvanizado que não permitiam
uma visão total da casa, a cobertura do telhado na garagem criava um isolamento quase total entre a rua e
a casa. Esperamos no carro por uns dez minutos, quando Galego retorna e afirma que vai demorar a poder
utilizar o computador. Então, Liba e os outros resolvem mudar de idéia e não deixar o disco, em seguida,
voltamos para o carro e eu os deixei em casa.
Esses detalhes referente a fachada das casas são mais uma regra que uma exceção na arquitetura
de Ceilândia. Isso expressa o limite e, quem sabe, até mesmo um sentimento de aversão à vida social, aos
vínculos vicinais e de intimidade na periferia urbana articulados pelo medo da violência e o desejo de
segurança. Apesar de algumas casas terem cores quentes e contrastantes, como laranja e amarelo; as cores
a cizentadas eram o tom predominante. Todas as casas tinham as mesmas características: grades de ferro,
que impunha a demarcação entre o espaço privativo das famílias, e o espaço externo, a rua.
50
Markin é o nome do vocalista do grupo de rap Tropa de Elite, de Ceilândia.
51
Pessoas respeitáveis de tempos passados.
52
Trata-se de uma modalidade de futebol de rua que utiliza um pequeno espaço na pista, normalmente de
asfalto. Caracteriza-se por utilizar uma área menor que a do futsal e por utilizar traves pequenas e,
portanto, fáceis de serem transportadas e removidas da via pública, conforme exige o “fluxo” do trânsito.
O golzinho tem se tornado cada vez mais popular nas periferias como Ceilândia, onde uma urbanização
precária tem acabado com os antigos “campos de terra”.
53
“Pra Carái” é uma variação de “pra caralho”, que nesse contexto tem a mesma conotação de “bastante”
ou “demasiado”.
Breitner Tavares
156
Diante dessas duas experiências, a interna, ocorrida “dentro da casa” de Liba com a tensão
exercida por seu Luiz e seu filho, e a “externa”, em frente à casa de Galego, onde sua mãe manteve a
distância mediante as grades e o silêncio, são relevantes para se pensar nas condições dos jovens do
Comando, que viviam nas casas de seus pais. Além disso, surge a questão de se repensar o sentido de uma
“comunidade” num espaço urbano segregado como a QNZ. Muitas vezes o termo “comunidade” é
empregado no sentido de se estabelecer um sentido de cumplicidade e integração dos indivíduos, que não
correspondem necessariamente à vida nas regiões mais carentes. O sentido idílico do espaço urbano
cantado em sambas, como “Minha maloca querida”, de Adoniran Barbosa, ou “Alvorada” em que se
narra a favela onde “ninguém chora e não há tristeza”, de Cartola, sem dúvida está em xeque, diante da
nova periferia blindada e superpovoada dos dias atuais. A impessoalidade e, às vezes, uma aversão à rua e
a esse sentido tradicional para o termo “comunidade” tornam-se uma função definidora das mentalidades
(SIMMEL,1973).
No dia seguinte, volto à QNZ para assistir a um show. Já eram 13 horas. Desde as 10 horas a
escola promovia a Festa da Família, que oferecia almoço – galinhada – para os participantes ao valor de 3
reais o prato. Durante a festa, ocorreram várias apresentações com forte apelo religioso católico. Na
ocasião encontrei um ex-colega do curso de magistério54. Frederico, assim como eu, havia se tornado
professor de séries iniciais. Já não nos víamos há mais de dez anos. Ele me contou ter aberto uma
pequena escola em parte da área de sua casa, na Vila M. Ele estava trabalhando ali na QNZ já desde
2004. Surpreso ao me ver ali com os jovens do Comando, perguntou se eu já os conhecia e se já tinha ido
à casa de Liba antes. Respondi que não. Ele se limitou a dizer que a situação deles era muito difícil, que
eles precisavam de ajuda. Eu ouvi ainda mais alguns comentários sobre o trabalho pedagógico realizado
na escola, em seguida, nos despedimos e Frederico seguiu para outras dependências. Já dentro da escola,
eu cumprimentei a todos e me posicionei para tirar as fotografias do show do Rap Comando, que
encerraria a atividade.
Antes de o grupo iniciar, a diretora avisa que tudo deve ser breve para evitar problemas, pois o
equipamento de som cedido por um voluntário deveria ser devolvido intacto. Os meninos comentam num
tom baixo que a diretora na verdade não gosta de rap. Mais adiante, o grupo sobe ao palco e tenho a
primeira surpresa. Amanda, a garota negra que havia ensaiado no dia anterior, foi substituída por Carla,
uma garota branca filha de nordestinos, namorada de Liba. Amanda fica na segunda voz. Quando retiro
minha câmera e começo a tirar fotos do Comando, os servidores e professores passam a me observar,
expressando certa curiosidade com relação à minha presença ali naquele espaço.
54
Entre 1992 e 1994, cursei o ensino médio na Escola Normal de Ceilândia, que oferecia o curso de
magistério. Em 1995, após aprovação em concurso público, passei a lecionar no ensino fundamental, a
princípio, na cidade do Gama e, posteriormente, em Ceilândia. Também atuei no Ensino de Jovens e
Adultos como alfabetizador e, posteriormente, como professor de sociologia no ensino médio.
Breitner Tavares
157
Após a apresentação do Comando, as atenções se voltam para o grupo Street Base, de street
dance. Eu procurei tirar algumas fotos, depois me aproximei e me apresentei ao grupo. Os garotos
combinam um momento para que possamos conversar e então nos despedimos.
O rap como motivação, o rap como educação
Após o show, Liba me apresentou à representante da Juventude Negra. Todos comemoravam a
apresentação enquanto comiam um pouco da galinhada que a escola lhes ofereceu ao final da festa. Eu
fiquei próximo aos jovens, mas normalmente em silêncio, pois eu não me sentia muito à vontade para
simplesmente interromper e expor minhas opiniões, já que aquele era o momento do grupo de comemorar
a apresentação, bem como avaliá-la.
Enquanto conversava com Liba, uma servidora da escola se aproxima e faz um comentário,
sorrindo, e se dirigindo a mim, dizendo que Liba “era terrível e eles penaram muito para pô-lo na linha”,
“é, e hoje taí todo exibido”. Ainda diante da servidora, ele lembra de episódios em que ia para a escola
sem tomar banho ou sem ter se alimentado em casa. Diziam que suas condições eram tão ruins que, às
vezes, lhe davam banho nos fundos da escola com uma mangueira. Ele inclusive reclamava do frio que às
vezes fazia, mas mesmo assim era submetido à “limpeza”. A servidora ri e confirma o feito.
Mais tarde, Liba conta que era o (aluno) problema da escola. Ele disse que costumava brigar
muito, lembrou de uma vez em que tinha apenas dez anos e que estava brigando com um colega, quando
a professora interveio visando apartar a confusão, nisso Liba passa a esmurrar a professora “nos peitos”,
enfatiza. Isso gera um alvoroço, em que a polícia fora convocada. Eu lhe perguntei o que lhe fez mudar
para o que ele representa hoje. Ele me conta que aprontava para “chamar a atenção” dos outros, para se
sentir aceito como parte do grupo, do coletivo. Quando passaram a lhe desprezar, ele percebeu que não
adiantava mais aquela postura e que já era hora de mudar. Num instante depois, ele subitamente me
convida a ir a uma sala de aula próxima onde algumas professoras organizavam roupas que foram
expostas num bazar. Ali ele me apresenta algumas professoras. Eu as cumprimento e logo em seguida
saímos. Alguns passos à frente, ele comenta que a professora que ele acabava de me apresentar fora
aquela vítima da fúria de um menino ocorrida há dez anos. Liba, agora aos 20, dizia que a professora
passou a lhe tratar com carinho.
Os jovens do Comando estavam, em sua maioria, cursando o ensino fundamental. Somente
Rubão havia concluído o ensino médio e Galego (Cm) estava cursando o ensino médio. Liba (Am),
apesar de ser liderança, havia abandonado a escola ainda na sétima série, além disso já era pai de um
pequeno garoto de dois anos.
Breitner Tavares
158
Y:
Vocês estão na escola? Como é a relação de vocês com ela?
Am:
Nesse momento agora eu vou retornar, eu parei de estudar tem sete anos, sete não, tem cinco
anos que eu parei de estudar, eu casei com dezeseis anos, a mulher engravidou aí eu tive que
parar pra sustentar meu (filho), mas nesse momento agora eu vou retornar porque o rap exige,
exige muito (2) o rap exige pra caramba. Eu tô naquela, sempre lendo, pesquisando. Eu tô
sempre correndo atrás (.) Também você não pode ficar no encalço pra trás (.) pra ser uma pessoa
mais adiante do que eu (sou agora) ou eu tenho que ficá junto a ele ou aprende, eu não aceito
derrota também.
Todos: (3)
Rm:
Ano que vem eu pretendo fazer faculdade, seguir o caminho das minhas irmãs também que são
formada, eu pretendo me formar também porque como já falaram aí é bom pra mim que sou um
rapper, é bom pra todo mundo.
Cm:
Assim, eu estudo ainda (1), passei pro segundo ano agora @graças a Deus@.
Todos:
@(1)@
Cm:
É que nem o Rm disse, tem que saber de tudo um pouco (.) estudar é bom pra tudo, é bom pro
rap ( ) saber das coisas, é isso aí, eu canto rap mas eu também estudo, é importante pra qualquer
coisa.
A educação, entendida como frequentar a escola, é considerada como de grande relevância e
desafio. Isso pode ser compreendido pelo sentido imanente ao “rap que exige muito”. Ironicamente, Liba,
apesar de ser responsável pelo trabalho pedagógico que desenvolve com os jovens do Rap Comando, é o
único que se encontra fora do sistema de ensino formal, dentro do qual sempre foi considerado “o
problema”, os maus-tratos, seja no âmbito da família, “deixar ir sujo para escola”, ou ter que ser limpo “à
mangueira” em dias frios de forma punitiva e constrangedora, marcaram sua tragetória. Contudo, há um
sentido de resistência quando esse mesmo jovem afirma: “eu tô sempre correndo atrás” e “eu não aceito
derrota também”.
Portanto, esse mesmo jovem que por um lado, encontrou na escola os obstáculos a sua
progressão no sistema social, se tornou, por outro, uma liderança capaz de representar as demandas da
juventude local no que se refere ao acesso a práticas de lazer através da experiência com a educação
popular encontrada em outros setores fora do espaço formal da Escola.
Nesse contexto, os jovens do Comando, apesar de suas dificuldades, passam a ocupar o espaço
físico dessa mesma escola a partir de uma perspectiva de busca pelo reconhecimento enquanto sujeitos
sociais ativos. O espaço de reconhecimento e trânsito passível para o mundo adulto talvez esteja mais
próximo de jovens como Rubão, que pretende seguir a trajetória universitária de suas irmãs, o que para
ele já é, em termos de sua mentalidade, algo dado pelas circunstâncias. Portanto, parece que o rap
constitui um espaço intelectual, de reflexão e prática social, seja no caso daqueles que encontraram na
escola aquelas barreiras formais que impedem a promoção social como repetência e a evasão escolar, “eu
tive que parar pra sustentar meu (filho)” seja para aqueles que não sofreram os entraves de sua condição
de classe.
Breitner Tavares
159
Para os jovens do grupo Rap Comando, sua condição de classe e geração materializada num
espaço precário como a QNZ, alvo de eventuais programas assistenciais promovidos por ONGs,
motivaram o envolvimento dos jovens em atividades lúdicas, como oficinas de rap em que os mesmos
podem expressar, a partir de uma estética musical, suas questões e problemas cotidianos. A demanda dos
jovens por lazer e participação num espaço coletivo é um fator motivador de sua inserção enquanto grupo
dentro da escola, espaço ambivalente que constrange os seus estudantes a partir de práticas
discriminatórias e restritivas, mas, por outro lado, permite sua participação e expressão a partir de
atividades racionalizadas da prática artística como uma oficina de rap ou a apresentação em uma
atividade comunitária da escola. Essas possibilidades de inserção criam os vínculos sociais que a
educação formal não foi capaz de consolidar. Além disso, essas atividades lúdicas oferecidas nas oficinas
aproximam os jovens fortalecendo seus vículos sociais, um sentimento de pertencimento do grupo num
espaço social mais abrangente que estrapola o âmbito da Escola ao mobilizar os jovens na região onde
vivem.
Ficar e deixar ir: Notas de campo sobre a relação amorosa entre garotos e garotas
Depois da conversa que tivemos sobre a trajetória escolar de Liba, ele chama todos do Comando
para deixarem a escola. Ao sairmos da escola, algumas garotas que apareceram no show propõem que
deveríamos ir à casa de uma delas para passar à tarde, pois seus pais estavam fora e só chegariam mais
tarde. Os rapazes a princípio não gostaram da ideia, porém mudaram sua opinião quando as garotas
prometeram que lá outras garotas estariam à espera para conhecerem os garotos do Comando. Elas
poderiam até mesmo ficar55 com eles. Assim, os rapazes foram convencidos, o problema é que a casa da
garota era em outro bairro/setor, conhecido como Palmeira, há uns 3 km dali.
Em função disso, os jovens me convidaram insistentemente a acompanhá-los, já que dessa forma
eu poderia colaborar oferecendo uma carona, os demais iriam de ônibus. Eu aceitei e fomos para a
Palmeira. Liba veio comigo além de mais uns 5 membros do Comando. Chegamos quase todos juntos à
velha casa de alvenaria, provavelmente construída ainda nos anos 80, cheia de infiltrações e louças sujas.
As formigas estavam em toda parte. Na sala, pôsteres da seleção brasileira dividiam espaço com outro de
uma garota grávida acariciando a barriga. O sofá tinha um forro de seda vinho. No chão um tapete
marrom se harmonizava com vestígios do revestimento de taco há muito danificado. Assim que cheguei
me dirigi a uma sala, seguindo aqueles que entraram primeiro, isso se deu até que chegamos aos fundos
da casa. Lá havia um quarto com objetos pessoais da anfitriã, que logo disse que ali não era lugar para
homens estranhos. Essa foi minha deixa para me retirar, mas logo percebi que eles eram cordialmente
55
Relação afetiva amorosa, fugidia, instantânea.
Breitner Tavares
160
agressivos entre si, o que não significava efetivamente um repúdio, mas seu modo de estabelecer uma
interação informal. Dessa forma, não me acanhei e até pedi um pouco de água. A anfitriã Nina abriu a
geladeira e notou que não havia mais água. Então me ofereceu um suco, feito já há vários dias, mas por
educação, não pude desprezá-lo. Eu literalmente não sabia onde estava e com quem eu estava.
Logo depois voltei à sala onde não havia mais espaço no pequeno sofá vinho. A anfitriã logo
providenciou cadeiras onde nos acomodamos. Nesse ínterim, chegaram mais garotas. A proporção era
equilibrada, em média havia umas dez meninas para um número de dez garotos. Enquanto isso Liba
ajusta o DVD com videoclipes de rap gringo56 no aparelho de som que fica no volume máximo, mesmo
sem qualquer equalização, pois é assim que eles gostam. Havia comida, como um peixe assado que foi
servido no almoço, biscoitos, entre outras coisas que passaram a ser comidas por todos.
Lá fora, formou-se uma roda só de garotas. Elas conversavam aos risos enquanto olhavam os
garotos que estavam concentrados na sala e na porta de entrada. Eles comentavam sobre as meninas,
elegendo as que poderiam apresentar “tudo”, até o “CPF”57, e, quanto às outras, em função de uma
padronização estética, eles demonstravam a princípio aversão ou algo semelhante ao se referir a garotas
como Amanda, negra e gorda. De qualquer forma, as meninas lá fora se decidiram por entrar e “tomar” a
casa.
Elas entraram sem falar com nenhum dos rapazes do grupo e foram em direção à cozinha.
Depois disso, iniciou-se um ritual em que alguns dos rapazes eram chamados individualmente para as
outras dependências da casa, entre a sala e a cozinha. A ida era rápida, mas suficiente para “ficarem” por
alguns instantes sem maiores comprometimentos. Os que voltavam tinham em seus rostos uma expressão
difícil de descrever. Chegavam calados com um sorriso estampado no rosto. “Ela só me beijou!”, dizia
um deles. Depois disso, gerou-se certo alvoroço entre os rapazes. Alguns na sala chegavam a gritar “eu to
doido” em relação às meninas. Enquanto isso, Liba, que estava no sofá com sua garota, ao perceber a
movimentação dos rapazes, passou a reforçar num tom ambíguo que “o mais importante era a fidelidade”.
Ele disse isso insistentemente por várias vezes a ponto de sua garota ficar olhando desconfiada, tamanha
sua ênfase. Ele percebeu a atmosfera do distanciamento e passou a cortejá-la ali mesmo no sofá. Os
outros só assistiam, riam e continuavam na expectativa. Pouco depois, Liba diz enfaticamente: “todo
mundo aqui vai beijar, até você Breitner!”. Confesso que fiquei assustado e fiz questão de expressar isso
visualmente, balançando os ombros e gesticulando as mãos num tom de interrogação. Liba chegou a
perguntar se eu tinha algum problema, pois estava mais calado que o normal. Eu disse que estava “de
boa”58 e que não havia problema algum, mas que eu não beijaria ninguém ali. Em seguida, alguém chega
com uma garrafa de Fogo Paulista, um licor barato, doce e extremamente alcoólico. Perguntaram-me se
56
Expressão utilizada para se referir ao rap norte-americano, normalmente de cunho mais comercial, com
apelo sexual, como Snoop dog dog.
57
Nesse caso, os garotos se referiam a uma das garotas que tinha o fenótipo de ser branca e magra e que
seria a mais atraente entre as outras meninas que tinham traços indígenas e/ou negros.
58
A expressão “de boa” significa “estar bem”.
Breitner Tavares
161
eu gostava de beber, eu fiz questão de dizer que não estava a fim naquele momento. De fato, para além de
qualquer moralismo chulo, eu sabia que minha situação ali era arriscada, pois eu era praticamente o único
maior de idade e que havia oferecido carona para vários adolescentes menores de 18 anos para realizarem
uma festa sem o consentimento dos donos da casa.
No entra e sai dos meninos e meninas, chega uma informação que muda toda a dinâmica da
festa. O pai da anfitriã estava vindo no fim da rua. Ele era um senhor negro, de uns 50 anos e empurrava
um carrinho, que provavelmente era utilizado para trabalhar como ambulante. Como já passava das três
horas da tarde, a ideia de que se tratava de um vendedor ambulante seria a mais provável. Pela janela,
pude ver seu olhar de estarrecimento e cansaço ao ver toda vizinhança, naquela tarde escaldante de
domingo, próxima a sua casa, assistindo “de camarote” a festa que sua filha, uma adolescente, estava
promovendo.
Após notarem sua presença, imediatamente as meninas da vizinhança, que estavam na casa, se
retiraram, só restando os garotos e garotas da QNZ, a anfitriã e eu. Liba pergunta em tom baixo, quase
sussurrando: “Ele vai nos expulsar?”. A anfitriã responde: “Não, não dá nada”. Liba conclui: “É (...) Ele
não é doido”. Poucos instantes depois, o pai da garota chega finalmente ao portão de entrada. Contudo,
ele ao perceber a aglomeração diante da casa, pelas meninas da vizinhança, resolve entrar discretamente
por uma entrada lateral, para evitar a sala onde a turma se encontrava. Todos ficam apreensivos, quando,
de súbito, ele aparece na entrada interna da sala e grita: “Desliga essa porra que eu quero dormir!”. Em
seguida, ele dá as costas e se vai. Daí, sua filha imediatamente gesticula, mesmo que silenciosamente e
pelas costas, apontando o dedo médio, num gesto de repulsa, na direção do pai que acabara de se queixar
do barulho. Um dos rapazes desliga o som que estava no máximo e Liba, na sequência, convida todo o
Comando a se retirar da casa.
Aglomeramo-nos na porta onde outros vizinhos tinham colocado até cadeiras para
acompanharem a movimentação na casa em frente. Uma das garotas ainda comenta em relação à atitude
do pai: “Eu já vi isso acontecer antes, não foi a primeira vez”.
Eu insisti ficar mais alguns instantes com o pessoal, mas logo em seguida me despedi
confirmando minha presença na escola no próximo fim de semana para outra entrevista com o grupo Rap
Comando. Mais tarde, ao checar os dados dos questionários do Comando, notei que todos marcaram ser
solteiros, nenhum deles (as) marcou estar namorando. Algo que definitivamente pôs em xeque certas
categorias estáticas sobre “estado civil” e as dinâmicas para um relacionamento amoroso.
O “ficar” instantâneo, fugaz, é uma redefinição das relações afetivas para essa juventude. A
relação do namoro está num nível de interação que não incluiria eventuais encontros com pessoas
desconhecidas em espaços voltados para o entretenimento, como a festa. Por outro lado, os jovens,
especialmente os rapazes, tendem a assumir seus relacionamentos quando estes são estabelecidos na
região onde moram e/ou estudam.
GRUPO BR45: Pra namorar tem que ser perfeito, mas a fila anda.
Breitner Tavares
162
Discursos sobre namorar e ficar no relacionamento juvenil
De modo geral, o grupo BR45 se posiciona de maneira diversa em relação ao namoro e à
perspectiva de construção de uma família no futuro. De fato, durante a discussão são apresentadas
algumas experiências que abordam temas como o sentido de liberdade, o namoro enquanto compromisso
pré-matrimonial, o casamento propriamente dito e uma outra situação onde as regras para se estabelecer o
relacionamento são mais fluidas em função de interesses mais imediatos.
Cabe ressaltar que os temas “namorar” e “ficar” não se limitaram à discussão no momento em
que foram apresentadas as questões relativas aos temas. Durante vários trechos relacionados à formação
geracional, o relacionamento com os familiares do grupo ou no contexto das experiências de
discriminação racial, a questão sobre relacionamento foi abordada frequentemente. Portanto, o tema
relacionamento se tornou algo transversal no grupo de discussão. Contudo, nesse capítulo serão
abordadas as respostas geradas especificamente no contexto dessas questões. Em outros capítulos, é
possível observar a articulação das orientações coletivas aqui analisadas em torno do relacionamento de
sexualidade masculina.
Outro aspecto relevante sobre a discussão sobre relacionamento dos jovens do BR45 está em que
parte da conversação foi acompanhada por algumas jovens amigas e parentes dos rapazes, como irmãs e
primas, algo que impôs um certo direcionamento do grupo, composto exclusivamente de homens, em
relação a audiência feminina.
Y lança uma pergunta sobre relacionamento para os jovens. Todos riem e Cenin, (Cm) de 17
anos, o mais jovem do grupo, diz sorrindo que todos ali são casados e ele, o “único solteiro”. Os demais
jovens no grupo se desconcertam com o tom provocativo de Cenin, que remete a um sentido de
disponibilidade e liberdade, que supostamente não é a condição dos seus companheiros no grupo.
Portanto, em função dessa resposta, Bantu (Bm) e Duarte reagem dizendo que tinham terminado
recentemente seus relacionamentos com suas namoradas.
Bantu fala do fim do seu relacionamento, que ocorreu há poucos dias. Ele assinala que foi um
namoro longo, de quatro anos, e que a relação era ótima apesar das discussões. Em seguida, Duarte (Dm)
em tom de riso afirma que, assim como Bantu, também havia terminado um relacionamento havia duas
semanas. Ele afirma que “as coisas são desse jeito, a fila anda”. Bantu repete a mesma assertiva e todos se
põem a rir, até mesmo as espectadoras. Augusto (Am) então sugere que se passe à próxima pergunta. Y
alega que é muito importante que esse assunto seja discutido e todos se põem a rir.
O grupo, ao recorrer à expressão “as coisas são desse jeito, a fila anda”, se remete à fugacidade
dos relacionamentos afetivos e fluxo interativo entre os jovens e seus afetos. Ao mesmo tempo que estar
solteiro remete a uma série de possibilidades de encontros num conjunto indefinido de pessoas definida
como “a fila”, por outro lado, falar nessa dinâmica em alguns momentos gera certa insegurança ou
constrangimento para o grupo. Diante disso, alguns dos jovens pedem que outras perguntas sejam feitas.
Breitner Tavares
163
Em seguida, Augusto afirma que está namorando com uma ótima pessoa, Bantu sorri
ironicamente, Augusto demonstra irritação com um olhar cerrado, de baixo para cima. Frente ao gracejo
de Bantu, Augusto reafirma que está vivendo um excelente momento em sua vida. Enquanto Bantu sorri,
todos os outros membros do grupo ficam em silêncio.
Y:
Tem namorada, são casados? Como é a relação com suas namoradas?
Todos : @(2)@.
Cm:
@Eles é casado e eu sou solteiro@.
Todos:
@( )@.
Bm:
Eu não vou falar não, mas até três dias atrás, quatro dias eu tava namorando, mas eu não sei se
eu volto pra ela. Mas eu acho que volto sim porque era um namoro longo. A gente namorô
quatro anos e oito meses entendeu? Namoramos pra caramba, a gente gostava um do outro pra
caramba, apesar das discussões que tinha era ótimo. Era ótimo nosso relacionamento, entende?
Am:
No momento agora eu também tô namorando, graças a Deus é uma ótima pessoa.
Bm:
@(ironia )@.
Am:
(
Bm:
[@ agora todo mundo ficou tímido@.
Em:
[@Não, que da outra vez que você veio aqui eu falei que eu tava namorando e agora já também
) mesmo tá bom demais.
eu terminei. Eu tô solteiro. Porque é desse jeito. A fila anda, a fila anda. Igual os cara@ (
Bm:
 @A fila anda, a fila anda que nem falou o Bill ali@.
Am:
Qual é a próxima pergunta?
Todos:
@(3)@.
Y:
@essa pergunta sobre as mulheres, ela é realmente muito importante@.
).
Elmo (Em), que até então não havia se manifestado, reconhece que o tema trazido descontraiu o
grupo, em seguida, ele afirma que namorar é algo muito importante como uma etapa preparatória para o
casamento, além disso, ele considera que o namoro é definido por “sinceridade” e “fidelidade”, a partir
dessas premissas deve-se buscar a “perfeição”. Após a definição de namoro apresentada por Elmo, o
mesmo admite não estar namorando de fato, mas “está com uma menina aí”. Finalmente ele reafirma a
necessidade da perfeição no namoro para que o mesmo seja verdadeiro e compara isso à religião ou a uma
cultura. Em tom de riso, ele não afirma que está namorando, tampouco está solteiro.
Em:
É porque esse papo namorar. Foi um papo que descontraiu bastante, mas namorar é muito
importante, porque o namorar é o preparar pra noivar, o noivar é o preparar pra casar. Entendeu?
Então eu acho que o namoro tem que ter sinceridade, tem que ter fidelidade, tem que ser perfeito
ou pelo menos tentar encontrar a perfeição. Eu não vou falar que eu tô namorando não. Eu tô
com uma menina aí. Mas se não tá sendo perfeito, não tá sendo um namoro. Cada um tem um
Breitner Tavares
164
jeito de pensar né, no lado sentimental, no lado emocional. É tipo cada um por si, entendeu? É
como se fosse uma religião. Uma cultura que vem de casa, da família. Eu não vou afirmar @ “eu
tô namorando”, mas também não tô solteiro@.
Cm:
@Eu sou o único solteiro aqui no BR45, sem compromisso@.
O grupo cria uma idealização tradicional pra o relacionamento, contudo, os mesmos admitem
que, de fato, experienciam práticas de relacionamento menos convencionais, como namoros esporádicos
definidos como “ficar”. Durante a discussão, os jovens apresentam eventualmente afirmações inspiradas
na Bíblia e no comportamento definido como “cristão”. Fala-se em “sinceridade”, “fidelidade” e
“perfeição”, mas quando se trata do relacionamento que os jovens estão vivenciando, de fato, eles optam
pelos verbos “estar” ou “ficar” com uma “menina”. Além disso, considera-se que nesses casos onde o
namoro não está instituído, o que vale é a “interpretação de cada um” para o que está se experienciando,
algo que atribui uma dinâmica diferente de um namoro convencional.
Em seguida Y lança uma pergunta sobre a intenção dos jovens do BR45 de se casar. Os jovens
do BR45 consideram de um modo geral que o casamento é algo “fundamental”. Bantu afirma que viver a
dois é fundamental e para isso deve-se casar. Elmo e Cenim destacam que o casamento serve para se
“construir uma família”. Bantu ironiza e menciona que a família atende parte das etapas da vida, deve-se
deixar descendentes, “herdeiros, de 2 a 4 filhos”, isso, segundo o grupo, caso a mulher “aguentar”.
Bantu argumenta que se duas pessoas estão vivendo juntas maritalmente, mas não assumem essa
posição estariam segundo ele se “prostituindo”. Além disso Banto afirma que deseja “envelhecer” junto
com a sua mulher, sem separar-se dela. Ele alega que aos 27 anos ainda não pensou em casar por essa
razão. Bantu alega que crianças filhas de pais separados sofrem muito. Ele apresenta alguns exemplos em
que a criança se sente prejudicada pela separação dos pais como em eventos sociais na escola e na
comunidade. Finalmente ele usa o exemplo de sua família que nunca se separou, algo que para ele se
constitui como uma referência.
Augusto menciona o período em que esteve vivendo com uma companheira e com um filho, mas
que terminou em separação. Ele lamenta não ter acompanhado o crescimento do filho em função disso.
Bantu sorri e se volta para os demais que estão em silêncio observando. Augusto retoma a palavra e
afirma que ainda assim pretende se casar, mas somente quanto tiver trinta ou trinta e cinco anos. Em
função do comentário de Augusto, Bantu afirma que casar cedo é besteira. Duarte toma a palavra e
comenta que “deve-se estabilizar a vida primeiro”. Bantu chama a atenção das dificuldades decorrentes
de um casamento sem planejamento, para isso ele utiliza a expressão “ficar passando fome”.
Y:
Mas, dando continuidade a esse assunto. Vocês pensam em se casar? Constituir família?
Bm:
Eu? (.) Eu penso. Eu acho que viver uma vida a dois é::: fundamental e tem que tá casado (.) Eu
tenho vontade de construir porque a gente num veio no mundo só pra vegetar. A gente veio no
mundo pra:: (.).
Breitner Tavares
165
Cm:
[construir.
Em:
[construir uma família.
Bm:
[ crescer e reproduzir, constituir uma família e deixar herdeiros pelo menos @um, dois três
quatro@ (.) @depende da mulher se ela aguentar né@.
Todos:
@(.)@
Cm:
@dois três, dez@ (
Bm:
Eu acho que se a pessoa vive a dois e não é casado tá se prostituindo. A gente mesmo assim
) tá massa.
durmindo com a namorada na cama, a gente tá se prostituindo ao mesmo tempo eu quero tá
casado me:smo e eu quero envelhecer com ela. A mulher que eu escolher pra casar (
ela (
) e envelhecer mesmo. Por isso pode existir briga, desavença eu quero ficar (
) vai ser
) por
isso, que eu não tô casado até hoje. Eu vô faze 27 anos agora dia 23 e nem pensei em casar
entendeu? Porque eu acho que a criança sofre por ter pai e mãe separados.
Am:
Eu:: Eu mesmo tive uma ilusão aí: ( ) teve um tempo aí eu me juntei com uma mulher fiquei
quatro anos com ela tive um filho mas:: é isso daí é::::(
) a vida continua né? A vida
continua, ilusão, cinco minutos de burrice na vida, mas eu to aí pra consertar, mas hoje eu me
arrependo de não ter vido, de não ter vido o primeiro passo do meu filho, a primeira palavra
dele, mas é isso aí (.) a vida continua (4).
Bm:
[@ e vocês?@ @(2)@.
Cm:
[ @Eu já falei@.
Bm:
[((bate palma com expressão de riso sarcástico)) (
Am:
 Mas eu pretendo me casar novamente novamente, mas com uns 30, 35 agora.
Bm:
É besteira o cara casar cedo. Né? (1) Casar com: 19 casa=com: @Quantos anos você tem?@
Dm:
23.
Bm:
@ó 23@ é besteira casar cedo assim. O cara tem que casar: (
Dm:
Começar a estabilizar a vida primeiro.
Bm:
[ Estabilizar a vida primeiro pra procurar constituir uma família (.) porque porque ficar casando (
)
).
) se basta só um ficar passando fome.
Como afirmado anteriormente, os jovens do grupo consideram o casamento importante, mas de
fato não o consideram como algo prioritário em suas vidas. A experiência de casamento e separação de
Augusto é vista como uma espécie de advertência para o grupo, em relação a se estabelecer um
casamento sem que haja as devidas condições para manter a sua durabilidade. O grupo mantém o
consenso de que “casar cedo” é uma ideia indesejável sem que se construam as devidas condições
materiais para que ele se realize, o que evitará “ficar passando fome”. O namoro assim como o casamento
são importantes, mas de fato os relacionamentos vivenciados pelo grupo, em geral, estão no campo da
estabilidade passageira de se “ficar com as meninas” Isso implica por sua vez em não estabelecer um
compromisso duradouro, como um namoro ou casamento.
8.2 Masculinidade e misoginia: a construção social do namoro e a monogamia
Breitner Tavares
166
Grupos Revolução MCs e Resistência Periférica
O grupo REVOLUÇÃO MCS: Dando um rolê, porque tem dona dando mole no frevo
Relacionamento de rapazes, formação de pares românticos e o sentido da fidelidade
Y
Bom, vocês teêm namoradas ou vocês têm esposas, como seria essa relação com as mulheres?
Am
 @O barato é loco véi@.
Bm
 Namorada, eu já tive namorada mas @eu sô mais de ficar zanzando@
Am
@malandrão@
Bm
 Já quiseram, mas eu não consigo ficar ali::::: só com uma não, eu sou uma pessoa que eu tipo
gosto é de frevo.
Am
@Uma vida louca na história@
Bm
Se eu tiver uma hora marcada tipo com minha namorada ali, não que eu não goste dela, mas
tipo assim se eu tiver uma namorada ali, e um muleque chegar e ((aí Blink vamo ali no frevo ali
mermão, vai ter altas donas e pá)), eu vou pro frevo e depois eu sento pra conversar com ela, eu
invento uma desculpa, um caô, falo que fui com a minha mãe.
Am
 Mas você não tem namorada ((por isso fica falando isso)).
Bm
 Tipo assim que nem ontem (.) tipo uma doninha ali pá.
Am
 @E a gente dá conselho pra ele ainda@.
Y apresenta uma questão sobre relacionamento. O grupo se exalta, os risos se tornam constantes,
assim como os olhares recíprocos em busca de cumplicidade se multiplicam. Para os jovens do grupo, a
resposta sobre como encaminham seus relacionamentos não é unívoca, tampouco linear. Contudo, em
cada trajetória individual há uma inclinação para um habitus da festa e do lazer como forma de
encaminhamento de suas orientações coletivas na esfera do relacionamento afetivo. Em geral, os jovens já
estiveram envolvidos com namoro, contudo, preferem não manter um relacionamento fixo. Em
contrapartida, as festas e os encontros casuais orientam suas práticas e seus gostos em relação aos
encontros mais fortuitos e momentâneos que podem ocorrer, como considera Blink (Bm) ao dizer que
prefere “ficar zanzando”, que desperta o riso dos demais integrantes do grupo, Amaro (Am) e Conde
(Cm). Eles, em resposta a Blink, o chamam de “malandrão”, termo que manifesta nesse caso um tom
discretamente irônico repreensivo quanto à posição de homem galanteador e ao mesmo tempo
descompromissado com as mulheres. Esse comentário do grupo gera uma resposta de Blink, que busca
justificar sua posição. Ele afirma que já quis ter um relacionamento fixo, mas não consegue manter um
único vínculo, portanto, prefere viver a diversão, definida pela palavra “frevo”.
Breitner Tavares
167
O relacionamento com as garotas é estipulado pelo grupo quando está reunido. Estar na presença
de outros homens interessados em flertar com outras garotas é preferido a estar na companhia da
namorada do relacionamento estável, monogâmico. Blink exemplifica que se ele eventualmente for
convidado para alguma festa, “frevo”, em que haverá a presença de outras garotas disponíveis, chamadas
de “donas”, nesse caso ele desiste do encontro já marcado com sua namorada. Ele argumenta que
posteriormente irá procurá-la para lhe dar uma explicação, na qual ele omitiria a experiência do frevo
com as “donas”. Para isso, ele contaria uma mentira a sua namorada, definida como “caol”ou “caô”.
Amaro contrapõe Blink e comenta que ele só tem essa postura por não estar namorando de fato e que ele
costuma aconselhá-lo quanto a esse tipo de postura, considerada por ele como incorreta.
Blink conta que costuma ser convidado por seus amigos para um passeio, para se divertir, “dar
um rolê”. Ele comenta que numa dessas ocasiões uma “dona” estaria insinuando estar interessada nele,
“dando mó mole”. Blink afirma que costuma aceitar os convites para esse tipo de atividade, mas admite
que, com o passar do tempo, se sente enjoado e não demonstra mais tanto interesse nesse tipo de
relacionamento mais ocasional, momentâneo. Ele conclui num tom de riso que Amaro é um tipo de
pessoa que se apaixona facilmente. Diante desse comentário, todos riem. Amaro demonstra certo
constrangimento e diz para Blink “parar” com esse tipo de comentário. Amaro tenta desviar a atenção do
grupo voltada nesse momento para ele e convida enfaticamente Conde para apresentar seus comentários
sobre o tema. Conde sorri meio envergonhado, faz uma pequena pausa e em seguida diz que,
precisamente, não tem uma namorada e se compara a Blink, contudo, ele faz uma ressalva, pois, segundo
ele, não costuma participar tanto de festas, “frevo”, como Blink. Diante desse comentário, Amaro sorri e
comenta que Conde ainda está mais preocupado com sua conduta religiosa, pois ele se considera
evangélico, “ainda está orando”.
Conde comenta que hoje ele pode estar com uma garota, “eles se vêem, se falam, fazem
qualquer coisa”, contudo, logo em seguida, ele encontra outra garota e finalmente ele prossegue em
múltiplos relacionamentos.
Para o grupo, o relacionamento é determinado ocasionalmente em encontros múltiplos. Em
alguns casos, os jovens mantêm vínculos com várias garotas ao mesmo tempo sem compartilhar com as
mesmas que se trata de um relacionamento sem compromisso de um namoro monogâmico. Isso expressa
aspectos de um relacionamento pautado em bases patriarcais, em que o jovem mantém certo controle
sobre suas namoradas ao firmar um compromisso monogâmico, que, de fato, não ocorre.
Para os jovens do Revolução MCs, estar no “frevo” implica jogar com o relacionamento, no
sentido de manter vários relacionamentos. Por outro lado, os jovens mantêm um relacionamento mais
estável, no sentido de maior duração, um namoro. Nesse caso, a namorada nunca é informada sobre os
outros relacionamentos dos jovens. Para eles, isso implica ludibriá-las, criar uma fachada que represente a
estabilidade no namoro, omitir e mentir sobre outros possíveis relacionamentos, prática definida pela
expressão “aplicar o caô”. Por outro lado, estão as “donas”, garotas supostamente sem namorados e que
potencialmente poderiam flertar com os jovens.
Breitner Tavares
168
Há uma variação dessa situação de múltiplos relacionamentos. Nesse caso, o jovem estabelece
desde o princípio uma situação de não envolvimento, num par romântico. Eles se divertem juntos, se
vêem e podem eventualmente aprofundar ou não o relacionamento, contudo, não há um jogo de blefes ou
“caô” em que o jovem tentará lograr o controle de várias namoradas ou “donas”. Nesse caso, os
relacionamentos ocorrem um por vez. Isso demarca uma diferença em relação a “viver zanzando”, um
relacionamento por vez num curto espaço de tempo ou “viver no frevo”, manter vários relacionamentos
ao mesmo tempo e num espaço de tempo curto.
Ela: pessoa perfeita pra mim ou feita pra mim
Monogamia e masculinidade na relação entre jovens
Durante a discussão sobre relacionamento, houve em princípio o posicionamento do grupo por
relacionamentos sem o vínculo monogâmico centrado na figura masculina. Contudo, houve uma
polarização no sentido da defesa do namoro tradicional, numa estrutura monogâmica.
Am:
 Eu já tem um ano e três mês que eu namoro.
Cm:
[@Vai casar@
Am
 A melhor coisa do mundo é namorar, @altos beijinho, altas briga, altas divergência, altos
conflitos de pensamento@.
Cm:
A mulher dele com todo respeito é toda perfeita, toda bonita, é linda, meiga. Pra ele ::(( )).
Am:
 Não. Tipo assim, como eu falei, eu sempre tô visando o rap mas como eu te falei, na minha
vida ela veio como o rap, o rap vei pra mim fazer ficar mais dentro de casa, mais atento, mais
esperto (.) as pessoas que vei, e depois virou as costas pra mim, eu aprendi com eles certos
pensamentos, não certos pensamentos ((mas)) certos gestos, certos tipos de conduta, ficar mais
na sua e tal ((hoje em dia)) eu até agradeço as pessoas que me viraram as costas hoje, a minha
namorada ela veio num momento muito ruim, Blink lembra disso e chegou a envolver o rap em
conflitos pessoais é, em conspiração muita vezes por dinheiro ou fama na quebrada, coisas que
envolviam violência mesmo, então ela veio num momento bom no meu toque de falar, me tirou
do meio da multidão, igual o Blink, quando eu acho que (1) quando eu acho que vários estão
contra mim, no meio de de de: cem tinha um, o Blink, tanto é que hoje em dia ele tá aí.
Bm:
@Apesar das discussões a gente discutia pra caramba@.
Am:
 Até hoje existe isso.
Em relação à defesa de um relacionamento monogâmico com namorada, Amaro menciona que já
está envolvido há mais de um ano e que isso é “a melhor coisa do mundo”, ele exemplifica num tom de
riso que no namoro existe a intimidade “dos beijinhos”, que se remete a um sentido de cumplicidade no
relacionamento apesar das eventuais divergências e dos “conflitos de pensamento”. Contudo, o
Breitner Tavares
169
comentário de Amaro desperta o olhar de Conde, que comenta sorrindo e, em baixo tom, que Amaro vai
se casar. Em seguida, ele lança um elogio sobre a namorada de Amaro ao mencionar que ela é “perfeita,
toda bonita, linda e meiga”. Amaro responde rispidamente que “não!”, se referindo ao comentário de
Conde sobre sua garota. Conde então se recolhe ao silêncio. Amaro, por sua vez, inicia um comentário
paralelo em que compara seu relacionamento com seu envolvimento com o rap.
Amaro, em seus próximos comentários, menciona que o rap veio para lhe “fazer ficar mais
dentro de casa”, “ficar mais atento e esperto”. Dito isso, ele faz uma pequena pausa e olha para todos e se
fixa momentaneamente em Conde, que mantém um olhar cabisbaixo. Em seguida, Amaro segue dizendo
que se envolveu com outras pessoas que posteriormente lhe decepcionaram, “lhe viraram as costas”, essas
experiências foram, segundo ele, importantes acerca do aprendizado dos gestos e condutas das pessoas,
que lhe motivaram uma conduta mais reservada, “ficar mais na sua”. Ele considera que, apesar de ter se
decepcionado, isso foi algo também positivo para seu aprendizado, pois foi num momento ruim que ele
encontrou sua namorada. Nesse momento, ele se dirige a Blink como alguém que teria acompanhado sua
trajetória.
Amaro menciona que se envolveu em conflitos pessoais, “conspirações” em função da disputa
por status social ou mesmo dinheiro na região onde vive. Essas situações, segundo ele, chegaram a
envolvê-lo em atos de violência. Em meio a essas situações, o encontro com sua atual namorada foi
fundamental para levá-lo a se distanciar de brigas e
problemas da “multidão”. Nesse caso,
ameaças, essa mudança o teria retirado dos
o relacionamento amoroso cria uma possibilidade de
enfrentamento dos dilemas de um mundo em que os vínculos sociais são mais superficiais e
momentâneos e eventualmente conflitivos (SIMMEL, 1973). Ele ainda comenta que, em meio a toda essa
situação de infortúnios, a presença de seu amigo Blink se manteve. Conde nesse momento aproveita e
menciona que apesar da amizade as divergências eram constantes, assim como a retomada do consenso
entre os dois amigos.
Amaro retoma a palavra e discute brevemente sobre a formação de vínculos sociais de amizade e
consciência grupal relacionados ao movimento hip-hop. Para ele não há amigos ou meio amigos, para ele
há ou não há fraternidade na relação entre “irmãos”. Na fraternidade, há uma maior cumplicidade que
aproxima os indivíduos do grupo. Nesse momento todos estão em silêncio acompanhando seus
argumentos.
Após lançar essa parábola em relação aos vínculos afetivos e de fraternidade como um
arcabouço moral que orienta a estrutura do habitus do grupo, Amaro resolve retomar o assunto sobre
namoro e relacionamento. Ele considera que ter namorada evita o envolvimento dos homens com
prostituição, entretanto, ele ressalva dizendo que não é contrário àquele que se envolve com muitas
garotas, definido como “garanhão que pega todas”. Contudo, ele admite estar voltado para uma relação
monogâmica, mais estável, o que é definido pela expressão “eu tô parado”, que seria uma condição
diametralmente oposta à condição de “estar no frevo”.
Amaro argumenta que quando se encontra a “pessoa certa” ou que se supõe ser certa, vive-se de
modo mais reservado, respeitando seus próprios sentimentos. Isso implica um envolvimento com a pessoa
Breitner Tavares
170
certa, “conversar mais com ela”. Amaro admite que não acreditava que pudesse existir a pessoa “perfeita”
ou “feita” para ele, toda mulher era vulgar, sem valor, vagabunda”. Ele admite que alguma coisa mudou
em relação a seus pensamentos, apesar dele saber que não dá para confiar totalmente. Todavia, ele
assume que sabe com quem está, da mesma forma que ele conhece suas companhias. Amaro conclui com
ar de convicção que ser astucioso, “malandro”, é saber viver e que ele está envolvido nessa experiência.
De fato, ele fez uma grande parábola sobre amizade e fidelidade que desvirtuou o debate, principalmente
depois do comentário ambíguo de Conde que, logo em seguida, se retirou do grupo sem dar maiores
explicações.
O depoimento de Amaro em relação ao seu envolvimento com sua namorada expressa a busca
do grupo por uma estabilidade moral que pode ser garantida com a companhia feminina, seja ela em bases
monogâmicas ou não, num ambiente onde ficar sozinho significa estar na “multidão” com seus
respectivos problemas. A existência de uma namorada permite aos jovens que os mesmos compartilhem a
construção de suas respostas no sentido de um grupo numa mesma unidade geracional, o que se identifica
na expressão “saber que existe uma pessoa perfeita”.
Apesar de alguns membros do grupo admitirem não ter namoradas, eles constroem seus
argumentos no sentido de estarem frequentemente encontrando garotas como as “donas”, que reforçam
um sentido de masculinidade delineado por estar com várias garotas ao mesmo tempo.
No caso da atitude em relação à defesa da monogamia, define-se um discurso no sentido da
maturidade emocional, que estabiliza o indivíduo. Contudo, ocorre o aumento do sentimento de posse,
nos termos do comportamento ciumento em relação a namorada. Para o grupo, mesmo sabendo que não
se deve confiar integralmente nas pessoas, há sempre a possibilidade de se construir laços de fidelidade
entre pessoas “perfeitas” umas para com as outras. Por fim, durante a discussão, a ênfase dada ao
sentimento de cumplicidade entre amigos foi apresentada como uma delimitação do sentimento de
ciúmes, que apesar de latente gerou uma tensão que fez o grupo repensar a relação dos vínculos sociais
definidos pelo estilo hip-hop.
O embate entre diferentes posições, seja monogâmica ou não, é parte dos dilemas enfrentados
pelo grupo. Ainda em relação a essa tensão, Y lança uma pergunta sobre a intenção dos membros do
grupo em relação a casamento e filhos. A projeção de futuro implícita na pergunta leva o grupo a
manifestar um interesse mais homogêneo favorável à ideia de casar e ter filhos. Isso foi observado
primeiramente em Blink, que manifesta seu interesse em se casar e ter filhos. Diante de sua resposta,
Amaro aproveita e diz que Blink iria deixar de cometer falhas, “sair da vida bandida”. Blink responde
com certa irritação à provocação de seu companheiro. Ele continua a manifestar o seu desejo de constituir
sua vida da sua maneira, “do seu jeito”, que implica um desejo de mudar. Amaro ri da tensão provocada
por seu comentário e sugere que Blink deve obter um bom emprego. Blink concorda e diz que gostaria de
ter um bom emprego e um carro para passear com sua mulher, ele pensa em ser “alguém na vida”.
Breitner Tavares
171
Y:
Bom, a outra pergunta, é beleza, é, cada um tem uma forma de se relacionar no momento né,
cada um tá vivendo uma história, né isso, e como é, vocês pensam em casar, ter família, ter
filhos?
Bm:
Até casar...
Pra falar a verdade véi, eu tenho, eu tenho, tem vontade assim de casar sei lá, de ter meus filhos,
Em
[@ sair da vida bandida@
Bm:
[sair da vida bandida não véi ((irritação))
Em:
@(2 )@
Bm:
[mas tipo, mudar viver do meu jeito tá ligado, mudar.
Em:
[@Um bom emprego@.
Bm:
[ É, arrumar um bom emprego, ser o que eu quero ser, ter uma casa, um carro, pra eu ficar de
rolê com a minha mulher, quiser sair, sei lá, é isso aí véi, um dia eu penso em mudar, penso em
casar, penso em ser alguém na vida né?
Amaro, por sua vez, afirma que pensa em constituir uma família. Ele menciona que já viveu junto
com outra mulher por algum tempo e admite não saber se isso tem o mesmo significado de um casamento
formal. Amauri pontua que não se pode viver na miséria e que tudo hoje em dia tem seu preço. Ele afirma
que eventualmente pode não se encontrar emprego, assim, diante da possibilidade de desemprego, não se
pode pensar na possibilidade de constituir família, dessa forma, o que se pode fazer por enquanto é
sonhar.
Am:
 Cara já eu penso em constituir uma família, eu acho que quando fala em casar assim, já fui
junto, não como casamento, mas já moramos junto, não sei se casar é a palavra certa e eu.
Bm:
Tem muita gente que quer casar que já está vivendo há muito tempo.
Am:
Como eu falei, como eu falei, a gente não dá pra viver é na miséria, é que precisa de tanto pra
pegar o ônibus pra um lugar, pra outro, tudo hoje em dia se paga mau, pra deixar currículo, quem
hoje em dia não tem um bom emprego, não é visto, não como um vagabundo, tem uma profissão
pra fazer, eu tô estudando, trabalhar e estudar, eu já trabalhei já, mas às vezes a gente está
desempregado, então a gente não pode pensar em constituir família, sem não antes pensar em
seus projetos pro futuro, então é isso, que pensar a gente pensa, a gente comenta. Por enquanto a
gente faz é sonhar.
Em relação a uma atitude reflexiva em relação ao futuro, o grupo associa a constituição de uma
família, em bases monogâmicas, como um meio de transformação pessoal. A expressão “ser alguém na
vida” pode ser associada à intenção de obtenção de emprego, que implica uma mobilidade social em
termos econômicos. Por outro lado, o grupo manifesta sua preocupação em relação ao futuro “a dois”,
pois isso implica participar do mundo do trabalho, que é encarado pelo grupo como instável e
comprometedor da estrutura familiar. Portanto, nesse caso, há certa ponderação sobre a intenção de se
Breitner Tavares
172
assumir uma série de responsabilidades que levam os jovens a não estabelecerem planos mais definidos
em relação a constituição de uma família nos termos de uma união conjugal, para eles “por enquanto (o
que resta ) é sonhar com o futuro”.
O grupo Resistência Periférica: “A complicação do bom marido e suas falhas”.
Relacionamento e afetividade no Grupo Resistência Periférica
Os membro do Resistência Periférica (RP) estão em sua maioria envolvidos em relacionamentos
mais estáveis, casados ou namorando. Durante a discussão com o grupo sobre como os jovens lidam com
o relacionamento com suas companheiras, imediatamente se estabeleceu uma atmosfera de risos e, logo
em seguida, um deles define a questão como “complicada”. Além disso, durante toda a discussão,
prevalece uma dualidade em relação a suas representações coletivas, que são ilustradas pela dualidade
entre ser um “bom marido”, por um lado, e, por outro lado, cometer “falha”.
O estilo hip-hop materializado por diversas práticas de lazer irá gradualmente definir certos
comportamentos no que diz respeito à relação entre os sexos. Em geral, os homens estabelecem
atividades relacionadas à diversão que não incluem mulheres. Amauri (Am) diz que gosta de sair para
tomar umas cervejas, mas nem sempre informa sua companheira disso, pois ela não demonstra interesse,
“ela não é de frevo”. Isso provoca certa tensão na vida do casal, sua estratégia para minimizar o problema
se dá pela busca do diálogo, “trocava idéia”, pois continuar a viver no “mesmo mundo”, ou seja, se
restringir ao espaço social do casamento seria algo indesejado. Ele fala que antigamente costumava sair e
só retornar no dia seguinte, agora ele procura informar sua companheira a que horas voltará para que ela
possa ficar lhe esperando, essa é sua alternativa frente ao comportamento “falho” do homem. Essas
tensões provocadas pelo comportamento “falho’ do homem, ou seja, de sua busca contínua por outro
espaço sem a presença de sua companheira, são definidas como “conflito de alma”. Enquanto Amauri
fala, todos observam atentos e, ao final, Conrado (Cm) dá uma breve risada.
Am:
Tipo assim, eu acho que eu sô um bom marido, mas eu tenho minhas falha, tá ligado?
Tipo=assim, tipo=assim, minha mulher não é de frevo assim tá ligado? Não gosta. Aí pá, e eu
assim quando começo a tomar uma cerveja, mano (.).
Dm:
 @Já era@.
Am:
Só Jesus na nossa causa, porque é problema. Que nem eu falei com ela, tipo uma vez aqui, eu
falei pra ela: não amozinho vou só ali comer um cachorro quente. Que hora que eu cheguei?
Quatro hora da manhã. Tá ligado?
Todos:
@(2)@.
Am:
Aí pá, eu troquei idéia, viver no mesmo mundo que ela é pior. Moço. Antigamente quando eu
casei com ela eu saía, por exemplo eu saía hoje e só voltava amanhã, (
) no outro dia. Tá
ligado? Agora eu já tenho uma coisa de falar ((ruído de carro)) me esperando. É o que eu faço,
Breitner Tavares
173
porque o homem é falho. Mas agora eu tenho uma consciência, né? Agora a relação de casado é
bom:::, fora isso, se não fosse as briga que aparece aí. Conflito de alma. É cabuloso.
Cm:
@(1)@.
O encontro entre garotas e garotos irá definir a criação de vínculos afetivos como namoro e
casamento. Esses vínculos estão relacionados a aspectos de proximidade geográfica com a vizinhança e a
atividades de lazer relacionado ao rap. Denis (Dm) conta que conheceu sua ex-mulher num salão durante
um baile de hip-hop. Após se casarem e passarem a viver em Ceilândia, ele passou a sair para cantar em
apresentações com outros companheiros homens, contudo, quando ele se preparava para deixar sua casa
ela começava a lhe xingar. Ele, por seu turno, diz que ignorava suas ofensas. Ela ainda lhe dizia que ele
deveria escolher entre o rap e a sua companhia. Diante de tal situação, Denis acenava ironicamente como
se estivesse se despedindo de sua companheira e lhe dizia para “ficar aí”, pois ele já estava de saída,
“saindo fora”. Em seguida, ele se refere ao seu estilo como uma propriedade, algo que lhe atribui um
sentido de pertencimento, uma autoimagem, que sua companheira quis lhe tomar, “tirar uma coisa de
mim”. Ele disse que já cantava rap há quatro anos quando a conheceu, o que caracteriza a sobreposição
do estilo sobre o relacionamento, assim como definiu o grupo Rap Comando.
A manutenção do relacionamento ocorre pela exclusão da companheira das práticas de lazer que
são sempre definidas pelo viés masculino, “sair com os amigos para cantar rap”, porque quando eles se
conheceram ele também já cantava rap e ela fazia parte do espaço de circulação de jovens desse estilo
sem que isso se constituísse num entrave. Há uma outra situação semelhante apresentada por Conrado,
que retruca enfaticamente as considerações anteriores de Denis: ele afirma que, em seu caso,
supostamente, ocorreu o contrário. Conta que sua ex-companheira passou a gostar do rap através de sua
influência. Ela tinha interesse em saber os detalhes dos shows, quem iria se apresentar, entre outras
coisas. Denis ainda tenta justificar que sua mulher passou a causar problemas depois do casamento.
Em:
Comigo foi o contrário, Celine passou a gostar do rap por causa de mim, @(1)@. Ela vai (.) ela
gosta mesmo (.) ela quer saber quem é quem (.) quer tá no palco. E eu falo os nome tudim pra
ela, “esse aqui é fulano, mora não sei aonde”.
Dm:
Foi depois de casado que a ((minha)) mulher encrespou (
).
O estilo caracterizado por práticas de lazer e determinadas indumentárias é algo que caracteriza
o grupo. Isso se expressa a partir de suas ações e significados constituídos nesse sentido de pertencimento
coletivo. Nesse caso, o casamento aqui aparece como uma mudança no significado e na dinâmica de
consumo dos jovens que redefine a orientação coletiva em torno do estilo, como, por exemplo, o costume
de sair com os amigos. Apesar de Emanuel e Denis terem conhecido suas companheiras em meio ao
ambiente hip-hop dos bailes e shows, o que implicava participar de um meio frequentado por homens e
mulheres, num segundo momento, essa prática passa a ser considerada apenas como interessante
Breitner Tavares
174
exclusivamente para os homens. Portanto, em ambos os casos, o vínculo afetivo mais duradouro, como o
casamento ou o namoro, passa a ser um entrave ao prosseguimento do homem no estilo, como expresso
por Denis em “tirar uma coisa de mim”.
Essa tentativa de constituir um espaço de relativa autonomia masculina e exclusão feminina
define o sentido de “falha” no comportamento do jovem de sexo masculino após assumir um determinado
tipo de relacionamento. Amauri aproveita para comentar um episódio em que estava com sua
companheira e outros amigos numa boate quando alguém acende um cigarro de maconha, “uma barata”.
Segundo ele, sua companheira passou mal, daí ele a levou de volta para a casa. Amauri afirma que ela não
gosta desse tipo de ambiente e, além disso, seus amigos haviam dito para que ele não levasse sua mulher,
“tu não leva sua mulher”. Por outro lado, Amauri admite que apesar de sua mulher ficar contrariada,
nesse caso, é melhor que ela esteja em casa a ter que se sentir mal na rua.
Am:
 º É que nem eu vô te dá uma idéiaº. Eu fui naquele dia pra Capital ((boate em Taguatinga Sul)),
tava eu, tu, a Dásia que é minha esposa, tá ligado? Aí tamo lá curtindo, quando um cara lá
acendeu uma barata ((cigarro de maconha)), aí quando eu vejo ela tá morrendo. Aí eu falei,
vamo embora moço. Tá dormindo? Ela ficô lombrada.
Dm:
 Quem? Sua mulher?
Am:
Foi. Já não gosta e (.) pá tá ligado? Aí os muleque fala pô “tu não leva sua mulher”. Né não
moço. É pra mim ir e dizer que a mulher sentindo mal? É melhor eu dizer, né não? Ficar em
casa. Apesar que ela vai achar ruim.
Da distopia da guerra ao amor para trabalhar a cabeça: Relacionamento amoroso e visão de mundo
Quando a vida em espaços segregados envolve toda a família, irmãos e irmãs em conflitos, o
relacionamento entre os jovens, o amor e o envolvimento são capazes de gerar uma transformação.
Amauri fala de alguns problemas com outros grupos que queriam matá-lo, o que ele chama de “guerra”.
Outros rivais queriam matá-lo porque ele seria considerado alguém ingênuo e imaturo, um “prego”.
Segundo seus parceiros, isso estava relacionado a problemas anteriores de seu irmão. Amauri diz que esse
problema é assim de “geração para geração”, problema que só amenizou depois que ele “cresceu”. Ele
acrescenta que esses problemas poderiam tê-lo feito outra pessoa. Além disso, apesar de seus irmãos
serem errados (envolvidos no crime), era um pelo outro. Ele segue dizendo que mesmo seu irmão estando
preso (numa penitenciária), uma parte dele também estaria “presa lá dentro”. Ele menciona que certa vez
chegou à vizinhança na esquina da quadra e disse que seu irmão não estava sozinho, pois ele estaria do
seu lado mesmo estando do lado de fora da prisão. E desafia caso alguém envolvido no conflito queira
Breitner Tavares
175
tirar satisfação com ele na rua, pois ele estará lá disposto a isso, e acrescenta que não pertence a esse
mundo e não veio para ficar.
O pensamento distópico em relação à vida e ao mundo experienciado ali no bairro restringia os
horizontes de Amauri, que já havia perdido a companhia do irmão que estava preso. Por outro lado, nesse
mesmo ambiente, ele encontra aquela que será capaz de “trabalhar sua cabeça”, ou seja, de estabelecer
novos valores no que se refere à compreensão da vida e dos problemas que o cercam através do amor
entre duas subjetividades distintas e, nesse caso, heterossexuais. Amauri dizia que, durante esse período,
encontrava-se na rua com a garota que seria hoje sua companheira.
Am:
 Era coisa tipo assim de geração pra geração entendeu? Um bagulho que amenizou quando eu
cresci. Entendeu? Que amenizou que era pra eu tá tipo o outro. Apesar que meus irmão pode ser
errado como for, mas tipo assim, um é pelo outro, tá ligado? Eu tô tipo aqui na rua aqui, meu
irmão tá lá preso? Mas um pedaço meu tá lá dentro, tá ligado? Um pedaço. Pá, que nem eu falei.
Cheguei lá no pátio lá ontem é o seguinte: “Meu irmão não é só não, tal, se for pra cruzar na rua
tô aí”. Não sô daqui, não vim pra ficá. E é o seguinte, depois disso, minha mulhé me via ((na
rua)) e eu achava bonitinha e eu falava “ºvô pará elaº”. Aí ela saía correndo, moço. Aí ela falava
é o Am. O Am era a mesma coisa=de vê o demônio, moço. Ela saía correndo. @Aí ela falava “É
o Am@”. e “Pra”, corria.
Am:
Aí foi mudando, conheci ela. Ela foi trabalhando minha cabeça, e tal. Aí parei, aí conheci os
muleque, aí foi um apoio, tá; apesar que eu não sou fã entendeu? Nunca fui. Minha vida melhoro
de cem pra mil por cento.
Y:
 Pode crê.
Ele queria se aproximar daquela pela qual ele havia se apaixonado, para chamar sua atenção,
para se lançar numa paquera, “vô pará ela”. A garota, por sua vez, saía correndo, buscando se afastar de
sua presença. Ele dizia que ela preferia “ver o demônio” a estar em sua companhia. Ele justificava sua
aversão pelo fato de estar sempre armado e envolvido na guerra. Amauri pondera sobre a perspectiva que
a jovem tinha ao seu respeito acrescenta e menciona que de fato não era uma pessoa discreta ao se referir
a seu estilo simples de trajar apenas uma bermuda como vestuário. Logo em seguida ele retoma a
discussão sobre os conflitos na região onde mora, ele diz que nessa época não tinha tranquilidade em sua
casa, havia armas e munição. Havia uns 20 revólveres no bairro. Contudo, com a gradual influência de
sua namorada, foi mudando sua postura, deixando de lado seu envolvimento com as “guerras”, ela foi
“trabalhando sua cabeça”. Depois disso, conheceu outros jovens que formaram o RP e que também o
apoiaram. Sua vida teria melhorado substancialmente de “100 para mil por cento”.
Amauri ainda encontra a recusa dos pais de sua atual companheira. Ele justifica seu empenho em
estabelecer um relacionamento como sendo uma “outra fita”, ou seja, uma situação capaz de uma
mudança qualitativa de conduta dentro do grupo social que o levou a abandonar a “guerra” e se tornar um
Breitner Tavares
176
vigia de supermercado. Além de sua namorada, o encontro com outros jovens com o mesmo interesse
pelo rap são elementos dinamizadores da construção de um novo estilo que altera seu posicionamento em
relação às “guerras”. Ele abandona as armas e se arma com a lírica das rimas e a poesia para uma outra
guerra num plano artístico. Dessa forma, o namoro é interpretado como a materialização de um amor
romântico, bem como uma possibilidade de um casamento. Nesse caso, uma união estável é associada a
possibilidade de alteração do status social do jovem dentro de seu grupo.
Am:
 A mulher me via, moço, corria, moço. A mãe dela quando via eu conversando com ela, a mãe
dela chegava e puxava ela e dava o bote, @ºéh:::º@.
Bm:
 @(1)@ @até hoje é cabuloso, né?@.
Am:
 Não. Mas a mãe dela comigo (.).
Bm:
@ºAgora amenizouº@.
Am:
amenizou, agora o padrasto dela (.).
Bm:
 Porque o Am era muleque, não tinha futuro pra filha dele, era tipo a @minha patricinha, né?@
@(1)@.
Am:
Falava que eu só ia, pá, chegá e dá o bote, “sai daí tio”. E tô falando pra eles o seguinte; é outra
fita.
A paquera é definida por Conrado como “catá muié” (catar mulher), que exprime a postura do
grupo em relação à busca por uma eventual companhia feminina durante o momento de lazer, quando os
garotos saem para beber. Aqui a ideia de “catar”, no sentido lato de recolher algo que está disponível,
implica a possibilidade de se cortejarem diversas garotas ao mesmo tempo. A discussão sobre paquera e
seu modo masculino de flertar eventuais garotas gera certo alvoroço e risos durante as respostas do grupo.
Além disso, há por um lado a idealização da mulher agressiva, “a bicha era braba”, aquela que sai “à
procura do marido à noite vestida de camisola”. Por outro lado, há a idealização da mulher “carinhosa”
que entende as limitações e falhas do marido, os “furos”. Essa mulher é a que “arruma a roupa com
carinho”, para que seu marido possa sair para o show com seus parceiros ou aquela chamada de “minha
nega” que prepara sua marmita. Nessa passagem o tom é de riso e certo sarcasmo com relação à condição
de suas companheiras. Além da mulher agressiva, “braba” e da mulher subserviente, “carinhosa”, há
aquela que atua enquanto parceria positiva na solução das demandas e dificuldades da vida, essa é a
mulher que “trabalha a cabeça”.
Concentração e Xingamento: uma sociologia do escárnio e de ausência feminina
Breitner Tavares
177
Durante vários momentos da discussão os membros do Resistência Periférica lançaram alguns
gracejos entre si. Alguns deles, como Conrado, se dirigem aos outros membros do grupo como Denis e
dizem que o mesmo é “capado”, ou seja, não é viril, e “mancebado”, atribuindo uma conotação de que o
mesmo tem um relacionamento, mas que este é algo instável, impreciso. Apesar da conotação negativa
das duas palavras, elas são ressignificadas num ambiente masculino e sexista, em que se referir ao outro
negativamente, agredi-lo, faz parte de uma gradual construção de intimidade entre homens e de vínculos
afetivos entre os mesmos. Além disso, Conrado ainda faz menção à filha de Denis que teria nascido
recentemente, que possui somente alguns meses. Durante sua fala, ele é interrompido novamente por
Conrado, que lança outro comentário mencionando que esse fato é “bom”, especialmente daqui uns 17
anos. Nesse contexto, Conrado faz uma dupla menção a uma filha imaginária de Denis já na sua fase
jovem, definida como mulher já constituída fisicamente, e disponível, por outro lado, Boca (Bm) também
se converte num homem idealizado disposto a cortejá-la.
Am:
Vô te dá idéia aqui, eu sou casado. O Bm também é, o Cm é:::::
Cm:
º@capado@º.
Em:
@(2)@.
Am:
 mancebado. O Dm
Bm:
@A filha do Dm nasceu, isso é bom:: daqui uns 17 anos:@, @(1)@.
é::casado. O Em é separado.
Parte das relações de socialização dos homens e a construção do seu sistema de gostos e valores
são construídas diversamente numa relação de oposição ou no sentido de se evitar a presença feminina. A
busca por essa “ausência feminina” é apresentada como um meio de se preservar a concentração que seria
“retirada” do grupo pela presença das mulheres. O fato de o grupo realizar apresentações é estabelecido
como subterfúgio para que suas companheiras não compareçam ao local dos eventos, que também é
frequentado por outras garotas, mas que teriam o status de não estarem em sua companhia.
Além disso, a expressão “porque nois no grupo é fechado numa idéia, tipo ninguém levar a
mulhé” define um sentido de pertencimento masculino e misógino. Estar num ambiente masculino
implica redefinir aquilo que, num contexto, mais amplo seria considerado ofensivo e desrespeitoso. A
exemplo disso, o grupo mantém a prática do xingamento, a criação de códigos de reconhecimento
masculino, que segundo o grupo não podem ser compartilhados com mulheres e, em especial, aquelas
com as quais eles têm um relacionamento, pois incluem traços misóginos e homofóbicos.
O xingamento e o palavrão têm uma função social integradora, decisiva por estarem
relacionados a um sistema de valores complexos que tende a se redefinirem em função de múltiplos
Breitner Tavares
178
aspectos59, como a formação da masculinidade. Em relação a isso, Conrado menciona que quando estão
reunidos têm o costume de xingar uns aos outros, e que se uma das companheiras vir isso pode não
gostar, pois ela “já olha”. Aqui nesse contexto, quando homens estão em grupo, há uma suspensão
provisória que os permite se relacionar de modo mais íntimo. Isso implica, entre outras coisas, se permitir
xingar e aceitar ser xingado, sem necessariamente infringir aquilo que em outra situação seria uma afronta
à honra do indivíduo.
Cm:
 A minha mulher fica brava, porque tipo assim, eu saio de vez em quando, e ela “Eu quero ir
pro Racionais também”. Eu falo “não gata, não dá pra tu ir, tal”. Porque tipo=assim, é
complicado, né véi? Tu vai pra cantar, e a mulher qué ir, e não tem como levar.
Am:
Tira a concentração do=cara.
Cm:
 porque nois no grupo é fechado numa idéia, tipo ninguém levar a mulhé. Por que? Porque tira a
concentração. Tipo assim eu “Ei Am seu viado, não sei o que tal” ((dá um tapa no sofá
enfatizando um susto ou repreensão num ambiente de intimidade)). Tá ligado? Aí a mulher dele
(
Dm:
).
 Já olha.
O estilo hip hop enquanto referência para uma representação social masculina não permite uma
intervenção feminina no sentido de uma avaliação da performance dos integrantes do grupo de rap. Dessa
forma, as jovens eram definidas como aquelas que “botavam defeito” e deveriam ser mantidas à distancia.
Em relação a isso, Boca ainda relembra uma experiência em que as primas de Amauri foram ao ensaio e
prejudicaram a concentração do grupo, fazendo comentários sobre quem teria a melhor performance. A
possibilidade de participação da elaboração do grupo é um fator que pode levar o mesmo a se
desestruturar internamente, gerando um retraimento, “gerar uma contenda”. Mesmo admitindo diferenças
59
Jocenir, em sua obra autobiográfica, “o Diário de um detento”, narra sua trajetória enquanto presidiário
no sistema carcerário paulista. Ele faz menção sobre vários aspectos da vida diária dos presos, como a
prática do lazer. O futebol como uma dessas práticas é redefinida, enquanto fora do sistema prisional, o
xingamento é uma prática comum entre os jogadores, exercendo às vezes até uma função integradora e
motivadora do jogo, por outro lado, dentro da prisão, o jogo se dá de maneira silenciosa, o que nesse caso
significa a manutenção da honra entre os detentos, caso alguém infrinja esta regra, pode sofrer alguma
agressão mais tarde quando voltarem para a cela. “Diferente do que ocorre nos campos de futebol
espalhados pelo país, em jogos de futebol não há ofensas e nem palavrões. Uma simples palavra de baixo
calão suja uma honra, invariavelmente se lava com sangue” (JOCENIR, 2001, p. 23). Jocenir adquiriu
certa notoriedade após manter contato com o vocalista Mano Brown, que editou parte de seus manuscritos
sobre o cárcere na versão videoclipe de o Diário de um Detento (1997), que narra o massacre no presídio
Carandiru em São Paulo, e também foi ganhador do melhor clipe MTV no mesmo ano. Veja o clipe no
sítio da internet http://www.youtube.com/watch?v=M1i-iGxUz9M.
Breitner Tavares
179
internas ao grupo, esse enquanto tal tenta estabelecer uma fachada harmônica para eventuais
observadoras, “ninguém canta melhor que ninguém”. Portanto, fatores ligados à integração e à harmonia
entre os membros do grupo são aspectos definidores que irão prescrever a separação das mulheres, com
as quais eles têm relacionamento nos diversos circuitos de lazer, exclusivamente masculinos, criados por
eles, como ir beber cerveja à noite, ir para um baile, ensaiar ou se apresentar num show. Em todas essas
atividades, as mulheres são impedidas de acompanharem seus namorados ou maridos, “É por isso que a
gente evita levar mulher”.
Cm:
Gera a desatenção no show. Tipo, é igual a gente vai ensaiar, às vezes trancava a porta, ficava
minhas prima, né Em? A Eliene. “Porque a gente não pode ver, a gente só que ver” tá ligado?
Ah, porque se nos deixava ver, (elas) botava defeito. “O Cm canta melhor que o Am”. Aí gerava
uma contenda entre nois. E nois não queria isso, nois era fechado. Nois cresceu tipo assim.
Ninguém canta melhor que ninguém mermão.
Em:
Ainda rola uma intimidação (
)
Cm:
É por isso que a gente evita de levar mulher.
8.3 Algumas considerações gerais sobre relacionamento e sexualidade nos grupos hip-hop
O estilo hip-hop caracterizado como um referencial para as representações coletivas do
jovem demarca uma série de interações afetivas dentre outras práticas sociais. Isso caracteriza o sentido
para o relacionamento amoroso dos jovens e permite que estes reconheçam a si próprios a partir de sinais
de distinção que se constitui em função de uma compreensão do seu tempo, que são descritos pelo
namoro, o “ficar”, e em alguns casos pelo casamento.
O discurso dos jovens em sua maioria homens define o relacionamento amoroso, como um
conjunto de práticas voltadas para a afetividade e a interação social, que aparece na constituição de
valores misóginos que excluem e invisibilizam as mulheres. Além disso, o relacionamento afetivo seja no
caso de um namoro ou casamento, aparece aqui como possibilidade de uma mudança no significado e da
dinâmica de consumo masculino, que redefine a orientação coletiva em torno do estilo. Nesse caso, o
relacionamento vivenciado pelos jovens influenciará como eles irão se apresentar nos espaços de lazer
interferindo em seus hábitos como, por exemplo, o costume de sair com os amigos para uma festa ou para
um show para uma apresentação pública.
Breitner Tavares
180
Por outro lado, o relacionamento possui a capacidade de redefinição do papel masculino às
vezes inserido no contexto de conflitos com outros jovens e grupo rivais que promovem a “guerra”. A
mulher aqui tem a capacidade de “mudar a cabeça” do homem na medida em que estes escolhem
enfrentar os dilemas de seu tempo construído intersubjetivamente, que é também capaz de gerar a
transformação.
Os jovens em geral, são solteiros e não admitem terem namoradas apesar de ficarem
eventualmente com garotas em festas, “frevos” no setor onde moram ou em outras regiões da cidade onde
eles têm amigos. Eles são desempregados e vivem com seus pais dos quais dependem economicamente.
Eles idealizam o namoro como uma etapa importante para realizar o casamento e constituir uma família,
como plano de futuro, contudo os jovens admitem, que em geral estão envolvidos com garotas em outros
modos de relacionamento menos formais, que o namoro onde seguindo eles está implícito o compromisso
de fidelidade que deve ser respeitado.
O casamento é considerado como uma realização importante para a construção de um “futuro”,
contudo os jovens ponderam, e alegam que essa escolha deve ser encaminhada após um planejamento,
que implica numa “estabilidade” compreendida como ter meios de se sustentar de modo independente.
Diante das dificuldades apresentadas pelos jovens os mesmo consideram que o que pode fazer por
enquanto é “sonhar”.
Para aqueles jovens que são casados assim como para os jovens que têm namoradas, observa-se
a construção patriarcal das relações sociais em torno da sexualidade que marginaliza a mulher, tornando-a
ausente do espaço de lazer e entretenimento, que se torna masculinizado, uma vez que ela já assumiu um
relacionamento mais estável. Por outro lado, o jovem do sexo masculino assume um papel ambíguo em
que por um lado encontra no relacionamento amoroso a possibilidade de enfretamento dos dilemas de ser
jovem numa determinada conjuntura social, contudo o relacionamento não o impede a dar continuidade
em atitudes consideradas pelos jovens como “falhas”, que estão relacionadas a vida mundana e festiva
compartilhada por seus amigos e parceiros.
As diversas possibilidades de articulação entre os indivíduos permitem aos jovens de maneira
geral, transitarem eventualmente de um papel para o outro no que se refere a manter um namoro formal
monogâmico ou a manterem vários relacionamentos com outras garotas, “as donas” ou “piriguetes”
consideradas disponíveis para um relacionamento casual definido como “ficar zanzando” ou “ficar no
frevo”.
Os grupos Rap Comando, BR45, e Revolução MC’s tem algumas semelhanças que os
aproximam. Esses grupos em geral são constituídos por jovens em sua maioria com até vinte anos de
idade. Boa parte desses jovens encontram possibilidades de estarem juntos a partir da escola em que
estudam ao a partir de atividades promovidas por ONGs locais como o Resistência Negra; alguns dos
jovens que não estão frequentando a escola se encontram na rua o na casa de amigos. Eles são solteiros, e
poucos admitem terem namoradas apesar de eventualmente ficarem com garotas do setor onde moram ou
em outras regiões da cidade onde eles têm amigos.
Breitner Tavares
181
O grupo Resistência Periférica, por sua vez, é constituído em sua maioria por jovens entre 20 e
30 anos e são casados vivendo com suas companheiras ou são separados de outras relações anteriores,
mas a maioria vive em local independente da moradia dos pais. O grupo não menciona nenhum vínculo
com movimentos organizados. Sua atitude em relação ao grupo está mais voltada para relações vicinais
no setor QNX ou nos bailes que ocorrem em locais diversos. Muitos já concluíram o ensino fundamental
e médio, mas poucos frequentam a escola atualmente. Além disso, todos no grupo trabalham exercendo
diversas atividades.
O jovens do Resistência Periférica, diferente dos outros grupos, são responsáveis por arcar com
seus gastos e mantém uma relativa independência em relação aos seus pais. Eles alegam que conheceram
suas mulheres em bailes de hip-hop e que compartilhavam do mesmo estilo, contudo após o casamento,
os problemas vieram tais como: mudança de residência e outras responsabilidades como o nascimento dos
filhos. Contudo mesmo diante dessas mudanças atribuídas pela vida de casado, os rapazes continuam a
frequentar as atividades de lazer característico do estilo, ir aos bailes para se apresentarem, sair num
grupo exclusivamente de homens para uma festa. Consequentemente isso gera uma tensão no
relacionamento. Os casais brigam mais frequentemente. Os jovens do grupo alegam que suas
companheiras estão tentando “tirar do homem aquilo que lhe pertence”. Nesse caso a expressão se refere
à possibilidade de sair com outros homens mesmo que isso implique indiretamente em circular naqueles
espaços que não são de circulação exclusiva de homens.
Em todos os grupos discutiu-se o papel da mulher definido pelos jovens como aquela que “dá
apoio”, ou seja, ser complacente em relação ao estilo e a distribuição de poder em termos de gênero que
estaria implícita a ele. Nesse caso, não cabe a mulher “levar” no sentido de definir as regras do
relacionamento, mas de “ser levada” pelo seu namorado. Para o grupo além do “apoio” requerido pelos
rapazes para a aceitação das garotas ao estilo, ainda assim há certa resistência para com as garotas que se
identificam com o hip-hop e querem frequentar as atividades do estilo, como festas e shows de rap, em
sua companhia. Os jovens definem essa resistência em relação a presença feminina ao dizer que “não dá
nem para mentir” ou “elas tiram a concentração”, ou seja, mesmo quando estão envolvidos com garotas
que compartilham do mesmo estilo os mesmos têm que abrir uma concessão para que estas participem
das atividades, por que em caso contrário eles sairiam somente em grupos de rapazes desacompanhados
de suas namoradas ou esposas, caso elas não se identificassem com o estilo.
De fato, estar desacompanhado ou desacompanhada num baile implica na possibilidade de
flertar ou “ficar” com outras garotas no caso dos rapazes o que justifica um discurso que masculiniza o
lazer no hip-hop. Os rapazes querem por um lado, estar “concentrados” em suas atividades como músicos
na ausência de suas namoradas e esposas, mas por outro lado, almejam a possibilidade de flertar outras
garotas.
Ao se tratar da visão dos grupos sobre relacionamento encontraremos algumas semelhanças.
Ambos definem as atividades relacionadas ao lazer dos integrantes dos grupos como uma atividade
masculinizada. Para o grupo Resistência Periférica relacionamento é definido como “complicado”, pois
Breitner Tavares
182
os homens em geral alegam que suas companheiras não gostam de sair, apesar de ficarem contrariadas
com a saída de seus companheiros.
A dualidade entre ser “bom marido” ou ser um homem “falho”, define a complicação ou
complexidade dos relacionamentos jovens sob o ponto de vista masculino. As atividades como sair para
beber ou ir a bailes são masculinizadas. Ausentes da diversão às mulheres já envolvidas num
compromisso como o casamento são invisibilizadas. Nas poucas falas das garotas, observa-se a
identificação pelo estilo hip-hop e o que isso pode descortinar antes delas assumirem um relacionamento.
Isso foi definido por Amanda como “curtir primeiro”. Contudo, mesmo durante a discussão quando as
jovens manifestavam seu interesse em desfrutar do lazer proporcionado pelo envolvimento no hip-hop
logo surgiram considerações como “fica de olho nela” dito pelos jovens, que define o sexismo dentro do
grupo pelo desejo interdição e controle das garotas pelos rapazes. No caso de Amanda, há uma dupla
classificação racializada e masculinizada atribuída pelos rapazes pelo fato dela usar roupas folgadas e ser
considerada gorda, que faria de suas roupas adequada para o uso dos rapazes.
Em relação ao lugar das mulheres nas práticas de lazer elas se restringem a um longo silêncio.
Por outro lado, os jovens, em diversos trechos apresentados anteriormente, surgem com expressões que
reforçam o sentido de limitar a mulher a “ficar aí” ou “ficar esperando” o retorno de seu companheiro que
“vai sair fora” para se divertir com seus amigos. O lugar da mulher é construído no espaço doméstico, que
o homem tem ojeriza e não cabe a ele participar: “não dá para ficar no mesmo mundo dela”, portanto a
casa é um lugar da solidão feminina. Para o homem a casa é só lugar de saída, mas não de permanência.
Para a mulher, na mentalidade misógina masculina, “é melhor ela ficar em casa a ter que sentir mal na
rua”.
Por outro lado, no ambiente do baile, e do lazer masculino, ocupando lugar dessa mulher
“carinhosa” restrita à esfera doméstica, surge a “piriguete”. Uma outra mulher genérica hiper
sensualizada
e
consequentemente
desumanizada,
que
estará
supostamente
disponível
para
relacionamentos fugazes no imaginário dos rapazes. A festa como a carnavalização da vida estabelece
outras dinâmicas que definirão um ambiente para construção de um gosto peculiar da sexualidade e suas
orientações coletivas entre os jovens como “os caras” e “as minas”.
Contudo, apesar do discurso misógino dos jovens, no contexto do relacionamento afetivo quando
todos os jovens estão reunidos em locais de festa, a dinâmica da paquera não é conduzida
necessariamente pelos rapazes, mas também é articulada e definida pelas garotas que tem a capacidade de
decidirem com quais garotos elas querem “ficar”. A sensualidade e o amor romântico são negociados e
reinterpretados. Os beijos e carícias trocados não implicam necessariamente numa dominação unilateral,
mas numa tensão entre gestos, olhares, caras e bocas, que definem a complexidade dos papeis femininos e
masculinos, que eventualmente transgridem o sexismo implícito nos contatos sociais.
Breitner Tavares
183
CAPÍTULO 9 EXPERIÊNCIAS DISCRIMINATÓRIAS E ESTRATÉGIAS COMUNICATIVAS
DE ENFRENTAMENTO CRIADAS PELOS JOVENS RAPPERS
Por mais dolorosa que possa ser nossa constatação, somos obrigados a fazê-la: para o negro, há apenas
um destino. Ele é branco.
(…) No entanto, permanece evidente que a verdadeira desalienação do negro implica uma súbita tomada
de consciência das realidades econômicas e sociais. Só há complexo de inferioridade após um duplo
processo:
- inicialmente econômico;
- em seguida pela interiorização, ou melhor, pela epidermização dessa inferioridade.
Frantz Fanon - Pele Negra, Máscaras Brancas (2008)
9.1 No shopping assim, o segurança me olhando me seguindo. Seria por causa da minha cor ou das
minhas vestes?
Grupos BR45 e Revolução MCs
Ao reconstruir as orientações coletivas dos jovens envolvidos no hip-hop, em Ceilândia, no que
tange às suas experiências e estratégias em relação à discriminação, propiciou-se a criação de
determinados tipos.
Os jovens, em geral, são visualisados de uma maneira negativa em espaços públicos; eles alegam
sofrer perseguições e agressões por parte de instituições como a polícia. São constrangidos
frequentemente em espaços públicos por seguranças, vendedores ou mesmo por pessoas comuns,
transeuntes.
A análise das orientações coletivas em relação às experiências discriminatórias permite observar
um tipo discriminatório, constituído por aspectos relacionados ao estilo hip-hop, pelo seu habitus corporal
e sistema de gosto expresso por uma indumentária específica e identificado negativamente. Em diversas
narrativas, há incidências de discriminação com base em elementos étnicos raciais contra negros e, em
menor grau, contra nordestinos, que também sofrem um racialização. Além disso, há aspectos
Breitner Tavares
184
relacionados à classe social de uma juventude pobre que vive num espaço urbano segregado e
estigmatizado, definido como “periferia”.
Grupo BR45: Experiências de discriminação e estratégias de enfrentamento do racismo: Você tem
que ensinar a pessoa. Todo mundo ali é ser humano.
O grupo BR45 apresenta diversos aspectos relacionados à discriminação que invariavelmente
passam pelos aspectos relacionados ao estilo hip-hop e aspectos relacionados ao preconceito racial. Além
disso, de maneira menos frequente, o grupo aponta outras variáveis relacionadas à discriminação que se
associam a aspectos geográficos, mais precisamente em relação à Ceilândia como um espaço segregado.
Em relação a isso, Bantu apresenta vários exemplos que são discutidos por seus companheiros no grupo.
Diante de tais situações, os jovens apresentam sua maneira de identificar a discriminação, bem como
algumas de suas estratégias, criadas no “aqui e agora”, para enfrentá-las.
Y:
Vocês já tiveram alguma experiência de discriminação?
Todos: @(1)@.
Bm:
Já. E até hoje tem.
Em:
@(.)@
Bm:
Não só pela cor, mas pela veste também.
Y:
Você poderia citar um caso, como foi?
Bm:
Óh. Altas vezes eu já fui parado no shopping.
Am/Dm: @(1)@
Bm60:
 No shopping assim, o segurança me olhando, me seguindo, me seguindo e eu rodando o
shopping todo, dando canseira nele. Aí depois eu parei e perguntei pra ele “que que foi que você
tá me seguindo?” e ele “eu não tô te seguindo”, “ta sim, eu sou segurança também e eu sei
quando um segurança tá desconfiado de uma pessoa”. “É pelas vestes ou pela cor?”. E também
já sofri discriminação em vário lugares também até com mulher. Mulher chegava assim, eu nem
cheguei a cantar a mulher e ((ela dizia)) “eu vou ficar com aquele nego nada, você é doido?” ((e
Zulu responde)) “quem disse que eu te quero!?”, “é doida é?!” Até os próprios negros negros são
racistas, até os próprios negros são racistas, até os próprios negros são racistas (( percutindo
sobre a mesa)) é::; tem vergonha do seu cabelo, tem vergonha da cor deles, tem vergonha da
mãe que é negra, tem vergonha onde mora, entendeu? Os próprios negros são racistas, então a
gente tá vivendo num mundo que:::: racismo existe até dentro da casa.
60
O fragmento acima foi modificado para reduzir a dimensão do texto.
Breitner Tavares
185
Y pergunta ao grupo se eles já tiveram alguma experiência de discriminação. Todos riem
brevemente e, em seguida, Bantu (Bm) responde que ainda tem vivenciado tais experiências. Ele
acrescenta que isso ocorre não somente por sua cor, mas por seu estilo de vida, que ele define por “suas
vestes”.
Em seguida, Y pergunta aos jovens se eles poderiam citar algum caso em que tais situações de
discriminação ocorreram. Bantu conta que já foi abordado, “parado”, várias vezes no shopping por
seguranças. Enquanto ele fala, Augusto (Am) e Duarte (Dm) riem brevemente. Bantu conta que numa
dessas ocasiões, ao notar que estava sendo observado pelo segurança, decide guiá-lo para vários lugares
para verificar se ele estava realmente agindo nesse intuito. Ele o despistava pelos corredores do shopping,
“dava canseira nele”. Posteriormente, ele se aproxima do segurança e lhe pergunta por que o mesmo o
seguia. O segurança lhe responde que não o estava seguindo. Bantu demonstra irritação com a resposta do
guarda e alega que também trabalha como segurança e tinha conhecimento quando alguém estava sendo
tratado como suspeito. Então ele pergunta ao segurança se ele realmente supunha que ele roubaria alguma
coisa no shopping e, em seguida, lhe apresenta a carteira com dinheiro. Bantu age dessa forma para
demonstrar que é um consumidor em potencial. Além disso, diz que poderia processá-lo por racismo. E
lhe apontou várias pessoas que assistiam a tudo o que ocorria ali, algo que gerava um fator a mais de
constrangimento. Diante da atitude de Bantu, que reagia à abordagem indireta do segurança, esse reagiu
expressando uma feição assustada. Bantu insiste na pergunta: “está me seguindo pelas vestes ou pela
cor?”.
Em outra ocasião, Bantu vai ao supermercado próximo a sua residência na QNZ para trocar uma
nota de cinquenta reais. Ele pegou a fila e notou que algumas pessoas estavam pagando suas compras
com essas notas sem qualquer procedimento extra por parte da atendente do caixa, tudo transcorria bem
até chegar a sua vez. Uma jovem, que estava atendendo no caixa, ao receber a nota de Bantu, passa a
examiná-la erguendo a nota para cima como se quisesse verificar a possibilidade de ser uma cédula falsa.
Essa atitude da atendente, segundo Bantu, tomou bastante tempo e lhe causou um grande desconforto
diante dos outros consumidores presentes. Quando finalmente a caixa lhe devolveu o dinheiro trocado,
Bantu reagiu da mesma forma. Ele passou a checar nota por nota, algo que, segundo ele, irritou a caixa do
supermercado, que passa a reclamar de sua atitude. Ele alegou que “tem o mesmo direito de desconfiar
dela” e continuou checando cédula por cédula. Os dois ainda discutem por mais alguns instantes quando
Bantu decide se retirar.
Bantu segue em sua narrativa sobre histórias de discriminação. Em algumas ocasiões, como
festas, ele alega ter sido alvo de racismo por mulheres, mesmo sem que tenha flertado ou empregado
algum outro tipo de abordagem: “eu vou ficar com aquele nego nada! Você é doido?”. Vendo-se diante de
tal circunstância, ele argumenta que costuma responder que também não está disponível para alguém que
tenha esse tipo de comportamento. Depois disso, Bantu repete por três vezes num tom de voz alto: “até os
negros são racistas”, enquanto repetia essa frase, ele batia sua mão sobre a mesa como se quisesse dar
Breitner Tavares
186
ênfase ao que estava dizendo. Depois disso, ele generaliza e afirma que os negros têm vergonha do
cabelo, da própria mãe que é negra, vergonha onde moram e da família. O racismo, segundo ele, existe
onde estão os negros e homossexuais, como gays e lésbicas, fato que ele julga já estar “acostumado”.
Ele faz menção à polícia, afirmando que os próprios policiais negros abordam mais os negros,
pois esses teriam mais características suspeitas. O branco, segundo ele, não chamaria muito a atenção,
não estaria muito “flagrante”, por outro lado, o negro “deve ter alguma coisa escondida”. Bantu diz que
frequentemente ouve comentários referentes ao suposto caráter suspeito do negro, através de expressões
como: “aquele nego ali é bandido”. Durante a discussão, Bantu gesticula na tentativa de reconstruir o
olhar preconceituoso. Ele olha de lado, de cima para baixo. Todos observam os seus comentários e gestos
em silêncio e atentamente.
Em seguida, Bantu conta que já foi discriminado em duas ocasiões em vans de transporte
alternativo. Ele descreve que as vans são geralmente escoltadas, em certos trechos da viagem
considerados de risco, por seguranças privados. Num desses trajetos, um segurança não identificado se
aproxima da van que Bantu se deslocava e lhe ordena que desça imediatamente, sem qualquer argumento.
Contudo, Bantu se recusou a seguir a ordem do segurança. Alegou que só se submeteria a descer se todos
ali presentes fizessem o mesmo. Ele ainda disse que tinha sido considerado como suspeito por sua forma
de se vestir e por ser negro, o que não justificava tal tratamento. O segurança, demonstrando estar
convencido pelos argumentos de Bantu, decide solicitar a todos que descessem da van para serem
revistados. Ele ainda comenta que aquela abordagem foi muito injusta e estava relacionada ao fato de ele
ser negro e devido ao seu estilo hip-hop.
Bantu diz já estar cansado por ser discriminado por ser negro e estar vinculado ao estilo hip-hop.
Alem disso, diz ter sido discriminado por ser capoeirista e morar na Ceilândia na hora de buscar emprego.
Augusto inicia um comentário sobre o sentido do preconceito social definido como algo
complexo e intrigante, “cabuloso”. Contudo, logo em seguida, ele é interrompido por Elmo (Em), que
inicia uma narração sobre a história de seus amigos, com certa entonação de voz irônica, como se
narrasse uma história fictícia, mas de fato se tratava de uma história real relacionada a Augusto e Duarte.
Durante a narrativa, todos se puseram a rir constantemente.
Elmo conta: “era uma vez duas crianças pobres da QNZ que se apaixonaram por uma mesma
menina”. Nesse momento, Augusto interrompeu Elmo e lhe pediu, com um sorriso constrangido, que ele
não prosseguisse com a história. No entanto, Elmo ignora o pedido constrangido dos jovens. Em seguida,
ele segue sua narrativa e conta que os dois meninos foram pedir para namorar com a menina, que se
recusou imediatamente justificando que ela não “ficava” com “menino preto”. Dito isso, houve uma
pequena pausa, seguida de um comentário que tentava explicar a atitude da menina como algo
“influenciado pela sociedade”. De uma maneira sarcástica, Elmo chama a atenção de todos os presentes
sobre o que seria areia saibrosa e sugere ao grupo que imagine sua brancura. Então, Elmo e Bantu riem de
modo mais prolongado, a gargalhadas. Elmo pede para que os presentes imaginem os dois meninos
rolando na areia saibrosa até ficarem esbranquiçados ao se cobrirem com a areia. Contudo, após
realizarem esse feito, a menina alega que também não ficaria com menino sujo. Em seguida, Elmo repete
Breitner Tavares
187
que racismo é “embaçado”. Bantu confirma e diz que “racismo é coisa dos fracos”. Dito isso, todos riem
e comentam que isso representava outro tipo de preconceito. Augusto e Duarte, sem expressar sorriso
diante da gozação dos colegas, permanecem em silêncio.
Bm:
 Eu acho também que a pessoa esconde o preconceito assim é::: com medo de me chamar: “oh
negão”, “oh moreno”. Eu apelo se me chama de moreno, “oh moreno”. “Tá com dó de por tinta?
É negão mesmo”. “Ah mas negão é::::é
Em:
˚É preconceito˚ preconceito” Não. Eu sou negão mesmo você só tá me chamando de negão, eu
acho que preconceito é você tirar sarro com a minha cor, eu acho que preconceito é isso, pode
me chamar de negão que eu não ligo não “Oh negão chega aí”. Agora tipo assim (.) “oh
morenim da cor de kichut”. Aí já é preconceito”.
Bantu afirma que as pessoas escondem o seu preconceito e menciona que eventualmente as
pessoas lhe chamam de “moreno”, despertando uma reação negativa de sua parte. Bantu prefere ser
chamado de “negão”, para ele algumas pessoas evitam utilizar a palavra “negro” por preconceito. O
grupo diferencia que chamar de “negão” não representa preconceito necessariamente, o preconceito está
relacionado à maneira como estes termos são empregados ou na utilização da palavra “preto” de modo
depreciativo. Além disso, o grupo chama a atenção para a reação contra determinados apelidos
depreciativos.
Bm:
Aí o cara vai descontraindo, “pô o cara é gente boa, o cara é tranquilo”, se a gente agir só no
jeito de processar só de: (
) a pessoa vai deixar de preconceito só por medo, você tem que
ensinar a pessoa, todo mundo ali é ser humano
Em:
E tem respeito.
Bm:
e tem o respeito, ter respeito. Eu não troco minha cor, eu tenho orgulho de ser negro. Eu tenho
orgulho da história e da cultura negra menos o candomblé, menos o candomblé porque eu não
apoio isso.
Dm:
Já é religião né?
Bm:
 Já é religião eu não discuto nada, eu não apoio, menos isso, mas da cultura negra eu tenho
orgulho de tudo, tenho orgulho, eu queria ser africano mesmo se não vê eu falando? meu nome é
africano, eu queria ser africano. “cê mora aonde?” “Angola”.
Am:
@angolano@ ((com sotaque como do personagem da TV)).
Bm:
Eu queria ser negão africano ( ). Eu até brinco com o pessoal ((que usa expressões)) “é serviço
de preto”. Se preto é serviço de preto, quando faz alguma coisa errada, é serviço de preto, eu “se
preto fizesse serviço errado o branco não escravizava ele naquele tempo se preto fizesse serviço
errado, o branco escravizou o preto naquele tempo porque ele não dava conta de fazer o serviço,
por isso ele queria uma pessoa mais forte pra fazer. Então quem faz o serviço errado: o branco
Breitner Tavares
188
ou o preto?”(.) ((durante esse trecho entre aspas ele enfatizava as palavras percutindo sobre a
mesa))
Em:
@hum@
Bm:
Eu falo isso entendeu? Então já se toca entendeu? Então o branco escravizou o preto pra fazer
aquele serviço. Se fosse serviço errado não existiria escravidão do negro, porque se preto fizesse
tudo errado ((
)). Aí neguim já cala, já pula assim pô ((surpreso)):“o negão é instruído”.
Instruído nada.
Eu sou vivido e esperto entendeu? Eu fico ouvindo o que os outros tá
comentando, eu assisto muito jornal, eu leio de vez em quando, mas também morro de preguiça
de ler, mas eu leio de vez em quando, eu sô atencioso pras coisas que os outros fala e nisso eu
fico instruído mesmo né. Aí eu já tenho as palavras na ponta da língua. ((exemplo)) “Isso é
serviço de preto!” “por que você contratou meu serviço? Por que tu fez isso?” Aí o cara já se
toca. Eu não sou preconceituoso porque eu só namoro menina branca. Eu namoro menina branca
@porque as neguinha não qué @(1)@. As negras não me querem agora. ((Contudo)) é que tão
surgindo algumas negras que falam: “êta negão, eu com um negão desse!” Entendeu, agora que
tá surgindo, agora, é que eu tive mais oportunidade de namorar mulheres brancas. Aí eu “agora
eu vou descontar tudin:::: que os branquelo fez. ((Eles)) pegava as negona tudin:::: agora eu vou
descontar, eu vou pegar as branca também.” Eu falo tudo brincando, eu levo tudo pro lado da
brincadeira, mas sem preconceito entendeu? E no meu ver, eu acho que eu sou desse jeito e:: no
mais, eu acho que o Dm já sofreu preconceito ele deve tá lembrado, ele fala que só por cantar
rap, mas por cantar rap tu nunca sofreu não?
Dm:
Já.
Bm:
Por andar com os negão aqui você nunca sofreu não?
Em:
 Pelas roupas?
Bm:
 Pelas roupas(
Dm:
pelas roupas eu já sofri já. Pelas roupas e por cantar rap. Na minha rua eu sofro muito por
).
cantar rap(1).
Bm:
O pessoal pensa que tu é bandido né Dm?
Dm:
 É por que eu não fico muito na minha rua, eu venho mais pra cá, eles acha que eu mexo com
alguma ou ando fora da linha entendeu? Eu só saio e entro na minha casa, vou trabalhá. Eles
acha que eu sou bandido. Mas nunca chegaram em mim pra falar.
Bm:
 Mas comentário a gente escuta.
Em relação à postura do grupo frente a ofensas raciais, Bantu entra na discussão e argumenta
que tem sua própria estratégia para lidar com o racismo, que é através da piada e do gracejo, algo que ele
define como “jeito pra comédia”. Costuma responder às pessoas que lhe chamam de “macaco” dizendo
que os mesmos também o são, pois há macacos de coloração branca, além disso, ele menciona que nesses
casos todos seriam “macacos”, já que o ser humano é imagem e semelhança de Deus, um não poderia ser
macaco sem que todos também fossem da mesma maneira. Ele conclui seu argumento de fundo teológico,
Breitner Tavares
189
num tom de riso sarcástico. Bantu defende que essa estratégia descontrai o autor do gesto racista, que
chegaria à conclusão de que ele é uma “boa pessoa” e que o comportamento racista não se justifica.
Em relação à possibilidade de processar alguém pelo crime de racismo, Bantu alega que a ação
punitiva do processo por racismo irá eliminar o preconceito apenas pelo “medo”, apesar de ele não
descartar essa possibilidade, argumenta que o mais relevante é ensinar a pessoa preconceituosa que “todo
mundo ali é ser humano”. Elmo comenta que é importante ter respeito. Enquanto Bantu apresenta sua
estratégia para enfrentar as piadas racistas, os demais membros do grupo o observam em silêncio e com
uma expressão mais séria.
O grupo manifesta sentir orgulho da história e cultura negra apesar de não demonstrar
conhecimento da realidade atual do continente africano, contudo, os jovens manifestaram que o
candomblé seria a única exceção, pois, de fato, não o apoiam e não gostariam tampouco de discuti-lo.
Bantu, em relação a seu interesse pela cultura africana, disse que gostaria de ser africano, especificamente
de Angola. Augusto em relação ao comentário de Bantu imita o sotaque do personagem Angolano61, em
função disso, todos no grupo riem, inclusive Bantu. De fato, durante o grupo de discussão, não se
observou algo que remetesse os comentários do grupo para além de estereótipos, como vistos na mídia,
sobre a realidade africana, apesar da afirmação anterior dos jovens sobre o orgulho da história africana.
Em relação ao enfrentamento de piadas racistas, Bantu demonstra suas estratégias. Ele age
basicamente criando inversões para expressões que normalmente são empregadas de modo
preconceituoso, a exemplo do sentido da expressão “serviço de preto”. Para Bantu, “serviço de preto” é
melhor do que “serviço de branco”. Para isso, ele defende uma hipótese para a explicação da escravidão
no Período Colonial, afirmando que os brancos, por sua incapacidade, teriam estabelecido um sistema de
trabalho escravo. Nesse momento, Elmo se põe a rir, mas sem fazer comentários. Para Bantu,
independentemente das hipóteses históricas mais correntes, o que de fato é relevante é o impacto que esse
tipo de assertiva vai gerar naqueles que são seus interlocutores, que, segundo ele, lhe chamam de “o
negão instruído”. Em relação a esta alcunha, ele desconversa e diz que de fato não é instruído, pois não é
afeito à leitura, mas se autodenomina alguém “vivido”, aquele que presta atenção nos comentários que
estão sendo ditos pelas pessoas, além disso, assiste a vários programas na TV.
Ainda sobre o tema relacionamento, Bantu não se considera preconceituoso por apenas namorar
meninas brancas. Ele alega expressando riso que o problema é que as meninas negras, “as neguinha”, não
demonstram interesse por ele. Por outro lado, ele admite que atualmente tenham surgido algumas negras
interessadas em relacionamento, mas ele admite que teve “mais oportunidades” de namorar meninas
brancas. Ele alega, num tom irônico, que seu relacionamento com meninas brancas trata de uma revanche
contra a dominação dos homens brancos sobre as mulheres negras. Bantu conclui que leva tudo na
brincadeira, mas, segundo ele, evitando ser preconceituoso.
61
Personagem interpretado pelo ator Romeu Evaristo do programa de humor “Zorra Total”, da Rede
Globo de Televisão, que vai ao ar aos sábados à noite.
Breitner Tavares
190
Finalmente, Bantu, juntamente com Elmo, se volta para Duarte, o único integrante a se
considerar branco, filho de nordestinos, e lhe pergunta se ele já havia sofrido algum preconceito por seu
estilo, materializado nas roupas e por andar com negros. Duarte de forma discreta confirma ter sido
discriminado por suas roupas e por cantar rap, mas não faz qualquer menção ao fato de ser membro de
um grupo onde todos são negros. Bantu ainda lhe pergunta se ele é associado à imagem de bandido.
Duarte confirma e acrescenta que não passa muito tempo em sua rua, que fica no Setor X-Norte, ele
prefere estar na companhia de Bantu e dos outros membros do BR45 na QNZ. Portanto, ele acredita que
seus vizinhos pensem que ele esteja envolvido em atividades “fora da linha”, mas nunca se manifestaram
diretamente.
Como mencionado acima, Bantu alega ter sofrido “todo tipo de discriminação”, isso envolve o
fato de ser um homem negro, rapper, vestido no estilo hip-hop, com seus adereços, como bonés, calças
folgadas e correntes de prata. Alem disso Bantu alega que sofre discriminação por ser capoeirista e residir
no Setor QNZ em Ceilândia. Diante da aparente impessoalidade de serviços, como o de segurança de
shopping center ou de transporte público, ou da polícia, ocorre a construção de um perfil do suspeito em
potencial ou do ente indesejável em determinados espaços de socialização.
Os vários exemplos de discriminação apresentados em série pelos jovens do grupo BR45
esboçam toda uma complexidade de situações que estruturam um habitus do grupo. A discriminação,
nesse caso, se torna um componente na materialização de um estilo hip-hop que cria suas próprias
estratégias de enfrentamento de modo elaborado e dinâmico, com uma série de recursos criativos
associados à produção estética do corpo na forma das “vestes” ou na própria forma de conduzir um
diálogo em que ocorra um comentário racista, em que os jovens vão recorrer à ironia, “ao jeito comédia”,
como meio de persuasão.
No campo das relações afetivas, apesar de os jovens negros eventualmente sofrerem preconceito
por parte de mulheres brancas, admite-se que há uma certa preferência por elas. Além disso, os jovens
afirmam que encontram dificuldade para se relacionarem com mulheres negras, as quais, segundo eles,
não demonstram tanto interesse em estabelecer um relacionamento como ocorre mais frequentemente
com as brancas. Nesse caso, estar com as mulheres brancas, ainda que essas os rejeitem, remete ao desejo
latente de apropriação do que é branco, ou seja, se tornar “branco”, reiterando o que Fanon definiu como
“o mito sexual da busca pela carne branca” (FANON, 2008, p. 82).
Nesse sentido, discute-se a relação do homem negro e a mulher branca, que se relaciona à idéia
do racismo como algo assimilado como inconscientemente, “epidérmico”, que imprime o desejo pela
brancura por parte do homem negro. Ele busca numa atitude agressiva a compensação da situação de
abandono e desprezo pelo fato de ser negro. Essa situação, de fato, ocorre como resultado de um sistema
estruturado com múltiplas hierarquias na relação do indivíduo com o seu contexto de socialização.
Na maioria dos casos, a ironia e o humor são utilizados como estratégias de inversão da
negatividade em relação aos tipos de discriminação enfrentados pelos jovens. Associado a isso, há
elementos de positividade no sentido de “ser negro” e ser rapper, que se manifestam nas letras do grupo
contra o racismo e a violência praticada contra o jovem em localidades como a QNZ. Durante os
Breitner Tavares
191
depoimentos, o grupo manifestou o interesse e a apreciação pela cultura africana, com uma ressalva para
aspectos relacionados à sua dimensão religiosa. Em relação a isso, em outros momentos da discussão, os
membros do grupo assumiram um discurso em que associavam aspectos de uma ética religiosa cristã ao
estilo hip-hop.
Grupo Revolução MCs
Andar fragante, estar de boa e enfrentar a violência financiada pelo governo
Experiência discriminatória e interpretação jovem do sentido de violência
Y lança uma pergunta ao grupo em relação a prováveis experiências com a polícia. De maneira
geral, o grupo admite que já se envolveu em eventuais problemas com a polícia na região onde moram e
admitem que foram alvo de ações discriminatórias em função do estilo que assumiram. Além disso, o
grupo elabora um discurso em relação à discriminação e ao racismo.
Y:
 Eh beleza, então vamos pra outro tópico, com relação à questão da violência e da polícia, vocês
já tiveram algum problema com a polícia?
Bm:
Ah véi, num vô mentir não. Já, já tive uns problemas, já invadiram minha casa revirando meus
quarto lá já, já fui pego aí na rua vacilando pra delega já umas duas vezes, mas nada mais grave.
Y:
 Vacilando como? Fazendo correria?
Bm:
 Não. Sempre com::: sempre com droga, porque eu já fiz altos corre já. Eu sempre fui (( )) eu
já fui conhecendo a malandragem muito cedo, eu fazia uns corre, hoje não, hoje eu tô mais de
boa, tô trabalhando, ganhando meu dinheiro honestamente, honestamente não porque ainda
vendo minhas paradas do Paraguai lá, óculos, relógio do Paraguai. Mas é isso aí, já tive meus
probleminhas aí, mas nada tão grave pra como ser preso e ficar na cadeia, nunca fui encarcerado.
Quanto a isso, Blink é o primeiro a se manifestar seguido de Amaro. Ele admite que já passou
por várias situações definidas como “problemas”. Ele menciona que já teve sua casa invadida por
policiais e que já havia sido detido em delegacia duas vezes por estar na rua portando drogas, atitude que
ele considera ingênua e define como estar “de vacilo”. Em função dessa resposta, Y pergunta sobre o
significado de “vacilo” e pergunta se ele já esteve envolvido em “correria” (pequenos delitos). Blink
responde enfaticamente que não foi detido por estar envolvido em “correria”, mas alegou que conheceu a
malandragem muito cedo e que praticava pequenos delitos, “fazia uns corre”. Contudo, ele afirma que
atualmente não está envolvido em qualquer atividade desse tipo, ele “está de boa”. Ele menciona que
trabalha e ganha seu dinheiro honestamente, apesar de reconhecer que vende produtos importados, como
óculos e relógios do Paraguai. Ele diz nunca ter sido encarcerado.
Breitner Tavares
192
Logo em seguida, Amaro inicia um discurso sobre a violência e a miséria que, segundo ele,
ocorre em parte em função do próprio despreparo da polícia, que é levada a desrespeitar o cidadão e a
juventude. Os policiais sofrem uma “lavagem cerebral” para se tornarem “conformados”. Ele considera
que os policiais, por utilizarem uma farda considerada “suja” e “imunda”, deteriam uma autoridade que
lhe daria o direito de agredir pessoas. Esse fato, segundo Amaro, não faz parte das atribuições de um
policial. Ele argumenta que não há referência na Constituição que permita que um policial possa bater
numa pessoa. Enquanto Amaro apresenta seus argumentos, Blink o observa com expressão de seriedade.
Concluída sua reflexão sobre a violência policial, Amaro inicia a narrativa de uma experiência
na qual ele foi agredido por policiais quando estava voltando para casa do supermercado. Ele conta que
quando apanhou dos policiais em frente a uma escola estava portando apenas uma sacola com verduras.
Ao dizer isso, Amaro faz uma breve pausa de dois segundos, quando Y pergunta como foi a abordagem
da polícia. Demonstrando estar um pouco tenso, Amaro conta que durante o trajeto de volta para casa
encontrou alguns amigos, “manos”. Enquanto ele os cumprimentava, uma viatura do Batalhão de
Operações Especiais da Polícia Militar (BOPE) se aproximou e “enquadrou” todo mundo. No entanto,
Amaro supôs que pelo fato de ele estar só de passagem e não estar trajado como seus amigos, com
corrente de prata e bermudão, ou seja, dentro do estilo do “fragrante”, ele continuou seu caminho com sua
aparência “de qualquer outro (cidadão)”. Contudo, mesmo assim ele foi abordado por um dos policiais
que lhe chamou. Ele conta que permitiria ao policial realizar a revista, “fazer o trabalho dele”, porém,
durante a abordagem, Amaro conta que tentou se identificar, fato que teria irritado o policial, que não
teria gostado de sua atitude, terminando por agredi-lo.
Amaro demonstra irritação com sua própria história, mas pondera sobre o incidente com o
policial e diz que está “tudo bem” e que “isso passou”. Ele inicia, em seguida, sua análise quanto à sua
compreensão de “justiça social”. Ele diz que as leis que regem o homem já existem desde o começo do
mundo, contudo, ele não as aceita no que se refere a ser “protegido pela polícia”. Ele alega que quando
estava em perigo, envolvido em atritos com outros jovens que queriam matá-lo, a polícia não se fez
presente. Amaro define a polícia como a “violência financiada pelo governo”. Posteriormente, Amaro
conta que ia se identificar ao policial na abordagem em frente à escola, mas antes que o fizesse foi
agredido e xingado pelo policial. Ele considera que, num grupo, nem sempre todos estão fazendo coisas
erradas, mas que eventualmente ocorre esse tipo de generalização, que causa certo desequilíbrio nos
indivíduos, que “abala o psicológico do indivíduo”.
Segundo ele, os policiais, “gambés”, independentemente da inocência ou culpa, querem
prejudicar a pessoa abordada. Amaro diz que a polícia age por ter “raiva” do jovem, isso se expressa não
simplesmente pelas palavras que os policias podem ocasionalmente dizer, mas pelos gestos de suas
armas, que “forçam o silêncio” pelo medo de ser atingido por um disparo efetuado por um impulso
emocional ou por mera distração. Amaro considera que isso é inaceitável, já que ele, na condição de
cidadão, é responsável pelo pagamento desses policiais.
Breitner Tavares
193
Y pergunta sobre o significado de se andar “fragante”. Amaro responde de maneira vaga em que
isso se refere a andar “com as roupas que se possui”. Contudo, ele descreve a combinação de certos
acessórios como usar touca, chinelos, independentemente do clima, mesmo que haja um “solzão de
rachar”. Ao se trajar dessa forma Amaro assume que não há correspondência com o estilo correspondente
ao playboy. Nesse caso, se ele for tratado com “indiferença” numa loja de playboys, ele simplesmente se
retira sem comprar qualquer coisa. Ele menciona que vai a um shopping em Taguatinga, mas isso não
implica a obrigação de se vestir “bonitinho”, porque seu objetivo não é procurar alguém ou um emprego,
mas simplesmente fazer compras.
Y:
O que é andar flagrante?
Am:
Andar flagrante é você olhar no espelho com as roupas que você tem e falar: “é isso daqui o
que eu quero ó, moro?”, você viu um solzão de rachar e eu eu vou lá loja desse jeito aqui
((aponta para a toca na cabeça)) óh na loja de playboy, desse jeito aqui ((ele aponta para sua
própria roupa)), e se ele me tratasse indiferença eu ia saber, ((Eu)) ia simplesmente virar as costa
e não ia comprar lá. Eu fui de chicão ((chinelo)) porque é as roupas do meu cotidiano normal.
Não porque eu vou pra Taguatinga que eu vou todo bonitinho, eu não vou atrás de ninguém lá,
eu não vou atrás de emprego, eu fui comprar. Roupa flagrante é você portar uma corrente de
prata morô, e ter amor a ela, ter sua toca, umas bermuda louca, porque é o seguinte, como é que
é roupa de mala se a roupa que a gente compra é caríssima, que nem os playboy compra, como é
que nos é mala e gente quer andar do nosso jeito, bem vestido, bem trajado, porque muitos vê
uma bermuda assim como roupa de mala, mas uma roupa de mala dá pra comprar, dá pra fazer
quase um guarda-roupa, então se gente usa uma corrente ou touca ou uma jaqueta é porque a
gente pode financiar nosso luxo com nosso ganho pessoal, nosso jeito de andar, porque se a
gente é mala, andar flagrante é até o jeito que você se expressa, e aí mano tal. Muitas vezes se
tiver dois gambé ali, um playboy ali vendo eu conversando com o BM
Bm:
Kit peba é o que eles falam, kit peba.
Am:
Não vai saber nada, a gente vai tá xingando eles e eles não vai tá sabendo porque nois tem
nosso jeito de se comunicar.
Amaro descreve o estilo “flagrante” ou “fragante” como o uso em conjunto de certos acessórios,
como corrente de prata, touca e bermuda. Roupas, segundo ele, de que se deve ter orgulho, “amor por
elas”. Amaro ainda questiona o sentido da roupa de malandro, definida como “roupa de mala”. Ele
questiona como roupas de valor elevado, “que nem playboy”, são consideradas como de “mala”, pelo fato
de serem reorganizadas numa outra perspectiva de estilo, segundo Amaro, “bem trajado”. Amaro
exemplifica que uma bermuda de “mala” pode ter o valor de várias peças de roupa, “um guarda-roupa”.
Ele conclui que se eles estiverem utilizando uma touca, uma jaqueta e corrente, produtos considerados de
luxo, isso é decorrente do jeito deles se portarem, “andarem”. Andar “mala” ou “fragante” corresponde
simplesmente a sua maneira de se expressar. Amaro ainda elabora outro exemplo em que caso eles sejam
Breitner Tavares
194
vistos por policiais ou playboys os mesmos não saberão o que eles estarão conversando porque os jovens
que usam o estilo ‘fragante” têm sua maneira peculiar de vestir e se comunicar. Blink, nesse momento,
acrescenta que a polícia ou os playboys dirão que eles estão vestindo um “kit peba”, que representa a
interpretação pejorativa da polícia para o jovem que se veste flagrante.
O estilo hip-hop “fragrante” assumido pelos jovens do grupo é também objeto de discussão.
Estar “fragrante” para o grupo atende ao paradoxo de utilizar roupas que normalmente possuem um alto
custo, como jóias de prata, tais como anéis, medalhões, pulseiras, associadas a outros itens como jaquetas
de couro, camisas e bermudas, além de tênis de grifes famosas, como Adidas, Nike e Mizuno. Essas peças
de roupas, às vezes, luxuosas são encontradas no shoppping, que é definido como o lugar de playboys.
Contudo, a combinação inusitada estabelecida por esses jovens configura um estilo próprio que põe em
xeque o sentido inicial para aqueles itens. Essa bricolage articulada dentro de um sistema de habitus
corporal é identificada como um “estilo mala” em referência a “malandro”. Naturalmente, aqui há uma
descrição de um ideal de consumo, que não é de fato acessível para jovens de camadas sociais pobres de
um modo geral. Aliás, é essa mesma inacessibilidade que pode ser apresentada como uma das hipóteses
que alimentam a indústria da pirataria de bens simbólicos de consumo que se alastra em escala global.
Os jovens, ao se trajarem de modo “fragante”, são discriminados por serem frequentemente
associados a bandidos ou delinquentes. Em algumas dessas ocasiões, eles se utilizam de estratégias de
enfrentamento, como se recusar a efetuar uma compra numa loja que agir de maneira discriminatória com
eles.
Blink retoma o comentário de Amaro sobre a violência policial e reafirma que a polícia é a
“violência financiada pelo governo”. Ele exemplifica que já foi abordado por policiais quando portava
drogas, “uma pedra”. Segundo ele, os policiais apreenderam a droga sem tê-lo prendido ou registrado
ocorrência, além disso, ele conta que o mesmo ocorreu com outros de seus amigos em relação a armas.
Os policiais os abordaram e apreenderam as armas sem que os mesmos fossem presos. Nessas ações, a
polícia agride os jovens e, às vezes, chegam até mesmo a matá-los.
Amaro segue com seus exemplos sobre estilo “fragante” e a relação de oposição que de oposição
que este estabelece em relação ao estilo “playboy”. Para isso, Amaro define a categoria “playboy” a partir
dos jovens como os que assassinaram o índio Galdino62, que teriam ficado impunes por pertencerem a
uma grupo social de elite. Em contraposição a isso, ele alega que é discriminado por seu estilo “fragante”
e que pessoas pobres em geral são presas por pequenos crimes, como o “roubo de uma margarina”,
enquanto pessoas bem trajadas cometem crimes muito mais sérios e não sofrem qualquer punição. Ele
comenta que gostaria de produzir um relatório e levar ao presidente, mas pondera e diz que “o mesmo não
atende ninguém”. Ele conclui que muitas famílias têm como alternativa se envolver no tráfico de drogas,
pois esse seria um jeito fácil de se ganhar dinheiro, argumento que é desenvolvido um pouco mais pelo
rapper.
62
O comentário está relacionado ao assassinato de Galdino de Jesus dos Santos, índio da tribo Pataxó,
cometido por jovens de classe média-alta, em 1997, em Brasília.
Breitner Tavares
195
Os jovens do grupo, em geral, admitem ter tido um envolvimento com atividades ilícitas, como o
uso de drogas, e também ter um contato íntimo com um segmento social que eles denominam como
“malandragem”, entendida como o banditismo propriamente dito. Entretanto, esses jovens defendem que
hoje a situação é diferente, que estão trabalhando e não estão envolvidos em qualquer tipo de
contravenção. Alem disso, eles implementam um discurso antipolicial ao apresentarem seus depoimentos
sobre invasão de privacidade ou agressão policial durante abordagens nas ruas. Segundo o próprio grupo,
a polícia age violentamente conforme uma compreensão estereotipada da juventude em geral e
especificamente daquela identificada com o estilo hip-hop, nesse caso, em relação à variante definida pelo
grupo como “fragrante”, também definida negativamente pela polícia como “peba”.
Para o grupo, o estilo é o principal indicativo da polícia para a abordagem policial violenta,
apesar de se admitir que mesmo se vestindo como “qualquer um” a condição de jovem pode suscitar a
agressão. Essas abordagens normalmente ocorrem próximas às residências dos jovens, nas esquinas ou
próximas a locais públicos como escolas.
Ainda sobre a violência revelada pelos jovens nas abordagens policiais, eles alegam que os
policiais promovem desde ofensas através de xingamentos até mesmo outros graus de agressão física.
Segundo o grupo, o tipo de violência cometida pela polícia dependerá das condições nas quais os jovens
forem encontrados. Eles exemplificam que em situações em que jovens são apanhados em algum ato
considerado como ilegal, como o porte de drogas e/ou armas, a polícia eventualmente apreende as drogas
e as armas, os agride fisicamente e posteriormente os liberta em áreas desertas próximas à cidade. Em
casos extremos, a polícia pode chegar, inclusive, a realizar a execução sumária. Todas essas ações
ocorreriam sem que houvesse qualquer registro de ocorrência policial numa delegacia de polícia.
O grupo se julga consciente de seus direitos que, em alguns momentos, são articulados
formalmente, ao se recorrer à Constituição. Em outros casos, há uma elaboração de cunho intersubjetivo
em que a juventude se “recusa a ser protegida” no sentido de aceitação de uma dominação burocrática,
instituída por uma “violência financiada pelo governo”, materializada na polícia. O grupo reflete sobre o
desejo de reagir contra a violência, buscando, organizando hipoteticamente um movimento
reivindicatório ao se “buscar o Presidente da República”. O grupo apesar de negar qualquer envolvimento
com atividades, como o tráfico de drogas, não condena aquelas famílias que se deixam levar pelo que é
aparentemente mais “fácil” e se envolve com tal atividade.
Breitner Tavares
196
Orgulho de ser negro sendo branco:Interpretação sobre sentido de raça e inclusão social
Y apresenta uma pergunta sobre o racismo. Blink considera que racismo para eles não importa,
pois se referir às outras pessoas pela cor é normal e, em relação a isso, exemplifica: “ei neguim!”, “ei
negão!”, “ei macalé!”. Contudo, Amaro pondera e menciona que esses termos estão relacionados a uma
maneira “masculina” de tratamento. Ele diz que sentiria orgulho de ser negro caso ele o fosse. Ele
Breitner Tavares
197
considera que o negro representa uma raça “predominante”, inclusive por sua “força física”, mas que tal
povo sofreu muito durante a escravidão. Por outro lado, ele acha um absurdo a implantação de um
programa de cotas para negros na Universidade de Brasília (UnB), mas admite que isso é algo que gera
um impacto social, o qual foi resultante da mobilização dos negros, o que ele define como “um choque na
sociedade”, a qual trata as pessoas discriminatoriamente, ou seja, “não tratam a pessoa normal”. Amaro
ainda acrescenta que se eles não fossem tratados com respeito, iriam reivindicar por seus direitos, iriam
“cobrar”.
Y:
Com relação a isso, a essa discriminação e tudo, como é que vocês veem essa questão do
racismo?
Bm:
 Racismo aqui nem (( )) aqui pra nós aqui, o tipo não importa é normal, tem um neguim ali, a
gente chama: “ei neguim, ei negão, ei neguim, ei macalé sei lá”,
 mas é relacionado ao cotidiano normal se referindo ao masculino em relação
Em:
ao racismo é o seguinte, muitos acham que os negro é inferior, se eu fosse negro véi, eu teria
orgulho morô, porque a raça predominante pra mim, no meu modo de vista eu sei que parece um
absurdo, eu acho que é o negro, não só pelo que ele são, pelo que ele representa na cor, até na
cor é forte, pelo físico, eu tô falando por que sofrero muito depois da libertação, ainda vivem
sendo perseguido, nas senzalas, nas fazendas, nas senzalas, aquelas cadeias morô? Em relação ao
nível de cota da UnB, eu acho até um absurdo morô? Claro que é um choque assim pra
sociedade, que é pra se ligar, porque se ele não der, como é caso de tratar a pessoa normal, eu
vou falar até nós se ele não tratar nós normal a gente vai cobrar não é, mas eu acho um jeito do
negro se inferiorizar porque não era pra existir aquilo, era pra ser igual morô? Não era pra ter
tantas cotas, tantas vagas não, a fita era chegar lá, fazer a cara e cair pra dentro, não era ter que
ter cota pra negro, morô? Não era pra tá se referindo, aí tá escrito lá no bagúi: ((Constituição))
que todo mundo é igual porque esse negócio de cota está contrariando até a própria Constituição,
morô, eu acho que já vai sair uma nova emenda, já né? Vai sair uma nova emenda, tudo bem
hoje é bom, mas no começo de tudo já era difícil pra ser igual, não era pra ter isso né. Teve um
tempo aí em São Paulo que a maioria dos negros aí não se assumia, até que chegou Racionais,
hoje todo mundo bate no peito ... aí já é preconceito, nós usar 100% negro, não é preconceito, a
gente defende uma bandeira, uma tese, uma lógica, isso pra mim não é preconceito, diferente de
um branco usando 100% branco, isso já imitação e além de ser imitação, isso já é preconceito.
Nós usarmos uma camiseta 100% negro não é racismo porque a gente defende uma bandeira,
tese, uma lógica.
Mais adiante, Amaro reforça sua posição anterior, contrária aos programas de cotas, e diz que as
cotas são um meio de “inferiorizar os negros”, porque, segundo ele, todos deveriam ter as mesmas
condições para se submeterem às provas e serem admitidos na universidade, ação definida como “cair pra
dentro”. Amaro crê que as cotas contrariam o princípio de igualdade determinado constitucionalmente.
Breitner Tavares
198
Ele considera que muitas pessoas não se assumiam como negras, contudo, posteriormente, sob a
influência do rap, muitos negros passaram a se identificar como tal, para isso ele cita a influência do
grupo Racionais MC. Além disso, revela que a utilização de camisetas com a frase “100% negro”
representa um movimento de afirmação que não faria sentido numa situação inversa como, por exemplo,
uma camiseta “100% branco”, o que, além de uma imitação, seria uma ação preconceituosa.
Em vista da resposta anterior sobre a mobilização e o autorreconhecimento da população negra
através do rap, Y pergunta ao grupo que atitude deveria ser tomada pelos negros em relação ao
preconceito. Amaro diz que mandaria “se fuder”, mas pondera e considera que se deve agir com
tranquilidade, “esfriar a cabeça”. Ele acredita que se um negro se envolver numa situação de racismo, ele
deve buscar a justiça, pois todos são iguais e a raça negra tem que se orgulhar do seu valor. Ele
exemplifica que as mulatas e as morenas são lindas, contudo, ele revisa o uso do termo “mulata”, o qual,
segundo ele, está incorreto, na verdade deve-se utilizar a palavra “negra”. Amaro conclui que nossa
miscigenação é imensa e questiona quem não tem sangue de negro nas veias. Em seguida, Amaro e Blink
dizem sorrindo: “eu sou negão”. Amaro ainda considera que não existe “nenhum negro legítimo”, dada a
miscigenação. Dito isso, Y pergunta ao grupo se existiriam raças como a negra e a branca, ou se haveria
simplesmente uma miscigenação. Amaro argumenta que raça existe, mas que pessoas do mesmo grupo
étnico se discriminam mutuamente. Ele exemplifica que os nordestinos construíram Brasília, contudo, os
seus filhos nascidos aqui nutrem preconceitos quanto a outros nordestinos que eventualmente migram
para a capital, mesmo sendo “iguais”.
Y:
 Como deveria ser a atitude dos negros em relação ao preconceito?
Am:
É o seguinte, na minha opinião eu mandaria ir se fuder, mais já que é uma opinião minha, e do
que eu defendo é simplesmente esfriar a cabeça. Porque se um branquelo ou qualquer um outro
que fala eu sou negro, não vai tá defendendo, e me chamar de macaco, ou de qualquer outra
coisa o negócio é chegar na justiça, por que ele já está falando com preconceito, acho que...
agiria conforme as regras, conforme age as leis do homem morô? Agora em relação do meu
ponto de vista aí, ta lá cara todo mundo é igual, ninguém é melhor que que eu, só porque tem a
pele branca, morô? E a raça negra tem que ter orgulho véi, é uma coisa linda véi negro, as
mulatas, as morenas são lindas, até isso se refere como mulatas não é mulatas, é negras, e a
nossa miscigenação é imensa, quem não tem sangue de negro nas veia, quem?, @nóis é negão@.
Bm:
 @Eu sou negão@,
Y:
Vocês acham que acontece, que a gente não existe raça, só existe uma mistura é isso?
Am:
 Não, não, existe a raça sim, só que eu tô falando tipo o nordestino, morô, o Stink é filho de
nordestino, Brasília foi construída por nordestino e hoje você vê que quando vem alguém pra cá,
do interior pra cá , muitos discrimina, quem não tem o sangue na veia, sangue de nordestino, isso
não existe cara, além de aos olhos de Deus, somos todos iguais.
Breitner Tavares
199
Em relação à questão racial, o grupo não reconhece como prática racista tratar pessoas negras
por meio de apelidos relacionados à idéia de raça. Para seus integrantes, agir dessa maneira é algo que faz
parte do habitus masculino.
O grupo se posiciona contrário a um programa de cotas para estudantes negros na Universidade
de Brasília, pois isso seria contrário ao sentido de igualdade. Isso revelaria uma situação de inferioridade
social, a qual prejudicaria a imagem dos negros. Em contrapartida, o grupo reconhece que as cotas são
resultado da mobilização social dos negros, que historicamente vêm sofrendo com a discriminação, e que
isso seria como um “choque na sociedade”. De fato, o grupo manifesta simultaneamente certa admiração
pelo ser negro, que é algo que se relaciona implicitamente com a cultura hip-hop, a qual é associada a um
bem cultural produzido por artistas negros. Contudo, o grupo não reconhece um programa de ação
afirmativa como uma forma de promoção de igualdade social.
Ainda sobre a importância da mobilização social da população negra, o grupo considera que o
rap teve uma contribuição importante no sentido da construção de uma auto estima positiva do ser “100%
negro”. Além disso, observa a importância de reação ao racismo através da busca pela justiça sem
violência.
Em relação a uma definição mais precisa sobre a categoria “raça”, o grupo reúne aspectos
pautados em interpretações da biologia, “nenhum negro é legítimo”, “quem não tem sangue de negro?” e
“eu também sou negão” (mesmo quando se identificam como brancos). Esse seria o aspecto definido da
tese de que “todos são iguais”. Por outro lado, o grupo reconhece a carga política em torno da categoria
“raça”, ao admitir que o termo “mulata” esteja relacionado a uma carga preconceituosa e que o correto
seria usar o termo “negra”.
Breitner Tavares
200
9.2 Configuração urbana e estratégias de enfrentamento da discriminação
Grupos Rap Comando e Resistência Periférica
“Racismo a gente não pode aceitar não, racista tem que pagar, eu não baixo a cabeça não.” Grupo
Rap Comando
Y lança uma questão sobre as experiências do grupo em relação à violência policial. Liba
argumenta que “nunca botou um cigarro na boca e que nunca tinha cheirado”, nunca havia sofrido tal
violência, e que tampouco havia sido preso, matado ou roubado. Contudo, ele confirma que não sabe o
futuro, “ninguém sabe o dia de amanhã”, que é possível se envolver num delito ou crime por vingança,
“vingação”. Ele sugere uma situação hipotética – o assassinato de um irmão por um policial – e pergunta
aos demais se eles deixariam tal crime impune, “deixar baixo”. Todos permanecem em silêncio por
alguns instantes.
Am:
Graças a Deus desde que eu me entendo por gente eu nunca fui preso, nunca botei um cigarro na
boca, nunca cheirei, nunca matei, nunca roubei, mas tipo aquela, ninguém sabe o dia de amanhã.
Eu não vou falar que eu não vou fazer isso, que eu não vou cair em vingação porque vamos se
dizer um PM por engano mata um irmão seu, o que que você vai fazer, vai deixar baixo só
porque ele é PM? Ninguém sabe o dia de amanhã. Ninguém sabe o dia de amanhã mas graças a
Deus eu nunca tive problema com polícia não.
Bf:
Mas e levar baculejo por ter um visu carregado por ser negro.
Rm:
 pela roupa também a maioria das vezes.
Bf:
Nunca foi discriminado por esses aspectos?
Am:
Sobre isso, eu acho até engraçado. De uns três anos pra cá eu nunca levei bacu, parece que os
PM sabe quem eu sou, sabe quem eu sou já chegaram assim eu tô (( em grupo )) ((todo mundo
na parede)) aí chega o PM e esbarra ne mim e fala ((não, esse aí não, ele tá de boa)) porque
conhece né, mas já tem uns três anos que eu não levo bacu.
Breitner Tavares
201
Diante dessa resposta, Bianca (Bf) lhe pergunta se ele nunca havia sido revistado por policiais,
“levado baculejo”, em função de seu estilo, “visu carregado”, ou de ser negro. Rubão (Rm) intervém e diz
que isso ocorria na maioria das vezes em função das roupas. Contudo, a garota insiste na pergunta. Liba
sorri e diz achar esse tipo de situação “engraçada”. Ele argumenta que nos últimos três anos não foi
revistado. Segundo ele, isso ocorre porque talvez os policiais já o conheçam no Setor QNZ. Contudo, ele
admite que já foi abordado quando estava em grupo. Nessa ocasião, um policial o teria liberado da
revista, “não, esse aí tá de boa”.
Carlos (Cm) complementa o argumento de Liba e afirma que a polícia mudou seu
comportamento na região. Ele menciona que anteriormente a polícia abordava mais frequentemente os
jovens que usavam o estilo de calça folgada, entretanto, já reconhecem que aqueles que estão envolvidos
em crimes, “o cara que anda com alguma coisa”, não se identificam com o estilo hip-hop. Ele exemplifica
que, se ele estivesse armado, não usaria o estilo, pois isso atrairia facilmente a atenção da polícia, “na rua
rapidim eles me acham”. Liba completa: “é entregar para o ladrão”. Carlos retoma e diz que andar
armado dessa forma é denunciar-se à polícia, “entregar de graça”, pois alguém que porta uma arma não
anda daquela maneira. Finalmente, ele conclui que nunca foi parado ao fazer uso do estilo, “eu nunca fui
parado assim fragante não”.
Liba comenta que se fosse um traficante não seria encontrado pela polícia. Ele alega que não se
importaria de fazer uso do estilo “playboy” de “terno e gravata”, “filhinho de papai”. Por outro lado, ele
exemplifica que ao frequentar um shopping é normalmente seguido por seguranças que, segundo ele,
insistem num tipo de discriminação, “ficar separando a gente”. Liba alega que, enquanto isso ocorre,
pessoas que não despertam a atenção dos guardas “de terno e gravata”, ocasionalmente, cometem furtos.
Segundo ele, as provas ficam evidentes ao se checar no sistema de monitoramento do shopping.
Entretanto, não há interesse da mídia em mostrar esse tipo de fato. Finalmente, ele diz seu nome e
pergunta, como se quisesse perguntar a um guarda do shopping: “você sabe quem eu sou?” Liba numa
tentativa de se dissociar ao estilo hip hop da imagem negativa de suspeito idealiza um criminoso vestido
de terno e gravata que pode passar despercebido pela segurança de um shopping e cometer roubos. No
momento em que ele apresenta seu exemplo hipotético de criminoso, Liba muda seu semblante, iniciado
com um tom de brincadeira e ironia, que despertou o riso dos membros do grupo, variando para uma
postura mais séria, emocionada, gesticulando mais freneticamente e alterando o tom de voz, o que não
despertou mais risos no grupo. Liba conclui de forma direta e faz uma pequena pausa em que todos
acompanham com um olhar mais cabisbaixo e sem comentários sobre o exemplo em questão.
Em seguida, Carlos comenta que há alguns policiais que incomodam, “enchem o saco”. Galego
complementa que só quem pode julgar alguém é Deus. Diante disso, Bruna questiona Carlos sobre sua
queixa em relação à polícia. Carlos demonstra certa surpresa por ser questionado. A garota lhe faz a
pergunta novamente. Carlos, num tom meio envergonhado, pergunta aos demais como a polícia costuma
Breitner Tavares
202
se dirigir aos jovens. O grupo responde, num tom de riso e uníssono, com a palavra “peba63”. Carlos
também sorri e passa a contar que certa vez foi abordado por policiais que lhe chamaram de “peba” e lhe
disseram que mesmo ele sendo tão pequeno já andava daquele jeito (alusão ao estilo de roupas hip-hop).
Carlos disse que não se importa em ser xingado por policiais e fica calado, porque, segundo ele, “pebas”
são os próprios policiais que o xingam. Rubão confirma que policiais gostam de xingar os jovens, Carlos
segue apresentando outros exemplos de ofensas proferidas por policiais.
Cm:
Pra dizer a verdade, tem us PM que enche o saco.
Gm:
Só quem julga é Deus, só ele sabe no que você está envolvido.
Bf:
 Mas como assim ele enche o saco? Por que você disse que enche o saco?
Cm:
Ah?
Bf:
 Por que você ache que ele enche o saco?
Cm:
 @Ah@. Como é que eles me chama mesmo?
Todos
 @peba@.
Cm:
Uma vez, eu tava andando assim aí eles me chamaram de:;:; ((você desse tamãezim já anda
desse jeito, não é seu peba?)) já chamaram de peba já, mas os verdadeiros pebas são eles mesmo,
mas tão me chamando eu não to nem aí pode falar quer xingar, xinga ((você desse tamãezim já
quer ser maloqueiro, seu safado, que não sei o que )) eu fico calado.
Rm:
 os cara gosta de xingar o cara.
Cm:
 seu peba, seu safado quer ser marginal? Não sei o que. Eu deixo falar, eu sei que eu não sou.
Em seguida, Bruno (Bm) apresenta uma história que aconteceu com um amigo, o qual foi
abordado por policiais que lhe perguntaram se ele usava drogas. Seu amigo confirmou que usava
maconha. Os policiais o revistaram e encontraram um pouco de maconha, em seguida, o advertiram e
devolveram a droga. O fato gerou o silêncio do grupo, eles também traçaram sussurros, enquanto Bruno
63
pebape.baadj m+f (tupi péua). Palavra de origem tupi que significa alongado, chato. sm. Tatu de
cabeça achatada, que costuma violar as sepulturas. sf pl gír Nádegas. Pegar um peba ou um tatu: cair.
Veja-se no dicionário on-line Michaelis:
<http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=peba>
No caso de Ceilândia, “peba” se refere a alguém ordinário, insignificante. A polícia considera “peba”
aquele jovem, em geral, do sexo masculino, que possui um estilo inspirado no hip-hop, mas com alusão
ao gangsterismo, aquele que se identifica, mesmo que apenas simbolicamente, com o banditismo. Outro
termo que não possui a mesma conotação depreciativa de “peba”, utilizado para definir esse estilo, é a
expressão “aba reta”, que se refere ao estilo identificado por alguns acessórios, dentre eles um boné sem a
curvatura frontal da aba, por isso deixada na posição “reta”.
Breitner Tavares
203
apresentava sua história. Em geral, Bruno sempre trazia histórias de outras pessoas, apesar de nunca
nunca estar envolvido nelas.
Independentemente da veracidade das histórias de Bruno, elas provocam outros comentários de
integrantes do grupo em relação ao imaginário acerca do comportamento da polícia para com os jovens da
QNZ. Rubão comenta que, às vezes, a polícia simplesmente chega perguntando diretamente “cadê a
maconha?”. Liba menciona uma ocasião em que estava com um amigo conversando na esquina, ambos
estavam vestidos no estilo, quando são surpreendidos por um carro. O motorista para e pergunta se eles
tinham merla64. Esse comentário despertou o riso dos demais. Liba conta que respondeu negativamente à
pergunta e que ficou abismado com aquela abordagem inesperada de um desconhecido. Para ele, tal
abordagem se explicaria pelo estilo que os dois amigos portavam naquele momento. Ele completa que seu
estilo não tem nenhuma referência com as drogas e que os “noiados” (drogados) são os outros.
Bm:
Na maioria das vezes as pessoas te julgam pelo que você veste né? Foi até engraçado que teve
um amigo meu o policial chegou nele tava numa roda com um monte de amigo dele todo mundo
com roupa folgada né, aí ele chegou e perguntou pra ele ((você fuma?)) desse jeito ((alguém
aqui fuma)) desse jeito. Aí esse colega meu disse ((eu fumo mesmo.)) ((você fuma maconha?
[pergunta o policial])) ((fumo.[responde o jovem])) desse jeito. Aí deram baculejo, acharam
maconha e depois devolveram a maconha pra ele ((pode fumar aí, você é gente boa, você não
faz nada mesmo)) devolvi e ficou nessa.
Rm:
 Isso quando eles já não chegam pedindo ((cadê a maconha?))
((cadê a maconha)) Rapaz oh, é
Am:
tão cabuloso nosso estilo que outro dia eu tava conversando com o irmãozinho sobre confiança
né na esquina ,todo mundo estiloso lá, aí passou um cara, ele parou um carro ((@eh aí ? tem
merla?@[ e o cara perguntou])).
Todos:
@(1)@
Am:
Aí eu ((@ mano a gente não mexe com isso não mano@)) eu fiquei assim até.
Cm:
 Apavorado
Am:
 Abismado porque aconteceu isso aí, eu disse pro irmãozinho, tá vendo aí, é nosso estilo, é
nosso jeito, os noiado são eles.
Manu (Mm) narra uma situação em que estava próximo a uma padaria com um amigo, quando
foi abordado por algumas garotas, “donas”, que lhe perguntaram se ele tinha maconha para vender,
“bagulho”, ele responde negativamente e comenta com seu amigo, num tom de voz baixo, que o
comportamento das “donas” era estranho, “cabuloso”. Essa fala leva todo o grupo a rir brevemente. Em
seguida, ele questiona a “dona” por sua abordagem, considerada demasiadamente direta: “É desse jeito?
64
Merla é uma droga obtida de um subproduto da cocaína e é comum no Distrito Federal.
Breitner Tavares
204
na cara de pau?”. A garota, por sua vez, lhe disse que ele tinha aparência de alguém que fumava
maconha, “você tem cara que fuma!”. Ele lhe responde afirmativamente que já havia fumado algumas
vezes. Apesar de Manu admitir que já havia fumado anteriormente, a maneira com que responde à garota
indica uma certa irritação por ter sido abordado como se fosse um traficante num espaço público próximo
à sua rua. Em seguida, o grupo mais uma vez fez um breve silêncio.
Mm:
Aconteceu uma coisa dessa comigo mas foi lá naquela padaria lá em cima, aí eu tava quieto, aí
chegou três donas mó cara estranha, agitadas, eu olhei ((vixe)) eu tava com o Sese pra não dizer
que eu não tô mentindo, aí a gordinha chegou perto de mim e perguntou ((você tem um bagulho
pra vender)) aí eu disse ((não eu tem não)) logo quem ((quem mexe é um colega meu, mas eu
não mexo com essas coisas não )) aí eu falei pro Sese ((°essa dona é cabulosa°)).
Todos:
@(1)@.
Mm:
 aí eu ((é desse jeito na cara de pau)) aí ela ((você tem cara de quem fuma)) aí eu ((eu não vou
negar, mas eu já fumei já)) aí ela ((é claro)).
Todos: (.)
Logo em seguida, Galego (Gm) comenta que antigamente tinha o hábito de trajar bermudão,
com a boina aba reta, moda definida por ele como de “doidão”. Ele acrescenta que gostava de aparentar
como “bandidão”, nesse período ele conta que era frequentemente abordado por policiais no setor onde
mora. Posteriormente, quando ele aderiu ao estilo hip-hop, notou que as abordagens diminuíram e o
tratamento dos policiais foi mais amigável.
Os rapazes continuam a exemplificar diversas situações em que alegam ter sido abordados por
policiais bêbados ou serem detidos por estar bebendo cerveja sendo menores de idade.
Gm:
 Antigamente quando a gente era muleque né véi, tipo eu andava todo doidão né, com a moda
do bermudão e tudo, boina aba reta tá ligado? Só andava metido mesmo, só queria ser o
bandidão e direto era reprimido pelos homi, tá ligado? E aí depois que eu parei de andar mais no
estilo hip-hop eu não levei muito bacu não véi, mas de vez em quando ainda levo, mas assim de
boa tá ligado?
Discriminação e racismo
Breitner Tavares
205
Durante a discussão sobre a abordagem policial e as histórias de discriminação enfrentadas pelos
jovens do Rap Comando, alguns depoimentos mencionavam “medo” da polícia, o que justificava uma
postura passiva durante a abordagem considerada ofensiva. Diante disso, Liba discorda de seus amigos,
em relação à não reação às ofensas cometidas por policiais. Segundo ele, deve-se reagir contra a injustiça
cometida pela polícia. Em relação a isso, ele menciona que antigamente tinha medo da polícia, “tremia
nas bases”. Liba conta que numa certa ocasião, quando trabalhava num supermercado, houve o
desaparecimento de carne, então a polícia foi chamada e passou a revistar a todos. Liba se recusou a ser
revistado, porque, de acordo com sua explicação, ele estava trabalhando ali e não fazia sentido aquela
revista. Ele conta que o policial se sentiu surpreso com sua coragem de questionar a abordagem e decidiu
liberá-lo da revista.
Após esse episódio do roubo no supermercado, Liba conta que passou a ser discriminado pelo
gerente da loja onde trabalhava. A princípio, o gerente dizia que ele era um “bandido da Ceilândia”, que
ficava desocupado nas esquinas da cidade. Liba disse que suportou essa situação até o momento em que o
gerente o chamou de “macaco”, algo que o motivou a processar o gerente e a empresa. Liba argumenta
que deixou de ter medo da polícia quando passou a se informar sobre os seus direitos, algo que lhe
concedeu um sentido de liberdade. Ele acrescenta que se deve saber falar com os policiais, pois isso
influenciará a forma de sua abordagem.
Am:
 Antigamente quando falava no nome de polícia eu tremia nas bases, que nem teve no serviço,
voltando a emprego, sumiu 300 toneladas de carne lá, aí chamaram a polícia, a polícia chegou
revistando todo mundo aí eu ((oh peraí aqui eu tô trabalhando como todo mundo aí, “mas tá todo
mundo sendo revistado, você vai encontrar o que dentro dessa bolsa? Alguma coisa? Quer
revistar, olha aquele armário ali. Oxi, você é muito folgado hein? [comenta o policial])) Aí tudo
bem, passou isso, outro dia que foi até o gerente que eu processei ele, ele passou a me tratar
como bandido ((Que nada, você é da Ceilândia, você dever ser daqueles bandidinho pidão lá das
esquinas)) eu aguentei isso, eu só não aguentei quando ele me chamou de macaco, aí eu taquei o
bicho no pau. Antigamente eu tinha medo de polícia, mas depois eu comecei a agir mais, saber
mais dos meus direitos, isso pra mim tá sendo como uma liberdade, é tipo assim você tem que
saber falar se ele ((o policial)) chegar com ignorância você pega e (( o senhor peraí calma aí))
duvido, o cara já muda o estado dele o ((
)) cara é entendido, o cara sabe das coisas.
A experiência de Liba no seu ambiente de trabalho chamou a atenção do grupo para o problema
do racismo, que passou a ser discutido pelos jovens. Os jovens em geral narram situações em que são
xingados durante o contato interpessoal com os colegas na escola ou na vizinhança. Liba ironiza e diz que
está à procura de outras pessoas que o chamem de “macaco”. Em relação a isso, ele relembra o período
em que alguns vizinhos costumavam chamá-lo de “neguim ou macaco”, contudo, mudaram de
comportamento logo que tomaram ciência do processo e condenação de seu ex-patrão. Ele conclui que
Breitner Tavares
206
“não abaixa a cabeça”, porque racismo é algo “inaceitável” e as pessoas que o cometem devem “pagar”
por isso.
Am:
@Eu tô a procura mais de preconceito@ Depois que teve esse negócio na justiça do racismo, eu
tô à procura de negão que de alguém que me chame de macaco novamente (
assim você (
) é porque só
) aqui na rua era tão engraçado tinha uns vizins que chama “aqueles neguim,
aqueles macaco”, depois que soube que eu processei um, quem disse que falaram isso (
) mais
nunca. Pra você ver como é as coisas né. Racismo a gente não pode aceitar não, racista tem que
pagar, eu não baixo a cabeça não.
O grupo, em relação à sua atitude contra o racismo, finaliza cantando à capela um refrão feito
especialmente para tratar dessa temática. Na letra, os jovens tratam das ofensas que tentam desmoralizálos, contudo, afirmam que são resistentes e têm orgulho de ser negros.
De um modo geral, os jovens apresentaram diversas experiências relacionadas à discriminação
por parte da polícia local. Para eles, a polícia trabalha com uma imagem generalizada do jovem, definida
por “peba”; o estilo definido pelos jovens como “bandidão” atrai a atenção da polícia, que normalmente
age de modo agressivo através de violência psicológica mediante xingamentos e ofensas morais contra os
jovens. Contudo, os jovens admitem que, em geral, não reagem por temerem represálias ou por
desconhecerem a lei, como alguns deles justificam.
Para o grupo, vestir-se no estilo hip-hop, com suas roupas folgadas, bonés e cordões de prata,
implica se tornar mais visível, “fragante”, perante as outras pessoas na região. Tornar-se visível na
perspectiva do grupo seria um modo de justificar, ao contrário do que alegaria a polícia, que os mesmos
não têm envolvimento com a criminalidade, pois não estariam agindo de maneira discreta.
Outra situação recorrente para o grupo diz respeito à discriminação racial. Em vários
depoimentos, os jovens são confundidos com traficantes simplesmente por estarem numa esquina de
Ceilândia na companhia de outros jovens negros que se identificam com o estilo hip-hop. Eles são
abordados por usuários de drogas e policiais.
Quanto às estratégias para enfrentamento da discriminação, o grupo, como mencionado
anteriormente, aborda o tema em suas letras, construindo imagens de autoestima positiva para os negros.
Entretanto, os jovens se esforçam para, eventualmente, dialogarem com a polícia ao verificarem excesso
em sua abordagem. Em alguns casos, o preconceito racial foi tratado de maneira formal através de
processo judicial, como no caso de Liba.
“Da Ceilândia pra cá é a mesma coisa”
Experiências discriminatórias e estratégias de enfrentamento
Breitner Tavares
207
Grupo Resistência Periférica
Y retoma alguns pontos mencionados anteriormente sobre a experiência do grupo e a violência
na periferia e, logo em seguida, pergunta se houve algum envolvimento da polícia com a violência. O
grupo inicia uma grande discussão sobre o tratamento “covarde” da polícia e a necessidade de sua
reeducação. Os jovens apresentam vários exemplos sobre as formas de abordagens durante as revistas.
Além disso, Y pergunta ao grupo se há uma abordagem diferenciada da polícia em relação à juventude.
Diante dessa questão, todos no grupo passam a conversar ao mesmo tempo. Em seguida, o grupo
responde que em geral a polícia é agressiva, mas quando há oficiais da PM na patrulha a abordagem é
mais tolerante, mas em geral há um tratamento diferenciado em relação ao estilo dos jovens da periferia,
em que a policia age de modo mais agressivo. A polícia se refere ao “kit peba” como a maneira
característica de se vestir dos jovens potencialmente suspeitos, identificados pelo estilo hip-hop. Como
menciona Hélio (Hm), “Da Ceilândia pra cá é a mesma coisa. É na orea”.
Y:
Vocês falaram também desde o início da conversa. Que muitas coisas inclinaram pro lado do
crime, e tal ou então pro lado das guerras. Vocês citaram algumas experiências de vocês
relacionadas a isso. Mas eu não vi ninguém citar, por exemplo, a relação com a polícia. Como
vocês vêem o comportamento da polícia aqui na região. Vocês já tiveram algum problema com
isso?
Bm:
A repressão continua. Primeiro eu acho que (.)
Am:
Covardes, cara.
Bm:
 Eles é covarde, tá ligado? mas não cabe a eu (.) tipo julgá eles. Né véi?
Gm:
 É tudo oportunista.
Y:
Existe uma abordagem diferenciada da polícia?
((todos falam)).
Hm:
 Da Ceilândia pra cá é a mesma coisa. É na orea ((orelha)).
Am:
Uma coisa que muda também é o seguinte. Quando vem um cara estudado, um oficial lá de
dentro. Ele chega “boa noite, operação desarmamento”.
Gm:
Aqui tem uma onda, tem um estilo. Eles vão muito pela aparência da pessoa. Cê tá ligado?
Hm:
É o kit. É o kit peba.
Bm:
Dependendo com quem cê tá andando tem uma taca.
Bm:
Eu não dou mole pra polícia não. Um dia lá em frente de casa lá o PM chegou pá, veio me
abordá, eu tava até com meu muleque, óh véi. Aí o bicho: “Bora todo mundo na parede”, peguei
meu muleque, “você também. Oh eu tô com meu filho no=colo”. O bicho doidão, véi (
Breitner Tavares
208
) Aí
eu tipo andei, pus meu muleque dentro de casa, tá ligado? Aí ele foi tipo me acompanhando.
“Você vai sair? Bora, sai pra fora porque eu tô mandando. Eu vô sair porque eu quero, não porque
você tá mandando. Aí o bicho fico brabo comigo, doido. Eu pensei que eu ia a apanhar nesse dia ó
Am. Mermão o bicho me jogou na parede assim, doidão véi, alcoolizado mesmo. O bafo de
cachaça assim na minha cara, e eu “caralho”. Eu gelei. Aí eu peguei e falei bem assim “eu tô de
boa, não tô com nada, eu não devo, não tenho nada, eu nunca fui na delegacia nem pra documento
perdido”, tá ligado? Aí é seguinte eu botei a mão, o bicho registrou e pá, e ficou: “Você qué que te
chame como? Ô bonitão vem pra parede. Eu queria que você me tivesse educação de me tratar (1)
do jeito que eu mereço, eu nunca nem te vi como é cê tá falando de negócio de vagabundo” e tal.
(1) Aí o bicho ficou doidão. Eu calei a boca porque eu pensei que ia apanhar, doido. Eu fiquei com
medo do cara crescer pra mim.
Sobre as experiências de discriminação e abordagens da polícia, Boca afirma que não se deixa
intimidar pela Polícia Militar (PM), “não dá mole não”. Ele conta algumas experiências, numa delas ele
estava em frente a sua casa com alguns amigos quando foram surpreendidos por uma abordagem da PM,
que pediu a todos que se voltassem para a parede. Boca se recusou a seguir as ordens dos policiais,
porque estava com seu filho menor nos braços. Contudo, o policial insistiu na revista, então Boca
adentrou seu lote e levou seu filho até um local seguro, sempre seguido pelo policial. Em seguida, o
policial repetiu a ordem para que Boca saísse de casa, para ser revistado, quando ele respondeu que
“sairia porque queria” e não em função da ordem expressa. Isso teria irritado o policial que teria
empurrado Boca contra a parede. Durante a revista, Boca se sentiu agredido pelos empurrões e tapas do
PM. Isso o levou a usar as mãos para se proteger da ofensiva policial. Nesse momento, ele observa que o
policial estava alcoolizado. Então ele imaginou que poderia ser agredido a qualquer instante pelo PM. Ele
tentou ainda dialogar com o policial para que o mesmo fosse menos agressivo e não o xingasse de
“vagabundo”, mas o policial teria ironizado a queixa de Boca. Diante disso, Boca decidiu se manter em
silêncio para evitar maiores represálias.
Logo em seguida, Amauri conta outra história semelhante em que estava caminhando pelas ruas
da QNX, que tem um formato peculiar em relação a outros setores de Ceilândia, por serem estreitas,
dificultando o trânsito de carros e, além disso, com várias bifurcações e becos sem saída. Amauri estava
caminhado com seus amigos na rua onde mora, contudo, poucos instantes depois, quando ele adentra seu
lote, foi surpreendido pela abordagem da PM. Ele observa o que está acontecendo e continua a se afastar
do grupo, quando é ameaçado por um policial que aponta uma arma engatilhada em sua direção e o
aborda, chamando-o de “negão”. Diante disso, Amauri se incomoda, mas atende à exigência do policial,
sendo levado a sair novamente para ser então revistado. Ele contesta a abordagem feita já dentro de sua
residência, mas os policiais ignoram.
Breitner Tavares
209
Am:
 Foi que nem o (
) tava vindo lá de baixo, eu nem vi não com os muleque
tranquilo, os muleque tava descendo (eu só lembro disso, de repente) eu só escutei assim: “Eh aí
cidadão”. Não sei o que () quando eu olhei eu falei: “O que que foi, eu já tô aqui dentro de casa
já, o que que foi?”
Dm:
 E ele já com a arma engatilhada: “bora negão”
Am:
Um=bora vem aqui pra porta” E eu já malandro, fui e
saí, né? Aí ele “ se tu não vem, eu
ia te buscá dentro” Aí eu falei: “tá ficando doido é?” Aí eu falei “Não tem mandado mais não?
É bagunçado é?” “é, não sei o que”. Aí ele falou “tu é fácil né negão? Aí me deu bacu sorrindo.
Aí eu falei: tá ficando é doido.
Em seguida, narra-se uma história em que o grupo iria fazer uma apresentação com vários
grupos de rap em Brasília, quando foram abordados pela PM, que se aproximou xingando e agredindo os
jovens. Amauri e Boca acrescentam que ainda tiveram tempo para ironizar os policiais, “ta nervoso seu
polícia?” , e isso teria irritado o sargento do grupo, que os levou para um lugar mais ermo. Os jovens
imaginaram que seriam agredidos, mas Boca, que havia sido soldado militar das Forças Armadas, teria
supostamente persuadido o sargento ao usar termos pertencentes ao jargão policial. Denis conta que logo
em seguida, após terem sido revistados por policiais militares, foram abordados novamente por policiais
civis, que, segundo o grupo, foram muito mais respeitosos, fizeram perguntas ao grupo sobre o local
aonde iriam e, logo em seguida, o liberaram sem nenhum constrangimento, segundo o próprio grupo.
O grupo segue narrando exemplos de abordagens agressivas da PM. Amauri menciona uma
ocasião em que estava num bar próximo a sua casa quando chegou o Batalhão de Operações Especiais da
PM (BOPE), segundo ele, com armamento pesado, e ordenou que todos se encostassem na parede.
Amauri conta que um de seus amigos levou golpes de cassetete nas costas e nádegas, o que o deixou
inconsciente. Ele conta que se sentiu apavorado e saiu correndo junto com outro amigo. No dia seguinte,
encontraram o jovem que teria sido agredido pelo BOPE na noite anterior, ele estava com um grande
hematoma nas nádegas, resultado dos golpes que chegaram a destruir os cartões de crédito que estavam
na carteira, tamanha a violência da abordagem. Durante a narrativa, o grupo oscila entre risos e
manifestações de repúdio em relação à forma de tratamento agressivo da polícia na QNX.
Am:
@. Outro dia eu tô ali no barzim que tinha fechado. Com as menina lá e um muleque. Chega a
BOPE ó véi, todo mundo encabulado. “Vumbora encosta, encosta” tal. O cara com um chico 12
desse tamanho, óh Bm. Mermão, o muleque ali o ?m tava com a carteira, os cana deram uma
paulada tão forte nele, quando eu vi batendo eu @corri, moço@. o muleque tipo desmaiô.
Bm:
@(.)@.
Hm:
@(.)@
Breitner Tavares
210
Am:
 A marcona de sangue na bunda do muleque. Quebro os cartão da cartera tudo, Cm. Foi lombra.
Eu Ah::: corri. Todo mundo torto no outro dia. (
).
Os jovens do Resistência Periférica sofrem frequentes abordagens das polícias militar e civil na
região onde vivem, no setor QNX. Eles alegam que são abordados, em geral, de modo “covarde” pelos
policiais, que os agridem fisicamente e os xingam. Em relação aos critérios de abordagem da polícia, os
jovens dizem que isso se dá em função de múltiplos fatores. Segundo eles, as abordagens são mais
agressivas na Ceilândia. Essas abordagens ocorrem mais à noite quando estão passando pelas ruas com
seus amigos. Normalmente, só os rapazes são abordados, nos depoimentos praticamente não se
mencionou nenhuma situação envolvendo a abordagem de mulheres. Além disso, a polícia trabalharia
com um estereótipo do jovem que usa o “kit peba”. Esse jovem seria aquele que traja bermudões,
camisetas largas, correntes e boné aba reta, elementos que também são associados ao estilo hip-hop,
também conhecido como “fragante” (flagrante). Ademais, a polícia aborda segundo critérios de
diferenciação racial, com ênfase nos jovens negros, em outros termos, ela age em função de uma
orientação segundo um sistema de status pautado em aspectos raciais. Em alguns dessas abordagens, os
jovens alegam que suas casas são invadidas sem que haja evidências que os incriminem ou um mandado
judicial. Por outro lado, os jovens observam um melhor tratamento durante as abordagens policiais,
quando membros de uma hierarquia superior estão presentes em operações de maior escala.
Sobre a reação dos jovens frente à atitude discriminatória da polícia, eles, em geral, não gostam
de admitir que sofrem constantes abordagens. Em muitos casos,se referem aos colegas. Apesar do tom
dramático dos depoimentos, há eventualmente brincadeiras dos colegas em relação ao constrangimento
que tal situação gera. Por outro lado, há um consenso no sentido de que não se deve aceitar a
discriminação. Os jovens, ao sentirem-se discriminados durante uma abordagem mais agressiva, buscam
dialogar com a polícia, com o intuito de demonstrar que conhecem seus direitos a partir de uma noção de
cidadania criada pelos próprios jovens. Segundo eles, não “se deve bater de frente com a polícia”,
entretanto, deve-se buscar a denúncia nos casos de abuso.
Discriminação racial e a vida mental da cidade
Breitner Tavares
211
Para os jovens do Resistência Periférica há uma tensão entre problemas relacionados à pobreza e
à discriminação racial. Por um lado, há um consenso em relação à existência do racismo, enquanto
prática social, mas, por outro lado, para alguns jovens do grupo, o racismo é algo que apenas atingiria os
negros pobres. Contudo, outros jovens contrapõem esse argumento, afirmando que o racismo atinge toda
população negra, independentemente de classe social.
Y lança uma pergunta ao grupo sobre experiências com racismo e outros tipos de discriminação.
Em relação à pergunta, Hélio (Hm) responde imediatamente que sofre discriminação econômica,
“financeira”, mas Boca (Bm) o interrompe e reforça que se trata de uma questão sobre “racismo”. Diante
disso, o grupo faz uma breve pausa e, em seguida, Conrado (Cm) resolve perguntar novamente se a
questão apresentada era de fato sobre “racismo”, palavra que ele repete por duas vezes enfaticamente.
Boca mais uma vez toma a palavra, retoma o que foi dito anteriormente e diz que Hélio estava falando de
dinheiro, mas o assunto é “cor de pele”.
Após o comentário de Boca, Hélio retoma a palavra novamente e menciona que já havia
trabalhado de motoboy, antes do seu atual emprego, e frequentava vários prédios importantes dos setores
Comercial e Bancário de Brasília. Ele conta que ao adentrar em um dos prédios, chamado pelos jovens de
“Robozão”, dada a sua arquitetura arrojada de vidros espelhados e grandes proporções, se dirige ao
elevador onde havia uma mulher branca. Segundo ele, a mulher o observava com um olhar de
desconfiança e repulsa, em seguida, buscou se afastar dele, algo que lhe deixou irritado, mas se manteve
quieto enquanto dizia para si mesmo em silêncio, “porra!”.
Y:
Como que vocês veem o racismo? Vocês já tiveram alguma experiência de discriminação?
Hm:
Eu mesmo financeiro.
Bm:
 Ele tá falando racial, malandro.
Am:
 Então.
Cm:
Mas, é racismo né? que tá falando. O assunto é racismo?
Bm:
Mas é dinheiro, (que o Hm tá falando). Ele tá falando de cor (.) de pele.
Hm, aquele que tem lá
Hm:
 Eu trabalhei de motoboy, eu trabalhei em vário prédios importantes no Plano Piloto. Uld Trade
Center, que tem lá?
Gm:
Hm:
 O robozão? É.
 Aí eu entrei lá, rapaz? Entrei no elevador mais a mulher, (.) e a mulher ficou me olhando assim
já, (.) com o ar de (desconfiado) você sabe quando a pessoa tá desconfiando de você, né. E, pá
deu uma afastada de você assim ( .) Aí eu “porra” ((pensamento)).
Gm:
 Lá no Plano, pra maioria, neguim é ladrão, olha só.
Hm:
 É mais pilantra é (o Plano Piloto) mas na periferia não rola isso
não, só pra lá mesmo.
Breitner Tavares
212
Diante da história apresentada por Hélio, Gabriel (Gm) comenta que no Plano Piloto de Brasília
os negros são considerados como ladrões pela maioria das pessoas. Logo em seguida, Hélio confirma o
comentário de Gabriel e diz que essas pessoas que agem de maneira preconceituosa são “pilantras”. Por
outro lado, ele afirma que na periferia esse tipo de comportamento não ocorre.
Os jovens do grupo, sem fazer menção a aspectos de classe, observam que o racismo se constrói
em função de uma estratificação social que se materializa espacialmente. Nesse caso há diferentes tipos
de estratificação, em função das relações sociais, baseada na categoria “raça”. Para o grupo, uma pessoa
negra tende a ser discriminada num espaço como um edifício ocupado por uma elite econômica voltada
para o setor de negócios. Uma área restrita, que normalmente circulam pessoas brancas, e prestígio social
típico de uma burocracia liberal . Por outro lado, a periferia, enquanto lugar socialmente construído em
função da categoria classe, é um espaço de socialização onde as pessoas negras não seriam supostamente
alvos de discriminação racial. Numa área como a periferia, onde a população é majoritariamente negra65,
ou seja, onde as relações de sociabilidade ocorrem a partir de laços endogâmicos de pessoas negras, não
haveria um sistema de distinção social baseado na raça.
Os jovens do grupo afirmam que, para acabar com o racismo, se deve antes de tudo “parar de
falar em racismo”. Boca argumenta que as crianças crescem vendo programas, como telenovelas, que
abordam temas relacionados à cor da pele, como a escravidão dos negros associada a várias imagens dos
“negros sendo chicoteados e chibatados”. Segundo o grupo, essas imagens interferem nas relações entre
crianças nas escolas, que passam a se discriminar mutuamente. Para o grupo, a televisão é a “ponte” para
se discutir o racismo, para que o mesmo se torne algo “que não se possa falar mais”.
Hm:
 É mais pilantra é (o Plano Piloto) mas na periferia não rola isso
não, só pra lá mesmo.
Bm:
 Eu acho que é o seguinte. (2) ((todos falam)) Eu acho que esse assunto do racismo aí, eu acho
que pra acabar com o racismo tem que acabar de falar no racismo. Porque o muleque, o muleque
que cresce vendo uma novela, tá ligado? Que falar de uma cor da pele. Tipo assim, que ( )
Am: [ Preto (
Bm:
) escravo.
 tá ligado? Eu acho que um muleque que cresce ali ((interrupção=conversa paralela)). Se liga
como é que conta a história ali. O muleque assiste a novela da seis, e vê o negão sendo
chibateado, chicotado. Aí ele vai pro colégio aí quando ele vê o neguin ele fala “aí neguin (
)”.
Aí já começa o racismo daí, tá ligado? A televisão é a (Discriminação racial e a vida mental da
cidade.
65
Segundo a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílio (PDAD), realizada em 2004, a distribuição da
população a partir dos critérios cor/raça, em Ceilândia, 54,2% da população é negra (pretos ou pardos).
Breitner Tavares
213
Bm:
 A televisão é a ponte pra discutir, pro racismo crescer no Brasil e em qualquer país. Eu acho
que quando acabar, todo mundo não pode falar mais de racismo, não pode mais falar de nego,
não pode falar mais.
O sentido específico da expressão “parar de falar em racismo” remete à ideia que se constrói
uma cultura política que atravessa o audiovisual, em que a imagem do negro é sempre construída a partir
de seu sofrimento. Isso para o grupo gera consequências negativas para a autoestima da juventude negra,
que sempre se vê retratada dessa forma. Portanto, “parar de falar em racismo” não trata necessariamente
de se ignorar o problema, mas construir outras imagens relacionadas à representação social da população
negra. O racismo como sistema de diferenciação social deve ser superado, de modo que a categoria “raça”
deixe de ser empregada para se referir às pessoas.
Apesar de o grupo propor intervenções nos meios de comunicação para que se estabelecesse um
amplo debate sobre o tema, de fato há opiniões discordantes que não compartilham com a possibilidade
de superação do racismo. Em relação a isso, Hélio considera que o racismo jamais acabará, pois está
associado a questões de “poder aquisitivo”, o qual está mais concentrado na população branca, e, para ele,
são poucos os negros com alto poder aquisitivo.
Diante da consideração de Hélio, Boca comenta repetidamente “que tem muito negro racista”.
Segundo ele, alguns negros têm vergonha da própria pele. Ele explica que esses “negros gostariam de
trocar de pele, ser brancos”. Contudo, Hélio discorda. Ele reafirma que na periferia não existe racismo.
Para isso, ele exemplifica que através do relacionamento afetivo exogâmico é possível se estabelecerem
contatos com pessoas de diferentes “raças”. Além disso, ele afirma que na periferia as pessoas podem
chamar umas às outras de “neguinho” sem que isso represente uma diferença racial, contudo, isso se
altera quando as relações sociais se estabelecem fora desse espaço de sociabilidade.
Em função dos comentários do grupo, verifica-se que o racismo é algo que decorre de um
comportamento que estabelece uma diferenciação social em que o segregador é assimilado não só por
brancos, mas também por negros. De fato, o negro não pode ser racista, mas simplesmente assimila
aspectos de uma imagem negativa de “como ser negro”. Fanon precede Bourdieu, no que se refere à
utilização do conceito de habitus, ao empregar a categoria epidermização para se referir à internalização
inconsciente de um sistema de distinção social baseado na categoria “raça”, em que o negro é
inferiorizado (FANON, 2008, p. 28).
Hm:
 O racismo não vai acabar nunca. Sabe por que não vai acabar nunca? O racismo vem do poder
aquisitivo. Sabe por que, o poder aquisitivo? Porque quem tem mais, você sabe, que são os
branquinhos.
Bm:
 Mais existe Hm.
Hm:
 São poucos negros que tem(
Breitner Tavares
).
214
Bm:
Existe negro racista, parceiro, existe negro racista.
Hm:
 Não. Existe, meu jovem.
Bm:
 Tá ligado? Existe negro que tem vergonha da pele. É tipo assim. É uma fita que negro quer
trocar de pele. Quer ser branco.
Hm:
 Aqui na periferia não existe. Sabe por que que não existe racismo?
Gm:
 Não tem, não existe.
Hm:
 Não tem. Aqui não existe racismo. Cê agarra uma neguinha º nao agarra não?º porra (.), agarra
uma neguinha, agarra uma branquinha. Tudo mais.
Bm:
ºMas existe muleque, que isso?º.
Hm:
 Não não existe não existe (
Gm:
 Não Bm ( ) eu não concordo com você.
Hm:
(Aqui) eu posso falar “eh aí neguinho, beleza?”.
Bm:
Existe ( racismo)
).
Para o grupo, as relações raciais estão vinculadas a um sistema econômico que se estrutura de
maneira desigual e injusta. Portanto, numa escala a possibilidades estabelecida pelo grupo, a inserção
social, bem como a participação política seria mais difícil, ou mesmo improvável para pobres e negros. O
grupo assume um discurso em que o racismo é algo estruturante nas relações sociais, que define ao
mesmo tempo, racial e economicamente, as posições de classe social dos indivíduos. Eles afirmam que há
um grupo restrito de brancos que detêm o “poder aquisitivo”. Por outro lado, inversamente a essa
situação, há uma maioria negra que não dispõe das condições daquela minoria branca.
O grupo considera que a ascensão econômica pode livrar uma pessoa dos constrangimentos
vividos por negros e pobres. Hélio menciona que caso tivesse dinheiro poderia encarar ou outros, os
brancos do Plano Piloto, “de frente”. Ele menciona algumas personalidades negras, como Pelé, Foguinho
(Lázaro Ramos), que detêm alto poder aquisitivo e status social e, portanto, não sofreriam preconceito
racial. Hélio recorre à expressão “tratado como racista”, para definir pessoas que, de alguma maneira, são
discriminadas racialmente. Para ele, o poder aquisitivo leva as pessoas a serem tratadas como iguais.
Hm:
 porque se eu tivesse dinheiro (
) e pudesse olhar eles de frente (os brancos)
frente a frente.
Bm:
 @Já rolou o racismo, é foda@.
Hm:
 Cadê que ninguém encara o Pelé como racista? Ninguém encara o Pelé como racista.
Am:
 É o rei né muleque, tem dinheiro.
Hm:
Ninguém encare esses ator de novela.
Bm:
 Encara malandro.
Hm:
Igual o Foguim, aqui oh, como racista.
Bm:
 Encara malandro.
Breitner Tavares
215
Hm:
 como neguim não. Porque os cara tem dinhero, os cara tão lá envolvido um com o outro, lá.
Isso não existe lá entre eles não. (
)
Bm:
Encara pô.
Hm:
 Basta, basta os nego começa a estudar, caça estudo e de onde tirar. Aí sim vai poder igualar
por meio do serviço.
Gm:
Não iguala porque (
Bm:
Oh Hm.
Bm:
Não, mas a partir que você se qualifica o mercado não fecha não, véi, que ele faz é abrir, véi.
Bm:
 Óh Hm se liga.O negro sempre foi humilhado, desde o tempo que começou, calma aí.
) as porta fechada (
).
Em relação à mobilidade social do negro, Hélio acredita na ideia de que, quando os negros
começarem a estudar, poderão se igualar através do trabalho. Contudo, Gabriel alega que isso não ocorre
porque as oportunidades são desiguais entre brancos e negros, mesmo que ambos tenham a mesma
formação, “as portas estão fechadas”. Boca discorda e diz que o mercado se abre quando se é qualificado,
segundo ele, o negro foi escravizado historicamente, portanto, se um negro chegar ao poder, mesmo
sendo rico, sempre haverá uma tutela, uma interdição de um homem branco. Isso se daria, segundo ele,
em função de um receio “dele (do negro) de fazerem o mesmo que fizeram com os antecedentes dele”.
Bm:
 Quer dizer se um negro chegar no poder, se um negro chegar, por mais rico que ele seja um
milionário, por mais rico que for. Sempre vai ter um branco, dizendo, querendo tipo abaixar ele.
Por que? Porque vai ter medo dele chegar e fazer o mesmo que fizeram nos antecedentes dele,
moço.
Hm:
 Mas adianta, velho. Adianta que a pessoa. Hoje em dia
?m:
O Colin Powell era negro e (
Hm:
 a pessoa se qualificando e sabendo não tem esse negócio não.
Bm:
 Que, Hm, não tem.
Gm:
 Eu sei, eu sei, acabou, já era ((tentativa de intervir na discussão)).
Bm:
 Você pode ser milionário Hm, você pode ser milionário. Você pega um neguim milionário que
).
tiver, sempre vai ter um branco, tá ligado com ele (
Gm:
).
 Não existe isso mais não.
Mais adiante, o grupo menciona que o racismo seria baseado numa suposta crença na
incapacidade do negro. A exemplo disso, Hélio afirma que priorizar o acesso de negros na universidade
através de um sistema de cotas é uma forma de desqualificá-lo. Ele ainda comenta, gaguejando, que se
negros e brancos, disputarem uma vaga, o negro seria bem sucedido. Nesse momento, todos no grupo
fazem comentários no mesmo sentido. Amauri é o único a discordar. Ele pergunta ao grupo quantos
negros chegou à universidade e, em seguida, conclui que nenhum negro logrou tal êxito.
Breitner Tavares
216
Hm:
 Sabe o que que eu acho racismo? Achar que o negro é incapaz. Achar o negro incapaz. Que a
pessoa de pele escura é incapaz. Sabe o que que eu acho racismo? Racismo é você pegar e dar
prioridade pra um negro na faculdade, pra um negro. Eu acho que isso é o pior racismo que
existe. Porque se o negro disputar pau a pau junto com o branquinho.
Gm:
Ele arrebenta.
Hm:
Ele= ele=ele dá conta.
Gm:
ºÉ, pior que dá mesmoº.
Hm:
[ Agora priorizar:: eu acho que isso aí começa o racismo.
Am:
 Aí já tá tirando.
Hm:
Isso aí que já começa o racismo. Isso aí que começa o racismo.
Porque a pessoa tem
capacidade, ela luta, ela vai em frente. Eu sei disso.
Am:
 Não Hm. Mas (
) assim . Quantos negros chegaram lá? Nenhum. Então? Eles tão
abrindo primeiro a porta pra depois (
) invista neles mesmo.
Bm:
 Tem os dois lados da moeda, né muleque?
Hm:
 Então. Então. Eles têm que tomar atitude.
O grupo, durante boa parte da discussão sobre discriminação e racismo, manifestou várias
posições caracterizando uma passagem de foco, ou seja, um momento do debate com vários pontos de
discordância e agitação dos envolvidos no debate.
De modo geral, o grupo constrói uma perspectiva na qual a predominância das relações
impessoais numa metrópole como Brasília estabelece uma mentalidade com condições para a
discriminação racial e de classe. De maneira discreta, mas eficiente, a arquitetura delimita espaços de
circulação estratificados. A exemplo disso, uma situação corriqueira, num prédio luxuoso no setor
financeiro da cidade, em que duas pessoas desconhecidas entram num elevador pode durar apenas alguns
segundos. Contudo, se nesse caso, for um motoboy negro e uma secretária executiva branca, tal
coincidência seria suficiente para acionar todo um sistema de distinção e gosto observável através do
gestual, de um olhar repulsivo, um passo atrás, entre outras possíveis e discretas variações do mesmo tipo
de constrangimento preconceituoso que está inscrito e expresso pelo corpo.
Em contraposição à etiqueta urbana dos espaços onde há uma maior incidência da especulação
imobiliária de Brasília, os jovens definem a “periferia” como espaço em que prevalece as relações
vicinais e seus consequentes vínculos afetivos. Para o grupo, a periferia constitui um espaço segregado,
em que há uma série de precariedades no que se refere aos equipamentos e serviços públicos, o que a
associa à pobreza de sua população, que tem “baixo poder aquisitivo”. Por outro lado, nesse mesmo
espaço, os jovens do Resistência Periférica alegam que não há incidência de racismo nas relações
interpessoais onde vivem na QNX. Os vínculos de intimidade estabelecidos pelo convívio de amizade de
Breitner Tavares
217
jovens que compartilham do mesmo lugar de classe e “raça” possibilitam formas de tratamento, como se
referir à cor do outro, o que num ambiente impessoal é vedado e poderia caracterizar uma ofensa.
A relativa predominância racial e de classe obtida em determinadas cidades, especificamente em
setores como a QNX, em Ceilândia, leva à condição de um relativo isolamento social imposto pela
configuração urbana da cidade, que limita as interações sociais entre pessoas de mesmo perfil
socioeconômico e étnico-racial, composto por negros e nordestinos e seus descendentes. Uma relativa
homogeneidade étnico-racial para uma dada comunidade torna “invisível” o racismo, porque o mesmo
está inserido no arranjo geopolítico da cidade, que cria espaços distintos de circulação. Nesse caso, a
“mão invisível” da especulação imobiliária cria uma periferia negra e nordestina, em que, pela condição
de isolamento, a população não reconhece a existência de um racismo que já está estruturado na própria
configuração urbana.
9.3 Algumas considerações gerais sobre as experiências discriminatórias e estratégias de
enfrentamento dos jovens
A discussão das questões relacionadas a experiências discriminatórias gerou diversos
comentários e posicionamentos controvertidos por parte dos grupos. Em cada contexto, foram
selecionados os principais aspectos para a definição de situações em que os jovens se sentem
discriminados. Contudo, mesmo diante de uma diversidade de posicionamentos, há alguns elementos que
permitem alcançar algumas generalizações quanto ao tema discriminações, bem como as respectivas
estratégias encontradas pelos jovens para o enfrentamento de tais eventos.
Em geral, os grupos consideram a abordagem policial violenta e a discriminação racial contra
negros e nordestinos como os principais temas para suas narrativas sobre experiências discriminatórias.
Para os jovens, a discriminação está diretamente associada ao fato de assumirem o hip-hop como estilo de
vida e às condições de uma juventude negra e pobre que vive num espaço urbano segregado, como alguns
setores em Ceilândia.
O estilo hip-hop, caracterizado pelos grupos como um conjunto de valores e práticas, se
materializa a partir de uma maneira, uma moda específica, em que o corpo se expressa no no espaço
público. Desta forma, os jovens vinculados ao hip-hop, de um modo geral, apreciam roupas folgadas,
adereços, como jóias reluzentes em tons dourados e prateados, além de acessórios, como bonés, toucas,
tênis, entre outros. Trajados dessa maneira distintiva, os jovens realizam suas atividades corriqueiras,
como frequentar escolas, passear em shopping centers, utilizar transporte público ou, simplesmente,
permanecer em suas comunidades, conversando com outros jovens nas esquinas.
Breitner Tavares
218
Entretanto, independentemente do espaço em questão, a simples presença dos jovens num
espaço público redefine a postura de policiais e seguranças privados, que passam a agir de maneira mais
ostensiva e, segundo os jovens, discriminatória. Apesar de o hip-hop ser uma manifestação estruturada
em uma cadeia produtiva de bens simbólicos representativos do sentido de pertencimento jovem, no
momento em que esse assume a indumentária, enfrenta uma situação ambígua a que seu estilo está
vinculado. Por um lado, existe a afirmação jovem, masculina e, em alguns casos, agressiva, como indica a
variação “fragante”. A vinculação à estética marginal em algumas variações, como o fragante ou o
gângster, pode acirrar a postura ostensiva e discriminatória da polícia.
Durante as narrativas, os jovens contam que são constrangidos por seguranças armados em
shopping centers, que passam a segui-los constantemente, de modo que eles passam a ser encarados como
suspeitos, não só pelos guardas, mas por todas as pessoas que estão nesse espaço de circulação. As
abordagens dos policiais durante as revistas são avaliadas pelos jovens como “covardes”. Há diversos
exemplos sobre como a polícia aborda os jovens baseados em categorias discriminatórias como “peba”,
que se refere a uma imagem estigmatizada do jovem associado ao hip-hop como aquele envolvido em
prática de delitos e crimes.
Os jovens dos grupos afirmam se identificar, em alguns casos, com uma variação do estilo,
conhecida como “fragante”, que alguns chamaram de “aba reta”, “bandidão” ou “doidão”. Os jovens
identificados com essa distinção alegam que compram roupas caras, de “luxo”, e estabelecem sua
bricolagem ao criarem uma nova estética pela reconfiguração das peças de roupa e acessórios, que fazem
eventualmente alusão ao estilo gângster. Portanto, o jovem “fragante” é definido pela polícia como o
“peba”, que é considerado um “suspeito em potencial”, visado nas abordagens policiais. Outros jovens
alegam que se vestem de modo “hip-hop”, com suas calças e camisetas largas. Os jovens adeptos dessa
variação afirmam que, apesar de serem chamativos, por sua estética, não aludem ao estilo “fragante”, que
seria mais visado pela polícia.
Em relação à constituição de um habitus em relação ao estilo, os jovens ao discutirem suas
experiências em relação à discriminação demonstram uma certa ambigüidade, em que, por um lado,
assumem que o racismo é algo estruturante da vida social e orienta um habitus de classe para brancos e
negros em diferentes estratos sociais. Frente a isso, não haveria como ele ser eliminado, pois é algo a que
já se está “acostumado”. Por outro lado, em diversos momentos, os jovens narram suas estratégias de
enfrentamento do racismo, que se articulam, em muitos casos, por meio de diálogos durante as situações
em que a discriminação se objetiva e é identificada.
Os jovens demonstram que o racismo através de piadas e anedotas é comum nas escolas ou no
ambiente de trabalho. Alguns afirmam que tal prática é “comum” entre homens que têm o costume de se
ofenderem com apelidos durante seu processo de socialização. Em relação a esse tipo de situação, os
jovens definem suas estratégias como “jeito comédia”, em que se busca a persuasão do racista sem que se
desfaça o vínculo de amizade do grupo. Entretanto, na maioria das narrativas, as situações têm uma
grande carga dramática que os interlocutores não conhecem, pois estão envolvidos em vínculos
institucionais e impessoais, como passageiro e motorista num transporte público, ou num prédio
Breitner Tavares
219
comercial num ambiente entre funcionários de uma mesma empresa. Nessas situações, alguns jovens
afirmaram que reagiram ao ser discriminados. Alguns discutiram com seguranças e vendedores de lojas
em shopping centers, outros processaram seus chefes por crime de racismo. Contudo, em muitas das
situações, os jovens identificaram a discriminação, mas não apresentaram qualquer reação a ela.
Os grupos em geral trouxeram diversos elementos no que se refere à construção do sentido de
identificação da Ceilândia como um importante espaço de convivência. Nesse caso, Ceilândia, diante de
sua atual complexidade enquanto espaço urbano, é vivenciada a partir da metáfora da “periferia”.
De fato, é nesse espaço que determinadas relações vicinais e locais estabelecerão as condições
socioambientais para o encontro dos jovens em torno do estilo de vida como o hip-hop. Além disso, nesse
espaço vivencial, os grupos afirmam que não ocorreria racismo. A relativa homogeneidade, em termos de
classe social e de predominância de uma população negra e de imigrantes nordestinos, não é associada
pelos jovens como parte de um processo de segregação, ao mesmo tempo, étnico-racial e espacial. Para os
jovens da periferia, há uma atmosfera que invisibiliza o racismo, porque todos ali são tratados como
“iguais” e vivem a partir de vínculos de intimidade, centrados nas famílias e nos grupos de amizade.
No que se refere ao relacionamento afetivo, os jovens mencionaram algumas experiências,
especificamente a dificuldade de jovens negros se relacionarem com mulheres brancas. Para eles, apesar
de preferirem namorar garotas brancas, elas às vezes os tratam com desprezo em festas ou outros locais
públicos, pelo fato de serem negros. Em contrapartida, alguns dos jovens alegam que nunca tiveram
relacionamento com garotas negras, mas que não seriam contrários a esse tipo de relacionamento. Isso
expressa como os jovens racializam a discussão sobre relacionamento a partir de uma supervalorização as
garotas brancas em detrimento das negras.
Ainda sobre a relação das experiências discriminatórias e sobre o espaço urbano, os grupos, ao
tratarem de incidentes com a polícia, alegaram que, em Ceilândia, há mais brutalidade, conforme diversos
exemplos apresentados. Esse tratamento, segundo os depoimentos, ocorreria contra os jovens negros do
sexo masculino que circulam, à noite, em áreas de lazer, como bares e boates, ou mesmo em áreas
próximas a suas residências. De fato, isso expressa o quanto a cidade é precária no sentido de
equipamentos de lazer para a juventude.
Essa juventude está inserida precariamente no mercado de trabalho, além de ser pouco atendida
por políticas públicas relacionadas à educação, lazer, capacitação profissional, dentre outras, vivendo à
margem das ações estatais.
A associação de pobreza e racismo para o grupo é exemplificada pela descrição da configuração
urbana do Distrito Federal. Os jovens alegam que, em cidades como Brasília ou Taguatinga, eles são
discriminados pelo seu estilo e por serem negros. As diferenças entre raça, classe e status dos jovens
estruturam a desigualdade e a discriminação que eles enfrentam quando estão nos espaços públicos. No
caso de Brasília, as impessoalidades que orientam as relações sociais criam possibilidades para a
discriminação, as quais os jovens têm dificuldade de enfrentar, pois são mais discretas, “como um olhar
repulsivo”, mas não menos objetivas no que se refere ao estabelecimento da barreira da “boa aparência”
Breitner Tavares
220
enfrentada pelos jovens quando tentam procurar emprego ou buscar informações em espaços comerciais
ou públicos.
Ainda durante as discussões em relação à discriminação racial, em especial no que se refere à
elaboração de estratégias de enfrentamento do racismo, os jovens em geral se identificaram como negros
e fizeram considerações críticas aos termos como “mulato” ou “moreno”, os quais, segundo eles, eram
preconceituosos e não possuíam a mesma visibilidade da categoria “negro”. Os jovens que não se
identificaram como negros disseram, em contrapartida, que tinham “sangue negro nas veias” e, portanto,
também seriam “negões”, mesmo sendo brancos.
10 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar da pouca utilização do conceito de gerações por pesquisadores brasileiros, assim como
da variável metodológica do método documentário de interpretação, há algumas pesquisadoras que têm
demonstrado sua eficácia em abordagens em que há uma maior ênfase na produção de dados qualitativos.
Essa metodologia permitiu trabalhar com sujeitos sociais subalternos, considerados “sem história” ou
“sem voz”, como a juventude pobre e negra das grandes metrópoles. Contudo, abordagens mais
convencionais, baseadas em certas hipóteses sobre a juventude, ainda reforçam estereótipos sobre um
suposto caráter da marginalidade juvenil intrínseca, assim como abordagens que tentam qualificar a
juventude simplesmente por aspectos cronológicos.
As múltiplas culturas jovens desafiam os pesquisadores a construir um “campo de pesquisa”
sobre juventude que não esteja vinculado a velhos paradigmas que narram a juventude de maneira
espetacular e superficial, criando, dessa forma, alguns estereótipos em torno de categorias como “tribos”
ou “gangues”, ao desconsiderar outros aspectos que vão além das indumentárias e daquilo que compõe
Breitner Tavares
221
parte das estimas dos jovens. Para enfrentar tal situação, requer-se a construção de uma metodologia
explicativa desses fenômenos presentes nas orientações coletivas juvenis, que considere aspectos
relacionados ao consumo da juventude pobre das classes trabalhadoras, bem como as dimensões relativas
à construção de um sistema de distinções sociais pautado em categorias como raça-etnia, gênero e
sexualidade.
Diferentemente daquilo que algumas perspectivas homogeneizantes poderiam apresentar, nessa
investigação sobre os jovens em Ceilândia, foi encontrada uma diversidade dentro das “culturas juvenis”.
Diante disso, diversas orientações coletivas puderam ser documentadas durante o convívio com os
grupos, bem como por meio da análise dos grupos de discussões realizados ao longo da pesquisa.
A modernidade enquanto um projeto de reificação da racionalidade técnica estabeleceu um
projeto global, centrado em valores universais eurocêntricos. Esse projeto, articulado em função de um
sistema mundial, definiu toda cultura existente através de um sentido de colonialidade. Como
consequência, os projetos de modernidade e suas crises definiram, de um modo geral, outras experiências
históricas, a partir de uma noção de centro e periferia. Esses projetos desconsideram outras possibilidades
de configurações geracionais e práticas sociais que revelem as descontinuidades de um projeto ocidental.
Diante disso, o conceito de gerações, entendido enquanto processo, enquanto mudança social, se
estabelece mediante as alternativas concretas de um determinado grupo social, identificado como
juventude.
A juventude estabelece seu próprio sistema de comportamentos sociais, o qual sofre diversas
interferências da estrutura social em que se encontra, definindo os sentidos das ações individuais como os
de uma juventude negra e pobre da América Latina, que vive nas grandes cidades e se apropria de
elementos advindos de um processo mundial de construção de suas orientações coletivas, materializadas
sob a perspectiva de novas formas de expressão estético-políticas e de consumo, capazes de traduzir suas
questões específicas em ações sociais. Essa dinâmica da juventude estabelece uma espécie de região de
fronteira que potencialmente transcende o imaginário de colonialidade sob o qual foi submetida
historicamente.
Em relação a essa experiência, o hip-hop foi associado à diáspora africana do Atlântico como
fenômeno cultural realizado por negros e latinos em grandes metrópoles do hemisfério norte. O povo
negro recriou suas linguagens em novas formas de reivindicação política por igualdade, superando
dicotomias entre cultura e política ao inserir o lazer em suas estratégias e práticas sociais, tornando-se
uma cultura dentro de um sistema mundial. Isso se expressa por uma mobilização da sociedade civil, na
esfera da produção e consumo de bens simbólicos, articulada como a luta por reconhecimento no espaço
público. De fato, isso não implica uma assimilação passiva desses elementos estéticos globais. Em cada
localidade, há em operação diversas influências que possibilitarão a multiplicação de formas, bem como
de políticas associadas à juventude afrolatina, em especial no Brasil, e ao hip-hop enquanto uma forma de
cultura popular contemporânea.
O estudo das orientações coletivas em relação às narrativas de jovens negros da periferia de
Brasília, em Ceilândia (DF), enfrentou a questão da marginalização urbana a partir de suas próprias
experiências. Para isso, o estudo sobre os estilos de vida definido a partir de sua complexidade dentro de
Breitner Tavares
222
um sistema de gostos e distinções sociais estipula toda uma rede de relações que extrapolam o grupo em
si. Isso implica a relação com outros grupos, como a família, a vizinhança local, os professores, policiais,
bem como com diferentes espaços de interação, como a escola, a casa dos pais ou dos amigos, a rua, a
esquina, entre outros. Todos eles vão dinamizar e abrigar a construção de uma visão de mundo dessas
juventudes em torno desse “canto de Ceilândia”: o rap.
Essa forma de cultura popular engajada em discursos de uma “missão transformadora” foi uma
referência motivadora do envolvimento das primeiras gerações de jovens no hip-hop no Distrito Federal.
Isso foi constatado a partir das experiências dos próprios jovens em Ceilândia, em que, através de uma
inserção nos meios de produção musical do rap, os jovens puderam redefinir uma série de pautas
reivindicatórias na esfera política, no sentido de um reconhecimento positivo da juventude das periferias
de Brasília. Isso foi realizado mediante a intervenção no espaço público através de shows, assim como no
campo publicitário dos meios de comunicação, que estigmatizavam a cidade, bem como sua juventude.
Nesse caso, o rap passou a ser um dos referenciais do reconhecimento da juventude antirracista na
periferia de Brasília.
A análise das orientações coletivas dos jovens envolvidos com o hip-hop e o rap em Ceilândia
permitiu, por meio do método documentário, construir um tipo em relação social frente a sua posição
geracional e ao seu estilo cultural. Dessa forma, a família e as relações interpessoais de amizade foram
relevantes para a construção de um sentido de pertencimento coletivo. A cidade, com sua complexidade e
contrastes, assim como com semelhanças no que se refere à condição de classe dos grupos, permitiu que
esses se identificassem dentro de uma experiência intersubjetiva geracional.
Em relação à constituição dos grupos, eles se originaram de maneira semelhante, a partir de
projetos promovidos por instituições assistenciais que atuam em escolas no setor onde os jovens residem.
Em relação à elaboração de um projeto político-pedagógico, os grupos estão voltados para um conjunto
de práticas lúdicas e de consumo de bens identificadores com o sentido de enfrentar seus problemas
cotidianos. Outros grupos reivindicam o sentido de uma missão política para realizar o resgate daqueles
envolvidos no “vício do álcool e das drogas”. Em geral, o sentido de missão política voltado para a
mudança social foi apresentado de diversas maneiras pelos grupos, como: “revolução”, “cultura forte”,
entre outras assumidas pelos grupos. Todas elas constituem expressões que, de maneira heterodoxa,
propõem um envolvimento dos jovens com atividades sociopolíticas em sua cidade.
A formação e o envolvimento dos jovens com o hip-hop e o rap, que eram em sua maioria
negros, do sexo masculino, com idade aproximada de 15 a 25 anos, foram motivados por vários
elementos, como as relações vicinais articuladas por espaços de circulação e convivência como a escola.
Contudo, apesar das semelhanças entre os jovens, isso não implica que os mesmos sejam homogêneos,
mas que compartilham de uma visão de mundo em que se elege um “protagonismo jovem” como valor.
Alguns grupos estão envolvidos em trabalhos sociais coordenados por ONGs locais ou regionais, outros
atuam como empreendedores de pequenas atividades voltadas para o lazer em suas comunidades.
A família enquanto instituição social se mostrou relevante para os jovens que, em sua maioria,
vivem com seus pais ou avós, os quais são espectadores do envolvimento dos seus filhos com a música.
Breitner Tavares
223
Paralelamente ao discurso que valoriza a interconexão geracional com os pais e as pessoas mais velhas,
há um conjunto de assertivas que indicam o interesse dos jovens em criar um espaço de convívio restrito
às suas práticas sociais em torno da música e da troca de experiências com outros jovens envolvidos num
mesmo contexto geracional.
Parte da motivação dos grupos de rap em relação a uma transformação, definida por “revolução”
ou “correr atrás de algo verdadeiro”, traduz o sentido de vários dilemas enfrentados pelos jovens no setor
da cidade onde vivem, espaço onde lidam com experiências discriminatórias nas escolas ou mesmo nas
ruas. Apesar do desejo de mudança e mobilização local, observa-se a tensão entre valores de cunho mais
individualista, representados pela categoria “playboy” em contraposição ao associativismo preconizado
pelos jovens “rappers”. Os desacertos e a dificuldade de mobilização no sentido reivindicatório leva à
criação de um imaginário distópico em relação à vida na periferia urbana, além da criação de estereótipos
relacionados à violência juvenil. Portanto, em suas narrativas, há uma ambivalência entre uma violência
naturalizada e o discurso em torno de um resgate social a partir de uma juventude envolvida no estilo hiphop.
A observação de campo, bem como as entrevistas dos grupos de discussão permitiram
observações de uma orientação coletiva dos jovens em relação à sexualidade masculina e suas
perspectivas acerca das visões de mundo sobre relacionamento afetivo. Há vários elementos que
permitem constatar o modo como os jovens estabelecem um sistema diferenciado de papéis sociais
masculinos e femininos de jovens que, em sua maioria, são solteiros.
Os jovens definem o envolvimento com o hip-hop como um aspecto orientador de suas escolhas
afetivas. Isso se torna uma prerrogativa masculina para determinar a dinâmica do relacionamento com as
garotas, definidas em categorias como: “donas”, “minas” ou “piriguetes”. Nesse contexto, estipulam-se
certos valores masculinos de cunho sexista que limitam o espaço de circulação das jovens, especialmente
aqueles relacionados ao lazer. Os jovens do sexo masculino, em geral, preferem buscar diversão na
companhia de outros amigos em detrimento de suas namoradas ou esposas, mas frequentam espaços de
socialização e lazer onde há a presença feminina. Além disso, alguns jovens, “garanhões” ou “aqueles que
pegam todas”, preferem estar envolvidos em relacionamentos ocasionais com as “donas” ou “piriguetes”.
Nesse caso, a vida festiva, expressa no “curtir o frevo” ou “ficar zanzando”, se apresenta como uma
oposição ao relacionamento estável de cunho monogâmico.
Em contrapartida ao discurso predominante que invisibiliza a participação feminina nas
constituições do relacionamento afetivo, há determinadas situações em que se observaram inversões ou
reações das jovens no sentido de determinarem suas próprias escolhas frente à configuração do
relacionamento patriarcal ou frente à redefinição de um prognóstico de futuro que possa interferir na
solução de problemas enfrentados pela juventude, como o pessimismo e a violência urbana. Portanto, as
jovens têm a capacidade de “mudar a cabeça” de seus companheiros e livrá-los da “guerra”.
Para os jovens rappers de Ceilândia, o amor romântico é redefinido pelos relacionamentos por
eles orientados. Apesar do sexismo e misoginia, não se pode afirmar simplesmente que haja uma
Breitner Tavares
224
dominação unilateral, mas uma complexidade dos papéis femininos e masculinos, que, eventualmente,
transgridem o sexismo implícito nas interações sociais.
O método documentário, assim como a observação de um vasto material iconográfico, como
jornais e periódicos, permitiu a constatação de diversas experiências discriminatórias sofridas pelos
jovens envolvidos no hip-hop em Ceilândia. Na mesma proporção, o hip-hop permitiu a reflexão sobre
estratégias criativas estipuladas pelos grupos para enfrentarem tais situações.
Os jovens alegam que são constrangidos frequentemente em função de abordagens
discriminatórias, no espaço público, em função do estilo hip-hop pelo seu habitus corporal e sistema de
gosto expresso por uma indumentária específica, a qual é identificada negativamente. Há diversos
exemplos sobre como a polícia aborda os jovens fundamentando-se em categorias discriminatórias
associadas de alguma maneira ao estilo hip-hop como o “peba”. As histórias apresentadas durante os
grupos de discussão tratam de situações em que os jovens negros são seguidos e constrangidos por
guardas em estabelecimentos comerciais como shoppings. Em outras situações, eles são identificados de
maneira suspeita em áreas valorizadas economicamente e de maioria branca em Brasília.
O aspecto de uma configuração urbana no Distrito Federal, que criou periferias heterogêneas em
termos de classe, contudo, mais homogêneas em termos étnico-raciais, cria, portanto, uma periferia
racializada pela predominância de negros, que sofrem uma constante abordagem policial, considerada
agressiva pelos jovens.
Os jovens em geral naturalizam as situações nas quais sofrem algum tipo de discriminação, eles
já se “acostumaram”. Dessa forma, o simples fato de o fato de serem jovens e negros já justificaria a
abordagem agressiva da polícia. Além disso, a condição geográfica, por viverem numa cidade como
Ceilândia, estigmatizada pela ideia de periferia, só agravaria esse quadro.
Apesar do fatalismo de alguns discursos mais pessimistas, há aqueles que buscam formas de
enfrentamento da discriminação racial e da discriminação em relação ao estilo hip-hop. Os jovens
afirmam em suas narrativas que enfrentam diretamente essas situações em espaços em que estão
envolvidos numa situação discriminatória, como a escola, o trabalho, entre outros. Para isso, recorre-se à
estratégia de tentar dialogar informalmente contra o agente causador do racismo para demonstrar sua
posição antirracista usando o “jeito comédia”. Por outro lado, alguns jovens afirmam que, caso seja
necessário, recorre-se até mesmo a uma queixa formal para punir os eventuais agressores.
Os jovens organizados a partir do hip-hop e seu sentido de transformação social, como
mencionado em seus discursos de “revolução”, buscam através do rap e de outras práticas sociais ligadas
ao lazer, lidar com os dilemas existenciais a sua volta. Dessa forma, os jovens que compartilham de uma
mesma configuração geracional a partir do estilo hip-hop lidam com seus medos e desejos, em que o
amor é a utopia fugaz voltada para o futuro e vivida no presente. A pobreza e o racismo, materializados
num espaço urbano desprovido de equipamentos públicos, criam um meio ambiente que leva os grupos de
rap a assumirem a missão de uma entidade coletiva capaz de se organizar na ausência de um Estado e
promover atividades sociais que os jovens julgam necessárias para cultivarem uma autoestima positiva na
Breitner Tavares
225
periferia onde vivem na busca por reconhecimento social que eventualmente se constitui de maneira
insurgente.
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Breitner Tavares
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