A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE NO HIP-HOP E O RAP COMO CONTRA-NARRATIVA SUMÁRIO 1. Início do Baile pág. 02 2. Cenário de Decadência Urbana: o berço do Hip-Hop pág. 03 3. Os elementos do Hip-Hop e um breve histórico pág. 04 4. Como se constrói a identidade hip-hopper? pág. 06 5. Funk e Hip-Hop - movimentos distintos pág. 09 6. O Rap enquanto narrativa pág. 10 7. O fim do baile pág. 14 8. Bibliografia pág. 15 1 Início do Baile Se existe ou não a culpa / Ninguém se preocupa Pois em todo caso haverá sempre uma desculpa/ O abuso é demais / Pra eles tanto faz / Não passará de simples fotos nos jornais ( Racionais MC’s ) Este trabalho, resultado da disciplina Comunicação e Sociedade, orientada pela professora Lindinalva Rubim, pretende estabelecer ligações entre os papéis exercidos pelo Movimento Hip-Hop e pelos mass media na construção de identidade de um contigente jovem de negros e mestiços das periferias dos grandes centros urbanos brasileiros. Nesse trabalho também pretendemos analisar os Rappers como agentes de uma narrativa do Brasil que não está no discurso hegemônico. Eles transformam a expressão artística cantada e falada numa contra-narrativa, que exprime sua identidade, junto com a luta pela inserção social, pelo reconhecimento dos seus iguais e pelo respeito ao diferente, não inferior. Apesar de constituir-se num estilo musical, notavelmente marcado pelas rupturas, o Rap aqui está sendo tratado muito mais no âmbito da expressão político-social, como veículo de informação e formação. Os mídias possuem dois papéis igualmente importantes, embora distintos, nesta relação entre os jovens Rappers e a sociedade: a) Por um lado, a mídia permite uma reapropriação localizada de todo um conjunto simbólico mundializado através da indústria cultural; acervo que acaba por identificar jovens do mundo inteiro como pertencentes a uma determinada tribo, por compartilhar vestuário, informações, gosto musical e atitudes. Como em outros movimentos juvenis dos anos 90, apenas através de CD’s, rádio, TV, filmes, revistas e outras mídias, é que essas informações poderiam ter chegado, por exemplo, à periferia paulista, como hoje chega a Salvador. É preciso reconhecer que sem a atuação de segmentos especializados dos media - como a MTV e as rádios FM - e dos mass media, os jovens das periferias da América Latina não teriam como conhecer Rap e Funk, NBA e Michael Jordan, Jazz e Blues. Todo esse acervo da cultura negra americana, que influencia positivamente os negros e afro-descedentes do outro lado do Atlântico. (SANSONE, 1995) b) No entanto, para muitos hip-hoppers, é difícil reconhecer a contribuição dos meios de comunicação, principalmente por os considerarem uma espécie de inimigo, pois normalmente não os respeita como grupo. Os meios de comunicação no Brasil se 2 constituem como reprodutores e legitimadores de estereótipos que reforçam a inferioridade do pobre, e especialmente, o negro pobre. Constatamos que no processo de construção de identidade, os mídia têm, quase esmagadoramente, papel negativo. A mídia seria “perversa”, porque não os mostra. Os fazem sentir-se negados, ignorados, ao que respondem radicalizando. Uma frase do vocalista Gomez, da banda soteropolitana Elemento X é representativa: “quando eu não me vejo na televisão, não vejo negros, só vejo gente dizer que na favela só tem ladrão... isso também é violência.” Na radicalização é que alguns “esquecem” os outros papéis que a mídia efetivamente têm para eles, incluindo-se aí fonte de informação para construção de Raps, divulgação de shows e eventos. E ainda, acesso ao acervo visual e musical dos grupos de Rap estrangeiros – a MTV e o cinema são os maiores responsáveis por isso no Brasil – e veiculação de informações novas e tendências do Hip-Hop e do Rap. Cenário de decadência urbana: o berço do Hip-Hop “Esse lugar é um pesadelo periférico / Fica no pico numérico da população. De dia a pivetada a caminho da escola / Enquanto a noite os mano decola na farinha... Na pedra... usando droga de monte...” (Edy Rock) Transporte precário, moradias em condições ruins – risco de desabamento, falta de saneamento, bairros inseguros, superpovoados, desassistidos pelos governos, com moradores com pouco ou nenhum acesso à saúde e educação de qualidade, miséria. Sem a atenção dos governantes essas populações ficam entregues aos “donos da favela”: policiais violentos, traficantes, ladrões. Os meninos servem como “aviões”, as meninas se expõem a prostituição ou experimentam a gravidez precoce. Além de tudo, compõem o quadro fatores étnicos que envolvem a locação dessas pessoas em áreas pouco privilegiadas da cidade. De forma evidente, além de pobres, formam um grande contigente não-branco, acirrando a tensão e a insatisfação nesses meios, decorrentes dos conflitos de identidade. O contexto urbano acima, embora nos pareça dolorosamente familiar, não é uma descrição da Região Metropolitana do Salvador ou de qualquer grande cidade brasileira dos anos 90. É do Bronx, bairro de Nova York – EUA, no final dos anos 60. Sobre isso, comenta Tricia Rose: Importantes mudanças pós-industriais na economia, como o acesso à moradia, a demografia e as redes de comunicação, foram cruciais para a formação das condições que alimentaram a cultura híbrida e o teor sócio- 3 político das canções e músicas do Hip-Hop.1 Os guetos da Nova York dos anos 60/70 foram o local do surgimento de contingentes juvenis não-brancos reunindo-se para falar, cantar, desenhar e dançar suas criações a partir dos resíduos tecnológicos da cidade e de suas experiências de vida. O espaço de reunião era a rua. Daí também falar-se em “cultura de rua” sobre o acervo do Hip-Hop. Os elementos do Hip-Hop e um breve histórico Por isso o Black Power continua vivo, só que de um jeito bem mais ofensivo, seja dançando Break, ou um DJ no scratch, mesmo fazendo Graffite, ou cantando Rap. ( Thaíde e DJ Hum ) Com tinta e spray, alguns desenhavam os contornos de seu mundo, reproduzindo imagens que não eram alcançado ou privilegiado pelos mass media: o Graffite. Com os próprios corpos, outros construíam e desconstruíam, a partir da dança, a conexão e ruptura com um mundo de alta tecnologia. Os movimentos dos Breakers lembravam os robôs, ou eram a mímica automatizada de procedimentos do cotidiano, sendo a um só tempo crítica e relato: o Break. Com voz e bases sonoras, gestavam uma narrativa influenciada pela memória recente dos grandes líderes afro americanos assassinados nos anos 60, Malcom X e Martin Luther King, suas lutas pela auto-estima e igualdade: o Rap. No final dos anos 60, o jamaicano Kool Herc introduziu o canto-falado da Jamaica nos bailes da periferia de Nova York. Este novo estilo foi organizado por um DJ2 afroamericano, Afrika Baambataa. Um dos primeiros discípulos deles foi Grand Master Flash, inventor do scratch3. Os MC’s (Mestres de Cerimônia) e os Rappers, construíam discursos indignados, raivosos, grávidos de referências a conflitos raciais e sociais. Eram vozes herdeiras da radicalidade dos Black Panthers, que juntando-se a bases sonoras dançantes e efeitos como o scratch criaram a terceira forma de expressão, o mais contundente e representativo elemento do Hip-Hop: o RAP – Rythm and Poetry. Ritmo e Poesia. Sobre o papel do Rap, fala Elaine Nunes Andrade: 1 - ROSE, Tricia. “Um estilo que ninguém segura”. Trad.: Valéria Lamego. In: Abalando os Anos 90. Herschmann, Micael (Org.) Coleção Artemídia. Rio de Janeiro, Ed. Rocco, 1997. 2 - DJ - Disk-Jockey, a pessoa que comanda os equipamentos de som, cria a melodia do rap. 4 Na realidade, era comum entre os jovens dos guetos daquela época dançar o Break e grafitar (pintar muros e paredes), mas foi com a introdução da música Rap que se fundiam os três elementos artísticos, fundando o Hip-Hop. A partir dessa junção, tanto a o Break como o Graffite passaram a ter também um sentido, um objetivo, um significado. Cerca de dez anos após sua fundação, o Hip-Hop chega ao Brasil. O Hip-Hop chegou primeiro a São Paulo, onde foi adotado como estilo de vida por milhares de jovens da periferia. Havia poucas mulheres, principalmente por ser uma cultura de rua, onde historicamente as mulheres não costumavam circular. Os mesmos jovens que freqüentavam os bailes de black music, ouviam James Brown e usavam o penteado black power, começavam a ter contato com a batida Funk, o Break e o Rap, surgindo assim os primeiros Hip-Hoppers brasileiros. Reunindo-se nos finais de semana na Estação São Bento (metrô), aqueles jovens pobres vindos dos lugares mais distantes e menos favorecidos da cidade se encontravam. Durante a semana eram subempregados, camelôs, office-boys, feirantes, vendedores. Ali eram artistas de rua, dançavam Break, conversavam, ouviam Raps e consumiam todo material midiático relativo ao movimento. Posteriormente, em 1989, fundaram o MH2O – Movimento Hip-Hop Organizado que criou uma divisão em dois grupos: as gangues de Break e as posses. As posses são grupos de encontro que congregam Rappers, Graffiteiros e Breakers de uma mesma região. Eles trabalhavam juntos em atividades artísticas, de ação comunitária, de formação política. Colaboravam uns com os outros para: aperfeiçoar a atuação dos grupos através da troca de experiências e informações; atuar em seus próprios bairros através de shows e de cooptação de jovens envolvidos com drogas e o crime para o trabalho no movimento, levando-os a abandonar o vício. Também participavam de eventos promovidos por entidades de movimentos negros, sindicatos, partidos políticos, palestras e apresentações teatrais. Essa estrutura das posses sobrevive ainda hoje, sendo reproduzida por Hip-Hoppers de outros estados, como é o caso do Movimento Hip-Hop Bahia que, através da posse ORI (cabeça, inteligência em yorubá), realiza algumas dessas atividades, além de visitas a comunidades, atuações em eventos ligados à luta pelos Direitos Humanos, oficinas internas (uma delas trouxe a Salvador, em outubro de 1998, o DJ dos Racionais MC’s, KLJay), palestras de formação interna, entre outras atividades. Os shows beneficentes 3 - Uso da agulha sobre o disco de vinil no sentido contrário ao usual – efeito usado até hoje pelos DJ’s 5 são a contribuição dos Rappers que melhor expressa sua identidade. Exibem-se para comunidades carentes, nas ruas, em passeatas, mostrando a dança e a fala que construíram juntos. A reapropriação de valores globais a partir da experiência local é o que permite a empatia imediata dos autores com o público. Pouco escolarizados, mas articulados, estes jovens ingerem o lixo urbano e devolvem sementes de revolução e transformações individuais e coletivas através dos versos “violentamente pacíficos”, mostrando “o que a novela não diz”. Como se constrói a identidade Hip-Hopper ? Tentaremos, nesta parte do texto, analisar o papel do Movimento Hip-Hop na configuração de valores e comportamentos para um grupo de negros e mestiços da periferia urbana do Brasil, neste fim de milênio, além de apontar diferenciações entre o Funk e Hip-Hop enquanto expressões socioculturais contemporâneas. Para Tricia Rose4, o Hip-Hop se configurou, na sua base, enquanto uma reformulação de identidades culturais e de expressões do povo negro e hispânico, num espaço urbano hostil, tecnologicamente sofisticado e multiétnico. Basicamente da mesma forma, este movimento migrou para diversas partes do mundo, enquanto conseqüência do processo de globalização e influência do avanço das tecnologias comunicacionais. O papel dos mass media neste processo é contraditoriamente importante: ao mesmo tempo que informa populações locais sobre mercadorias, estilos de vida, símbolos e culturas remotas, eles também intensificam o sentimento de privações (SANSONE, 1995). Uma relação de perdas e desejos ( de consumo ) que vão instituir laços de comunicação entre as comunidades urbanas, na chamada diáspora negra. “São os papéis subalternos, submissos, estereotipados que o negro assume na televisão”5, diz a Vice-governadora do Rio de Janeiro, Benedita da Silva, sobre a imagem do negro na mídia. É importante destacar aqui a legitimidade dada pelos mass media, na maioria das vezes, aos preconceitos e estereótipos já referidos, contribuindo de forma decisiva na permanência do status quo do negro na sociedade. A questão da imagem do negro brasileiro veiculada normalmente pela mídia é pauta para outro trabalho, mesmo assim, é fundamental relembrar que esta imagem tem sido revestida por um filtro racista que renega ao negro um reflexo no espelho social6. do mundo inteiro. 4 - ROSE, Tricia. Op. cit. 5 - Entrevista concedida a Revista Comunicação e Etnias da USP. - Aqui fazemos referência a Teoria do “Vampiro” desenvolvida por Muniz Sodré, sobre a imagem do negro na sociedade brasileira. 6 6 Paralelo a isto, os mídias têm cumprido com um papel fundamental: divulgar informações e difundir valores, ideologias, estilos musicais, etc., em última análise, possibilitar o surgimento de novas identidades culturais. Apesar de mal vista pela maioria dos Hip-Hoppers ( pois esta pode desconstruir ou diluir os discursos “nãooficiais” a sua revelia ), a mídia é a grande fonte de informação dessa “tribo” e, bem ou mal, acaba difundindo a cultura Hip-Hop pelo mundo. Ao mesmo tempo, para compreender este processo, faz-se necessário traçar um elo que conjugue tanto elementos de uma identidade étnica negra, em construção, quanto aqueles proporcionados pelo Hip-Hop, no convívio e partilha de sentidos, pelo grupo, e na busca de uma identidade sociocultural. Para tanto, tomaremos como base o trabalho de Conceição Corrêa das Chagas, Negro: uma identidade em construção, que foi sua dissertação de mestrado na área de psicologia social. Em linhas gerais, a tese de Conceição Corrêa busca traçar um perfil da identidade atribuída pelo branco ( ou classe dominante ) ao negro, destacando sua condição de diferente – visto como algo negativo, enfatizando inferioridade e preconceitos. Ao mesmo tempo que propõe a construção de uma outra identidade, centrada em valores positivos da cultura e do povo negro – papel este desempenhado, atualmente, por movimentos juvenis como o Hip-Hop. Corrêa está, a todo tempo, buscando – através de histórias vividas por ela mesma, enquanto mulher negra, ou de relatos de outros negros – compreender e definir os mecanismos psicossociais que ressaltam o modelo negativo para o negro, enquanto exaltam as qualidades e possibilidades de ascensão do branco. “O eu do negro, despido de bom nível de auto-estima, é fragmentado na dicotomia branco-negro, prevalecendo a negação da negritude”7. A criação de estereótipos – que “servem essencialmente como armas na luta pelo poder constantemente alimentadas na sociedade”8 – , através das categorizações, é o maior entrave para a mudança da auto-imagem do negro. A autora ressalta que, muitas vezes, os próprios negros acabam reforçando tais preconceitos inconscientemente. Alguns estereótipos, mais comuns, associados ao negro e relatados neste trabalho são: preguiçoso, alcoólatra, acéfalo, assalariado, pobre, sem espírito de luta, exibicionista, que gosta de confusão, ajuntamento, etc. A redução do grupo negro a todas as condições de indignidade e nãocidadania culmina com uma conseqüência terrível para esta etnia (sic): o negro 5 - CHAGAS, Conceição Côrrea das. Negro: uma identidade em construção.- dificuldades e possibilidades. P-.20. Petrópolis, Ed. Vozes, 1997. 8 - Idem. 7 acaba assumindo-se como responsável e causa de tudo que lhe é atribuído pela sociedade; ao assumir a inferioridade responsabiliza-se pelo tratamento desigual.9 Notamos que muitos desses estereótipos aparecem em letras de Rap, como forma de alertar o homem negro para um círculo vicioso que o restringe a determinado status ou perfil socio-cultural. “Alcoolismo, vingança, treta, malandragem/ Mãe angustiada, filho problemático/Famílias destruídas, fins de semana trágicos” ( Racionais MC’s ). Corrêa, citando Goffman, considera a construção de identidade por três dimensões interdependentes: a identidade social – categorias e os atributos que os outros conferem ao indivíduo; identidade pessoal – os dados e os itens biográficos; identidade do eu – as concepções e sentimentos que o indivíduo adquire em relação a si. Desta forma, o papel de construção de uma identidade da raça negra, passa necessariamente pela autovalorização do indivíduo negro, resgatando a integridade deste povo (desconstruindo preconceitos e estereótipos sociais ), não importando essencialmente a desvalorização do grupo branco. Neste contexto, destacamos o papel imprescindível do Movimento Hip-Hop, enquanto aglutinador e núcleo de valorização do povo de origem negra e mestiça. Assim como outros movimentos ( como o Funk ) e grupos étnicos, o Hip-Hop proporciona um “sentimento de pertença”. Corrêa ressalta o fato de que, na descoberta de uma identidade de grupo ( no caso, negra ), exercer um papel qualificado como positivo e essencial, num grupo, faz com que as pessoas comecem a perceber sua importância individual e social. “(...) Um exemplo muito ruim pros moleque. Pra começar é rapidinho e não tem breque” ( Racionais MC’s ). Neste trecho de um Rap do Racionais MC’s o modelo negativo é tido como ameaça à formação da personalidade das crianças da periferia. Os modelos positivos, por sua vez, são essenciais neste processo, pois elevam a auto-estima do grupo. Há uma ligação entre o Hip-Hop e as entidades do Movimento negro no Brasil, que merece ser ressaltada. Em Salvador, por exemplo, através da UNEGRO (União de Negros pela Igualdade), os jovens podem ter acesso a um instrumental teórico e organizacional. Este material otimiza tanto a criação – através do acesso a informações, como o engajamento político, além da reprodução de estratégias de consolidação e expansão dos ideais do Movimento Hip-Hop, principalmente o combate ao racismo. Elaine Nunes Andrade faz um rápido histórico da resistência negra no Brasil. Para ela o 9 -Ibidem. 8 primeiro momento de luta e resistência do povo negro seria o quilombo e a religião; o segundo, a abolição; o terceiro, a formação da Frente Negra Brasileira, na década de 30; o quarto seria a partir daí até o fim da ditadura. O Hip-Hop é o quinto, através da armaprotesto Rap. Para os que podem considerar esta afirmação banal, se posiciona a autora: O Rap tem modificado a consciência e o comportamento dos diversos jovens negros, que aprenderam a trabalhar sua auto-estima, reconheceram o valor da escolarização e ainda conseguiram fugir do mundo da violência e das drogas.10 Além disso, como veremos adiante, o Rap se constitui num construtor de narrativa que permite romper com o padrão de fala do dominante. Esse processo, aliado à convivência em grupo nas posses, acaba por servir como instrumento de identificação. Dessa forma, através do uso seletivo dos mídia, da vivência em grupo e da militância, tendo o Rap como condutor e formador do imaginário, é que se constrói a identidade Hip-Hopper. Funk e Hip-Hop – movimentos distintos As minhas raízes são passos de dança. Quando ouço um funk, nunca perco as esperanças. Dentro do salão não penso duas vezes, eu danço com emoção e durante vários meses, eu danço com raiva...” ( trecho da música Dance, do Skowa e Tadeu Eliezer) Para compreendermos melhor como se dá a formação desta identidade de tribos contemporâneas, tomaremos como contrapartida o movimento Funk, cuja maior expressão, no Brasil, encontra-se no estado do Rio de Janeiro. Partindo dos artigos de Suylan Midlej e Silva e George Yúdice, podemos apontar diferenças importantes entre os dois movimentos igualmente urbanos e atuais. Segundo Midlej, a identidade construída a partir do Funk, no Brasil, é muito mais flexível e com características voltadas para a partilha de momentos e valores específicos, principalmente o de “estar junto à toa”, sem uma proposta de mudança social, como no Hip-Hop. Yúdice afirma que a cultura do funkeiro, desde a década de 70 até hoje, rejeitou a promessa de civilidade apresentada por intelectuais e políticos e até mesmo pelo movimento negro. A cultura do funkeiro, portanto, é compreendida enquanto uma forma de resistência à “cultura oficial e dominante”, apesar de não propor 10 - ANDRADE, Elaine Nunes. “Do movimento negro juvenil a uma proposta multicultural de ensino: reflexões”. In: Educação e os afrobrasileiros: trajetórias, identidades e alternativas. Coleção Novos Toques. Salvador, Programa A Cor da Bahia, 1997. 9 nenhuma inserção social mais ofensiva. Enquanto marcas da cultura Funk temos a música, a princípio, sem valor comercial para a indústria fonográfica, pois é praticamente uma pirataria eletrônica ( lotadas de samples); os bailes ( festas dançantes regulares e espaço de encontro dos funkeiros ), que ocupam normalmente quadras de escolas de samba e clubes de futebol. Apesar disto, este movimento não dialoga diretamente com estes símbolos nacionais, pois no Funk, “o sampleado se opõe a qualquer identidade nacional fixa”11. As danças “dionisíacas”, além de um visual característico da indústria da moda jovem, são também características da cultura Funk. Uma marca desses movimentos contemporâneos é, justamente, sua total inserção no sistema capitalista em que o poder de consumo aparece enquanto expressão cultural. Podemos, então, resumida e superficialmente, definir a identidade Funk como algo mais flexível que dialoga com espaços sociais bem definidos e não reivindica uma auto-afirmação cultural ou política. (...) é importante para o ‘funkeiro’ ser visto como tal, através de vestimentas, indumentárias e corte de cabelo, mas, muitas vezes, isso só interessa em determinados contextos, como no bairro ou em alguma festa ou evento.12 Apesar da aproximação musical do Rap com o Funk – bases eletrônicas, samples, influência da música negra norte-americana – no Hip-Hop, a música ( especialmente a letra, poesia ) é ressaltada como veículo de informação e denúncia, enquanto que no Funk destaca-se a batida, a base rítmica. Apesar de serem resultados, basicamente, do mesmo processo, o Hip-Hop se distancia do Funk, na medida em que propõe uma inserção social muito mais radical e revolucionária, através de ações sociais de protesto e construção, além do questionamento das estruturas vigentes. O Hip-Hop impulsiona o desenvolvimento de uma identidade jovem negra muito mais delimitada e alicerçada também em valores tradicionais, como a cultura negra africana. Este aspecto, por sua vez, pode ser questionável, por parecer incongruente numa cultura moderna, de base afro-americana, dialogar com o tradicionalismo da cultura afrobrasileira. Alguns definem este processo como o neocolonialismo cultural, devido ao uso de valores norte-americanos, marcados pelo neo-liberalismo econômico. 11 - YÚDICE, George. “A funkificação do Rio”. Trad. Valéria Lamego. In: Abalando os anos 90 – Funk e Hip Hop. HERSCHMANN, Micael (Org.) Coleção Artemídia. Rio de Janeiro, Ed. Rocco, 1997. 12 - SILVA, Suylan Midlej. “Sociabilidade Contemporânea, Comunicação Midiática e Etnicidade no Funk do Black Bahia”. In: O Sentido e a Época. Salvador, UFBA, 1995. 10 Sobre isto, podemos salientar que, embora exalte modelos e valores norte-americanos, fruto também do processo de globalização, e não de homogeneização, a cultura HipHop continua apresentando características locais. Muitas bandas de Rap têm utilizado elementos musicais tipicamente brasileiros em sua bases, além das letras serem inteiramente resultado de experiências locais e refletirem, com muito mais propriedade, a realidade brasileira, como analisaremos a seguir. O Rap enquanto narrativa Amanheceu com sol, dois de outubro / Tudo funcionando, limpeza, jumbo. De madrugada eu sinto um calafrio / Não era do vento, não era do frio. Acertos de conta tem quase todo dia / Ia ter outra logo mais, eu sabia. ( “Diário de um detento” – Racionais MC’s ) O texto acima é um pequeno trecho de um Rap, mas poderia ser facilmente confundido com uma história qualquer contada em um romance policial. O que proporemos aqui será uma análise do Rap enquanto narrativa, construção ficcional que exprime diversos elementos expressivos, conativos, poéticos, além de apresentar também personagens, tempo e espaço de ação. Além disso, tentaremos fazer uma relação entre a análise de Edward W. Said sobre a importância da narrativa na construção da História oficial e das pequenas histórias ocultas ( ou semi-ocultas ) nas sociedades ocidentais e o Rap como meio, veículo de informação e difusão de uma realidade específica. (...) as histórias estão no cerne daquilo que dizem os exploradores e os romancistas acerca das regiões estranhas do mundo; elas também se tornam o método usado pelos povos colonizados para afirmar sua identidade e a existência de uma história própria deles.13 Existem diversas histórias que são simplesmente ocultadas, por um ou outro motivo, da História oficial. Parece bastante plausível dizer que o Rap, enquanto uma narrativa dos excluídos, dos subalternos, repletos de signos e linguagem própria (gírias, expressões típicas da periferia urbana), potencialmente é um relato histórico, construído por seus próprios atores, na ótica de quem (sobre)vive neste espaço. “Muita pobreza, estoura violência! Nossa raça está morrendo, não me diga que está tudo bem!”. Trecho de Rap dos Racionais MC’s contra o discurso, em sua maioria, midiático 13 - SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 1992. 11 que procura amenizar a realidade social e a crescente violência no Brasil. Segundo os estudos de Said, não seria possível que todos os membros de uma comunidade relatassem seus testemunhos, não seria possível escutar a voz de todos. Mas, seria, então, viável pensar na voz de um todo? Que, de fato, fale por muitos? A proposta do Rap, digamos engajado ( sem nenhuma crítica valorativa ), é justamente esta, a de congregar vozes, cada vez mais fortes e ruidosas e de expressar-se em nome de sua comunidade, da chamada “quebrada”. (...) os Hip-Hoppers têm uma localização territorial mais forte, a área, e isso traz um laço maior com a comunidade, é a cultura da rua no bairro, o que encerra um grande poder de transformação para a própria comunidade.14 O Rap, portanto, deve ser considerado, pelas elites, uma voz perturbadora da ordem social e política, além de arma para insuflar uma revolta popular, ou outros comportamentos que estejam fora do contexto de normalidade social vigente. “Eu não sou artista. Artista faz arte, eu faço arma. Sou terrorista” ( Mano Brown ). Por outro lado, esse discurso pode ser ignorado por essas elites se avaliado como ingênuo, panfletário e sem grande força de agregação. Alguns, que se sentem – ao menos uma vez - excluídos do discurso, dizem que as letras são repetitivas, incompreensíveis e banais. “Algumas histórias da periferia parecem ficção, tamanha a carga de crueldade”15. O Rap, enquanto expressão artística e comunicacional de um grupo, dotada de narratividade, estaria escrevendo uma outra história ( que parece, a priori, inacreditável e incomum aos brasileiros, segundo os jornalistas ). Embora os mídia busquem publicizar algumas das questões abordadas nos Raps ( de forma, muitas vezes, sensacionalista ), esta fala é dotada de interesses, na maioria das vezes, se não em todas, das empresas jornalísticas e dos grupos socialmente privilegiados. Os Rappers, por sua vez, falam em nome de si ( como membro da comunidade ) e dos seus “manos”. Seria então um novo jornalismo, tomando seu significado teórico, o de construtor de realidade? O grupo de Rap Sistema Negro chega a associar, assim como o grupo baiano Simples Rap’ortagem, seu trabalho com o jornalismo. Os Rappers do Sistema Negro denominam-se “repórteres do jornal da vida”, enquanto os baianos utilizam-se de entrevistas, realizadas nas comunidades em que vivem ou visitam, como material para 14 15 - ANDRADE, Elaine. Op. cit. - “O mundo dos manos”. In: Revista Isto É, do dia 21/10/98. 12 suas letras. As fontes desses músicos são seus próprios vizinhos e amigos, depoimentos e experiências do cotidiano. Aqui não vejo nenhum clube poliesportivo/ Pra molecada freqüentar, nenhum incentivo/ O investimento no lazer é muito escasso/ O Centro Comunitário é um fracasso/ Mas aí se quiser se destruir está no lugar certo/ Tem bebida e cocaína sempre por perto. ( trecho de Periferia é Periferia de Racionais MC’s ) É necessário ressaltar que o papel do jornalismo nas sociedades modernas é, antes de tudo, documentar, relatar, informar às pessoas de fatos notavelmente relevantes para suas vidas e da sociedade. A associação do Rap com o jornalismo, que – em boa medida – é também uma narrativa, embora, a priori, não-ficcional, não parece forçoso, no sentido de tornar público acontecimentos da realidade de uma parcela da população. Convém apresentar o papel do Rap como meio de formar e informar nas escolas da periferia de S. Paulo, com o Projeto “Rap nas Escolas - Rap...pensando a Educação”, da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. O trabalho de Elaine Nunes de Andrade esclarece sobre este assunto. Segundo Nunes: A ação ( dos Rappers ) caracteriza-se pelos pactos realizados com movimentos negros devido à busca de informações sobre a questão do negro, já a criação era fundamentada pela elaboração de músicas que pelo seu conteúdo crítico foram em muitas ocasiões incorporadas à didática em sala de aula ou às atividades extracurriculares em determinadas escolas. Tricia Rose comenta sobre o trabalho artístico do Hip-Hop que é constituído por estratificações e rupturas ( tal como a dança Break que envolve movimentos bruscos e, aparentemente, descompassados ). (...) eles criam e sustentam um movimento rítmico de continuidade e circulação através do fluxo; que eles acumulam, reforçam e embelezam essa continuidade através da estratificação; e driblam as ameaças a essas narrativas ao construir rupturas que realçam a continuidade, desafiando as narrativas a todo instante.16 Do mesmo modo que desejam fazer rupturas em seus discursos, os Rappers, e o HipHopper de maneira geral, planejam, almejam uma ruptura maior, uma ruptura social. 16 - ROSE, Tricia. Op. cit. 13 Mas, ainda assim, tentando romper com estruturas hierárquicas rígidas, sabe-se que esses jovens ainda são uma espécie de parte integrante e funcional deste mesmo sistema. O cinema, assim como o Rap – tomando as devidas proporções – é um veículo discursivo altamente poderoso na nossa época e de forte inserção na sociedade como um todo. Quando Gilles Deleuze está estudando o cinema latino e africano, ele observa um aspecto singular da sétima arte nestes espaços, que é a fala. Assim como a música Rap, essa fábula ( latina e africana ) é marcada pela narrativa oral, pelo ato de fala e por uma busca de preenchimento. Para Deleuze: A fabulação não é um mito impessoal, mas também não é ficção pessoal: é uma palavra em ato, um ato de fala pelo qual a personagem nunca pára de atravessar a fronteira que separa seu assunto privado da política, e produz, ele próprio, enunciados coletivos.17. O autor, através da idéia de fabulação, propõe que este tipo de narrativa constituiria a base para a fala viva ( real ), garantindo liberdade e circulação, dando-lhe valor de enunciado. Tal característica no cinema pode ser pensado como uma forma de expressão além imagens, sons e palavras, mas uma manifestação que comunica algo expressivo desses povos: a falta. Passando para nosso objeto de estudo, os Rappers estariam legitimando, através de seus personagens, suas falas, sendo eles – em boa medida – também alguns desses personagens. Mas, a fala em Deleuze apresenta ainda um outro aspecto fundamental para nossa análise. Segundo o autor, a fala substitui algo que falta. “É por aí que o cinema do Terceiro Mundo é um cinema de minorias, pois o povo só existe enquanto minoria, por isso falta”18. No tocante ao Rap, sua performance, seu ato, poderíamos dizer que esta necessidade da fala estaria substituindo, não só a ausência de imagem positiva, pensemos também que não há espaço legítimo nos mídias para estas pessoas, seus espaços são restritos ao gueto da sociedade; mas também preenche a falta de alimento, contra a fome; de justiça, contra a violência; de educação, contra a ignorância e alienação; de auto-estima, contra o preconceito; de dignidade, contra a opressão; enfim de inúmeros valores sociais que lhes são caros e negados a todo momento. Uma criança chorando e eu com o revolver na mão. Era um quadro do terror, e eu que fui o autor. Agora é tarde, eu já não podia mais / Parar com tudo, nem tentar voltar atrás. 17 18 - DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. Ed. Brasiliense, 1990. P-264. - Idem. 14 Mas no fundo, mano, eu sabia. / Que essa porra ia zoar a minha vida um dia. Me olhei no espelho e não me reconheci. ( “Tô ouvindo alguém me chamar” – Racionais MC’s ) O fim do baile Os Rappers nacionais se colocam como relatores de um Brasil fortemente desigual, com instâncias rígidas, com poucas possibilidades de intercâmbio e mobilidade, em contraponto a imagem de “país libertário e malandro”. Denunciam “as chacinas e homicídios”, colocam no imaginário nacional “as milhares de casas amontoadas”, dão visibilidade à área em que “enquanto a molecada está a caminho da escola, os manos decolam na pedra, na farinha, usando droga de monte”. Toda essa prática consciente é guiada pela insatisfação destes jovens que têm na arte um instrumento de reivindicação. Investem-se, apesar da pouca idade e escolaridade, do papel sério de porta-vozes das periferias. A partir dessas reflexões, constatamos que as funções e ideais de um Hip-Hopper são alertar contra os mecanismos de discriminação presentes nos meios de comunicação, apontar os problemas sociais e as possíveis soluções, lutar para subverter os estereótipos que os limitam socialmente. Ainda que se preocupem em falar diretamente para os outros “manos”, e isso fica claro na linguagem escolhida, na forma de vestir e ter “atitude”, eles compreendem a necessidade do diálogo com outros segmentos sociais. A receptividade ao trabalho dos Rappers tem crescido muito em todo o mundo, e no Brasil, de forma expressiva em 1998. Talvez porque, mesmo os que não vivem na periferia, começam a perceber que se as diferenças não se amenizarem, será o “fim do baile” para muita gente. Estes jovens não tem ilusões, embora guardem grandes esperanças Acreditam que vão conseguir fazer “tudo mudar”, mas sabem que “é muito difícil”. Como diz o Rap “Em que mundo nós estamos?”, da banda baiana Elemento X: Mundo violento! / Onde a fome e a miséria reinam tranqüilamente (...) Irmão matando irmão / Será aqui o inferno? Este é o X da questão. 15 BIBLIOGRAFIA 1. ANDRADE, Elaine Nunes. “Do movimento negro juvenil a uma proposta multicultural de ensino: reflexões”. In: Educação e os afrobrasileiros: trajetórias, identidades e alternativas. Coleção Novos Toques. Salvador, Programa A Cor da Bahia, 1997 2. CHAGAS, Conceição Corrêa das. Negro: uma identidade em construção – dificuldades e possibilidades. Petrópolis, Ed. Vozes, 1997 3. DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. Ed.Brasiliense, 1990. 4. HERSCHMANN, Micael (Org). Abalando os anos 90. Coleção Artemídia. Rio de Janeiro, Ed. Rocco, 1997 5. Matéria: “O mundo dos manos”. In: Revista Isto É, 26/10/98 6. Revista Caros Amigos Especial. Número3, setembro/98. 7. SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. Tradução: Denise Bottman. S. Paulo, Ed. Companhia das Letras, 1992. 8. SANSONE, Lívio. “O local e o global na afro-Bahia contemporânea”. In: Revista Brasileira de Ciências. São Paulo, outubro de 1995. 9. SILVA, Suylan Midlej. “Sociabilidade contemporânea, comunicação midiática e etnicidade no funk do Black Bahia”. In: O sentido e a época. Salvador, UFBa, 1995 16