“Adaptação”
Resumo
É a “Adaptação” um fenómeno natural e contínuo, ou pelo contrário carece de
uma causa final que justifique a sua materialização? Muitos foram aqueles que ao
longo da história se interrogaram acerca da génese deste mecanismo de evolução,
movimento perpétuo ou simplesmente força condutora, como lhe queiram chamar.
Acredita-se hoje que a “Adaptação” é um dos mecanismos primordiais e garante da
existência de vida na Terra. Contudo este conceito tem dimensões muito mais vastas e
podemos defini-lo genericamente como sendo um mecanismo que numa distribuição de
indivíduos, estados ou conceitos favorece aqueles(as) que maior vantagem tiram das
condições do meio num dado enquadramento espaço-temporal, sejam elas energéticas,
económicas, ou outras. Compreende-se então que este processo esteja na essência da
matriz genética da vida, mas também na dinâmica de mercados financeiros, ou nos
desenvolvimentos sócio-culturais, ou até mesmo nos movimentos civilizacionais que
têm marcado a História ao longo dos tempos. Um processo adaptativo pressupõe então
uma “dicotomia” entre indivíduos ou estados com algum grau de correlação entre eles
e sujeitos a uma pressão evolutiva, independentemente da sua direcção, intensidade
ou consciência. Os actos comportamentais ou as respostas a estímulos físico-químicos
são também disso um bom exemplo. A adaptação está por isso não só intrinsecamente
ligada à nossa condição de seres vivos, mas também intimamente ligada à nossa
dimensão intelectual e espiritual.
Vila Real, 07 de Novembro 2010
Ricardo J. F. Branco, Ph.D.
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Multiplas dimensões do conceito “Adaptação”
O debate suscitado em torno do conceito de “Adaptação” nas suas múltiplas
dimensões e assumpções etimológicas, no âmbito do seminário Mateus.doc, organizado
pelo Instituto Internacional Casa de Mateus, apela-nos ao seu enquadramento prévio
tendo por base a linha de pensamento defendida neste artigo. Pretende o autor
demonstrar que embora o conceito de “Adaptação” seja inevitavelmente associado à sua
definição Darwiniana aplicada à teoria da evolução das espécies em biologia, a sua
génese radica em pressupostos comuns a muitos outros domínios como seja a sociologia
ou a economia e segundo os quais podemos compreender melhor a evolução de certos
fenómenos.
Começaria então por definir “Adaptação” como sendo um mecanismo
intrinsecamente ligado ao processo evolutivo e que caracteriza o estado de um indivíduo
face ao referencial espaço-temporal que lhe está associado. Isto é, a evolução pressupõe
a existência de um desfasamento na dicotomia recursos-competências entre o referencial
e o indivíduo, do qual resultará uma maior ou menor limitação à eficiência do sistema
dependendo da dimensão desse desfasamento. Como se de um potencial ou força motriz
se tratasse. Ou seja, a sobrevivência dos melhor adaptados ás circunstâncias do meio em
detrimento dos menos adaptados. Assim, é de esperar que uma dada população de
indivíduos assuma uma distribuição gaussiana das suas competências centrada na
distribuição de oportunidades e recursos disponíveis. A rentabilização destes recursos
será tanto maior quanto maior for a sobreposição entre os recursos e as competências
para os rentabilizar, ou seja na medida da adaptação do indivíduo ao seu referencial. Um
processo evolutivo, como seja a da selecção natural, procura assim re-centrar a
distribuição de indivíduos em torno do valor médio definido pelo referencial
correspondente. Quando assim acontece dizemos que o processo de adaptação permitiu
aumentar a eficiência global do sistema face ao estado anterior. Numa situação
hipotética em que o referencial ficasse estático, ou seja sem manifestar qualquer
alteração das variáveis que interfere com a indivíduo, teria como consequência directa a
anulação gradual da pressão evolutiva e consequentemente o congelamento do processo
adaptativo. Contudo os referenciais reais são regra geral dinâmicos e caracterizados pela
permanente troca de fluxos energéticos. Uma segunda situação extrema seria alterar de
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forma drástica as características do referencial impedindo que o indivíduo tenha
oportunidade para se adaptar de forma a assegurar a sua sobrevivência. Neste caso o
mais provável seria a extinção de uma dada população de indivíduos por inadaptação do
seu perfil de competências face à nova diversidade de recursos disponíveis. É isto que
hoje se pensa ter acontecido com a extinção dos dinossauros na Terra.[1] Contudo, estes
mecanismos de adaptação são essencialmente de natureza estocástica e por isso
independentes da dinâmica ou sentido da evolução no tempo do referencial.
Mas então como podemos medir o grau de adaptação de um indivíduo num dado
momento? O processo de adaptação embora não seja determinístico, isto é, determinado
evento per si determinar a resposta do indivíduo ao estímulo do meio, ele tende a seguir
o sentido do referencial. Este é por isso um processo contínuo, inacabado e sem causa
final, que se manifesta a diferentes escalas de análise, como sejam nas relação entre as
partículas sub-atómicas, na evolução dos sistemas biológicos, ou nos modelos de
organização que os caracterizam. Em todos estes níveis podemos encontrar bons
exemplos que demonstram a universalidade e transversalidade do conceito “adaptação”
que pretendo evidenciar.
1. Dimensão científica na matriz genética da vida
O exemplo mais comum de adaptação é o da adaptação biológica de todos os
seres vivos ao meio ambiente terrestre. Antes de mais, seria interessante começar por
levantar a questão sobre o porquê da existência de vida na Terra. No entanto, talvez faça
mais sentido aprofundar esta questão na abordagem metafísica que se seguirá.
Fez recentemente 150 anos da publicação de uma das obras basilares da ciência
moderna “A Origem das Espécies” de Charles R. Darwin,[2] a qual sustentava a
transmutação das essências constitutivas de cada espécie por meio da “selecção
natural”, por oposição à teoria criacionista dominante na época. Segundo esta nova
teoria, a evolução teria ocorrido a partir de um ancestral comum a todas as espécies,
cujas sucessivas descendências se foram progressivamente diversificando na “árvore da
vida” tal como a conhecemos hoje. Embora o novo paradigma proposto por Darwin
assentasse numa observação macroscópica de milhares de formações geológicas, fósseis
e organismos vivos, ele não vislumbrava o mecanismo molecular que lhe estava
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subjacente. Só com a descoberta da estrutura da dupla hélice do ADN por James
Watson e Francis Crick[3] foi possível compreender, quase um século depois, o real
significado da expressão “selecção natural” introduzida por Darwin, bem como entender
o conceito de evolução das espécies a uma escala molecular. O mesmo é dizer que a
evolução de um determinado fenótipo radica sempre na evolução do seu respectivo
genótipo e ambos traduzem, a diferentes escalas, processos complexos de adaptação do
indivíduo ao meio. Assim, podemos definir o estado de adaptação de um organismo
vivo, como sendo o resultado cumulativo de um vasto conjunto de pequenas
contribuições de adaptação dos seus elementos constitutivos. Um bom exemplo disso
são as diferentes velocidades de evolução molecular observadas para diferentes
proteínas de um dado indivíduo ou para a mesma proteína expressa em diferentes
espécies de organismos, fruto de diferentes pressões evolutivas exercidas pelo meio em
cada um deles, que concorrem no seu conjunto para um determinado estado de
adaptação global do organismo em relação ao seu meio. Quer isto dizer que quando
falamos de adaptação, estamos na realidade a falar do somatório de pequenas
contribuições a nível molecular, que durante um período de tempo variável podem terse revelado irrelevantes para o organismo, mas que a dada altura se revelaram
determinantes para a sua competitividade em relação aos demais competidores. Nesse
momento dizemos que houve evolução e se atingiu um patamar de estabilidade, o qual
confere uma melhor adaptação do organismo ao seu meio e será transmitido às gerações
futuras.
Também a Alquimia islâmica e ocidental antecipou a teoria evolucionista de
Darwin, ao ponto de no seu texto fundamental – Tábua de Esmeralda assumirem o
dogma da unicidade da matéria, “…Et sict omnes res fuerunt ab Uno…” em que todas
as coisas provêm do Uno.[4] A sua crença na transmutação da essência dos metais vis em
ouro e prata estava, uma vez mais, em confronto com a filosofia aristotélica dos quatro
princípios básicos da natureza, os quais, uma vez combinados poderiam gerar corpos
físicos mais complexos. Contudo o domínio das partículas carecia do atributo
reprodutivo, característico na evolução darwiniana dos organismos vivos, como
mecanismo de adaptação.
A
crescente
complexidade
dos
núcleos
atómicos
em
compostos
supramoleculares como sejam as cadeias poliméricas ou proteicas, pode igualmente ser
enquadrada num conceito lato de “selecção natural”, segundo o qual, prevalecem os
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compostos ou estruturas melhor adaptados e mais estáveis no meio onde são
sintetizadas. Neste caso a medida de adaptação traduz-se pela estabilidade
termodinâmica e estrutural do novo composto em relação ao que lhe deu origem. Um
bom exemplo de evolução molecular é o desenvolvimento de resistência aos
antibióticos beta-lactâmicos como sejam as penicilinas ou cefalosporinas, pelos enzimas
beta-lactamases, os quais são determinantes no combate às infecções bacterianas.[5]
Quer isto dizer, que podemos interferir indirectamente nos mecanismos de adaptação de
um determinado sistema biológico induzindo nele uma pressão evolutiva adicional.
2. Dimensão Metafísica
Voltando à questão sobre a existência da vida na Terra, podemos tecer as
seguintes considerações. Independentemente da formulação do instante inicial da
formação do Universo, certo é que a diversificação de estruturas moleculares que
precedeu o aparecimento de vida na Terra esteve sujeita a uma pressão evolutiva, a
partir das quais umas se tornaram dominantes e outras simplesmente desapareceram
dada a sua instabilidade termodinâmica e estrutural, naquela que foi designada por
Alexander Oparin como “sopa primordial”.[6] Este exemplo vem demonstrar uma vez
mais que o conceito de adaptação não é um mecanismo exclusivo de sistemas
biológicos, mas é igualmente válido quando falamos da evolução de estruturas
moleculares. Contudo, o debate em torno do mecanismo responsável pela transmutação
de uma estrutura molecular ou elemento químico noutro tem gerado controvérsia ao
longo dos séculos. Segundo o Estoicismo, fundado por Zenão de Cítio o mundo
corpóreo é governado pelo Logos ou razão universal que actua através de razões
seminais como parte intrínseca de toda a matéria e onde está contido o carácter do
mineral, animal ou planta.[7] Esta linha de pensamento organicista deu progressivamente
lugar à filosofia corpuscular mecanicista de René Descartes, apostado em descrever a
origem geológica da Terra. Na sua obra Principia Philosophiae, preconiza a existência
de vários graus de adaptação na génese e evolução de minerais no interior da crosta
terrestre.[8] Poderemos então concluir com base nesta corrente filosófica, que a selecção
natural irá actuar inevitavelmente sobre as interacções corpusculares mais fortes em
detrimento das mais fracas ou instáveis?
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3. Dimensão Sociológica – política, economia, cultural e teológica
Podemos agora fazer o exercício de tentar interpretar algumas das doutrinas
emblemáticas das ciências humanas, nomeadamente na sua expressão política,
económica, linguística e até mesmo teológica, à luz do conceito de adaptação como
propriedade intrínseca da matéria, como foi defendido anteriormente quer sejam em
minerais inorgânicos ou em sistemas biológicos.
Como primeiro exemplo pensemos na génese do projecto político de construção
de uma União Económica e Monetária Europeia. Nos seus princípios fundadores
encontramos referência à maior diversidade e acervo histórico de culturas, credos,
línguas, ciências, movimentos artísticos e religiosos alguma vez reunidos, contudo
encontramos também referência a uma Europa fragmentada por guerras fratricidas que
foram remetendo para segundo plano o seu papel primordial no mundo, face à
emergência de super-potências como os Estados Unidos da América e a Rússia, até ao
final da segunda Guerra Mundial. Assim, a “lei da sobrevivência” pela preservação dos
ideais universais saídos da revolução francesa, onde o Homem assume o estatuto de
cidadão a quem são conferidos os valores de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, a
manutenção da liderança cultural, económica e tecnológica, mas acima de tudo a
necessidade premente de assegurar a Paz entre os Estados, ditou que se evoluísse para
um modelo cooperativo inter-estados de que hoje somos parte integrante, com todos os
benefícios e condicionantes que isso possa comportar. Mas este processo de adaptação e
a solução de compromisso encontrada, tal como nos exemplos anteriores, corresponde
apenas a uma etapa do processo evolutivo em virtude da alteração permanente da
realidade económica e social.
Por último, o segundo exemplo a respeito da evolução dos mercados financeiros
numa economia globalizada, o qual vem, uma vez mais, reforçar a ideia de que os
princípios fundamentais da adaptação Darwiniana são transversais a muitos outros
domínios para além do biológico. Também na economia, enquanto ciência social,
podemos induzir pressões evolutivas não naturais ou de natureza meramente
especulativa, que em condições extremas podem conduzir os mercados a adoptarem
soluções que ponham em risco a sustentabilidade de todo o sistema financeiro e a
sobrevivência dos próprios mercados. Um bom exemplo disso foi o “crash” financeiro
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iniciado com a crise imobiliária nos Estados Unidos e que se propagou a toda a
economia mundial de forma avassaladora e que está a comprometer seriamente a
capacidade de adaptação de muitos estados e indivíduos.
Em suma, podemos concluir que a dicotomia entre as capacidades/necessidades
de uma dada população de indivíduos e os recursos oferecidos pelo referencial a que
pertencem, num dado contexto espaço-temporal, é uma das características fundamentais
do conceito de adaptação enquanto mecanismo de evolução, o qual não se confina a
uma dimensão estritamente biológica.
References:
[1] Officer, C. B. et al., Nature 1987, 326, 143-149.
[2] Darwin, C. R. (1859) “On the Origin of Species by Means of Natural Selection,
or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life”, London, John
Murray.
[3] Watson, J. D. and Crick F. H. C., Nature 1953, 171, 737-738.
[4] Holmyard, E. J., Nature 1923, 112, 525-526.
[5] Fisher, J. F., Chemical Reviews 2005, 105, 395-424.
[6] Oparin, A. I., (1952) “The Origin of Life” New York, Dover.
[7] Russell, B., (1972) “A History of Western Philosophy”, Simon & Schuster, Inc.
[8] Descartes, R., (1644) “Principia philosophiae”, Amsterdam.
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