Cartas de Agosto SHIS QI 5 Conjunto 2 Casa 2 CEP 71615-020 – Lago Sul – Brasília, DF Telefax: (61) 3365-4099/3365-5277/3365-5279 www.tvjoaomangabeira.com.br www.fjmangabeira.org.br DIRETORIA EXECUTIVA Diretor Geral: Carlos Siqueira Diretor de Assessoria: Marcos Rezende Villaça Nunes Diretora Administrativa: Carmen Soriano Puig CONSELHOR CURADOR Membros natos Governador Eduardo Henrique Accioly Campos Carlos Siqueira Membros eleitos pelo Diretório Nacional do PSB Deputada Luiza Erundina de Sousa Roberto Amaral Prefeito Serafim Fernandes Corrêa Kátia Born Ribeiro Mari Elisabeth Trindade Machado Antônio César Russi Callegari Diretor de Cursos: José Carlos Sabóia Diretor Financeiro: Renato Xavier Thiebaut Deputado Alexandre Aguiar Cardoso Ministro Sérgio Machado Resende Adilson Gomes da Silva Álvaro Cabral Carlos Eugênio Sarmento Coelho da Paz Silvânio Medeiros Suplentes Paulo Blanco Barroso Elaine Breintebach Paulo Bracarense Joe Carlo Vianna Valle Manoel Antônio Vieira Alexandre Membros eleitos pelo Conselho Curador Jaime Wallwitz Cardoso Dalvino Trocolli Franca James Lewis Gorman Jr. CONSELHO FISCAL Cacilda de Oliveira Chequer Auxiliadora Maria Pires Siqueira da Cunha Antônio Marlos Ferreira Duarte Suplentes Marcos José Mota Cerqueira Dalton Rosa Freitas Ficha catalográfica C 837c Cartas de Agosto – O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas. Coletânea de artigos. Evaldo Costa (Org.) – Fundação João Mangabeira : Brasília, DF, 2007. 21cm., 126p. 1. Política. 2. Artigos. I. Autor. II. Fundação João Mangabeira. III. Título. CDU 324 O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas Cartas de Agosto Evaldo Costa | Organizador 2007 Sumário Apresentação Evaldo Costa ........................................................................................................ 9 Arraes – Memória sem lágrimas e com afeto Aluízio Falcão .................................................................................................... 11 Adeus ao guerreiro do povo brasileiro Ângelo Castelo Branco.................................................................................... 19 Rosas vermelhas Arthur Carvalho.............................................................................................. 21 Arraes e a fraternidade dos inconformados Augusto Buonicore.......................................................................................... 23 Mito Bernardo Arraes Valença................................................................................ 31 Arraes, ao morrer, pede a palavra sobre a crise política Bernardo Joffily............................................................................................... 33 Arraes e o Brasil possível Chico Villela.................................................................................................... 37 Miguel Arraes, um forte Cleofas Reis......................................................................................................... 43 O “véio Arraia” e o livrinho Clóvis Rossi......................................................................................................... 45 Arraes taí Cristovam Buarque............................................................................................ 47 O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas Morreu Arraes?... Não, Arraes está vivo! Vive entre nós! Amparo Araújo............................................................................................... 17 Senado homenageia Miguel Arraes Dilze Teixeira...................................................................................................... 49 A modernidade em Miguel Arraes Eduardo Campos............................................................................................. 51 Arraes no Palácio do Povo Everardo Norões.............................................................................................. 53 Coerência política Fernando Antônio Gonçalves......................................................................... 55 Miguel Arraes Fernando Castilho........................................................................................... 57 Arraes e a importância de empreender lutas inglórias Gilliatt Falbo.................................................................................................... 61 Miguel Arraes e o sentimento do mundo Gonzaga Patriota............................................................................................ 63 Arraes, o imprescindível Inaldo Leitão................................................................................................... 65 Miguel Arraes Inaldo Leitão....................................................................................................... 67 Arraes, o amigo do povo Ítalo Rocha ......................................................................................................... 69 O símbolo Jânio de Freitas................................................................................................... 71 Evaldo Costa (Org.) Dr. Arraes, presente! José Áureo Bradley............................................................................................. 73 6 As duas vidas de Miguel Arraes de Alencar Luis Felipe de Alencastro................................................................................... 77 Miguel Arraes Manuel Correia de Andrade ............................................................................ 79 Um líder nordestino à moda antiga Maria Victoria Benevides.................................................................................. 83 Arraes Mauro Santayana............................................................................................... 89 Meu encontro com Arraes Michel Zaidan Filho........................................................................................... 91 Cartas de Agosto Um líder coerente Marisa Gibson ................................................................................................... 87 Heróis Nei Duclós........................................................................................................... 93 Morte de Miguel Arraes encerra ciclo dos primeiros esquerdistas do Brasil Paulo de Vasconcellos......................................................................................... 95 A falta que ele faz Paulo Sérgio Scarpa........................................................................................... 97 Duas mãos e o sentimento do mundo Raimundo Carrero............................................................................................. 99 Miguel Arraes de Alencar (16/12/1917 – 13/08/2005) Ricardo Noblat.................................................................................................. 103 Uma trajetória que ajuda a pensar o Brasil Roberto Freire................................................................................................... 105 Um forró para Arraes Samarone Lima................................................................................................ 109 O tempo parou para Arraes Sérgio Miguel Buarque..................................................................................... 113 Miguel Arraes de Alencar Sérgio Montenegro Filho.................................................................................. 115 Miguel Arraes, 1916-2005 Urariano Mota.................................................................................................. 117 O mito fica na história Valdecarlos Alves.............................................................................................. 121 Meu Pernambuco Vitor Hugo Soares............................................................................................ 123 7 A presentação Na madrugada de 17 de junho de 2005, o autor destas linhas foi tirado da cama por uma chamada telefônica. A voz apreensiva dava a notícia bombástica e fazia uma convocação. O ex-governador Miguel Arraes, de 89 anos, estava internado no Hospital Esperança. E a família pedia os seus préstimos como porta-voz, atuando para manter informada a sociedade pernambucana sobre a evolução do tratamento. Não era só um desafio profissional gigantesco. Os 57 dias de vigília acabaram por ser uma prova de resistência pessoal, nos planos físico e, principalmente, emocional. Atender a imprensa em jornada de 24h diárias, divulgar os boletins periódicos e manter atualizado o site do PSB, onde eram difundidas as notícias sobre as visitas ao hospital e os milhares de votos do pronto restabelecimento, eram algumas das tarefas executadas. O volume que o leitor tem nas mãos é a última etapa da missão. Está sendo publicado como uma homenagem a Arraes – um dos personagens mais importantes da história política brasileira – mas também como uma contribuição à história do País, com a disponibilização, em livro, de artigos publicados de forma dispersa e que, de outra maneira, estariam condenados ao esquecimento. Nas páginas seguintes, estão agrupados textos – artigos, crônicas, comentários e notas – que resumem, de forma mais ou menos completa, o que foi publicado na imprensa nos dias que se seguiram à partida de Miguel Arraes. Como em qualquer coletânea, vai a público com inevitáveis lacunas. E, considerando que o conteúdo não foi – nem poderia ser – combinado entre os autores, há repetições e omissões. Também não houve a pretensão de juntar tudo o que foi publicado a partir daquele 13 de agosto. Seria preciso muito mais do que este pequeno livro para conter O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas Cartas para o futuro o grande volume de artigos, comentários, reportagens e notícias publicados no Brasil e no exterior. Foi selecionado para a coletânea material produzido por jornalistas e historiadores, políticos e sociólogos, gente do Brasil e do exterior, numa seqüência determinada pela ordem alfabética. Com suas características próprias, cada texto cumpriu seu destino no momento em que foi publicado. E todos têm qualidades que se revelam à primeira leitura, mas que já podem ser imaginadas à simples menção dos nomes. Não há barreiras ideológicas. Nem hierarquização por razões metodológicas. De certo modo, buscou-se dar relevo à diversidade dos pontos de vista. Se há tantas diferenças, igualmente importantes são as semelhanças. A mais evidente é que todos os artigos foram elaborados para registrar, no calor do momento, a visão pessoal do autor sobre a vida e a trajetória política de Miguel Arraes, num diálogo assumido com a história. Retratam a grande comoção que se abateu sobre o Brasil e, deste modo, ajudam a compreender o peso da presença e o tamanho da ausência deste grande brasileiro. O compromisso essencial de Miguel Arraes com os mais necessitados, a grande obra de governo realizada em suas três passagens pelo Palácio do Campo das Princesas e a capacidade de resistência nas mais difíceis condições – tudo pode ser revivido nos textos aqui reunidos, como lições de coragem e dignidade aos brasileiros de todas as gerações. Estas Cartas de Agosto são, em suma, mensagens para o futuro, relatos carregados de emoção sobre a ação política de um homem que marcou um tempo da vida brasileira. Dois anos depois, é preciso repetir o grito da multidão que acompanhou o sepultamento no cemitério de Santo Amaro: Evaldo Costa (Org.) Arraes vive! 10 Evaldo Costa, jornalista, é Secretário de Imprensa do Estado de Pernambuco Arraes – Memória sem lágrimas e com afeto A gora que cessaram as lágrimas e os discursos, podemos lembrar Miguel Arraes de um jeito que ele aprovaria. Sem voz embargada, litanias ou excessos de retórica. O morto era homem de fala comedida e avesso a eloqüências. Melhor evocá-lo em tom de conversa, que foi o seu estilo de fazer política e amizades. Conheci Arraes em Caruaru, numa campanha qualquer dos anos 50. Eu era um rapaz da esquerda local, tão generosa quanto boêmia, desorganizada e inexpressiva. Ele, deputado estadual respeitado e atuante, cujo desempenho admirávamos à distância. Buscava, sem grandes apoios, uma difícil reeleição. Estava na cidade para falar em comício. Apresentei-me como seu eleitor e disposto a conseguir “talvez meia dúzia de votos”. Respondeu sorrindo: “Pra quem precisa, tudo serve”. E convidou-me a sentar à mesa do restaurante Guanabara, que ele dividia com Otávio, um amigo do Recife. Palestramos, deixou-me o telefone, fiquei de procurá-lo. Reelegeu-se com dificuldade. Na capital, vimo-nos casualmente na avenida Guararapes. Iniciou-se um longo convívio político e pessoal. Lembro-me que estabeleceu como rotina irmos juntos aos comícios e eventos em associações populares da periferia. Eu chegava mais cedo em sua casa, no bairro do Cordeiro. Trocávamos idéias a respeito da campanha e dos discursos que deveria fazer. Ali conheci a doce e elegante figura de Célia, sua primeira mulher, que veio a falecer, e a filharada já então numerosa. Depois rumávamos para os subúrbios, ele dirigindo um velho fusquinha. Por sermos ambos egressos do interior, o deputado animava o percurso narrando situações divertidas, protagonizadas por matutos. Eu retribuía com estórias de Caruaru e seus tipos populares. Todo homem do interior, por mais viajado que seja, tem uma nostalgia incurável de suas origens. Aí estão as crônicas de Rubem Braga sobre Cachoeiro do Itapemirim, peças de Ariano Suassuna, romances de Zé Lins, Graciliano, Guimarães Rosa. E aquele poema Itabira, de Drummond, talvez a mais bela página já escrita sobre uma cidade O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas Aluízio Falcão e a memória permanente de quem nela viveu sua juventude. O Arraes que conheci falava do Cariri de forma recorrente e cobria de riso, para disfarçá-la, uma saudade teimosa, que sempre habitou o seu coração de sertanejo. Quando governador costumava responder, se perguntado sobre uma possível candidatura à presidência, que o seu plano de maturidade era ser prefeito do Crato. Evaldo Costa (Org.) Eleito prefeito do Recife, depois de árdua batalha, tirou uma semana de folga, e convidou-me para uns dias em sua terra. Fizemos longa viagem de automóvel, sertão adentro. De repente, em plena caatinga, avistamos um oásis, que ele apontou com entusiasmo. Em larga extensão de terra, coberto de verde, revelava-se o vale do Cariri cearense, palco das evocações de infância. 12 Conheci então sua mãe, dona Benigna, com aquela placidez que lhe garantiu longa existência. Quando falava em ajudar os pobres, deixava transparecer o que os filósofos chamam de amor mundi (amor ao mundo). Acho que o jovem Miguel aprendeu com ela, e não com Marx, este sentimento que moveu sua vida. Na mesa grande, conversas animadas, em voz baixa. Sim, em voz baixa. Este é um diferencial entre a gente do sertão e a gente da mata. Dona Benigna, quase em sussurro, comentando o entusiasmo dos netos e outros meninos pelos filmes de faroeste: “Não sei porquê. Tiro é o que não falta aqui perto, nos dias de feira”. E ria baixinho, e todos riam, do mesmo jeito. Veio a posse na Prefeitura. Cabe aqui ligeira nota sobre o Movimento de Cultura Popular, o mais simbólico evento de sua gestão. De vez em quando leio especulações a respeito de quem idealizou o MCP. Ora, deixemos de rodeios: a idéia foi de Miguel Arraes de Alencar. Logo na primeira semana depois de empossado, forneceu-me um inventário elaborado por seu amigo Jorge Melo, dirigente esportivo no Recife. Ali estavam listadas as sedes de pequenos clubes suburbanos. Arraes disse que o seu plano era criar escolas naqueles e noutros espaços mantidos pela comunidade: sacristias, salões de culto evangélico, associações de bairro. Em vários fins de semana, um grupo de voluntários percorreu os subúrbios do Recife, localizando as sedes e conseguindo autorização para a instalação de unidades de ensino. O levantamento permitiu ao MCP, nesta área sob a liderança de Anita Paes Barreto, montar uma rede que em menos de dois anos chegou a 200 escolas isoladas e grupos escolares, com 20 mil alunos. Também no âmbito do Movimento, Paulo Freire criava uma nova pedagogia para alfabetização de adultos. Norma Coelho e Josi- Prefeito e logo em seguida governador, eleito sob intenso fogo do conservadorismo. Na formação do secretariado, um episódio que exemplifica a sua habilidade. Estou contando o caso pela primeira vez. João Guerra e eu estávamos escolhidos para integrar o primeiro escalão de governo. Guerra, secretário da Fazenda, eu, secretário particular do governador. Para a Secretaria de Saúde Arraes escolhera o deputado Ferreira Lima Filho, do PSD, e não Miguel Newton Alencar, nosso candidato ao posto, jovem médico integrante de equipe séria, que definira um plano de saúde pública. Dessa equipe faziam parte os médicos caruaruenses Vital Lira e Francisco Santino. Guerra e eu, num gesto de imaturidade, entregamos os cargos antes da posse. Arraes ouviu com atenção nosso protesto e falou pacientemente de sua escolha. Precisava de apoio na Assembléia Legislativa, garantia que Ferreira Lima poria em prática o sistema elaborado pela equipe médica. Esperava compreensão. Com a nossa arrogância juvenil, insistimos. Depois de esgotar os argumentos políticos, ele saiu da sala. Madalena, sua segunda mulher, mandou servir cafezinho aos dois rebeldes sem causa. Pessoa culta, educada, e boa conhecedora do estilo do marido, fez um pouco de sala. Comentou amenidades, até que ele reapareceu com uma argumentação irrefutável, que tento aqui reconstituir de memória: “Admitamos que vocês estão certos e que eu tenha cometido um erro. Não devo, porém, revogar o convite que fiz a um parlamentar aliado. Suponho que tenha sido este um primeiro erro, pois vocês, meus amigos, jamais reclamaram. Agora pergunto: que amigos são esses, que depois do único erro de um amigo, agem de forma rancorosa e intransigente?”. Entreolhamonos, pedimos desculpas, ficamos no governo. Cartas de Agosto na Godoy elaboravam a respectiva cartilha, Abelardo da Hora ensinava desenho a jovens de baixa renda. Joacir Castro montava grupos de teatro. Paulo Rosas e Germano Coelho repensavam o Brasil e sua cultura. Outros, muitos outros, trabalhavam no plano artístico e conceitual. Lamento não haver espaço para nominá-los. Na base de tudo, a militância cotidiana dos estudantes e a decisiva inspiração do prefeito. Muito já se escreveu sobre o seu primeiro governo, quando viabilizou o chamado Acordo do Campo, que gerou repentinamente gigantesca e inédita onda de consumo alimentar nos estratos sociais abaixo da linha de miséria. Uma revolução sem armas, interrompida em 1964 pela força das metralhadoras, tanques e fuzis. Veio esse golpe, aconteceu o que todo mundo sabe. Em 1969, 13 Evaldo Costa (Org.) Arraes exilado na Argélia, fui a Paris, onde ele passava uns dias. Seu filho José Almino esperou-me no aeroporto, deixou-me no hotel para descansar um pouco. Três horas depois reapareceu com o pai. Arraes abraçou-me fortemente. Trazia uma garrafa de uísque para festejar o reencontro. Fomos para a casa de Violeta (sua irmã) e Pierre Gervaiseau. Em longa conversa, que entrou pela noite, passamos em revista a situação brasileira. Contei que participava de um grupo de jornalistas em São Paulo que editava clandestinamente o jornal Resistência, distribuído por baixo das portas, durante a madrugada. 14 Mostrei o pequeno exemplar de quatro páginas. Interessou-se vivamente, promoveu uma conversa com Marcio Moreira Alves, buscando ampliar as dimensões do jornaleco. Não deu em nada essa conversa, porque Marcito limitou-se a palpites editoriais. Tive com Arraes um segundo encontro antes que ele regressasse para o seu desterro em Argel e eu ao Brasil já mergulhado nas sombras do AI-5. Deu-me um exemplar do seu livro Le Brésil- le peuple et le pouvoir, editado por François Maspero. Dedicatória: “Ao Aluízio, na esperança de que essas reflexões possam animar o debate dos problemas do nosso povo e que o debate aclare os caminhos que a nossa ação deve abrir para a libertação do Brasil – e também com a amizade e um abraço do amigo de sempre Miguel Arraes. Paris, 28/06/69”. Dez anos depois, fim do AI-5. Retorno dos exilados. Encontramonos aqui em São Paulo, quando lhe disse que estava longe da política, embora com as mesmas convicções da vida inteira. Compreendeu, falou dos seus planos para a unificação do arco democrático. Em 1986, a recuperação, pelo voto, do mandato arrebatado pela força. Colaborei de longe. Passo a palavra a Eurico Andrade, que assim registrou o que fiz, em seu depoimento no livro A vitória de Arraes, organizado por Antonio Lavareda: [...] “Melhor foi o uso das imagens do trem na tevê, acopladas com a música Ele está voltando. A idéia de usar a música de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro tinha sido de Helmut, um redator da CBBA-Propeg, mas a nova letra não estava suficientemente emocionante. Liguei para Aluízio Falcão, antigo colega de política, de jornalismo, de publicidade e de mesa de bar, ex-secretário de Arraes e velho combatente esquerdista de Pernambuco que saiu do Recife no golpe junto com todos nós. Aluízio fez uma paródia linda, magnífica, com o toque adequado de emoção. Krause atribuiu letra e música a Chico Buarque e eu só desmenti depois da eleição, que não era burro pra desmentir, nem Aluízio era estúpido para pedir crédito numa hora daquelas”. Fui ao Recife assistir à posse. Dias antes, falei com Arraes em seu Voltei a São Paulo, onde vivo há mais de 41 anos, trabalhando muito, e longe da política. Em 2002, eu estava assistindo a cobertura da posse do presidente Lula pela tevê. De repente a câmera focalizou o plenário do Congresso e lá estava Miguel Arraes de Alencar, em marcha para os seus 90 anos. Estava de pé, sozinho, com um sorriso tranqüilo. Vontade muita de levantarme da poltrona, entrar pela tevê adentro, e abraçar o amigo com o afeto de sempre. Mas logo a câmera se deslocou para outros líderes, outras multidões, outros tempos. Cartas de Agosto escritório político, ele brincando com a minha “carreira” de compositor e o sucesso do jingle de campanha: “Vai ficar mais conhecido que o candidato”. Convidou-me para ir à sua casa: “Isso aqui é um enxame de gente”. Fiquei de ir, não fui. Estive em Palácio no dia da posse, mas não me aproximei dele. O “enxame” era bem maior. Curti a emoção com as poucas pessoas do meu tempo: Maximiano Campos, Tânia Bacelar, Têca Calazans, Miguel Newton, José Almino. Aluízio Falcão é colunista de O Estado de S. Paulo. Fonte: revista Caruaru Hoje 15 Morreu Arraes?... Não, Arraes está vivo! Vive entre nós! Amparo Araújo Carlos Eugênio, tal qual Arraes, ao voltar do exílio, não estacionou no tempo. Poeta e músico, gravou CDs, escreveu os livros Viagem à Luta Armada e Nas trilhas da ALN. Hoje, com armas que não matam nem ferem, milita no PSB, ao lado de Arraes, intensamente nos últimos tempos. Sob a ponte, o rio Capibaribe, que quer dizer rio das capivaras. Hoje, capivaras já não há, foram exterminadas, como querem exterminar nossos sonhos. Não conseguirão. As águas deslocam-se barrentas, turvas, mas quem liga para as aparências? Nossos corações e nossas almas querem enxergar é a direção das correntes. Com a sabedoria daquele que nos guiou até agora, encontraremos no azul das ondas o rumo e prumo. Na rua da Aurora, aurora não há; estamos ao entardecer, ao entardecer do dia e das nossas vidas, apenas nos olhamos. No alto de um prédio, um senhor segurava um cartaz com dizeres, apenas uma pomba branca lhe fazia companhia, a pomba branca e o céu azul, infinito, como nossa vontade de viver e reviver. Naturalmente, como humanos que somos, igual a Severino, personagem de João Cabral de Melo Neto, ao ver o rio, sentimos medo de não cumprir nosso destino, o de mudar o mundo. Nossos corações se apertam, nossas mãos também, essa é a senha... não vamos desistir. Não falamos nada, nossas mãos entrelaçadas, sentiam intensamente como a vida é severina. O monumento Tortura Nunca Mais, raios de sol para nos fazer refletir sobre o que dizer ou não dizer, sobre o que fazer ou não fazer. Resolvemos pensar juntos o O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas F izemos o percurso que liga o Palácio do Campo das Princesas ao Cemitério de Santo Amaro, passando pela ponte [Princesa Isabel], rua da Aurora, monumento Tortura Nunca Mais, ao entardecer, de mãos dadas, eu e o único Comandante da Ação Libertadora Nacional sobrevivente da resistência contra a ditadura militar. que não poderíamos dizer e o que não poderíamos deixar de fazer. Não poderíamos dizer que encerrava-se um capítulo de nossa História, seria muito pouco, ele, longevo e coerente, viveu vários capítulos de nossa História; Nãopoderíamos pensar no nosso partido, o PSB, do qual ele era o ponto de equilíbrio, e demonstrar nossas preocupações quanto ao que virá, Arraes ultrapassava as fronteiras dos partidos; Evaldo Costa (Org.) Não poderíamos lamentar, como nordestinos que somos, pela perda de um de nossos irmãos mais destacados na política, ainda seria pouco, ele foi marcante para gente de todas as regiões de nosso país; 18 Preferimos pensar e lembrar de Miguel Arraes de Alencar como uma mistura de tudo isso, e mais: morreu um brasileiro preocupado com os outros brasileiros, um humanista que sonhava com as transformações em nosso Brasil. Temos orgulho de ter trabalhado e militado com Miguel Arraes, quanto ao que vamos fazer, não temos dúvida, continuaremos a sua luta que é a luta de todos nós brasileiros comprometidos com a ética, a coerência e a conquista da paz. Amparo Araújo é fundadora e atual presidente do Movimento Tortura Nunca Mais/PE (Artigo escrito com colaboração de Carlos Eugênio). Fonte: JC Online Adeus ao guerreiro do povo brasileiro M ais de 15 mil pessoas passaram, no fim de semana, pelo velório do deputado federal e presidente nacional do PSB, Miguel Arraes, no Palácio Campo das Princesas, sede do governo de Pernambuco. O enterro foi por volta das 18h no cemitério de Santo Amaro, no Recife. O corpo de Arraes foi levado em carro aberto do Corpo de Bombeiro até o cemitério. O trajeto (1,5 quilômetro) durou cerca de 40 minutos. Durante o cortejo, as pessoas cantaram ‘’Arraes, guerreiro do povo brasileiro’’ e o hino nacional. Na saída da sede do governo, ao som do Pai Nosso, todos aplaudiram e acenaram com chapéus de palha, bandeiras do MST e da Federação dos Trabalhadores na Agricultura. Pouco antes foi realizado um culto ecumênico com a participação de familiares, que fizeram questão de Arraes ser enterrado em cova simples, coberta com grama. Na lápide: ‘’O homem marcado pelas duas mãos e o sentimento do mundo’’, lembra poema de Carlos Drummond de Andrade, citado por Arraes na volta do exílio em 1979. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi aplaudido por populares quando chegou, às 9h45, ao Palácio do Campo das Princesas em companhia dos ministros Ciro Gomes, Dilma Roussef e Agnelo Queiroz. Estavam também o portavoz da Presidência, André Singer; o presidente da Infraero, Carlos Wilson Campos; o governador de Pernambuco em exercício, Mendonça Filho; e o prefeito do Recife, João Paulo. O presidente permaneceu cerca de 1 hora e voltou à Brasília. Nesse meio tempo, Lula desabafou com alguns parlamentares, dizendo estar se sentindo mal e muito machucado com a crise. A cúpula nacional do PSDB foi representada pelo governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, e pelo prefeito da capital paulista, José Serra, acompanhados pelo senador Sergio Guerra e pelo deputado Raul Jungmann (PPS). A liderança popular de Arraes foi reconhecida. Cerca de 20 caravanas de trabalhadores rurais foram ao Recife prestar homenagens ao deputado. A primeira, com 50 trabalhadores rurais, do município de O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas Ângelo Castelo Branco Caruaru, no agreste de Pernambuco, chegou por volta do meio-dia. Evaldo Costa (Org.) O presidente da Infraero, Carlos Wilson, explicou que um dos programas lançados pelo exgovernador foi o Chapéu de Palha, para possibilitar, na entressafra da indústria açucareira, o emprego da mão-de-obra ociosa na recuperação de estradas e escolas. Fruto de tal empenho, no fim do velório, 400 camponeses, com chapéu de palha, caminharam até o palácio para se despedir de Arraes – “nosso maior aliado”. 20 A família de Arraes – que deixa 10 filhos – recebeu pesar do presidente de Cuba, Fidel Castro, que também enviou uma coroa de flores ao velório. Em sua declaração, Fidel assinalou que foi com grande tristeza e consternação “que recebemos a infausta notícia da morte do nosso amigo e companheiro de luta antiimperialista, Miguel Arraes de Alencar. Sua vida política o consagrou por inteiro a favor dos humildes e despossuídos, tanto do seu estimado Nordeste brasileiro como do resto do Brasil, que foi interrompida momentaneamente quando era governador do Estado de Pernambuco por conta do golpe militar de 1964. Seu exemplo servirá de estímulo para as gerações atuais e futuras do Brasil e América Latina. Sempre recordaremos sua atitude valente, solidária com o nosso povo e a revolução”. O cantor Caetano Veloso acompanhou o cortejo. Ele disse ter conhecido Arraes no exílio e desde então mantém relação afetiva com a família. Para ele, Arraes deixa exemplo de integridade na vida pública. Caetano participa de um documentário sobre o político, que está sendo feito pelo seu filho, o cineasta Guel Arraes. A produtora Paula Lavigne, a pedido de Guel, gravou cenas do velório e do enterro para o filme. Surpreendido com a notícia da morte de Arraes em plena apresentação de folclore regional, ao vivo pela TV, o compositor popular Getúlio Cavalcanti versou de improviso: ‘’O Sertão é só tristeza/ O povo perdeu a paz/ Corre o pranto em correnteza/ Lá se foi Miguel Arraes’’. Ângelo Castelo Branco é jornalista. Fonte: Jornal do Brasil Rosas vermelhas Arthur Carvalho A igreja está superlotada, mas não faz calor – pelas portas laterais, sopra a brisa fresca do mês de agosto, que vem da Península de Itapagipe e do Porto dos Tainheiros. Do púlpito, o padre prega o Evangelho, em linguagem simples e direta, prendendo a atenção dos devotos, quase hipnotizados por ele. Demonstração de fé que impressiona, emociona e contagia até incrédulos e agnósticos. Alguns tiram o terço, com olhar fixo na imagem do Senhor do Bonfim, entronizada no altar-mor. De repente, Roberto Koch se aproxima e segreda ao meu ouvido: “Miguel Arraes morreu”. Por mais que saibamos da gravidade do estado de saúde de uma pessoa a quem admiramos, recebemos, com surpresa e chocados, a notícia de seu falecimento – no íntimo, torcemos por sua recuperação. Desci as escadas da igreja, respirei fundo e saí andando em direção a Monte Serrat. Era um dia claro, de céu azul e sol amarelo, navios petroleiros fundeados na Baía de Todos os Santos aguardavam a vez de atracar para abastecer na refinaria de Aratu. Do Monte Serrat, tomei a Avenida Barão de Cotegipe e segui, a pé, até o Cais do Porto. Entrei no Mercado Modelo, virei um conhaque, subi o Elevador Lacerda e sentei num banco do Belvedere. Pensei em telegrafar para Ana Lúcia e Tonca, mas desisti, e fiquei ali, estático, no Belvedere. Fitando a Ilha de Itaparica, defronte, me lembrei de um almoço em Boa Viagem, com parentes meus, e um deles, ainda jovem, perguntou a meu filho Eduardo por que ele só se referia a Arraes, num encontro tão intimo, como sendo “Dr. Arraes”, não fazendo o mesmo quando mencionava outros políticos. Eduardo respondeu que nem todo político tinha a história de Arraes. Tomei outro conhaque e prossegui caminhando até o Pelourinho, O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas E stou assistindo à missa na Basílica do Bonfim e observo os fiéis ao meu redor. São homens e mulheres das mais diversas idades, cor, raça e classe social, orando, sérios e contritos. entrando num bar onde, certa noite, fiz uma farra com Waldick Soriano. No bar, encontrei Marcelo Gomes, filho de Orlando Gomes, e Dudu Catharino, filho de Luís Catharino. E a conversa girou sobre os grandes políticos que o Brasil teve, porque a hora era de pesar pelo desaparecimento de um deles. Falou-se em João Mangabeira, Afonso Arinos de Melo Franco, Joaquim Nabuco e no Visconde de Mauá. Tememos o (incerto) futuro do País, e os sinos da catedral dobraram. Resolvi visitar o Axé Opô Afunjá, no Cabula, e de lá estiquei até o Bate-Folha, na Mata Escura do Retiro. Sozinho, como faço nessas ocasiões. Evaldo Costa (Org.) Ao anoitecer, peguei um táxi, regressei ao Pituba Plaza Hotel, adormeci exausto. No dia seguinte, li o editorial do jornal A Tarde, sobre Arraes, e me lembrei de uma vez em que fui entrevistado pela Veja para revelar certos epi- 22 sódios acontecidos no Recife, durante o golpe de 64. No meio da entrevista, disse ao repórter que alguns detalhes seriam mais bem explicados por Arraes, tendo o jornalista me respondido que já tentara obtê-los, mas o ex-governador se recusara a tocar no assunto. Miguel Arraes de Alencar não guardava brasas em pote nem ressentimentos pessoais. Tão bela quanto o editorial de A Tarde foi a coroa de rosas vermelhas enviadas por Fidel Castro à família do lendário cearense. Morre o homem, fica a fama. Ou o mito. Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é membro da Academia Olindense de Letras. Fonte: Jornal do Commercio Arraes e a fraternidade dos inconformados N o último sábado a esquerda brasileira perdeu um dos seus líderes mais importantes. Um homem cuja vida se vinculou intimamente às causas populares, democráticas e nacionalistas. Talvez ele tenha sido o último sobrevivente daquela plêiade de políticos que nas décadas de 1950 e 1960 sonharam em construir um país soberano e ao mesmo tempo mais justo para seu povo. Um sonho abruptamente interrompido pelo golpe militar de 1964. Hoje o pavilhão nacional e a bandeira vermelha do socialismo estão à meio-pau em homenagem a esse insigne brasileiro chamado Miguel Arraes de Alencar. Arraes nasceu em 1916, numa pequena cidade do interior do Ceará chamada Araripe, divisa com os estados de Pernambuco e Piauí. Filho de classe média empobrecida, com muito esforço conseguiu cursar a conceituada Faculdade de Direito do Recife. Após sua formatura foi trabalhar no Instituto do Açúcar e do Álcool. Em 1948 iniciou sua atuação na vida política, quando foi indicado pelo governador de Pernambuco, Barbosa Lima Sobrinho, para o cargo de secretário estadual da Fazenda. Ali se destacou por suas qualificações técnicas e políticas. Por isso, dois anos depois, acabou sendo eleito deputado estadual pelo Partido Social Democrático. Conseguiu um segundo mandato em 1954 e entrou em choque aberto com o novo governador, general Cordeiro de Farias. Este havia sido eleito com o apoio dos coronéis do Sertão e Agreste – e se destacava pelo seu anticomunismo. Formou-se, então, um amplo movimento de oposição assentado nos setores urbanos – operários, classe média e burguesia industrial. Aproveitando-se de um novo aumento nos impostos estaduais, os industriais e comerciantes de Recife reagiram com um lockout, fechando quase todas fabricas e lojas. À frente deste protesto, que tinha apoio da esquerda, estava o industrial-usineiro Cid Sampaio, ligado à UDN. Um editorial do jornal comunista Folha do Povo O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas Augusto Buonicore afirmou: “Trata-se de uma luta que interessa também aos trabalhadores, pois a formação de maior número de núcleos industriais fará crescer novos e poderosos contingentes de operários, que se constituirão em novas forças para ampla luta pela nossa emancipação econômica, política e social”. Evaldo Costa (Org.) O mesmo Cid Sampaio, em 1958, encabeçou uma coligação de forças oposicionistas para a eleição do governo do Estado. O próprio Prestes, recém-saído da clandestinidade, foi fazer a campanha em Pernambuco. Milhares de recifenses foram às ruas assistir ao encontro histórico entre o líder dos usineiros e o mais famoso líder comunista brasileiro. Este parecia ser o melhor retrato da política de união nacional – entre burgueses e operários – contra as oligarquias feudais. Estávamos naquela época sob o signo da Declaração de Março de 1958, um dos pivôs da cisão dos comunistas brasileiros. 24 A resposta da reação pernambucana foi imediata. O arcebispo de Olinda e Recife declarou: “Candidatos que adotam princípios ideológicos e ações contrárias à doutrina da Igreja não poderão receber os votos dos católicos. Nem mesmo aqueles que, apesar de oriundo de uma família católica, tornam-se um mero instrumento dos vermelhos e sobe aos palanques em comícios promovidos por líderes comunistas cujas mãos estão manchadas de sangue”. De nada valeu a condenação da Igreja, Cid ganhou por mais de 100 mil votos. Arraes comandou a campanha no interior do Estado e acabou se descuidando de sua própria candidatura à reeleição. Ele não se elegeria, mas como retribuição foi chamando para dirigir novamente a secretaria da Fazenda estadual. No ano seguinte já era candidato a prefeito de Recife pelo minúsculo Partido Social Trabalhista. Sua candidatura se tornou expressão de uma ampla frente política que ia da UDN até o Partido Comunista do Brasil. Isso lhe garantiu uma votação expressiva e impôs outra derrota fragorosa das oligarquias pernambucanas. Corajosamente indicou dois notórios comunistas para o seu secretariado: Hiram Pereira e Aluísio Falcão, respectivamente secretários de Administração e de Cultura. Um de seus programas mais importante foi intitulado Movimento de Cultura Popular, cujo principal objetivo era a massificação da alfabetização de adultos. Foram produzidas e distribuídas milhares de cartilhas que traziam na sua primeira lição a frase: “O voto pertence ao povo” e em outra “Um trabalhador, num sindicato de trabalhadores, é um homem forte”. O MCP organizou outras atividades, Durante a campanha presidencial de 1960, Arraes e Cid Sampaio se desentenderam politicamente. O primeiro apoiou o Marechal nacionalista Teixeira Lott e o segundo, Jânio Quadros. Contra a vontade de Cid Sampaio, em 1962, Arraes foi lançado candidato ao governo do Estado, novamente pelo PST. Seu maior concorrente foi João Cleofas, apoiado por Cid Sampaio. Arraes, novamente, teve o apoio dos trabalhistas, socialistas, comunistas e das Ligas Camponesas, dirigidas por Francisco Julião. A disputa interoligárquica levou que parte do PSD decidisse por uma aliança com a esquerda e indicasse Paulo Guerra como candidato a vicegovernador na chapa de Arraes. A direção do PSD tentou ainda impor uma condição para seu apoio integral: Arraes deveria assumir o compromisso de não nomear nenhum comunista para o seu governo e tranqüilizar os setores conservadores. Ele respondeu: “Não assumo compromisso dessa ordem. Se eleito governador do Estado, escolherei livremente o meu secretariado”. O Partido então liberou seus correligionários. Arraes enfrentou uma dura campanha. Seus opositores eram apoiados pelo Instituto Brasileiro de Ação Democrática, que investiu milhares e milhares de dólares para derrotá-lo. Montou-se uma grande campanha anticomunista tentando atingi-lo. Chegaram a construir uma réplica do Muro de Berlim em pleno centro de Recife. Panfletos apócrifos mostravam Arraes ajoelhado e rezando com um rosário de foices e de martelos. O sociólogo conservador Gilberto Freyre comandava os ataques contra as ligações de Arraes com os comunistas pernambucanos. Cartas de Agosto como um festival de cantadores que teve como tema “A terra pertence àqueles que nela trabalham” e uma exposição fotográfica sobre a Albânia socialista, que já estava em turras com a URSS. Arraes venceu a eleição por apenas 13 mil votos. No Rio de Janeiro o candidato derrotado anunciou: “O comunismo tomou conta de Pernambuco”. Um evidente exagero, mas o fato era que a esquerda estava, pela primeira vez, no comando político do Estado. Arraes respondeu assim as críticas que lhe faziam: “Os poderosos sabem que não sou comunista e não temem meu esquerdismo. Temem outra coisa, a unidade do povo”. No seu discurso de posse, em janeiro de 1963, afirmou: “Que ninguém se iluda: assim como não conseguiram me transformar em agitador e incendiário, também não conseguiram e jamais conseguirão me transforma em bom-moço, acomodado aos privi25 Evaldo Costa (Org.) légios que sempre combati e posso agora mais e melhor combater no governo do Estado”. Ele diz fazer parte de “uma espécie de fraternidade dos inconformados: inconformados com a miséria, com a fome, com o atraso, com o analfabetismo. Inconformados com a condição de país subdesenvolvido e atrasado”. E contra Gilberto Freyre arrematou: “Fraternidade dos que lutam contra o falso culto do passado e da tradição, em que ainda se comprazem intelectuais saudosistas, muito mais interessados na manutenção do status quo que em qualquer outra coisa. Para esses, a tradição significa o povo na senzala e eles na casa-grande”. 26 Ao assumir o governo fez algo inédito: deu ordem para que a polícia não se envolvesse nos conflitos entre camponeses e proprietários de terra. Ou seja, a força pública não seria mais utilizada como instrumento de repressão ao movimento social. Arraes também pressionou os usineiros para que pagassem o salário mínimo e os direitos constantes da nova legislação voltada à defesa do trabalhador rural. Sob cobertura do poder público estadual os sindicatos rurais e as greves proliferaram. Em resposta a um artigo pago publicado pelos latifundiários, que apresentava uma lista de supostos atos de violência praticados pelos camponeses, Arraes mandou publicar no mesmo espaço uma lista de crimes cometidos pelo latifúndio contra os trabalhadores. O novo governador manteve e ampliou sua atuação na área de educação, passando a adotar o revolucionário método de alfabetização de adultos criado por Paulo Freire, que se tornaria uma referência mundial. Assim uma verdadeira revolução se operou na política pernambucana. As principais associações empresariais responderam decretando lockout contra a suposta insegurança reinante no Estado, os usineiros retiraram o açúcar do mercado. Arraes afirmou: “Fiquem certo de que a ordem será mantida. Não a ordem da minoria, mas a ordem do povo, a ordem que o povo estabeleceu neste Estado” e mandou confiscar mais de 40 mil sacas da Cooperativa dos Usineiros. “Os donos da terra – continuou Arraes – estão subvertendo a ordem, praticando arbitrariedades e violências, por não terem ainda se acostumado com a idéia de que no governo não está um deles, para oficializar a violência e encarcerar os que reclamam direitos como até pouco acontecia”. A luta de classes atingiu níveis explosivos e a oposição direitista começou a estocar armas e se preparar militarmente para o confronto com as forças democráticas e populares e derrubar o governo Arraes. Seu velho aliado da UDN Cid Sampaio liderava a conspiração. Caixas de metralhadoras começavam a chegar clan- to o centro de Recife. Argumentou-se que se tratava de simples manobras. Em maio de 1963, numa atitude ousada, Arraes rompeu com a Aliança para o Progresso, patrocinada pelos Estados Unidos. Argumentou que os acordos que passavam ao largo do governo federal atentavam contra a soberania e a segurança nacionais. No mesmo ano a esquerda, com dificuldades, conseguiu eleger novamente o socialista Pelópidas Silveira para a prefeitura de Recife. Isso fortaleceu a idéia do lançamento de Arraes para vice-presidente da República em 1965. Apesar das divergências com Jango, Arraes se engajou com todas as suas forças na campanha pelas reformas de base. Ele foi um dos principais oradores do grande comício da Central do Brasil, realizado no dia 13 de março de 1964. Naqueles dias Arraes já sentia o cerco da reação se fechando sobre o governo e as forças populares. A partir daí surgiram os primeiros conflitos políticos entre Arraes e Goulart. Quando em outubro de 1963, o presidente requereu que o Congresso decretasse Estado de Sítio, Arraes temeu que isso fosse utilizado para destituílo do governo. Acreditava que o presidente aproveitaria a ocasião para matar dois coelhos com uma única paulada: desalojar o governador direitista da Guanabara, Carlos Lacerda, e também seu adversário de esquerda, Miguel Arraes. Existia, na ocasião, uma forte pressão para uma intervenção federal no estado, argumentando-se o perigo de insurreição no campo. Estranhamente, no dia que Arraes faria o seu discurso contra o Estado de Sítio, tropas do IV Exército tomaram de assal- Cartas de Agosto destinamente ao Estado. Existiam informações que agentes da CIA estavam infiltrados em toda parte. Numa entrevista, realizada tempos depois, afirmou: “Eu sabia que o golpe iria acontecer porque estive no comício de 13 de março de 64 na Central do Brasil, no Rio de Janeiro. De lá fui para Juiz de Fora participar de uma concentração, e quase não consigo discursar, porque existiam 200 homens civis armados nas ruas. Eles eram comandados por um cidadão chamado Adão Rafael, que, acho, era deputado, sustentado pelo general Olympio Mourão [...] No dia 17 ou 18 de março conversei com Jango e disse a ele que o golpe estava na rua”. Na madrugada de 31 de março começou o movimento militar que derrubaria o governo constitucional de João Goulart. Em Pernambuco o IV Exército imediatamente tomou o lado dos conspiradores. Querendo evitar conflitos armados, Arraes deu ordens para que a polícia militar permanecesse nos quartéis. Mas, 27 muito sangue haveria de correr pelas ruas do Recife. No dia seguinte uma manifestação de estudantes tomou as ruas da capital do Estado gritando o nome de Arraes. As tropas reprimiram à bala e mataram três estudantes. Estas foram as primeiras vítimas fatais da ditadura que se implantava. Evaldo Costa (Org.) No início da tarde um grupo de militares se dirigiu a sede do governo e pediu que Arraes o abandonasse. Arraes respondeu: “Não concordo em ser deposto. Recebi meu mandato do povo e somente ele poderá tirá-lo de mim. Permanecerei aqui, com minha família”. À noite os militares voltaram e decretaram sua prisão. Ele foi conduzido até o Quartel de Socorro, em Jaboatão dos Guararapes, e em seguida enviado para ilha-prisão de Fernando de Noronha, onde permaneceu por longos onze meses. 28 Poucas horas depois da prisão, a Assembléia Legislativa, cercada por tropas, aprovou por 47 votos contra 17 a destituição de Arraes. A argumentação foi de que na situação que ele se encontrava não poderia exercer suas funções. No dia seguinte seria a vez do prefeito de Recife ser destituído e preso. Novamente se repetiu o mesmo ritual “democrático” e a Câmara dos Vereadores desta vez por 20 votos a 1, decidiu retirar-lhe do cargo. A repressão invadiu a sede do Serviço de Extensão Cultural da Universidade Federal, dirigido por Paulo Freire. Este seria preso alguns meses depois. Todos os programas sociais foram destruídos e centenas de pessoas presas. O Palácio Episcopal foi invadido e o recém-empossado bispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara, telefonou para o comandante do IV Exército, general Justino Bastos, e reclamou que aquilo não eram as boas-vindas que esperava. Meses depois Arraes foi transferido para o Rio de Janeiro e ficou preso na Fortaleza de Santa Cruz, até que no início de 1965 um habeas corpus veio libertá-lo. Ameaçado por novas prisões entrou na clandestinidade e se exilou na embaixada da Argélia, país no qual acabou permanecendo por 14 anos. Somente em 1979 pôde retornar ao Brasil. No dia 16 de setembro chegou ao Recife e foi recepcionado por mais de 50 mil pessoas. Imediatamente se engajou no movimento oposicionista e, em 1982, elegeu-se deputado federal com a maior votação do Nordeste. Entre 1984 e 1985 esteve à frente da campanha das Diretas Já! e em defesa dos candidato único das oposições no Colégio Eleitoral. Em 1987 voltou a ocupar a cadeira no Palácio das Princesas da qual havia sido retirado pelos golpistas de 1964. No ano de 1990 Nestes dias, todos os membros da grande “fraternidade dos inconformados”, que hoje já for- mam legiões, choram a perda de um de seus mais fiéis e diletos membros. Choram, mas carregam no peito a persistente esperança de que os que se nutrem no culto do passado – e pretendem manter o povo na senzala, enquanto desfrutam das benesses da casagrande – não sairão vencedores nos grandes conflitos políticos e sociais que se anunciam. Cartas de Agosto ingressou no PSB, partido do qual se tornou presidente. Seria eleito pela terceira vez governador por uma diferença superior a 300 mil votos. Foi um crítico ardoroso do neoliberalismo, por isso mesmo se colocou no campo de oposição a Collor e FHC. Em 1998 tentou sua quarta eleição ao governo de Pernambuco, mas foi derrotado. Em 2002 participou ativamente da terceira campanha de Lula e se elegeu novamente deputado federal. Morreu apoiando o governo que ajudou a eleger. Augusto Buonicore é historiador e membro do Comitê Central do PCdoB. Fonte: www.vermelho.org.br 29 Mito Bernardo Arraes Valença Tua presença me faz falta quando entrava em alto mar quando deitava na rede e lia um livro pra descansar ou quando estava escrevendo e não podíamos atrapalhar Tua presença me faz falta o teu jeito de sonhar de pensar sempre no melhor de pensar sempre em ajudar mais que um avô, era um símbolo um exemplo para apreciar Tua presença me faz falta quando falava “o que é que há?” o teu abraço apertado o teu jeito de nos olhar hoje só restam lembranças, Miguel Arraes de Alencar Bernardo Arraes Valença é poeta, autor de Onomatopéia do Silêncio (Bagaço, 2007). Fonte: www.psbpe.org O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas Tua presença me faz falta o sentar na cadeira, o jeito de fumar as conversas na varanda que eu, menino, não entendia mas que, um dia, poderei contar Arraes, ao morrer, pede a palavra sobre a crise política Bernardo Joffily O luto desce sobre o Sertão, o Agreste, a Zona da Mata, o Litoral de Pernambuco, o Brasil. No cabo da enxada, no carro de boi, na casa de taipa, na jangada, na palafita, pois ainda há delas neste país desigual, uma legião incontável chora a morte do homem que virou mito, a ponto de se ver venderem nas feiras objetos que ele tocara, tidos como mezinhas infalíveis para todo tipo de doença. Uma biografia pede a palavra A tristeza é mais funda porque a morte Arraes, líder político de esquerda, eleitor de Lula desde 1989, e na vitória de 27 de outubro de 2002, encontra o governo Lula e as esquerdas brasileiras em crise. É verdade que a onda de denúncias de corrupção apelidada pela mídia de “mensalão” poupou o PSB, que o velho sertanejo do Araripe presidia. Mesmo assim, do Hospital Esperança, no Recife, onde lutou contra a morte por 58 dias, Arraes procurava se informar sobre a crise política sempre que as condições de saúde o permitiam. E agora, morto, ele de alguma forma pede a palavra e intervém no nervoso debate sobre a crise. Intervém com a sua biografia, com o seu pensamento, o seu exemplo e o seu legado. Ouçamos o que diz. Ele merece ser ouvido. O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas M orreu Miguel Arraes. O presidente da República decreta luto oficial por três dias e muda a agenda para comparecer ao velório. O senador Antonio Carlos Magalhães rebusca toda a sua longa trajetória até recordar um fugaz momento, em 1963, em que os dois tiveram posições coincidentes. Duzentas mil pessoas passam pelo velório, no mesmo Palácio das Princesas de onde Arraes saiu em 1º de abril 1964, preso pelos generais golpistas, e para onde voltou por mais duas vezes, eleito governador pelo voto. Um líder da Experiência Frentista Pernambucana Evaldo Costa (Org.) O cearense Miguel Arraes de Alencar, morando em Pernambuco desde a adolescência, ali se projetou como dirigente político – o mais destacado e emblemático – de uma concepção e uma prática das esquerdas que poderiam tomar o nome de Experiência Frentista Pernambucana. Um experimento que guarda semelhanças com outras alianças progressistas, em outros pontos do Brasil, mas onde se destacam os traços originais, pioneiros, em muitos sentidos, e cheios de ensinamentos de validade nacional. 34 remotos, o fato é que, a partir dos anos 50 do século 20, Pernambuco viveu uma experiência política de aliança entre forças políticas – comunistas, socialistas, trabalhistas – e sociais – sindicatos, Ligas Camponesas, movimento estudantil. Após numerosos embates com o bloco oligárquico-conservador, memoráveis e cheios de reviravoltas, essa frente chegou ao governo, pelo voto, na Prefeitura do Recife e no governo estadual, com Barbosa Lima Sobrinho e a seguir com Miguel Arraes, na sua primeira e legendária administração, truncada pelo golpe de 1964. Seria possível talvez remontar as raízes da Experiência Frentista Pernambucana até a alvorada da formação nacional brasileira, até a Insurreição Pernambucana do século 17, que expulsou do Nordeste os holandeses, sem apoio da Coroa de Portugal – e foi uma aliança sócio-político-militar de forças muito díspares, mas coincidentes na decisão de lutar para jogar ao mar os ocupantes. A Revolução Republicana de 1817, a Confederação do Equador em 1824 e a Revolução Praieira de 1848, todas com epicentro em Pernambuco, também foram experiências frentistas. Nos anos 1980, durante o crepúsculo da ditadura militar, a experiência pernambucana de frentes de esquerda ressurgiu em novas condições. Serviu de base de apoio para os dois governos de Arraes (1986 e 1994), e também da administração municipal recifense eleita em 1986 com Jarbas Vasconcelos (este mais tarde se passou para o campo oposto e hoje governa o Estado). Sua trajetória pode ser acompanhada até as coligações para as eleições municipais do ano passado, vitoriosas no Recife, Olinda e outros municípios. Trajetória antes e depois do golpe Quando se examina mais de perto a Experiência Frentista Pernambucana, constata-se uma considerável dança de siglas e perso- Havendo ou não uma conexão histórica com esses episódios mais Formatos mutantes, conteúdo coerente Miguel Arraes foi talvez o maior artífice, protagonista e guardião dessa coerência. E também no plano nacional foi um lutador pela aliança das forças populares, democráticas e patrióticas, de suas distintas vertentes – a comunista, a socialista, a trabalhista, às quais se somou mais tarde a petista. A eleição de Lula em 2002 foi a maior vitória já alcançada no Brasil por uma aliança com estes contornos, acrescida ainda por setores de centro – como, aliás, ocorreu amiúde na Experiência Pernambucana. No primeiro turno o PSB de Arraes lançou Anthony Garotinho como candidato presidencial próprio, por razões circunstanciais, mas em seguida compôs a aliança para o segundo turno e a montagem do governo Lula, enquanto Garotinho se distanciava. Onde reside a coerência de verdade Hoje, um dos mais visíveis efeitos da crise política é a fragmentação na frente que dá sustentação ao governo Lula, a começar pelo interior do seu principal partido, o PT, e para a alegria da oposição conservadora e neoconservadora. E, no entanto, as forças e personagens componentes desta frente, mais do que nunca, precisam de unidade. Só uma visão tão míope como a da senadora Heloísa Helena pode conceber que uma possível derrota do governo Lula, pelo bloco PSDB/PFL, possa redundar em algum benefício para as esquerdas, ou que alguma força de esquerda, alimentando-se com as migalhas que caírem da mesa do conluio oligárquico-conservador, possa se afirmar às custas da derrota do governo Lula. Cartas de Agosto nagens, que à primeira vista pode confundir. Na disputa estadual de 1954, por exemplo, o candidato apoiado pelas esquerdas é João Cleofas, da reacionária UDN, o mesmo Cleofas que em 1962 seria derrotado por Arraes. Mas, através desses formatos mutantes e até extravagantes, há um conteúdo político-social coerente, de forças avançadas que se unem, sem perder suas identidades nem ocultar suas diferenças, e assim se tornam mais fortes no embate com a direita oligárquica. Ao morrer, Arraes deixa esta advertência, escrita com toda uma vida: o alerta para a necessidade e a urgência de reconstruir o quanto antes a aliança das forças de esquerda, plural, contraditória, mas esteada em sólidos pontos de unidade e nos imperativos do confronto com a reação. É aí que reside a coerência de verdade, aquela que resiste ao teste implacável do tempo; aquela que se agiganta nas horas cruciais e difíceis, quando a tropa do general golpista Justino Alves Bastos cerca o Palácio das Princesas. Aquela que 35 Miguel Arraes ensinou. Aquela que todos nós precisamos aprender, e praticar. Bernardo Joffily é jornalista e autor do atlas histórico IstoÉ Brasil 500 anos . Evaldo Costa (Org.) Fonte: www.vermelho.org.br 36 Arraes e o Brasil possível “Um fantasma ronda a Europa – o fantasma do comunismo. Todas as potências da velha Europa unem-se numa Santa Aliança para conjurá-lo: o papa e o czar, Metternich e Guizot, os radicais da França e os policiais da Alemanha [...]”. O cintilante e pobre Karl Marx e o luminoso e rico Friedrich Engels assim abriram o livro-manifesto mais importante da história ocidental contemporânea. Maus tempos aqueles em que os comunistas eram perseguidos; maus tempos aqueles em 1964, em que as forças armadas associaram-se aos desejos da corte imperial e intervieram com violência para manter a ordem colonial. Coleciono antiguidades como pensar que direita e esquerda ainda são conceitos operantes, variáveis com a época. Coleciono sincronicidades também, e me licencio do desvelo que deve proteger a intimidade para relatar uma ao leitor. Meu parceiro de trabalho designer gráfico Walter Mota ligou-me na manhã do aziago 13 de agosto pátrio para solicitar a revisão urgente de um livro em reedição, publicado em 1981, tarefa da direção nacional do PSB. Mesmo contrário ao trabalho em fim de semana, por razões sólidas entre as quais sobressai a saudável preguiça, senteime para trabalhar pouco antes do meio-dia. À noite, recebi a notícia de que Arraes morrera, às 11h40, no momento em que comecei a trabalhar no seu livro O Jogo do Poder no Brasil, panorama da economia do País e análise política do golpe de 64. O livro, de forma insuperável e oportuna, abriga elementos que induzem reflexão a respeito da crise atual. Um fantasma ronda o Brasil: o fantasma do impeachment. Todas as potências do velho Brasil unemse numa Santa Aliança para conjurá-lo: desde políticos matreiros de partidos tradicionais até vozes insuspeitas como as do pensador Leonardo Boff e do jornalista independente Elio Gaspari. Afora oportunistas da condenação do pecado alheio, quase ninguém quer que O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas Chico Villela Lula seja defenestrado; há ainda o consenso de que seria pior para o País e de que a “governabilidade” seria posta em risco. Aí está um conceito digno de análise. Evaldo Costa (Org.) O czar tupi, encarnado pelo melífluo FHC, autoproclamado donatário da tal governabilidade, clama para que os “restauradores da ética” atenham-se aos fatos atuais e não se dediquem ao fuçamento de mazelas anteriores. A ele e ao seu pequeno grupo interessam o impeachment e uma transição rápida e turbulenta. Só dessa forma seria possível jogar fora o bebê (seu passado digno de muitas CPIs) junto com a água das articulações que poderiam fazer emergir concorrentes sem prontuário, como Serra. FHC pretende-se o candidato “natural” para este momento. 38 Arraes escreve que o golpe de 64 (acrescente-se: e também os governos do medíocre Sarney, do dúbio Itamar, do lamentável Collor, do subserviente FHC e do desgovernante Lula) expressou algo mais profundo: a manutenção da agenda econômica imposta ao país por interesses externos, e contra a qual Arraes identifica apenas dois adversários no século: Getúlio e, secundariamente, Jango. Arraes afirma: “O Presidente Vargas retoma [em 1950] o seu projeto de reforçar a burguesia industrial brasileira, valendo-se mais fortemente do Estado. Cria a Petrobrás, o BNDE e outros instrumentos destinados a alargar a autonomia do País, dentro da visão que sempre mantivera, mas agora de forma mais nítida, apoiando-se nas massas urbanas que o haviam eleito. Elevou salários para alargar o mercado interno e possibilitar a expansão das indústrias tradicionais, produtoras de bens de consumo popular. “Novo golpe que o leva ao suicídio. Nas análises do seu governo, verifica-se a intensificação das pressões internacionais destinadas a inviabilizar a política que desejava desenvolver. [...] Largas concessões foram feitas, entretanto, por Café Filho, a começar pela Resolução 113 que possibilitava a entrada maciça do capital estrangeiro no Brasil. Essa presença, que se intensificou no governo de Juscelino Kubitschek, não foi suficiente para liquidar todas as conquistas anteriores. Entretanto as empresas internacionais, implantadas com facilidades excepcionais que lhes foram dadas, ganharam hegemonia no setor industrial e aumentaram, em conseqüência, sua força política no País.” O livro inscreve o golpe em seu contexto de política menor, porém necessária aos donos do Império perante a ameaça da União Soviética e seus aliados, mas sempre na perspectiva de que esse alinhamento militarizado, estimulado à exaustão sob a vigência da doutrina de segurança nacional, tinha a função principal de garantir que a eco- De saída, Arraes descarta soluções parciais e aponta para um complexo articulado de campos em que a intervenção pró-nacional se faria necessária: “Há um impasse que afeta a vida do País, na sua globalidade. Não se trata de dificuldades políticas que meras negociações poderiam remover. O impasse atinge todos os planos. É inútil separá-los, na esperança de que as coisas melhor se resolveriam cuidando de cada plano a seu tempo. O cultural, o econômico, o social, o político, o militar formam um todo indivisível”. Ao contemplar os movimentos internos do sistema instaurado em 1964 e suas alterações, Arraes identifica um núcleo permanente e duro: a política econômica, e reconhece as mudanças impostas pelas iniciativas traduzidas em megaprogramas: “No plano econômico, o regime tem conseguido vender também a idéia de ‘avanço’. O País dispõe de uma infra-estrutura incomparavelmente mais bem montada do que antes, estradas, sistema de comunicação moderno. Cresce o valor da produção de manufaturados em relação ao dos bens primários. Dizer o contrário – insistem – seria negar a evidência. Acontece que a aceitação da premissa condiciona o pensamento, fecha o círculo de giz dentro do qual se deverá girar forçosamente. Já que há ‘avanço’ e desde que os rumos da economia estão inapelavelmente definidos, restaria discorrer sobre medidas circunstanciais que podem ou não ser tomadas. Se coincidem com as do governo ou delas discordam, pouco importa. Não alteram os rumos do ‘capitalismo avançado do ponto de vista produtivo’, implantado no País”. Cartas de Agosto nomia e seus condutores permanecessem a serviço dos seus ditames e entregassem obedientemente os mercados às suas fabricações e as matérias-primas vitais à manutenção da sua produção. Essa visão rósea lembra certos ministros que hoje enaltecem, por exemplo, as peripécias do agronegócio, que interessa basicamente às multinacionais que fornecem sementes, vendem máquinas, adubos, fertilizantes e insumos variados, exportam a produção e controlam seus preços. Uma reorientação desse modelo não interessaria a essas forças nem a seus representantes explícitos. Interessaria a quem? Ouçamos uma pequena seleção de Arraes: “E é justamente o que ocorre no plano social, em que as distorções são por demais conhecidas: marginalização, desemprego, milhões de jovens carentes e abandonados, violência urbana, baixos salários, conflitos de terra, crescimento desordenado das periferias das cidades. É inegável o agravamento das condições de vida do povo, após o golpe de 1964. Há, por conseguinte, 39 Evaldo Costa (Org.) um retrocesso que atinge a maioria da população, e o País, afogado em dívidas, com suas riquezas e até grande parte do seu solo alienados. Uma minoria avançou e a ela interessa um consenso em torno da idéia de continuar avançando. Mas à maioria, cujas condições de vida se tornam intoleráveis, interessa que se diga que não houve ‘avanço’, que houve retrocesso e que o caminho seguido até agora deve ser abandonado.” 40 A grita pelo impeachment, ainda átona demais para ecoar nas ruas, o que criaria a outra condição necessária ao seu prosseguimento, passou a interessar quase exclusivamente ao grupo de FHC e seus aliados clássicos, políticos, da mídia e empresariais, pelas razões expostas. E à esquerda, o que interessa agora? Deve-se retornar a Arraes, pensar sobre suas palavras: “interessa que se diga que houve retrocesso e que o caminho seguido até agora deve ser abandonado”. O que deveria interessar à esquerda é então a reorientação da política econômica e do conjunto articulado dos campos de ação da sociedade. É a definição de novas políticas públicas que farão do Brasil um Estado-Nação, embora tardio, tarefa inconclusa pela presença cada vez mais forte do interferente estrangeiro. E uma pergunta essencial se coloca: o que fez Lula, que se declara representante da esquerda? César Benjamin, petista fundador que pulou da barca no início dos anos 90 ao perceber os rumos do partido nas mãos do Campo Majoritário – que desembocaram no que se vê agora –, identifica em Lula comportamentos esquizofrênicos, como bradar que a elite não manda nele e ao mesmo tempo trocar o irrepreensível Olívio Dutra pelo indicado do repreensível Severino. Ou: “Depois de dois anos e meio na chefia do governo, continua a atribuir as dificuldades a uma herança maldita que ele só fez agravar”. Em plano mais vasto, pode-se documentar a esquizofrenia do governo na comparação de suas políticas interna e externa. Aproximações com Chávez e outros desagradados de Washington na América Latina, oposição na OEA aos planos bushistas de “estabelecer controle” sobre a “democracia” na região, alianças estratégicas com China, África do Sul e Índia, namoros com Rússia e a CEI, censura velada à invasão do Iraque, pretensão de assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, combate ao protecionismo agrícola dos ricos, aproximações com árabes e africanos etc.: a lista configura um arsenal típico da política externa de um país afirmativo e independente. No plano interno, o oposto, e basta uma constatação: a manutenção da macropolítica econômica, do pagamento dos juros mais altos será candidato? Por qual partido? Ou qual PT? Os controladores até ontem do PT serão expulsos e a esquerda predominará? Ou os “puros” deixarão o partido e esvaziarão para sempre aquele que foi a grande esperança dos brasileiros e da esquerda latino-americana, com projeção mundial? Ao lado disso, nenhum gesto na direção de iniciativas que poderiam realmente desenvolver o país e beneficiar a população: a produção de bioenergia (que empregaria milhões, criaria tecnologia própria e alavancaria as exportações, o que não interessa nem às petroleiras nem ao agronegócio), o controle dos capitais externos, os esforços aplicados nas culturas da biodiversidade, uma política nacional para a água, a produção de alimentos, uma nova política de transportes com ênfase em hidrovias e ferrovias, a implantação de uma indústria farmacêutica dedicada às doenças de pobres, a ancestral reforma agrária etc. Absoluto descompasso: o Brasil dança samba lá fora e chacoalha jazz aquém-fronteiras. E a pergunta terrível se impõe: já que internamente Lula representa a continuidade das práticas da direita, agravadas pela adoção do caminho da corrupção de governo, o impeachment interessa à esquerda? Esta talvez seja a indagação mais inquietante, desde que se estabeleceu, como axioma político, que o Lula mantenedor das orientações neoliberais e líder do grupo arquiteto de uma catedral de corrupção não interessa a ninguém. Talvez devêssemos mais uma vez ouvir de Arraes suas perenes reflexões de mais de duas décadas atrás: As perspectivas da esquerda ainda são nebulosas. Sob ataque, ao menos enquanto a artilharia não se move para outros alvos ainda pouco visíveis, encara a necessidade de defesa do mandato de Lula ao mesmo tempo em que, nesse compasso, outorga tempo ao “lado limpo” da oposição para articular-se e ganhar espaços. Lula Cartas de Agosto do mundo, do superávit primário, do seqüestro de recursos destinados ao social (como as rendas do INSS e da CPMF) para remunerar rentistas, medidas camufladas por programas sociais paliativos que se recusam a decolar, e ainda arrocho salarial aplicado ao funcionalismo. Ou seja: o cenário de sempre. “A questão nacional volta, portanto, a ser posta com toda a força. É preciso definir se o Brasil é uma Nação e que nação é o Brasil nos dias que correm. São complexos os interesses que se cruzam dentro de seu território, muitos dos quais são direcionados de fora. No Brasil, o Estado deixou de estar a serviço da sociedade. Afastou-se dos problemas humanos. Desligouse da Nação. “Noutros termos, os homens no poder são menos importantes do 41 que os mecanismos implantados ao longo do tempo, seguindo uma estratégia bem definida. A estrutura produtiva teria que se adaptar a necessidades existentes e que passariam a poder ser satisfeitas, em vez de continuar a ser função das pressões causadas pela dívida externa, pelos juros, dividendos, renda de capitais que absorvem por volta de setenta por cento das exportações. A construção da Nação não pode ser confundida com o atendimento dos interesses de grupos que hoje dominam a economia. Estes agem como meros ocupantes de um espaço que lhes foi aberto e que interessa à sua busca de maiores lucros. Consiste na construção de uma sociedade em que todos caibam, sem discriminações. Evaldo Costa (Org.) É tarefa que só o povo tem condições de executar. Para tanto, é necessário que detenha o Poder. Embora todas as Constituições, inclusive a outorgada e em vigor, declarem que ele emana do povo, o fato é que nunca o exer- 42 ceu. Cabe lutar para que isso seja uma realidade”. A esquerda, as forças sociais, os movimentos populares, os realmente democratas, ou que nome tenham, além de determinar o que pretendem no poder, devem comprometer-se a respeitar suas próprias determinações. Estas últimas palavras de Arraes podem ser lidas em programas e documentos do PT. Mas não é de palavras que se trata, e, sim, da diferença entre estadistas e negocistas. Se houver estadistas na esquerda, que se apresentem; caso contrário, deixem-nos em paz. Miguel Arraes de Alencar, preso em 64 por recusar-se a renunciar pela força das armas, exilado durante catorze anos, único brasileiro eleito três vezes ao governo de um estado, pensador e humanista, retirou-se da cena. Respeite-se o seu legado. Chico Villela é escritor e editor. Fonte: www.lainsignia.org Miguel Arraes, um forte Cleofas Reis Por questão de oportunidade, sem nunca me ter aproximado dele pessoalmente, admirava-o de longe. Tive chance, entretanto, de manifestar essa admiração de público, primeiramente na sua campanha para governador, naquele mesmo ano, quando, ainda terminando o segundo grau, cheguei a dela um pouco participar, circulando num carro de som e convocando os ouvintes pelo microfone: “Derrubem três usineiros de uma só vez (João Cleofas, Cid Sampaio e Armando Monteiro Filho), votando em Arraes para governador.” Também tentei ser orador num palanque, na periferia do Recife, beirando o pi- toresco: “Até eu, que sou Cleofas, escolhi Arraes”, bradei. No ano seguinte, Arraes, já ocupando o Palácio das Princesas, tive nova oportunidade de apóialo, dessa vez através do jornalzinho A Voz do Colégio Estadual. De circulação restrita mais aos corredores e salas do antigo Ginásio Pernambucano, escrevi dois editoriais no pequeno periódico. Num deles, sob título “Falsa intranqüilidade”, defendia o governador de ataques da imprensa e de seus adversários, destacando que eram motivados pelo fato de Arraes querer mudar e corporificar um governo que não se dispunha, como sempre ocorrera, a ser “capitão-de-mato de latifundiários e usineiros”. A propósito desse clima forjado de instabilidade, o próprio Arraes, num discurso em julho de1963, para cerca de 100 mil pessoas e na presença do presidente João Goulart, denunciava que a direita estava criando no país “um falso clima de intranqüilidade, de ameaça às instituições”, com isso abrindo caminho “para aventuras golpistas que detenham nosso processo de O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas A passagem de um mês da morte de Miguel Arraes me reporta ao já longínquo ano de 1962, quando exerci pela primeira vez a ação de cidadania do voto. E como diz a sabedoria popular que do primeiro voto (vale também para outras atitudes, garante-se) a gente nunca esquece, tal me ocorreu, tanto mais porque foi uma decisão de que jamais me arrependeria e que seria repetida por três vezes. emancipação política e econômica graças à supressão das liberdades democráticas”. Foi o que ela conseguiu menos de um ano depois, com o golpe de abril de 1964. Evaldo Costa (Org.) Quando de sua primeira reeleição, em 1986, assinei artigo no Diário de Pernambuco. Eis um trecho: “Só deu Arraes na cabeça. Porque na cabeça do povo estava forte ainda a figura de um governante que, há pouco mais de 20 anos, tentou mudar as diretrizes de governo em favor dos mais humildes, procurou deslocar o eixo da máquina estatal para beneficiar os mais necessitados, pela primeira vez na história de Pernambuco buscando retirar a estrutura do Estado de eterno instrumento dos privilegiados. E por isso foi deposto, preso e exilado”. 44 Se possível resumir a figura de Miguel Arraes num termo, penso que a palavra “forte” combina com sua trajetória de vida. Forte ele foi, como tantos outros nordestinos, quando cedo deixou seu Sertão para tentar vôos mais altos na cidade grande; forte mantevese quando escolheu uma posição política que olhava para as classes carentes, diferentes da média a que pertencia; forte mostrou-se quando optou pela prisão e pelo exílio ao invés de submeter-se aos militares e renunciar ao Governo de Pernambuco, como estes queriam em 1964; forte mostrou-se dando a volta por cima, ao sofrer a grande derrota eleitoral quando pela quarta vez tentou governar o Estado; e forte permaneceu durante toda a vida, posicionando-se sempre com hombridade e coerência em quaisquer circunstâncias da sua carreira política, diversamente do que tem acontecido com a grande maioria dos eleitos para cargos executivos e legislativos em nosso País. Para atingir posição tão alta no coração do povo e na história, Miguel Arraes não precisou apresentar-se como mágico salvador da pátria, pois sempre contou com a participação popular na sua ação de administrador e político. Estava certo ao encerrar o discurso de posse como governador pela primeira vez, quando afirmou citando Drummond: “Acredito ter tudo o que um homem precisa ter para o trabalho, e que outra coisa não é senão o que foi dito pelo poeta: ‘Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo’”. Cleofas Reis é jornalista. Fonte: Jornal do Commercio. O “véio Arraia” e o livrinho Clóvis Rossi Certo ou errado nas suas propostas, o fato é que valia a pena conversar com Arraes. Não, não estou dizendo que era um santo, só porque morreu, como é do hábito brasileiro. Mas visto agora em perspectiva, ainda mais na comparação com esse pessoal do PT que se dizia de esquerda (como ele, Arraes), é até covardia. O que mais me incomodava nas conversas com Arraes (e também com Leonel Bri- zola) era sabê-los vítimas de uma anomalia: um e outro poderiam ter sido presidentes da República, não tivessem suas carreiras políticas interrompidas pela violência de uma ditadura. Não sei como seria uma Presidência Arraes ou Brizola. Mas aposto que, se as coisas tivessem seguido o curso normal, com eleições nas épocas previstas, sem cassações e banimentos por motivos ideológicos ou perseguição política, o país seria melhor do que é. É por isso que, contra a cobrança de muito leitor, continuo achando que seguir o que está escrito na Constituição é mais correto do que inventar Constituinte, eleição antecipada, vetar o vice porque é a favor da queda dos juros ou qualquer outra mágica que não esteja no livrinho. Talvez o Brasil tenha líderes tão medíocres justamente porque o arbítrio obrigou tantos outros a hibernarem por tanto tempo. Clóvis Rossi é jornalista. Fonte: Folha de S. Paulo. O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas N a cobertura das eleições estaduais de 1986, calhou de eu ser convidado por Miguel Arraes, o candidato (do PMDB) que acabaria vitorioso, para viajar com ele para o Sertão pernambucano. Inesquecível. Melhor que todo um curso de sociologia e política. O “véio Arraia”, como era chamado pelos sertanejos, parecia um “padim Ciço” para a gente humilde, mas era ao mesmo tempo um dos raros políticos capazes de conversar sobre o Brasil como país. A maioria dos outros, seus contemporâneos ou os atuais, fala do Brasil apenas como um colégio eleitoral, um manancial de votos. O país em si que se dane, como bem mostra o escândalo em curso. Arraes taí Cristovam Buarque Q uando morrem os líderes, a orfandade vem, sobretudo, da ausência de bandeiras deixadas para seus seguidores. Fica o vazio, o silêncio da xmorte. O vazio de hoje está amplificado pela falta de bandeiras próprias da esquerda: não temos quem fale por nós, nem o que dizer por nós mesmos. E se soma à frustração com o governo que esses mesmos líderes ajudaram a construir – o governo Lula. Mas o sentimento de Arraes já era de frustração, como pude perceber em nossa última conversa, uma semana antes de sua hospitalização. Ele percebia que a esquerda havia perdido o rumo. Não estávamos nos ajustando, mas sim nos entregando à realidade dos novos tempos. Mais do que aceitar a realidade da economia e do mundo que se seguiu à queda do Muro, à globalização, ao liberalismo, tínhamos abandonado valores e princípios que são permanentes. A esquerda, e sobretudo o governo, tinham abandonado o povo para ficar com as corporações, deixado de lado a educação básica para atender às reivindicações dos universitários, preferindo os sindicatos à Nação, comemorando pequenas assistências em lugar de programas transformadores. E Arraes sabia que era preciso reorientar nossa luta, buscar a unificação de todos aqueles que ainda desejam um Brasil diferente. Arraes, assim como os demais líderes citados acima, morreu tentando. Morreu carregando no coração de 88 anos os mesmos compromissos feitos aos 18. Morreu como o líder das esquerdas, o último líder que conduziu minha geração. Deles podemos e devemos discordar, mostrar seus acertos e erros. Mas não podemos negar que tinham em comum o sonho de um Brasil diferente. O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas Nem Brizola nem Prestes, nem Darcy nem Furtado, nem Barbosa Lima nem Marighela, nem Gregório nem Betinho, nem Dom Hélder nem Arraes. A esquerda de hoje ficou completamente órfã. O último de nossos líderes partiu. Esses líderes acreditavam que era possível construir um Brasil soberano, com uma população bem educada, uma renda desconcentrada, uma desigualdade regional diminuída, com recursos nacionais a serviço da Nação e do povo. Lutaram para completar nossa Independência, a Abolição e a República. Seus caminhos eram as reformas, a mobilização social, não eram as pesquisas de opinião e o marketing político. Todos eles foram homens de diálogo, com princípios, todos se ajustaram às mudanças da realidade, mas não se entregaram a ela, não abandonaram seus princípios e sonhos. Evaldo Costa (Org.) É por isso que dei a Arraes meu primeiro voto, em 1962, para governador de Pernambuco, e 43 anos depois, só tenho orgulho do voto que então lhe dei. Talvez seja esse o maior conforto que possamos ter, no momento da morte: o 48 fato de não termos nos arrependido de votar nele. É o melhor elogio que um político pode receber. Votaria nele outra vez e com maior admiração. Por seu exemplo permanente e por suas bandeiras permanentes é que “Arraes taí”. Com esse slogan comemoramos sua volta, depois de quase duas décadas no exílio. Esse slogan continua válido. Porque o que ele começou ainda não foi completado. Arraes taí, e nós temos a obrigação de continuar lutando pela causa que ele carregou com coerência, coragem, lucidez. Ajustando-a quando necessário, mas sem entregá-la jamais. Cristovam Buarque é senador pelo Distrito Federal. Fonte: Jornal do Commercio. Senado homenageia Miguel Arraes A trajetória do ex-governador Miguel Arraes na vida pública foi exaltada por correligionários e adversários, ontem, no Senado Federal. Ao final da sessão, os senadores fizeram um minuto de silêncio em reverência à sua memória. “sempre foi um adversário correto e ético” e o comparou aos principais homens públicos do Brasil – como Tancredo Neves, Ulysses Guimarães e Leonel Brizola – e de Pernambuco – como Joaquim Nabuco, João Cleofas e Agamenon Magalhães. No discurso que fez em homenagem ao ex-governador e exdeputado Miguel Arraes (PSB), o senador Sérgio Guerra (PSDB-PE) destacou dois aspectos de sua vida: a luta contra a pobreza e o compromisso com a união dos países emergentes, contra as imposições dos países desenvolvidos. O senador lembrou como foi liderado por Arraes, “cuja vida foi marcada pela coerência”. “Aqueles que desejam fazer um Brasil melhor e moderno devem seguir o caminho de Arraes”, recomendou Sérgio Guerra. Após lembrar que começou a conviver com Arraes na década de 60 – “sempre em campos opostos, salvo algumas exceções como o movimento pela redemocratização do País” –, o senador Marco Maciel (PFL-PE) ressaltou – no discurso no qual homenageou o ex-governador – “a coerência, seu espírito público, a firmeza de suas convicções e o forte instinto de nacionalidade que sempre marcaram a vida do ex-governador”. O líder da Minoria, senador José Jorge (PFL-PE), lamentou o desaparecimento de Arraes, que, como interlocutor do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, poderia bem aconselhá-lo na crise que o País está enfrentando. José Jorge reconheceu que o ex-governador “O ex-governador e ex-deputado Miguel Arraes foi um grande brasileiro que fará muita falta ao País”, disse a líder do PT, senadora Ideli Salvatti (SC), ao reverenciar a memória de Arraes. Após lembrar que ingressou no PSB a convite do ex-governador, o senador Antônio Carlos Valadares (PSB-SE) disse que “com a morte de Miguel Arra- O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas Dilze Teixeira es desaparece um dos líderes históricos da nacionalidade do Brasil que vai fazer uma falta enorme”. “De Miguel Arraes vai restar, principalmente, a memória da luta pela libertação do homem no campo, base de toda sua ação política”, disse o ex-presidente e senador José Sarney (PMDB). “O que vai ficar daquela figura legendária é aquele político capaz de despertar fidelidades em gerações e em multidões do Brasil e de sua terra”, concluiu Sarney. Após reconhecer divergências com Miguel Arraes em relação à condução dos processos político e econômico do País, o líder tucano Arthur Virgílio exaltou a honradez, coerência e o espírito público do ex-governador de Pernambuco. Evaldo Costa (Org.) Já o senador Cristovam Buarque (DF), que se prepara para deixar o PT, observou que apesar de ter passado por vários partidos políticos Arraes nunca mudou um ponto sequer em seus compromissos, especialmente com os nordestinos. 50 Segundo ele, “o sonho de Miguel Arraes de um País independente com a inclusão das massas sociais não vai sair dos atuais partidos políticos”. Depois de registrar que sempre manteve uma relação de cordialidade com Arraes, o senador Antônio Carlos Magalhães (PFLBA) contou um episódio ocorrido em 1963, por ocasião do 10º aniversário da Petrobras, quando foi procurado pelo então governador de Pernambuco. Na ocasião, contou, Arraes pediu-lhe para “trabalhar contra o estado de sítio que o expresidente João Goulart queria implantar no País para retirar Carlos Lacerda do governo da Guanabara. Em compensação, o Exército exigia que Jango retirasse Miguel Arraes do governo de Pernambuco”. Dilze Teixeira é correspondente do Jornal do Commercio em Brasília. Fonte: Jornal do Commercio A modernidade em Miguel Arraes A forte e emocionada participação do povo pernambucano no funeral de Miguel Arraes iluminou ali, naquele momento denso, a existência de um vínculo raro. De um vínculo de companheirismo entre um homem público e sua gente. Vínculo que se criou – e se aprofundou no tempo – em conseqüência do compromisso de Arraes com as lutas do povo e de sua visão do lugar desse mesmo povo na construção da verdadeira modernidade nacional. Moderno. Esta é a palavra certa, talvez para provável surpresa daqueles que têm uma visão restritiva do termo. Para esses, não custa lembrar que, para milhões de famílias de brasileiros, em todas as regiões, estar atualizado é alimentar-se, ao menos frugalmente, três vezes a cada dia. Não há modernidade no vácuo – ela existe em circunstâncias históricas concretas. E a modernidade que se vê na trajetória de Miguel Arraes é de outra natureza. Nasce de seu enraizamento em nossa experiência social. E da consistência de suas ações. Deputado estadual, prefeito, deputado federal, três vezes governador, refundador e presidente nacional do Partido Socialista Brasileiro, Dr. Arraes foi, ao longo de meio século, referência permanente para a esquerda brasileira por sua determinação na luta democrática, na defesa da soberania nacional e na crença na força da organização popular. São princípios políticos que norteiam toda a sua vida, gestados desde a convivência com a fome dos sertanejos nordestinos até o testemunho da miséria das massas de trabalhadores das regiões metropolitanas do país. Mas dr. Arraes foi, também, um pioneiro, um homem com visão de futuro. Ele pensou e realizou 40 ou 50 anos atrás o que só muito tempo depois outros governos de outros Estados ousaram fazer. Na Prefeitura do Recife, em 1961, mobilizou artistas, intelectuais e estudantes no Movimento de Cultura Popular, levando educação e cultura às multidões de miseráveis dos morros e alagados da capital pernambucana. O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas Eduardo Campos Em seu segundo governo, criou a fundação de amparo à pesquisa mais antiga do Brasil, depois da de São Paulo. E, com um intenso programa de eletrificação rural, incluiu 200 mil famílias pernambucanas no mundo da produção e do consumo em bases modernas. Pernambuco é, hoje, o Estado nordestino com maior índice de eletrificação rural graças a esse trabalho. Conforme dizia o próprio Dr. Arraes, modernidade, para quem não tem acesso a energia ou água tratada, pode ser “um bico de luz e uma torneira jorrando água em casa”. Evaldo Costa (Org.) Ainda no seu primeiro governo, interrompido pela brutalidade da ditadura de 64, ele implantou o Lafepe, laboratório pioneiro que, até hoje, produz remédios a baixíssimo custo para a população, sendo o embrião de projetos como o Farmácia Popular. Em 1987, pôs em funcionamento o primeiro laboratório de biotecnologia do Nordeste. E, com essas iniciativas, uniu o saber dos cientistas à sabedoria do povo no desenvolvimento de soluções adequadas aos problemas concretos da população. 52 Essas experiências tiveram importância vital para que eu pudesse dar conta da tarefa atribuída pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva quando me nomeou ministro da Ciência e Tecnologia. O povo na agenda dos cientistas, a ciência no cotidiano do povo. Não há nada mais moderno do que isso. O Brasil, hoje, é um escândalo social. Para que venha a se realizar plenamente como nação moderna, investimentos em infra-estrutura e atualizações científicas e tecnológicas serão ferramentas fundamentais, mas insuficientes. Nossa modernização terá de passar, necessariamente, pela correção, em profundidade, das perversões geradas pelo modelo econômico imposto à nação por décadas e do qual, apesar dos esforços de setores do governo do presidente Lula, ainda não conseguimos nos libertar. Contra esse modelo se insurgiu Miguel Arraes por toda sua vida com as armas que tinha às mãos: a clareza e a firmeza de suas idéias, a capacidade de lutar por elas todos os dias e o poder de aglutinar, com as suas palavras, o apoio de milhares de pernambucanos, de nordestinos, de brasileiros. Esta é a lição que Arraes nos deixa. Lição ao mesmo tempo radical e generosa: ser moderno é combater a miséria e a ignorância. É promover a inclusão social. É assegurar o acesso de todos aos benefícios do conhecimento. Não são tarefas fáceis. Comprometerão o trabalho de gerações. Mas são tarefas possíveis para quem, como Miguel Arraes, sabe que, para que avance a luta do povo, basta – como ensinou o poeta – ter as duas mãos e o sentimento do mundo. Eduardo Campos é governador do Estado de Pernambuco. Fonte: Folha de S. Paulo Arraes no Palácio do Povo O Palais du Peuple – Palácio do Povo – ocupa um quarteirão da cidade de Argel e faz esquina com a Avenida Franklin Roosevelt, uma das artérias mais movimentadas da cidade. O palácio, como quase todo o casario ao redor, é caiado de branco, com portas e janelas pintadas de azul. Ali, no número 21, Miguel Arraes, governador de Pernambuco, banido pelo regime militar, inaugurou, em 1965, um exílio de 15 anos. O destino assim o quis. Conforme dizem os árabes: Maktub, estava escrito. Tendo recusado a submeter-se à vontade dos militares e jurado honrar o cargo que o povo pernambucano lhe outorgara, aquele palácio certamente surgira a Arraes como uma espécie de metáfora. Os aposentos anexos do Palácio do Povo, retomado dos franceses após sete anos de uma das guerras coloniais mais violentas, serviram para abrigar, por um dos acasos da História, aquele que, durante toda sua vida, centrara o pensamento sobre o destino de um outro povo, o brasileiro. A Avenida Franklin Roosevelt, onde residiu Arraes, desemboca numa das principais ruas do centro da cidade, a Didouche Mourad, nome de um herói e mártir, lugar de muitos embates da Batalha de Argel. Muitas vezes descemos juntos aquela rua ladeirosa, em busca de notícias chegadas com atraso à caixa-postal da Grande Poste – o prédio de arquitetura mourisca do correio central. As comunicações eram falhas, a vigilância policial no Brasil era cerrada, não convinha usar endereços residenciais. Caixas-postais e brasileiros que chegavam à Europa eram as fontes de informação mais seguras. No caminho de volta sentávamos no Café Bardo, vizinho ao museu de etnologia de mesmo nome, para tomar um café, falar de política, de trabalho, da situação internacional, de leituras. Arraes tinha sempre uma história para cada circunstância, uma ilustração para cada caso. Depois da conversa, seguíamos para seu escritório, simples: uma mesa de madeira e estantes improvisadas, que abrigavam documentos, livros e jor- O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas Everardo Norões nais, nas mais diferentes línguas. Suas anotações, numa caligrafia tortuosa e graúda, concatenavam observações que desembocariam, mais tarde, no livro publicado pela famosa editora parisiense François Maspero, Brésil, le pouvoir et le peuple, proibido no Brasil. Eu gostava de olhar suas mãos quando ele escrevia. Mãos delicadas que contrastavam com sua maneira quase rude, mãos de gestos raros, que acompanhavam um falar quase silêncio, de cortes ríspidos, induzindo o interlocutor a perseguir a linha de pensamento do estrategista nato. O raciocínio, instintivamente dialético, nem sempre era fácil de ser alcançado por pessoas habituadas às categorias da lógica formal. Evaldo Costa (Org.) Quando estava exposto no Palácio das Princesas, morto, pude mais uma vez olhar suas mãos, finalmente cruzadas. E, à vista delas, chegaram-me lembranças que a História nunca vai contar, de um exilado solitário e firme, apesar de abandonado por muitos, até mesmo por alguns que depois voltaram a cercá-lo no mesmo palácio que o acolheu pela última vez. Em 54 Argel, sonhava com um Brasil bem diferente daquele que encontraria no seu retorno. Nas vezes em que o futuro lhe inquietou, certamente foi por ter pressentido que a nossa tragédia coletiva poderia resvalar para uma quase comédia... O carisma é um atributo especial de um indivíduo e Arraes teve esse dom, percebido não apenas por nós, pernambucanos e brasileiros. No exílio ele era também observado assim, e o povo que o acolheu o considerava como um dos seus: um frére, um irmão. Fato singular, o nome Arraes, em árabe, significa cabeça, chefe, senhor do barco. Os argelinos que o conheceram, quando cruzarem agora aquela esquina do Palácio do Povo, lembrar-se-ão dele e hão de murmurar, como fazem ao pensar num irmão defunto: “Deus é o mais alto, o Misericordioso e o Misericordiador.” Everardo Norões é poeta e tradutor. Fonte: www.psbpe.org Coerência política D iante da crise política que está atordoando a cidadania brasileira, desmascarando vestais e travestindo trânsfugas de ontem e hoje trambiqueiros, uma releitura de Miguel Arraes – Pensamento e Ação Política, coletânea organizada por Juareiz Correya, Raimundo Carrero, Ricardo Leitão e outros, edição Topbooks, reoxigenaria ideários, afastando a tentação de votar nulo e branco nas próximas eleições, ato muito covarde. O livro caberia como uma luva naqueles que acreditam numa esquerda nada sectária e extremamente criadora – a expressão é de Antônio Callado, no prefácio –, que acreditam num Brasil soberano, nunca amedrontado nem tampouco arrogante, como sempre se portou o ex-governador de Pernambuco, tanto nos tempos de poder como nos períodos de vacas magras, no exílio. O texto último do seu terceiro discurso de posse, em 1994, ratifica opinião do prefaciador do livro: “Trata-se de um dos homens mais contidos, mais bem educados que me foi dado a conhecer”. Em 1963, quando da sua posse primeira, a advertência foi por demais crivada de responsabilidades: “Eu não tenho, como não têm Vossas Excelências, o direito de ignorar que, pelo menos historicamente, a era do indiferentismo e do faz-de-conta já acabou, os tempos agora são outros, e não é preciso ser profeta para entender o dia de ontem e o de hoje.” Sem arroubos, sem comparar-se a ninguém, percebendo-se parcela nutricional da ânsia de um povo sofrido em tornar-se também partícipe do desenvolvimento. Sem desejar nunca ser o Sassá Mutema da novela famosa, personagem que bem poderia ser analisado pelo atual presidente da República, Dr. Arraes já advertia no dia da sua primeira posse: “Pois ninguém se iluda: assim como não me conseguiram transformar em agitador e incendiário, também não conseguiram e jamais conseguirão transformar-me num bom moço, acomodatício aos privilégios que sempre combati e posso agora mais e melhor combater, no governo do Estado”. O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas Fernando Antônio Gonçalves Evaldo Costa (Org.) O ex-governador conhecia como deveria se processar o desenvolvimento das grandes regiões do planeta: “O capitalismo, ou qualquer sistema só existe quando atravessa toda a sociedade, amarrando interesses das diferentes camadas, de forma a que constituam um todo homogêneo, mesmo que as contradições perdurem entre elas. Por não ter conseguido constituir esse todo homogêneo, é que ruíram regimes do Leste”. 56 E não se descuidava da conjuntura brasileira: “É fundamental reexaminar, setor por setor, a economia do País e escolher um caminho que os possam preservar, removendo, ao mesmo tempo, os males do cartorialismo e do corporativismo que estão na base de muitos deles”. E ainda percebia a inocuidade de certos debates: “Não defendemos nem um Estado mínimo nem máximo. Defendemos e lutamos, isso sim, por um Estado que, a partir de suas peculiaridades, cumpra suas finalidades públicas, que busque proteger os mais fracos e carentes da voracidade e da ambição dos mais fortes, que atue como elemento indutor do desenvolvimento econômico dentro da economia de mercado, que promova uma efetiva redistribuição das nossas imensas riquezas, que garanta, enfim, a prevalência de nossa soberania e de nossa independência. Essa a essência do nacionalismo contemporâneo, do nosso nacionalismo”. Na crise atual, as reflexões de Dr. Miguel Arraes de Alencar farão muita falta. Seguramente, a sua não-mediocridade será por demais sentida. Suas análises não-setorializadas não mais clarificarão os jovens, muito embora sua autenticidade política, seu desassombro diante do arbítrio e sua imensa capacidade de saber fazer a hora jamais tornar-se-ão desprezadas pelos politicamente atilados, que contribuem para o fortalecimento das instituições populares. Reler o que não mais pode ser reelaborado é um modo de comprovar a coerência política do ex-governador Arraes. Com quem um dia conversei, levado pelas mãos do escritor Maximiano Campos. Para nunca mais dele me esquecer. Fernando Antônio Gonçalves é professor universitário e pesquisador social. Fonte: Jornal do Commercio Miguel Arraes G overnador de Pernambuco por três vezes, Miguel Arraes definitivamente não será lembrado por obras que tenha feito nas suas administrações. Ficou na lembrança dos pernambucanos mais por atitudes em defesa deste ou daquele segmento social do que por construções em pedra e cal. E é, exatamente por isso, que Miguel Arraes sempre será lembrado de forma tão apaixonada no imaginário coletivo. Advogado no IAA, economista da Secretaria da Fazenda, Arraes escolheu a política para ganhar a vida e...votos. Virou deputado, prefeito e governador para fazer aquilo que na época foi uma espécie de revolução. Colocar o Estado como árbitro em lugar de parte nas questões sociais. O Acordo do Campo entre trabalhadores rurais e empresários da agroindústria canavieira nada mais foi do que o reconhecimento de direitos sociais elementares ao homem do campo. Dito isso, hoje parece natural nas relações de trabalho. Na época não foi. E até foi usado pelos seus adversários nas conspirações de 1964. Pode ser contraditório que um homem que, por três vezes governou Pernambuco, tenha como referencial administrativo eventos como um acordo de 1961 e mais tarde (já no segundo governo, em 1987), quando logo após a posse, evitou um novo choque entre trabalhadores rurais e produtores de cana-de-açúcar, celebrando novo acordo. Mas talvez essa seja mesmo a marca de Miguel Arraes, que agora entra para história. ICMS e palha de cana Qualquer pessoa que investigue a obra administrativa de Arraes encontrará essa referência. Em 1988, quando ele diferiu o ICMS cobrado pela Secretaria da Fazenda da cana-de-açúcar entre os plantadores e a usina e passou a cobrá-lo no produto final, adaptando-se à tendência fiscal na indústria, segue sua linha histórica. E mesmo programas como eletrificação rural, expansão dos recursos hídricos, crédito agrícola e o Chapéu de Palha (que assistia os trabalhadores rurais da Mata) são, essencialmente, dessa linha. O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas Fernando Castilho Soluções... Pedro Eugênio, que foi secretário de Fazenda, lembra que Dr. Arraes sempre via soluções de economia a partir de soluções tecnológicas de baixo custo. Ele lembra que Arraes foi ao confronto com técnicos da Celpe quando eles resistiram à eletrificação monofásica com a qual poderia eletrificar bem mais propriedades. ... de baixo custo O argumento, segundo Pedro Eugênio, hoje diretor do Banco do Nordeste, era simples. O sistema monofásico era o que o homem do campo precisava para iluminar sua casa e ligar uma motobomba para irrigar um pequeno pedaço de terra. Se o negócio prosperasse, a Celpe voltava lá e colocava um sistema mais forte. Evaldo Costa (Org.) A decisão de vender a Celpe 58 Dilton da Conti, hoje presidente da Chesf, diz que a venda da Celpe foi sua decisão mais difícil. Quando a revelou a FHC e ele a saudou, Arraes cortou: “Estou sendo obrigado. O Dnae não autoriza reajustes na tarifa e as vizinhas já foram vendidas”. Frustração no final do processo Da Conti acha que Mendonça de Barros, então no BNDES, não respeitou a biografia de Arra- es quando pediu o adiantamento. Postergou o processo até ele se inviabilizar. Arraes que dera sua palavra, e até elogiou FHC, achou que teria reciprocidade. Perdeu. Acesso à água... Tânia Bacelar, que também foi sua secretária, destaca uma preocupação do ex-governador pouco destacada em sua biografia política: o profundo interesse pela água. O acesso à água para as pessoas combinando tecnologias. Ele dizia que China e Europa tinham sucesso por combinar tecnologia tradicional e a de ponta. ... era obsessão Bacelar lembra que Dr. Arraes ia ao enfrentamento quando se insistia apenas nas soluções de ponta. Radicalizava na defesa do pequeno projeto se o grupo insistia na defesa do grande projeto. E até em relação ao setor canavieiro, que era defensor da atividade, entendia a necessidade da diversificação, mas não sua substituição. João Recena, que transformou-se num dos mais próximos secretários de Arraes no último governo, diz que é injusta a percepção de não se preocupar com os grandes projetos de Pernambuco. Arraes, lembra Recena, vendeu o Bandepe. Isso para um político com sua história foi uma decisão emblemática. Mas era importante para Pernambuco. Recena lembra que ele iniciou os gastos com o Até em relação a Suape, a participação de Arraes não ficou marcada no imaginário empresarial, diz Recena. Ele, com ajuda de FHC, foi quem fez a dragagem da bacia externa, construiu a proteção e abriu os arrecifes, fez a dragagem interna e iniciou a construção do berço 1. O maior drama de Arraes, segundo Recena, ficou para o final do último ano do terceiro Governo. A tentativa da venda Celpe. Defensor da presença do Estado na economia, teve que se render aos fatos. Não foi uma decisão fácil para ele, conclui Recena. Cartas de Agosto Prodetur I (herdado de Joaquim Francisco), inclusive recebeu, em Guadalupe, o presidente do BID, Enrique Iglesias. Mas o que se registra são as declarações em que questionava os objetivos do setor. Fernando Castilho é colunista econômico do Jornal do Commercio. Fonte: Jornal do Commercio 59 Arraes e a importância de empreender lutas inglórias Q uando criança, subindo uma íngreme ladeira sem calçamento chamada Capitão Salgueiro, rumo ao Alto do Céu, na localidade de Ponto de Parada, zona norte do Recife, me deparei pela primeira vez com um chafariz e uma lavandaria pública. Havia sido construída por Arraes. Até então as lavadeiras da comunidade desciam até a avenida Beberibe para trazer água em latas e baldes, enquanto no alto da ladeira ficava um dos reservatórios que abastecia a cidade. Sou médico, filho de um médico e de uma professora primária, estudei em escola paroquial e colégio jesuíta. Fui marcado pela Teologia da Libertação, é deste lugar que observo o cidadão Miguel Arraes de Alencar. Tive oportunidade de tratar com Dr. Arraes sobre vários assuntos em muitas ocasiões. Trabalhei com ele por duas vezes. A primeira, como diretor da Secretaria de Saúde, na gestão do exemplar médico Ciro de Andrade Lima. Na segunda vez que trabalhei com Dr. Arraes foi no terceiro governo como se- cretário de Saúde. Nas conversas que tivemos, o ambiente pautava a descontração sem diminuir a importância do assunto. Passava-me a impressão de que sempre falava sério. Em cada conversa havia sempre, para um atento observador, uma mensagem, uma dúvida, um questionamento; às vezes passados em um olhar arregalado, um cenho cerrado, um pender de cabeça, um sorriso escancarado. Era um homem eloqüente no ouvir. Foram muitos os rótulos cunhados pelos seus adversários: subversivo, comunista, centralizador, cacique, mito, caduco, Pinochet, atrasado, dinossauro e outros mais. No entanto nunca o vi tratar um adversário político de maneira desrespeitosa. Tinha uma convicção que as necessárias mudanças deveriam vir por meio de uma ampla aliança de forças com objetivos nacionais e populares. Porquanto cuidava de não fechar portas. Tinha a paciência necessária com aqueles que estavam aprendendo a fazer política e tolerância com aqueles outros que nunca aprenderam. O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas Gilliatt Falbo Durante toda a vida trabalhou para construir este acúmulo de forças, e com a mesma tenacidade se esforçava para ajudar a nossa população excluída a resistir, muitas vezes a sobreviver, para participar como protagonista desta ação. Evaldo Costa (Org.) Isto pôde ser observado inúmeras vezes nos programas dos seus governos com o Movimento de Cultura Popular, Companhia de Revenda e Colonização, Lafepe, Chapéu de Palha, Cestão do Povo, dessalinizadores, Eletrificação Rural, Boa Visão, Expresso Cidadão... Comunidades esquecidas faziam parte das suas preocupações: Galiléia, Bem-te-vi, Matriz da Luz etc. Consciente que havia sido eleito pela maioria, para ela governava. Sempre pude identificar nos atos e omissões de Miguel Arraes algo que concorria para a liberdade e autonomia do nosso povo. Era implacável com o saber opressor 62 dos “técnicos”. Desconfiado e arredio com propostas “avançadas” que serviam mais às vaidades e ao capital que às populações. O seu compromisso popular o levou a firmar posições muitas vezes desagradáveis e mal compreendidas em certos momentos, para posteriormente se constatar a pertinência das suas afirmações. Arraes tratou desigualmente os desiguais, não arredou das suas convicções e nos deu exemplos da importância de resistir e empreender lutas inglórias. Agora cumprida a sua missão, ele nos deixou. Vai Arraes, pois certamente esqueceste uma semente n’algum canto do jardim. Gilliatt Falbo, médico, é ex-secretário de Saúde de Pernambuco. Fonte: Diario de Pernambuco Miguel Arraes e o sentimento do mundo C onheci Miguel Arraes em 1962, logo após se eleger governador de Pernambuco. Foi nas comemorações de sua vitória, em Sertânia, minha cidade natal, quando passei a admirá-lo pela coragem e popularidade. Já aos 16 anos procurei conhecê-lo melhor e, pesquisando sobre sua história, acabei me aproximando da família Arraes. Nos idos de 70, quando estudava Direito na Universidade Estadual do Ceará, no Crato, conheci a mãe de Miguel Arraes, Dona Benigna, como também suas irmãs, as “meninas”, como eram chamadas pelo irmão: Ana, Maria Alice e Almina. Mesmo à distância, acompanhei a trajetória política do ex-governador e de outros patriotas que amargaram o exílio no exterior. Assisti à batalha deles contra a terrível ditadura, em que não se curvaram ante o chicote dos tiranos comandantes do Golpe de 1964. Ao atingir a maioridade, criei o MDB em Salgueiro, candidateime a prefeito do município, em 1976, e passei a defender a anistia e a volta dos exilados. O retorno triunfal de Miguel Arraes ao Brasil, em 1979, marcado pela manifestação popular para o homenagear, foi um dos momentos mais emocionantes da história política do Brasil. Mais de 100 mil pessoas se juntaram no Largo de Santo Amaro para ver, ouvir e tocar no Dr. Miguel Arraes. Convivi com o Dr. Arraes durante 27 anos. Participei das eleições de 1982, quando fui eleito deputado estadual, e ele, federal. Em 1986 cheguei a deputado federal constituinte enquanto Arraes conquistou a direção do governo de Pernambuco, ainda pelo PMDB. Quem aprendeu com o professor Miguel Arraes, jamais errou na carreira política. Meus encontros com ele serviram de lastro e consistência para a vida pública. Após sua partida “precoce” para a eternidade, recordo com muita saudade o último encontro com Arraes, no dia 2 de junho, em poltronas vizinhas, 01 e 02, no vôo 2632 da Varig. Durante mais de 2 horas, entre Brasília e Recife, conversamos sobre as ações do governo federal na região sertaneja do O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas Gonzaga Patriota Evaldo Costa (Org.) 64 Estado. Falamos dos projetos: Luz para Todos, Bolsa Renda, Pronaf, Interligação de Bacias Hidrográficas, Ferrovia Transnordestina, dentre outros. “O povo está consciente dessas ações? Os programas estão sendo discutidos com a população? Não estão. Assim não se resolve esses e outros problemas”, sentenciou Arraes. Falou também sobre as decepções que teve na vida pública, as quais jamais o fizeram desistir de sua luta em prol de um país mais justo e igualitário. Miguel Arraes partiu, porém, ficaram gravados, em mim, a sua história, o seu carisma e a frase de Carlos Drummond de Andrade: “Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo”. Comentou uma vez da sua estada na Argélia, das dificuldades na comunicação com os brasileiros, dos seus filhos, dos problemas enfrentados pelo presidente Lula. Gonzaga Patriota é deputado federal, advogado e jornalista. Fonte: Portal psbpe.org Arraes, o imprescindível Inaldo Leitão O que parecia um aviso logo foi confirmado. Acessei a Internet e lá estava a notícia. O ex-governador e deputado federal Miguel Arraes de Alencar, presidente nacional do PSB, havia falecido naquele sábado 13 de agosto, pouco antes do meio-dia, talvez na mesma hora do inexplicável aviso que eu teria recebido. Devo dizer que não sou espírita, tampouco entendo do assunto e acho que Arraes também não. Até pensei em não mencionar este fato, mas agora é tarde. De Doutor Arraes, como era chamado respeitosamente pelos pernambucanos, tenho boas lembranças e uma prévia admiração. Estudante no Recife, na fase da na- tural rebeldia, costumava bradar um “viva Arraes” em certas ocasiões, como que para demonstrar indignação pela injustiça contra ele cometida – a cassação do mandato, a prisão e o exílio. Noutra vez, já advogado, fui fazer uma audiência no fórum do Crato, Ceará. Visitei a mãe de Arraes, que me mostrou fotos, cartas e outros objetos que abrandavam a imensa saudade que sentia do filho distante. Na saída da privilegiada visita, disse a dona Benigna que Arraes voltaria em breve e que seria governador de Pernambuco e, quem sabe, presidente da República. O que jamais poderia imaginar, naquele momento, era que 23 anos depois eu estaria lado a lado com o mito da minha juventude na Câmara dos Deputados, no exercício da representação popular, como se fôssemos iguais. Perto dele, eu me sentia maior do que era. Conversamos muitas vezes no cafezinho da Câmara, onde os parlamentares se refugiam para a prática do fumo. Certa vez, depois de uma baforada no cachimbo, ele me disse numa voz quase inaudível: O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas C ertas coisas são inexplicáveis, estranhas mesmo. Estava em viagem ao exterior, praticamente incomunicável, sem telefone celular e temporariamente desligado da crise que se abateu sobre o Planalto Central. De repente, não mais que de repente, como diria o poeta, veio-me à mente a imagem de Miguel Arraes, que estava internado em estado grave num hospital do Recife. “Leitão, política é um processo, se você está dentro do processo...”. Noutra ocasião, marcamos um café da manhã para discutirmos minha filiação ao PSB. Estávamos eu, o neto Eduardo Campos e o deputado carioca Alexandre Cardoso. Ao final da conversa, Arraes me disse: “Confio em você. O comando do partido na Paraíba é seu”. Por problemas locais não foi possível ingressar no PSB, mas guardo aquelas palavras como uma referência biográfica. Evaldo Costa (Org.) Arraes partiu, dizemos os crentes, para a eternidade. Eternas, aliás, são suas lições de coerência, de fidelidade aos ideais que 66 sempre professou e às bandeiras populares das quais jamais se afastou. No dia 1º de abril de 1964 o governador estava sob a mira de canhões, pressionado pelos militares a renunciar ao mandato. Não renunciou, pois não ia “trair os que me elegeram”. Acabou preso, mas com aquele gesto simbolizou o Arraes de todos os tempos – um político de coragem e um homem imprescindível, como nos versos de Brecht. Inaldo Leitão é deputado federal pelo Estado da Paraíba. Fonte: Correio da Paraíba Miguel Arraes Inaldo Leitão Já Pedro Simon viu na morte do “mito” o fim de um ciclo de políticos que se dedicaram intransigentemente à defesa do nacionalismo econômico e Cristovam Buarque não perdeu a oportunidade de salientar que ele mudou de partido quatro vezes, sem, no entanto, mudar de lado. Caetano Veloso disse no velório que Arraes se manteve reto e íntegro até o final de sua vida e Carlos Heitor Cony, na Rádio CBN, que ele pertenceu a uma extirpe de políticos que não desonraram a vida pública. Muito ainda será dito por cientistas políticos, sociólogos, e quem mais se dedique ao estudo de sua personalidade, da sua obra de pedra e cal nas três vezes em que governou o Estado, e também dos seus escritos, a maioria dos quais sobre questões políticas e econômicas. Esses haverão de concluir que se tratava do único político nordestino, e talvez brasileiro, que transmitia sinceridade absoluta quando pronunciava a palavra “povo”. Inaldo Leitão é deputado federal pelo Estado da Paraíba. Fonte: Correio da Paraíba O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas D e Miguel Arraes já se disse tudo depois de sua morte, sábado, aos 88 anos de idade. Uns, como o senador Marco Maciel, fizeram questão de destacar a sua dedicação integral à vida pública, a sua coerência política e a sua defesa intransigente dos interesses nacionais. Outros, como o deputado Roberto Freire, enfatizaram a fidelidade dele às camadas menos assistidas da população e a forma digna como portou-se no governo estadual ao ser deposto pelos militares no dia 1º de abril de 1964. Arraes, o amigo do povo Ítalo Rocha Durante o período de internamento hospitalar, um fato me chamava sempre a atenção: muitos colegas de profissão pouco sabiam sobre a obra administrativa do homem que, quando prefeito do Recife, cuidou da alfabetização de crianças, jovens e adultos pobres, construiu as avenidas Sul, Abdias de Carvalho e Conselheiro Aguiar, ergueu a ponte do Limoeiro, concluiu a avenida Norte e concretou a avenida Boa Viagem. Realizações que ficaram para sempre no traçado urbano da cidade. Pois bem, deparei-me, várias vezes, com a pergunta: “Ele fez o quê como prefeito?” Também sabiam pouco sobre o trabalho desenvolvido por Arraes como governador de Pernambuco. Do Acordo do Campo, assinado no primeiro governo, no Palácio do Campo das Princesas, que regulamentou e tornou menos injusta a relação dos trabalhadores rurais da cana-de-açúcar com os usineiros, poucos dos meus colegas mais jovens tinham ouvido falar. Aproveitei e falei também para alguns sobre a preocupação que Miguel Arraes teve, em todos os seus três governos, em tentar diminuir as desigualdades sociais, com a criação de programas para levar à população pobre do interior luz elétrica, água e crédito agrícola. Mas compreendi a falta de conhecimento de alguns colegas em relação à obra do líder político Miguel Arraes. Sou testemunha da aversão que ele tinha de aparecer nos veículos de comunicação. Nunca gostou. Lembro bem que, em 1990, ao ser eleito, proporcionalmente, o deputado federal mais votado do Brasil, o Jornal Nacional, da Rede Globo, quis entrevistá-lo. Ele resistiu o quanto pôde. Finalmente, cedeu. Na manhã do dia seguinte, quando che- O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas C ompareci com freqüência ao Hospital Esperança, no bairro da Ilha do Leite, no Recife, nos quase 60 dias em que o ex-governador Miguel Arraes esteve internado. Carrego comigo, até hoje, com muito orgulho, o fato de ter trabalhado na assessoria de comunicação de Miguel Arraes, entre 1986 e 1990. gou ao Crato para uma comemoração familiar, sentiu na pele a força da mídia. Foi lembrado por todo mundo na cidade pela entrevista que dera ao JN na noite anterior. Evaldo Costa (Org.) No dia da sua morte, 13 de agosto (ele não gostava desse número), alguns colegas mostraram desconhecimento também sobre a deposição do governador Miguel Arraes, ocorrida na madrugada do dia 1º de abril de 1964. Algumas matérias que foram ao ar diziam que “Arraes renunciou sob pressão dos militares”. Muito pelo contrário. Ele não aceitou a pressão dos militares para renunciar ao governo de Pernambuco e, em troca, ganhar a liberdade. Pagou caro. Foi deposto, preso e exilado. E não abriu mão das suas convicções. 70 Mas Dr. Arraes era assim mesmo. Não fazia marketing pessoal, não gostava de dar entrevistas, nunca quis alimentar projetos editoriais sobre a sua vida. Não propagava as obras realizadas por ele. Achava que era uma obrigação fazê-las, e que ao povo cabia julgálas e divulgá-las. Não sei se ele estava certo. Mas talvez essa aversão à mídia seja a responsável pelo fato de alguns dos meus colegas desconhecerem um pouco da trajetória do ícone da esquerda brasileira: Miguel Arraes de Alencar, o amigo do povo! Ítalo Rocha é jornalista. Fonte: Jornal do Commercio O símbolo Jânio de Freitas verno maravilhosamente original, criativo e eficiente, o seu primeiro governo em Pernambuco, encerrado pelo golpe militar. Miguel Arraes fica como símbolo de honradez política e de caráter pessoal. Jânio de Freitas é jornalista. Fonte: Folha de S. Paulo O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas M iguel Arraes foi o mais injustiçado dos políticos relevantes que os militares massacraram. A direita pintou-o como extremista perigoso, e Miguel Arraes, de esquerda, sim, foi sempre anti-radical, sempre convencido de que era possível abrir caminhos para a justiça social sem entrar em guerra com as forças que a criaram e a mantêm. Foi o que fez como condutor de um go- Dr. Arraes, presente! José Áureo Bradley Tive o privilégio de entrar com ele no Palácio do Campo das Princesas, nas quatro principais ocasiões de sua prodigiosa vida política, e só sofri na última, dia 13 de agosto. Sempre agosto. Nessa ocasião, as lágrimas já não me eram exclusivas, nem tão pouco aos meus queridos amigos, seus familiares. A emoção resplandecia nos rostos humildes e sofridos daqueles que sempre identificaram em Arraes o homem símbolo que jamais tergiversara em defesa das causas e anseios populares. Para nosso querido Dr. Arraes, apenas e exclusivamente um norte era divisado, mesmo que as intempéries de uma sociedade corrupta, corroída e nefasta o obrigassem, em certos momentos, pela prudência ou pelos porões da ditadura, a diminuir os passos, sem jamais desviá-los do caminho que seria seu objetivo: os anseios do povo pobre e carente. Na madrugada do seu adeus, presenciei uma cena que guardarei de forma indelével no coração, como uma marca do amor e do respeito dedicados a este ícone da política séria brasileira. Madrugada adentro, chegou diante do esquife, onde dormia seu último sono o grande guerreiro, um velhinho vestido com simples e rotas roupas. Calmamente, retirou de um dos bolsos um chapéu de marinheiro e tentou dar-lhe o formato original. Colocou-o sobre a cabeça e, com uma postura que resplandecia altivez, perfilado, fazendo continência, proclamou: “Governador Miguel Arraes, um humilde marinheiro, como o seu povo, se diz, presente”. O simbolismo daquele ato tocou a todos. Ali estava o guerreiro, um verdadeiro estadista, que, como tal, teve que sofrer com as perfídias dos subservientes, injus- O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas T alvez para alegria do grande poeta Lourival Batista, ele dessa vez saiu pela porta que entrou. Saiu nos braços do seu povo, não mais sob a arrogância das baionetas caladas e das botas deslustradas, mas nos ombros de cadetes que, com suas fardas, polainas e trinchetes reluzentes, pareciam pedir perdão pela truculência de outrora. tos e ingratos, que tentaram, de todas as maneiras possíveis, denegrir a imagem irretocável deste exemplar estadista, esquecendo que a sua blindagem moral era intransponível, e as aleivosias atiradas sobre ele se dissiparão no tempo, como já perdidas estão na justiça e no coração das pessoas sérias, que aprenderam a dedicar-lhe um profundo sentimento de admiração. A ninguém será facultado o direito de desconhecer, por maiores que sejam suas restrições para com o doutor, que em qualquer foro, nacional ou fora das nossas fronteiras, ele se afirmou com uma das maiores lideranças pensantes da política do ontem, do hoje e, sem dúvida, do amanhã e sempre. Evaldo Costa (Org.) Foi com o surgimento emblemático do pensamento de Dr. Arraes que os deserdados do passado começaram a receber uma cacimba de água, um bico de luz em suas casas. Os trabalhadores sentaramse à mesa com o governador para discutir questões inerentes aos pobres e isso é compromisso evidente com as causas populares. 74 As verdades e posturas irretocáveis de um dos maiores homens públicos que este País já teve e aprendeu a respeitar e admirar, retratam-se bem no seu próprio dizer: “As reivindicações do povo têm que ser colocadas e o povo há de compreender o que pode e o que não pode ser feito, porque não vamos governar às escondidas, vamos governar dizendo ao povo o que é possível e o que não é possível fazer, para que o possível se faça logo, e para que o impossível o povo ajude a construir para o futuro.” Este é o governador do povo e o homem que guardarei no peito, enquanto me for possível a vida. Por outro lado, seguirei por todas as plagas defendendo aquele que sempre acompanhei, sem tergiversar um só minuto, a quem aprendi a respeitar por sua firmeza de caráter, liderança indiscutível e postura ideológica, que jamais conheceu o verbo trair. Forte, bravo guerreiro, brigou quase 60 dias com a morte, para que ela, covardemente, recorrendo a trilhões de soldados inimigos, transvestidos em infames bactérias, pudessem quedar seu corpo, mas, jamais conseguiriam dobrar suas idéias e seu incomensurável querer bem ao povo. Não temos como buscar sua empatia com o povo, porém, o exemplo a que todos teremos que seguir é o da bravura e do destemor de defender, seja em que trincheira for, a dignidade, probidade, honradez e coragem cívica do nosso grande líder. Dr. Arraes, este seu eterno liderado, que teve o orgulho de ser seu líder, na qualidade de deputado na Assembléia Legislativa, perfila-se, mesmo sem o roto chapéu de marinheiro, para dizer sem subserviência, mas com muito querer bem: ontem, hoje, José Áureo Bradley, advogado, exdeputado e ex-suplente de senador. Fonte: Jornal do Commercio Cartas de Agosto amanhã e sempre – presente. Ao guerreiro do povo, a certeza de que Arraes taí, Arraes taí, de novo e eternamente. 75 As duas vidas de Miguel Arraes de Alencar M iguel Arraes, líder histórico da esquerda brasileira, morreu em decorrência de uma infecção respiratória sábado, 13 de agosto, no Recife. Ele estava com 88 anos. Nascido em 15 de dezembro de 1916, em Araripe (Estado do Ceará), em uma tradicional família do Nordeste do Brasil, Miguel Arraes cresceu no coração do sertão. Durante sua infância, ele via passar os camponeses perseguidos pela seca e os cangaceiros, bandidos de honra. Partiu para fazer direito no Rio de Janeiro, depois transfere-se para o Recife e, em 1950, é eleito para a Assembléia do Estado de Pernambuco. Em 1959, torna-se prefeito do Recife. Três anos mais tarde, encabeçando uma frente de esquerda, é eleito governador do estado. Deu origem ao movimento de alfabetização popular e da instauração, pela primeira vez no Brasil, de um salário mínimo para os trabalhadores rurais. Miguel Arraes ganha agora um renome nacional. Com a aproximação das eleições presidenciais de 1965, ele surge como um dos candidatos da esquerda. Mas a erupção do golpe de Estado militar de 1964 quebra a ordem constitucional e instala uma ditadura que se prolonga até 1985. Miguel Arraes é encarcerado em um quartel no arquipélago de Fernando de Noronha, em pleno oceano Atlântico. Na seqüência de um acórdão do Supremo Tribunal, que ainda resistia aos militares, e de uma campanha internacional de solidariedade da qual participaram François Mauriac e Graham Greene, ele foi libertado em 1965 e deixa o Brasil rumo à Argélia, que oferece a ele asilo político. Próximo ao presidente Lula Começa agora a segunda vida de Miguel Arraes. Recebido na Argélia com todas as manifestações de respeito, ele se liga aos dirigentes da África lusófana, dividida em facções rivais, entregando-se à uma áspera disputa junto ao governo argelino e a Organização da Unidade Africana (OUA). É um O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas Luis Felipe de Alencastro dos que ajudam o MPLA (Movimento Pela Libertação de Angola) e o Frelimo (Frente pela Libertação de Moçambique) a crescer em poderio na Argélia. Após a independência de Moçambique (1974) e de Angola (1975), é recebido em Luanda e Maputo com honras de chefe de Estado. À época, também vai a Lisboa, onde participa de reuniões com militares de esquerda que dirigiam Portugal após a “Revolução dos Cravos”. Evaldo Costa (Org.) Enquanto isso, a situação política brasileira evolui, na seqüência da vitória obtida quando das eleições legislativas de 1974, pela oposição tolerada sob a ditadura. Miguel Arraes desloca-se então freqüentemente para Paris, onde empenha-se a tecer relações entre a esquerda francesa e a nova esquerda emergente no Brasil. Graças à Anistia de1979, ele retor- 78 na ao Recife, onde é recebido por uma grande massa popular. Eleito deputado federal, depois Governador de Pernambuco por duas vezes (1986 e 1994), Arraes dirige o Partido Socialista Brasileiro (PSB), aliado do Partido dos Trabalhadores (PT). Sob esta legenda, ele participaria das quatro campanhas presidenciais de Luís Inácio Lula da Silva (1989, 1994, 1998 e 2002) e se tornaria um conselheiro próximo do atual presidente. Com a morte de Miguel Arraes, a esquerda brasileira perde um de seus líderes mais prestigiados no movimento de independência das colônias portuguesas na África. Luiz Felipe de Alencastro é professor de História do Brasil na Universidade de Paris. Fonte: Le Monde Miguel Arraes P ernambuco perdeu, a 13 de agosto passado, um dos líderes políticos mais expressivos dos últimos 50 anos. Arraes tem um lugar na história pernambucana. Com numerosas figuras que o antecederam na administração e condução política do Estado, ele se posiciona dentro das figuras mais eminentes, ao lado de Duarte Coelho, no século 16, e de Dantas Barreto, já no século 20. De coragem incontestável e honestidade a toda a prova, com um senso de equilíbrio e fidelidade ao povo incomparáveis, ele dedicou sua vida à busca de corrigir injustiças herdadas da colonização, e a atenuar desigualdades sociais. Na sua luta em favor do povo, este cearense de nascimento e pernambucano de coração igualou-se a Nabuco, um dos maiores pernambucanos de todos os tempos; na preocupação com as condições de vida e alimentação dos necessitados, ele lembra Josué de Castro; na luta para melhorar a situação dos camponeses, relembra Francisco Julião; na tentativa de encontrar soluções para os desafios enfren- tados pelos discriminados, lembra João Alfredo, realizando a abolição de escravatura sem indenização aos proprietários de escravos. Na defesa da organização dos trabalhadores rurais em sindicatos, lembra Gregório Bezerra, sempre lutando pela extensão da legislação trabalhista ao campo. Analisando-se a figura de Arraes, o reformador, o estadista, observa-se nele uma série de qualidades políticas que desenvolveu, mantendo a coerência da linha de pensamento deste os seus dias de estudante até o fim da vida. Seu desejo era que os problemas do povo fossem resolvidos com a participação popular. Seu empenho pela liberdade de manifestação do pensamento e da ação dos mais humildes, seu senso de disciplina, sua preocupação com as condições de vida do povo fizeram dele o ídolo popular que todos reconhecemos. Demonstrou coerência nas horas mais difíceis do seu primeiro mandato, quando pugnou pela aplicação da lei que levasse ao campo os direitos concedidos, O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas Manuel Correia de Andrade deste 1943, aos trabalhadores da cidade, garantindo ao trabalhador rural benefícios que repercutiram sobre a vida de cidades e vilas do interior. Para fortalecer este direito, contribuiu para a difusão do uso do rádio de pilha, para o homem mais simples tomar conhecimento do que acontecia no mundo. Não podendo realizar reforma agrária em nível estadual, procurou levar o crédito agrícola a juros mais baixos, chegou aos pequenos agricultores, impedindo a ação de agiotas que detinham o controle da comercialização da pequena produção do campo. Evaldo Costa (Org.) Com o desenvolvimento do movimento sindical e de organizações populares, Arraes levou o povo à participação nas deliberações políticas, fazendo com que se interessasse pelo que se passava na roda do poder. A preocupação com a elevação educacional levouo, ainda quando prefeito do Recife, a criar o Movimento de Cultura Popular, demonstrando que a educação não era apenas a instrução formal, mas a formação cultural como um todo. 80 Não era menor a preocupação de Arraes com a saúde e a habitação das camadas populares, além do meio ambiente, quando combateu o uso, muito difundido, do lançamento dos resíduos industriais no leito dos rios, uso proibido, desde 1908, no Governo de Herculano Bandeira. Deposto em 1964, quando um golpe militar impediu que o Brasil se desenvolvesse, através de uma série de reformas, inclusive a agrária e a urbana, foi preso e exilado para Argélia, onde permaneceu quase 15 anos. Período em que, apesar de distante, não deixou de observar e estudar o Brasil, e de dar assistência aos países subdesenvolvidos da África. De volta ao Brasil, em 1979, foi recebido entusiasticamente pelo povo, mas não se candidatou ao governo, a fim de não atropelar lideranças de oposição que, na sua ausência, se formaram na luta em defesa da restauração da democracia. Foi eleito deputado federal, atuando na Constituinte. Seu candidato, Marcos Freire, não foi eleito face à modificação feita na legislação eleitoral, com a vinculação dos votos municipais, estaduais e federais. Em 1986 foi eleito governador do Estado, readquirindo o mandato que lhe foi violentamente tirado em 1964. Seria novamente eleito em 1994, dirigindo o Estado até 1998, quando foi derrotado na tentativa de uma reeleição. Na trajetória política de Arraes observa-se uma permanente coerência com os princípios que sempre o nortearam. Pugnava por um esquerdismo reformista, defendia modificações nas estruturas nacionais que respondessem aos desafios dessa realidade. Por tudo isto, o povo, bem mais que as elites, Exilados do Nordeste, lançado pela Editora Universitária, no próprio mês do seu falecimento. Manuel Correia de Andrade, historiador, geógrafo e membro da Academia Pernambucana de Letras. Cartas de Agosto o entendeu e permaneceu ligado e fiel a ele até a sua morte. A literatura sobre Arraes, incluindo seus próprios livros, é abundante, mas certamente a sua vida será assunto de seminários, ensaios e análises. Ela já começou, com o livro da socióloga cearense Lucili Grangeiro Cortez, O Drama Barroco dos Fonte: Jornal do Commercio 81 Um líder nordestino à moda antiga Maria Victoria Benevides Formou-se em direito no Recife e trabalhou como delegado do antigo Instituto do Açúcar e do Álcool até 1948, quando assumiu a Secretaria da Fazenda do Estado, no governo Barbosa Lima Sobrinho. Nunca mais se desligou da política, permanecendo essencialmente um político do Nordeste e, acima de tudo, de Pernambuco. Foi deputado estadual, prefeito do Recife (1959), governador (1962), cassado, preso em 1964, exilado em 1965, anistiado em 1979, deputado federal em 1982 e vice-presidente do PMDB; volta ao governo em 1986, apóia Tancredo, apóia Sarney, rompe com o partido, é deputado federal pelo PSB em 1990, e, finalmente, volta ao governo do Estado em 1994, com amplo apoio popular e das esquerdas, mas não consegue a reeleição (aliás, votara contra essa emenda no Congresso) em 1998, derrotado por Jarbas Vasconcelos, do PMDB. De sua intensa e honrada vida política, fica a marca da identidade com as lutas populares – sobretudo com os trabalhadores rurais, pela sindicalização e pela reforma agrária – e com a defesa das teses nacionalistas. Fica, também, o estilo de um populista rural, personalista, conciliador e pragmático (embora com fama de radical), com o perfil carismático de um chefe rude, austero e venerado, pai de dez filhos. Dos anos 50 em diante, a história política pernambucana, assim como a saga da esquerda, dos comunistas aos católicos, permanece entrelaçada com a vida de Arraes, apesar de seu longo e forçado exílio. O mito político se constrói com história e carisma. Arraes sempre teve ambos. Pela biografia, surge como bastião da luta pelas reformas de base e como reserva ideológica do nacionalismo “puro e duro”. Surge, também, O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas O mais popular político de Pernambuco veio do Ceará, nascido em Araripe (1916), criado no Crato e estudante no Rio de Janeiro, então capital da República. De família ligada a terra, Miguel Arraes de Alencar tem parentesco com outros ilustres cearenses, como José de Alencar e o marechal Castello Branco. com a autoridade moral de quem foi deposto, preso e exilado pelo regime militar e que, anistiado, tem a coragem de criticar o governo por proteger “os responsáveis pelos desaparecimentos, pela tortura, pelas mortes e pelas prisões arbitrárias”. (Só em 2005 Arraes recebe indenização devida às vítimas da ditadura) Evaldo Costa (Org.) Por outro lado, o carisma de Arraes assenta-se no modelo messiânico e sebastianista do nordestino. É assim que ele pôde passar por vários partidos e mesmo algumas alianças eleitorais espúrias, sem perder o prestígio popular e o respeito das esquerdas. Tem o carisma do “pai patrão”, severo e sempre igual “no seu modo sertanejo de ser”, renegando o “progresso” do gravador, da televisão, em troca do contato pessoal nas visitas a povoados, feiras, mercados municipais, romarias, andanças pelas ruas do Recife. 84 O “dotô Arraia” tem o carisma do chefe religioso, de quem se espera a chuva no agreste e a cura no chá com pedaços de sua foto em cartaz de campanha... Daí se entende os nomes de seus programas no governo: “Vaca na Corda”, “Chapéu de Palha” ou “Água na Roça”. Acima de tudo, Miguel Arraes tem o carisma “daquele que voltará” – e sua eleição em 1986, 22 anos após a prisão e o exílio, renova a velha esquerda, mas também o velho sebastianismo. Essa oposição entre o homem da esquerda democrática e o cacique tradicional, entre a reivindicação e a bênção, reforça o mito no plano regional, mas o enfraquece no nacional. A força do mito é, portanto, limitada. O político antigo “do conchavo e do comício”, como diziam os próceres do velho PSD, do qual fez parte, não logrou liderança no plano nacional, não entusiasmou os novos movimentos sociais nem a juventude politizada. Não conseguiu disputar com Luiz Inácio Lula da Silva ou com Leonel Brizola a liderança nacional da esquerda. Sua trajetória circunscrevese à geografia político-eleitoral de Pernambuco. Em nome desses interesses, fez arranjos e concessões de todo tipo, acima dos partidos e das demarcações ideológicas. “Não vamos pedir atestado a quem nos apóia”, insistia sempre. Nas fronteiras pernambucanas foi aliado e adversário de quase todos os líderes políticos – como João Cleofas, Cid Sampaio, Francisco Julião, Marcos Freire, Fernando Lyra, Cristina Tavares e Jarbas Vasconcelos – ao sabor das conjunturas eleitorais. Nas duas vezes em que chegou ao governo do Estado, construiu um amplo arco de alianças, agregando ostensivamente setores da oligarquia mais conservadora. Em 1962, é eleito pela Frente do Recife, que reunia comunistas, Outro exemplo da predominância de interesses provincianos em suas decisões políticas é o relacionamento com o presidente José Sarney, em 1987. Até então defensor do governo, Arraes rompe com Sarney devido à nomeação, para o Ministério do Interior, de um adversário seu em Pernambuco. A nomeação foi considerada “uma afronta ao PMBD pernambucano”, mas, na verdade, tomou como desfeita a ele próprio, que não fora consultado. Em 1989 articula para ser o candidato do PMDB à Presidência da República, acreditando ser uma boa oposição ao também nordestino Fernando Collor. Perde a indicação para Ulysses Guimarães e jamais se conformará com essa derrota, uma nova “desfeita”. No segundo turno das eleições nacionais, Arraes está com Lula (no primeiro turno apoiou o velho companheiro Brizola) e assim se impõe como a principal ponte entre o PT e o PMDB. No entanto, essa adesão a Lula tem impacto muito menor, por exemplo, do que o apoio de Brizola e de alguns tucanos, como Mario Covas. Em 1990, eleito deputado federal com a maior votação absoluta e proporcional naquele ano (10,47% do total de votos), Arraes continuou pouco visível no cenário nacional. Assim como ocorreu com Lula, Arraes não é homem do Legislativo. Era de se esperar uma atuação vigorosa no Congresso ou a liderança sobre uma ampla bancada interestadual como ocorre com Sarney, por exemplo. Mas Arraes não se destacou sequer na batalha do impeachment, embora tenha votado a favor, é claro. Cartas de Agosto socialistas, trabalhistas e militantes católicos. Mas o vice era conservador e a vitória contou com os votos preciosos do cabresto de “coronéis”, como o famoso Chico Heráclio. Em 1986, elege-se pelo PMDB, na nova Frente Popular, que reunia desde o PCB e o MR-8 até malufistas – e seu vice é oriundo da antiga Arena. Conseguiu, por outro lado, acender e ampliar a chama histórica do nacionalismo, pois rompera com o PMDB justamente por se opor “à política de privatização e desnacionalização do Estado” do governo Collor. E, em 1993, pouco se sabe das posições de Arraes sobre a revisão constitucional, as reformas eleitoral e partidária ou o propalado choque econômico. Apoiou o governo do vice Itamar Franco, acolhendo em seu PSB a deputada Luiza Erundina, convidada para o ministério da transição. Logo partiu para os conchavos e peregrinações pelo interior de Pernambuco, em campanha para o Palácio das Princesas, sendo reeleito em 1994. Teve problemas com a Justiça, por conta dos precatórios, mas não 85 chegou a ser condenado. Em 2002, com mais de 80 anos, volta ao Congresso como deputado e também presidente do PSB. Em 2003, leva seu partido a compor a base parlamentar do governo Lula e consegue indicar o neto, Eduardo Campos, seu único herdeiro político, para ser ministro de Ciência e Tecnologia. De lá para cá, manteve-se discreto aliado. Evaldo Costa (Org.) De Miguel Arraes os historiadores deverão aprofundar esse exemplo notável do político sério à moda antiga. E que, se não conse- 86 guiu ser uma expressiva liderança nacional, continuou em sua terra sertaneja com a marca indelével do grande chefe: ele é o forte, mas é também uma espécie de santo, aquele a quem artistas identificam com o povo e cantam que tem “um nome que se faz poesia”. Maria Victoria Benevides é socióloga, professora titular da Faculdade de Educação da USP. Fonte: Folha de S. Paulo Um líder coerente Marisa Gibson E, Arraes encerra a sua trajetória na vida como deputado federal, pelo PSB, sem nunca ter negado os princípios que nortearam sua vida. Cedo, ele fez opção de trabalhar para os pobres, instalou um governo popular e arrastou multidões que o veneraram como a um messias. Tornou-se um mito. E, como tal, governou Pernambuco três vezes, sempre com uma linha divisória entre as elites e o povo. Teve acertos e erros, como todos os governantes. Foi elogiado e criticado, como todo homem público. Mas, a sua força política era tamanha que, para derrotá-lo, foi necessário a formação de uma das maiores alianças já vista no Estado, entre políticos de esquerda, centro e direita que se uniram num mesmo palanque, em 1998, decretando o fim da era Arraes. O ex-governador tentava o seu quarto mandato. Foi derrotado por Jarbas Vasconcelos. Retirou-se, então, do grande palco da política pernambucana, mas permaneceu presente em cada grotão do Estado, onde famílias pobres continuam a lhe reverenciar pelas cacimbas e pelos bicos de luz. Registre-se: essas cacimbas e esses bicos de luz não são marcas de seus governos, mas de sua grande sensibilidade. Referência Miguel Arraes, Leonel Brizola, Ulisses Guimarães e Tancredo Neves, cada um com suas peculiaridades, marcam um longo período da História do Brasil. Eles fazem falta no cenário político brasileiro sob todos os aspectos, seja em tempos de paz, seja em dias de ira. Hoje, o Brasil não tem um só político que seja uma grande referência nacional. O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas A coerência do discurso de Miguel Arraes, ao longo de 58 anos de vida pública, é uma lição para o Brasil, um país que já passou pela experiência amarga da ditadura e que teve, justamente, na figura do ex-governador de Pernambuco, o maior símbolo de resistência em torno de ideais políticos. Papel Único político pernambucano a governar o Estado três vezes, Miguel Arraes teve um papel fundamental no encaminhamento da questão agrária no País, que terminou se transformando num dos pretextos para a ditadura militar. Décadas Cobranças Para se avaliar a ousadia de Arraes em implantar um governo popular no Estado, passos que ele já havia iniciado como prefeito do Recife, em 1959, foram necessários quase 40 anos para que o Brasil elegesse um presidente – Lula – com ideais semelhantes. Resta agora torcer pelo Governo Lula, que passa momentos de riscos, mas por outros motivos. Em Pernambuco, as cobranças, em torno de Eduardo Campos serão maiores. É, no Estado, onde vão aflorar as comparações entre o avô e o neto. E, sobre este aspecto, o ministro deve deixar claro, o mais rápido possível, que ele é herdeiro mas não o continuador da vida nem do estilo de Arraes. Evaldo Costa (Org.) Herdeiro 88 pendente de posições partidárias. Essa atenção deve-se principalmente a três motivos: o fato de ser neto de Arraes, o seu temperamento afável e a sua capacidade de negociador. Mesmo assim, ele vai precisar aumentar a sua resistência imunológica. Agora, o deputado Eduardo Campos, inicia uma nova fase na sua vida político-partidária. Na qualidade de herdeiro das idéias e do prestígio político-eleitoral do seu avô, Miguel Arraes, o deputado Eduardo Campos vai ter que se desdobrar, para corresponder às expectativas... Resistência Eduardo Campos é um político querido em Brasília, inde- Sucessão É evidente que essa nova realidade terá um grande impacto na performance eleitoral do PSB nas eleições do próximo ano. Mas é cedo para se avaliar o que vai acontecer com a possível candidatura de Eduardo Campos ao Governo do Estado. Esta vai ser uma questão crucial para o deputado. Marisa Gibson é colunista política do Diário de Pernambuco. Fonte: Diário de Pernambuco Arraes Mauro Santayana Não há, na história republicana, outro homem público que tenha sido eleito diretamente pelo povo governador de um Estado três vezes. Só isso basta para mostrar a força política de Miguel Arraes, um socialista que tinha os pés no chão. Mauro Santayana é jornalista. Fonte: Jornal do Brasil O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas A morte de Arraes faz nascer um novo mito no Nordeste. Os sertanejos pobres, em sua intimidade com o Absoluto e com a morte, têm, agora, depois de Antonio Conselheiro e do Padre Cícero, outro ícone a venerar. Meu encontro com Arraes E u tinha 13 anos quando o governador de Pernambuco, Miguel Arraes de Alencar, foi deposto e preso pelos militares do Quarto Exército, no Recife. Naquela época, não tinha como entender a gravidade dos acontecimentos políticos, senão através da angústia e expectativa de meus familiares, alimentadas pela histeria anticomunista que tomava conta do País. De lá para cá, muita água correu debaixo da ponte. O ex-governador voltou ao Brasil, foi eleito deputado federal, governador do Estado, deputado outra vez e finalmente, governador pela terceira vez. Apesar de sempre ter votado nele, fui um duro crítico de sua terceira e última gestão, seja em livros, em artigos, em entrevistas a jornais locais e nacionais. Tive a oportunidade de conhecêlo pessoalmente numa reunião do PSB, onde fui convidado a fazer um balanço das perspectivas do governo Lula, no seu início. E gostaria, aqui, de relembrar o diálogo que então tivemos. Naquela ocasião, o ex-governador – então eleito deputado fe- deral e presidente de seu partido – encontrava-se muito gripado e quase não se ouvia direito a sua voz. Mas foi ele quem abriu o encontro com suas conhecidas opiniões sobre a necessidade de união das esquerdas, contra a dominação externa e seus aliados no País. Antes, porém, que se retirasse para cumprir outros compromissos políticos, pedi a palavra para cumprimentá-lo e dizer da minha satisfação em conhecê-lo pessoalmente, naquele encontro. Nesta minha única conversa com o ex-governador, disse-lhe que era um dos últimos políticos dotados de espírito público que o Estado e o País tinham conhecimento. E que, por isso mesmo, ele devia ser preservado como uma espécie de reserva cívica e republicana da política brasileira, ao invés de se expor em suas múltiplas andanças, como dirigente partidário. O velho político ouviu calado a minha saudação e replicou, com bom humor, que aquilo que o mantinha vivo e (era) a razão de sua sobrevida era a política e a luta democrática por um país melhor. O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas Michel Zaidan Filho E que, se não fosse por isso, não valeria continuar vivo. Evaldo Costa (Org.) Saí do encontro comovido e repensei as duras críticas que lhe dirigi, em seu último mandato. Miguel Arraes foi um representante de sua geração e jamais se modificaria para se adequar aos ritos da chamada democracia participativa, com suas assembléias, fóruns e conselhos. Mas dentro da moldura terceiro-mundista, nacionalpopular de seu pensamento, ele nunca abjurou suas convicções, ao contrário dos falsos democratas que assumiram o governo, depois dele. Gestores autoritários, intole- 92 rantes, preocupados acima de tudo em vender o patrimônio público a preço de banana, na bacia das almas. “Salesmem”, como chamava a revista inglesa, uma safra de políticos definitivamente desprovida de espírito público e generosidade política. O povo de Pernambuco ainda vai ter muita saudade do exgovernador, quando descobrir que ficou mais pobre e menos livre. Viva Arraes! Viva o povo brasileiro! Viva o Brasil! Michel Zaidan Filho é cientista político. Fonte: Jornal do Commercio Heróis A morte de Arraes na maré alta da crise revelou algumas forças poderosas do atual momento. Em primeiro lugar, como notou Urariano Mota em seu artigo no La Insignia, a identificação total com o povo que o idolatrava, sinal de que uma vida dedicada às necessidades populares se foi para sempre. E não porque, com Arraes, pela primeira vez as pessoas pobres tiveram acesso ao rádio de pilha, como notou, toscamente, o presidente Lula no velório (ele acha que o povo é mendigo, não tem grandeza). Mas sim porque Arraes representa uma linhagem de políticos dedicados à causa nacional, e que por isso foram perseguidos e imobilizados. Outra força revelada foi a da existência, entre nós, de pessoas com real valor, ou seja, o Brasil tem capacidade de produzir homens públicos memoráveis, o que pode nos libertar dos grilhões da mediocridade vigente. O encontro (sem cumprimentos) entre José Dirceu e Caetano Veloso na madrugada diante do corpo presente, como conta Noblat no seu imprescindível blog, mostra dois vetores contraditórios da mesma geração. Dirceu encarna a pobreza cultural dos militantes de 68 que queria tomar o poder, mas eram conservadores na estética e na política, exatamente a denúncia de Caetano num festival de música. O pranto de Caetano diante do corpo presente nos devolve também o artista que rompeu e ampliou as comportas da música popular. Vê-lo chorando é lembrar o quanto foi importante nos anos de chumbo, quando sua palavra, seu som e seu exemplo eram nossos companheiros de estrada. Não se trata de um revival. Mas a revelação (mais uma) de que os grandes artistas estão vivos e podem ser fundamentais nesta quadra de incertezas que atravessamos. Precisamos da transcendência da cultura para decifrar o enigma. A vida do país é importante demais para ser deixada apenas para os políticos. Nei Duclós é escritor. Fonte: http://outubro.blogspot.com/ O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas Nei Duclós Morte de Miguel Arraes encerra ciclo dos primeiros esquerdistas do Brasil Paulo de Vasconcellos Ao ser sepultado no final da tarde de ontem no Recife, Miguel Arraes terminou de enterrar com ele também a primeira geração de políticos que ajudou a fundar a hoje combalida esquerda brasileira. Talvez lhe tenha servido de consolo ter partido como certamente imaginou: acompanhado por uma multidão formada por brasileiros humildes que viam naquele nordestino de fala quase incompreensível, mau humor crônico e feições duras, um dos maiores símbolos populares do país. Cerca de 300 mil pessoas passaram pelo velório do deputado federal e ex-governador de Pernambuco no Palácio do Campo das Princesas. Luiz Inácio Lula da Silva foi aplaudido ao chegar para reverenciar a memória do aliado, mas representantes do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), que pede o impedimen- to do presidente da República por causa da vaga de corrupção no governo, entraram e saíram vaiados pela multidão. Miguel Arraes morreu aos 88 anos. Até o fim manteve-se fiel a Lula. Desde a morte de Leonel Brizola, no ano passado, era o remanescente dos inimigos figadais do regime militar de 1964. Os dois, mais o líder camponês Francisco Julião, formavam um trio mais temido pela ditadura militar do que aqueles que aderiam à luta armada. Por eles, o processo de redemocratização sofreu idas e vindas e a anistia foi adiada. A morte de Miguel Arraes, apeado do poder e acusado de corrupto e subversivo, foi quase transformada uma manifestação natural de desagravo a Lula. O Presidente viajou acompanhado de seis ministros. Ficou dez minutos a consolar a viúva, dona Magdalena, segunda mulher de Arraes, enquanto a multidão gritava “Olê, olê, olá, olê,/ Lula, Lula, acreditamos em você”. A comoção pela morte do maior líder político de Pernambu- O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas O velório do ex-governador acabou por ser uma manifestação de desagravo a Lula. O Presidente foi aplaudido e membros de partidos que lhe fazem oposição, vaiados. co não impediu a reação negativa à chegada do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), e do prefeito da capital paulista, José Serra (PSDB). Também foram vaiados o ex-ministro do Meio Ambiente do governo Fernando Henrique Cardoso, Raul Jungmann, e o presidente nacional do Partido Popular Socialista (PPS), deputado Roberto Freire. Os dois são pernambucanos e fazem oposição a Lula. Preso e exilado “Foi durante o governo Arraes que muita gente comprou o primeiro colchão, o primeiro rádio de pilha e ganhou luz elétrica. O que conforta é que a passagem de Arraes pela Terra valeu a pena”, disse Lula à viúva. Governador de Pernambuco pela primeira vez, Miguel Arraes negociou em 1963 um acordo que tirou os camponeses do regime semi-escravo de trabalho. Evaldo Costa (Org.) Um ano depois seria deposto pelo golpe militar. O Palácio do Campo das Princesas, no Recife, amanheceu cercado por tropas em 1º de abril de 1964. Os golpistas 96 exigiram que o governador renunciasse. Arraes recusou. Não queria trair o voto do povo. Acabou preso no Arquipélago de Fernando de Noronha – numa época em que o lugar servia de masmorra aos adversários do novo regime e ainda não era uma das maiores atrações turísticas do Brasil – e outros presídios por onze meses. Um habeas-corpus levou-o para a Argélia. Ficou exilado por 14 anos. Voltou em 1979 com a Lei da Anistia. Foi eleito governador no primeiro escrutínio para as administrações estaduais depois da redemocratização. Voltaria ao cargo ainda uma terceira vez. Miguel Arraes foi internado em 16 de junho vítima de infecção no pulmão. Nas últimas 24 horas a infecção espalhou-se. O exgovernador morreu às 11h30 da manhã de sábado. O atestado de óbito aponta como causa da morte choque séptico provocado por infecção respiratória agravado por insuficiência renal. Paulo de Vasconcellos é jornalista Fonte: Publico.pt A falta que ele faz M iguel Arraes faz parte da história do Brasil, esteve presente nos últimos 50 anos e ao lado de políticos da estatura de Tancredo Neves, Petrônio Portela, Ulysses Guimarães, Leonel Brizola. Tinha como princípio a luta pelos mais pobres, mas suas análises abraçavam o mundo porque foi político preocupado com as liberdades e oportunidades oferecidas a todos, indistintamente. Como governador teve a oportunidade de colocar em prática o que pregou, mas nem sempre con- seguiu transformar o desejado em fato. Se preocupava, acima de tudo, com o futuro deste País, sem nunca ter sido homem atado ao passado. Foi nacionalista de olho na modernidade. E fez de Pernambuco o centro de sua vida particular e política. Hoje, mais do que nunca, sua voz e postura fazem falta. Até como um Norte. Paulo Sérgio Scarpa é jornalista Fonte: Jornal do Commercio O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas Paulo Sérgio Scarpa Duas mãos e o sentimento do mundo E le não pôde sequer receber os desenhos que os filhos, ainda crianças, prepararam para homenageá-lo no Dia dos Pais. Naquele dia, silencioso, mas não sombrio, permaneceu isolado num canto da capela, cercado de soldados armados, à espera de um casamento que se anunciava tenso. O casamento da filha Ana Lúcia com o escritor Maximiano Campos, ainda quase adolescentes, na Base Aérea do Recife. Chegou e partiu como prisioneiro, sob o domínio de baionetas, com licença apenas para abraçar os filhos. O governador deposto de Pernambuco pelo golpe militar de 1964, Miguel Arraes de Alencar, acabava de deixar, por breves instantes, o presídio do arquipélago de Fernando de Noronha, para onde fora levado, sem julgamento, acusado de instabilizar o poder conservador do Brasil e de levar Pernambuco para os obscuros caminhos do comunismo. Um homem firme mas humilde, que chegara ao poder recitando os versos de Drummond: “Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo.” Eram tempos escuros e pesados. Mas ele não perdia a serenidade. Respondeu a inquéritos e foi jogado no exílio da Argélia. Tornou-se membro do Bureau Internacional Bertrand Russel Para a Liberdade, amigo de Jean-Paul Sartre, Gabriel Garcia Márquez, Pablo Neruda, e de José Saramago. Na época do exílio, tinha 48 anos de idade. Acostumou-se a governar com o povo, percorrendo feiras no interior do Estado, ouvindo queixas e reclamações, o que lhe custou a acusação dos inimigos de trabalhar somente pelos grotões. Foi ali, porém, que escutou um homem dizer, na simplicidade do chapéu amassado nas mãos: “Querem levar Dr. Arraes para o purgatório, mas ele vai mesmo é para o céu”. Os inimigos o acusavam de ter alterado as listas de pessoas, com nomes fictícios ou de mortos, com direito a indenização – os precatórios, na expressão jurídica. Mais tarde, se verificou ser uma inverdade, com direito a absolvição no Supremo Tribunal Federal. O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas Raimundo Carrero Evaldo Costa (Org.) Nos sábados à tarde, costumava receber amigos e políticos no terraço do casarão da rua Dona Olegarinha da Cunha, em Casa Forte, cercado de árvores, quase sempre ao lado de dona Madalena, a esposa, mãe de Pedro e de Mariana. Boa conversa regada a uísque, gargalhadas e brincadeiras. Às vezes, um charuto. Foi justamente o cigarro que lhe provocou os maiores problemas na saúde, embora nem todos os médicos concordem. Fumou muito desde os doze anos de idade, quando ainda morava com os pais, no Crato, Ceará. 100 Gostava de rir, mas era contido na afetividade. Sabia dosar uma conversa e tinha o ritmo no discurso. Esse traço do caráter do ex-governador, aliás, foi destacado pelo escritor Antônio Callado: “Eu diria que se trata de um dos homens mais contidos, mais bem educados que me foi dado conhecer. O mais importante é dito às vezes por ele em tom de quem fala, digamos, do tempo: ‘vai ou não chover, ficará ou não nublado à tarde’. E Arraes pode estar falando em tiro e não em trovoada, em fechamento do Congresso e não do horizonte meteorológico. O homem é imperturbável, daqueles que, mesmo quando estão narrando, ou evocando passagens realmente duras de suas vida, o fazem com um distanciamento raro”. Conta-se que esse comportamento vem do pai, também cercado de lendas. Doente, teria pedido ao médico que não o deixasse morrer deitado. Em coma, foi levantado pelos amigos e morreu de pé. No meio da sala. No terceiro governo, teve que trabalhar apenas com o dinheiro de Pernambuco, porque o governo federal lhe negava recursos, sistematicamente. Mesmo assim, fez questão de não fazer críticas constantes, em público, da atitude do governo. Discreto, sempre discreto. Discreto e resistente. Acompanhava com muita atenção as artimanhas da direita brasileira, que via nele um político astuto e competente. “A elite está sempre trabalhando contra mim, mas eu furo por baixo, com o povo”, dizia enquanto comentava os rumos da política brasileira, no vasto terraço do casarão. Ali também costumavam se reunir escritores e intelectuais de toda ordem para ouvi-lo. Tinha um projeto para o Brasil, que está consagrado no livro Miguel Arraes: Pensamento e Ação Política, publicado em 1997, pela editora Topbooks. Para ele, o “Estado, privatizado pelas elites, foi industrializado para fomentar a concentração do sistema financeiro e apoiar a consolidação de cartéis e monopólios privados. Dois Brasis surgiram deste projeto. Um, mínimo, formado pela elite que vai do operário especializado da grande indústria à alta classe média e aos ricos, outro, máximo, que vai dos miseráveis No hospital, atendido por médicos e enfermeiras, não podia conversar com políticos de todas as tendências e partidos que se aco- tovelam nos elevadores. Na solidão da UTI, era possível recordar os versos por ele preferidos do poema do pernambucano Joaquim Cardozo: “Sou um homem marcado em País ocupado pelo estrangeiro”. Cartas de Agosto que dormem nas ruas às camadas médias, cada vez mais incapacitadas de manter seu nível anterior de vida. Dois Brasis separados em seus extremos pelo fosso de vergonha entre os que comem três vezes ao dia e os que nada comem”. Raimundo Carrero é jornalista e escritor. Fonte: Argumento 101 Miguel Arraes de Alencar (16/12/1917 – 13/08/2005) A baria o presidente João Goulart. O país viveria sob ditadura pelos 21 anos seguintes. Quem foi Miguel Arraes Nascido em Araripe, Ceará, chegara ao Recife em 1932 para concluir o curso de Direito. Era o caçula e o único homem de uma família de sete filhos. Por sua vez, seria pai de 10 filhos e se casaria duas vezes. Seu primeiro emprego foi de funcionário público no Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA). caba de morrer no Recife o deputado Miguel Arraes, presidente do Partido Socialista Brasileiro e por três vezes governador de Pernambuco. Era o último representante ainda vivo da geração de políticos que marcou fortemente a história do Brasil nos últimos 50 anos – entre eles, Leonel Brizola, Ulysses Guimarães e Tancredo Neves. Do lado de fora do Palácio do Campo das Princesas, no Recife, militares fortemente armados não deixavam ninguém passar. Com canhões apontados para o prédio, exigiam que o governador de Pernambuco renunciasse ao cargo e abandonasse o local. Perto dali, uma centena de estudantes preparava uma passeata. Miguel Arraes de Alencar recusou-se a cumprir a ordem “para não trair” a vontade dos que o elegeram. Foi preso então. Era 1º de abril de 1964, uma quarta-feira. No dia anterior, havia sido deflagrado o golpe militar que derru- Escoltado por oficiais do IV Exército, metido dentro de um fusquinha, ao cair da noite Arraes saiu do palácio para entrar de vez na história política do país. Ali, conheceu Barbosa Lima Sobrinho. Por indicação dele, então governador de Pernambuco, foi secretário da Fazenda em 1949. Dali a quatro anos, se elegeu deputado estadual pelo PSD. Reelegeu-se em seguida. Para em 1959 ganhar a prefeitura do Recife apoiado por uma frente de partidos de esquerda. Com 47,98% dos votos, se elegeu governador de Pernambuco em 1962 pelo Partido Social Tra- O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas Ricardo Noblat balhista (PST), apoiado pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) e setores do PSD. Fez seu discurso de posse do lado de fora do palácio. Diante de uma multidão, citou a certa altura o poeta Carlos Drummond de Andrade: “entrar pela porta que saiu” e voltar a governar Pernambuco. Pela mesma porta entraria uma vez mais em 1994. Por ela sairia em 1998 quando tentou se reeleger e foi derrotado pelo atual governador de Pernambuco, Jarbas Vasconcelos. – Tenho apenas duas mãos, mas todo o sentimento do mundo. Entre voltar e sair do Palácio do Campo das Princesas, foi mais duas vezes deputado federal, uma delas como o mais votado do Nordeste, abandonou o PMDB e aderiu ao Partido Socialista Brasileiro (PSB), do qual se tornou presidente. Morreu esta manhã no Recife depois de 59 dias internado em um hospital. Ganhou o governo pela esquerda. Governou pela esquerda. Forçou usineiros e donos de engenho da Zona da Mata do Estado a estenderem o pagamento do salário mínimo aos trabalhadores rurais. E deu forte apoio à multiplicação de sindicatos, associações comunitárias e às Ligas Camponesas. Evaldo Costa (Org.) Deposto, foi levado para a ilha de Fernando de Noronha, onde ficou preso por 11 meses. Passou depois pelas prisões da Companhia da Guarda e do Corpo de Bombeiros, no Recife, e da Fortaleza de Santa Cruz, no Rio. Solto em 25 de maio de 1965 por meio de um habeas corpus, foi para o exílio na Argélia. 104 Em 1979, beneficiado pela anistia decretada pelo presidente João Figueiredo, quando a ditadura começava a se esgotar, Arraes voltou ao Brasil e à política. Virara mito em Pernambuco e referência para a esquerda no resto do País. Os mais pobres tinham o retrato dele nas paredes de suas casas. Pelo PMDB, se elegeu deputado federal em 1982. Para em 1986 Tinha 88 anos. Estava disposto a se reeleger deputado federal em 2006. Havia fumado durante 72 anos. Bebera bem durante todos esses anos. Comera bem. E imaginava viver tanto ou mais do que sua mãe, que morreu aos 96 anos. Foi amigo pessoal de Lula, a quem apoiou desde sua primeira campanha presidencial. Deixa um herdeiro político – o neto Eduardo Campos, deputado federal, ex-ministro da Ciência e Tecnologia de Lula. Campos planeja ser candidato no próximo ano ao governo de Pernambuco. Ricardo Noblat é jornalista e escritor. Fonte: Blog do Noblat Uma trajetória que ajuda a pensar o Brasil Certas personalidades políticas brasileiras, com sua forte presença na formatação de fatos que influenciam a vida de toda uma sociedade, só podem ser analisadas com mais rigor à luz da história, contando com a benevolência da decantação dos anos. Entendê-las em sua dimensão contemporânea, quando ainda pairam no ar relações pessoais e a paixões acesas, talvez seja uma tarefa impossível. O governador e deputado Miguel Arraes enquadra-se, ao meu ver, nesse cenário. Arraes fincou em Pernambuco um estilo de fazer política e, dessa maneira, se inseriu com competência na articulação de momentos ricos da história brasileira. Não à toa, foi referência de uma postura popular no pré-golpe de 64, continuou como um dos símbolos da resistência no período da ditadura e, com a redemocratização do País, converteu-se em interlocutor regional de larga influência, ramificando-a Brasil afora por meio do partido que reconstruiu, o PSB. Porém, corramos alguns riscos e façamos algumas abordagens de sua rica trajetória. Em minha avaliação, a maior realização política e histórica de Arraes foi o fato de ter celebrado, na condição de governador nos fins dos 50 e início dos 60, o primeiro contrato coletivo de trabalho no campo, preconizando uma economia moderna que dera grandes passos com Getúlio Vargas e que se afirmara, após 55, com Juscelino Kubsticheck e seu famoso plano de metas. Em um cenário de relações quase escravocratas no campo, Arraes teve a coragem de reconhecer um novo tempo e de regular práticas modernizantes capitalistas ante Sem sombra de dúvidas, é quase impossível falar da vida política nacional dos últimos 50 anos sem se lembrar do líder pernambucano. Diria, é impossível – ou então a “história seria mentirosa”, para usar uma expressão do canto do cordelista Octacílio Batista – riscálo das grandes biografias políticas se o foco é o Nordeste. Esquecê-lo, em se tratando de Pernambuco, a atitude então seria obra de ressentidos ou criminosos intelectuais. O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas Roberto Freire Evaldo Costa (Org.) 106 um sistema que teimava em se perpetuar, moldado nas velhas e seculares práticas do latifúndio. econômico alcançado pelo Brasil no período em que vicejou entre nós o regime militar. A iniciativa de Arraes muitas vezes nem sempre é compreendida e fica restrita aos corredores acadêmicos ou a estudiosos das relações de trabalho no País. Mais interessante: o governador dá este passo no mesmo momento em que Julião está empenhado em organizar ligas camponesas, precursoras do atual modelo do MST, uma perspectiva conservadora, pois concebida e reproduzida no interior do sistema agonizante e desconectada da modernidade. Se a Ligas apontam para a simples distribuição de terra, Arraes avança e sugere a organização dos trabalhadores em sindicatos, instrumentos mais propícios para disseminar consciências e atividade produtiva. Ou seja, a vocação modernizante e mudancista do Arraes do primeiro governo não se verificou nos seus governos posteriores ou em suas posturas como líder, no pós-ditadura. Cedeu a uma visão um tanto restauradora da sociedade, embora matizada por compromissos pessoais nítidos para com as grandes massas deserdadas. Compromissos esses que não podiam se realizar em virtude da nova estrutura econômica e social que o cercava. Em seu segundo período de atuação, Arraes procurou agir politicamente com um corpo de idéias de uma formação histórica passada – daí, ter dificuldades para se afirmar em Pernambuco como uma corrente de lastro sólido e para se lançar ao País como uma alternativa de transformações reais. O mais instigante ao se analisar a figura de Arraes é se perguntar o porquê de sua fixação à política regional, quando outros líderes como Brizola buscaram vôos mais universais, chegando a polarizar o debate nacional e até mesmo a disputas pela presidência da República. Entre as muitas respostas possíveis, uma delas seria o fato de Arraes ter resistido a romper com os paradigmas da década de 60, muito marcados pelo nacionalismo e por um viés populista também próprio daquele período e que esgotara com o forte crescimento Em se tratando de Pernambuco, onde deixa marcas profundas – particularmente, as relacionadas ao seu inegável altruísmo como homem público –, Arraes descortinou toda a sua habilidade como político, pois conseguiu manter seus espaços diante de uma esquerda modernizante (os comunistas e os petistas) e de uma direita igualmente forte e com lideranças expressivas. Porém, seu projeto de uma social-democracia tardia, baseada no diálogo direto ção para o Senado Federal, em 1994. O PPS – todos sabem – sempre manteve com Arraes relações políticas tensas, fundadas em razões históricas e doutrinárias. Entretanto, nunca deixou de render tributo ao líder maior dos pernambucanos por quase meio século, ao homem que amou o seu povo e dedicou boa parte de sua vida a mudar o destino dos brasileiros. Entender Arraes, ação e idéias, acertos e erros, é abrir-se à construção de novos caminhos ao País. Um tema atual e necessário às esquerdas quando temos à nossa frente os descaminhos do governo Lula. Particularmente, lembro com carinho da sua dedicação ao processo que resultou na minha elei- Cartas de Agosto entre o líder e as grandes massas populares, não se consolidou. Roberto Freire é presidente nacional do Partido Popular Socialista (PPS). Fonte: www.lainsignia.org 107 Um forró para Arraes Samarone Lima Miguel Arraes de Alencar, 88 anos, ex-prefeito do Recife, três vezes governador de Pernambuco e no terceiro cargo de deputado federal, pelo PSB, sai da cena política e passa a habitar o nosso imaginário, na forma indelével da lembrança. Não vou aqui fazer a louvação do que merece ser louvado. A história de Arraes foi sendo escrita com um cinzel, nas pedras da vida. Ele foi um homem, uma raça, do início ao fim. É difícil uma pessoa ser tão querida pelo povo, essa gente simples, os menos favorecidos, e ao mesmo tempo ser tão respeitada pelos adversários políticos. Como sempre, prefiro buscar no cotidiano as marcas e os con- tornos da trajetória humana em tudo o que a vida leva e traz – alegrias e tristezas, dores e conquistas, vitórias, empates, derrotas. Ontem à noite, estávamos aqui nesta esquina de seu Vital, no Poço da Panela, quando aconteceu, por obra de nossas vidas e memórias, uma singela homenagem ao velho Arraes. Estávamos bebendo umas cervejas, logo após o jogo do Santinha, quando nosso Chiló decidiu buscar a sanfona. Começamos então a cantar e dançar várias músicas, até que surgiu das almas a canção que atravessou tantos corações: “O povo quer/ Aquele que fez mais/ Arraes, Arraes, Arraes/ Em 86 só vai dar Arraes”. Cantamos vária vezes esta pequena e modestíssima canção, e sempre que escuto os relatos sobre aquele momento histórico de Pernambuco, tenho a sensação esquisita de ter chegado ao Recife atrasado em um ano. Também sou do Crato, como Arraes, mas só cheguei aqui em 1987, vindo de Fortaleza. O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas N ão sei quem me deu a notícia, ou se foi a própria notícia que se deu. Ontem, no final da manhã, Arraes morreu. Me perdoem, mas quando você diz “Arraes morreu”, todos sabem o que aconteceu. Mais que isso, o que significa, neste momento da política nacional em que tudo está perplexo e confuso. Ao escutar a música, Emília chorou discretamente. Disse que só viu o pai chorar duas vezes – uma delas foi durante o guia eleitoral de Arraes, então candidato a governador, em 1986. Depois Emília parou de ser discreta e chorou mesmo pra valer, quando cantamos a música-tema daquela famosa campanha: “Olha nos olhos do povo e vai notando / um brilho novo está voltando”. Evaldo Costa (Org.) Sim, certos momentos na vida de um povo são mesmo para arrancar lágrimas. Lá pelas tantas, embevecidos pelo clima e com a ajuda das muitas cervejas servidas por seu Vital, decidimos ir ao Palácio do Campo das Princesas, fazer uma homenagem musical. De repente, estávamos todos ali, defronte ao Palácio, com sanfona, zabumba e triângulo, dispostos a cantar “Arraes, Arraes, Arraes /em 86 só vai dar Arraes”. Seria, creio, emocionante. Mas o clima estava muito sério, o povão, a massa, ainda não tinha chegado. Estavam somente políticos, jornalistas e familiares. E aos poucos, fomos minguando nossa homenagem. Não era o momento, pensamos. 110 Na verdade, a homenagem já tinha sido feita, aqui na esquina de Vital. Enquanto cantávamos, passei pela minha memória este momento que não vivi, a campanha de 1986, como um estrangeiro que chega a uma cidade e a reconhece pelo coração, como se fosse uma cidade que já viveu, em algum tempo nunca explicável. Senti minha presença no Recife, com 17 anos, distribuindo panfletos e cantando com o povo nas ruas que eu ainda não ousara desvendar, numa cidade que eu ainda não tinha amado. Tive então uma memória retroativa de um passado que me dei de presente, apesar de não tê-lo vivido como queria. Vi Emília dançando, cantando, se emocionando, e em todos os olhos de uma gente mais moça, havia uma espécie de agradecimento ao velho Arraes, por tudo o que foi, é, e será. Lembrei que Edinaldo Miranda, seu pai, também foi um exilado para sobreviver. À saída do nosso festivo grupo, seu Vital, que nunca fala de política, disse uma curta frase: “Em todas as eleições que ele concorreu, votei nele”. Entrei no salão, onde estava o corpo já sem vida, dei meu tímido adeus, o “segue em paz, meu velho”, e voltamos, em silêncio. Estou aqui com os jornais de hoje, e não há como sentir uma certa emoção ao ler um trecho do seu discurso de posse, no segundo mandato como governador de Pernambuco, em março de 1987, publicado no suplemento do Diário de Pernambuco: “Sou um homem marcado, mas esta marca temerária entre as cinzas das estrelas há de um dia se Comentei a frase com minha tia Flocely, há pouco, ao telefone. Ela está com 78 anos, os cabelos branquinhos, e só não vai ao enterro por problemas de saúde. “E se apagou... ou meu Deus”, disse ela, entre lágrimas. Para Arraes, na memória do coração. Samarone Lima é jornalista e escritor. Cartas de Agosto apagar”. É a citação de um poema de Joaquim Cardoso (Canto do Homem Marcado, de 1952). Fonte: JC Online 111 O tempo parou para Arraes Sérgio Miguel Buarque Ontem foi um dia diferente. Foi um dia em que o povo, povo mesmo, foi às ruas. Usavam e agitavam chapéus de palha. Mas não era revolução, nem protesto, nem mesmo comemoração. Foi dia de lembrar o passado, para muitos, melhor. De imaginar como o futuro poderia ser melhor se... Foi um dia de “se”. “Se” Arraes estivesse vivo, na ativa, Lula teria um alia- do para tentar sair da crise, repetiram muitos. “Se” todos políticos fossem iguais a Arraes nem crise teria, responderam outros tantos. Ontem também foi um dia curioso. A tristeza podia ser respirada no ar. Mas, em determinados momentos parecia mais uma festa. Como aquela da posse em 86. Talvez porque todos estavam ali por causa da mesma pessoa, na frente do mesmo palácio. Mas o sentimento era bem diferente. Não existia mais aquela esperança nos olhos do povo. Todos sabiam que não existirá outro Arraes. Nem outro 1986. Foram momentos de nostalgia. Mas que parecia outra época, parecia. Parecia os tempos de Arraes. Tempos que não voltam mais. Sérgio Miguel Buarque é jornalista. Fonte: Diário de Pernambuco O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas P or um momento, a crise política e ética que domina o País parou. Ou, pelo menos, ficou em segundo plano. Por um instante, estavam no mesmo espaço físico e espiritual adversários históricos, inimigos recentes e desafetos eternos. Nos dias de hoje, quem esperava cruzar num mesmo salão com o presidente Lula e o prefeito de São Paulo, José Serra? Ver juntos Eduardo Campos e Mendonça Filho? Heloisa Helena e Marco Maciel? Todos sem brigar, sem falar de política. Miguel Arraes de Alencar D outor Miguel Arraes não vai ser enterrado. Vai ser plantado”. Uma frase como essa não precisa de interpretação. Ela é simples no seu significado. Tão simples como o homem do campo que a pronunciou, quase como uma tentativa de consolo próprio, menos pela perda do homem Arraes, e muito mais pelo desaparecimento de um herói do povo. Aquele cuja imagem sofreu todo tipo de ataque dos opositores, porque incomodava, mas que, no imaginário dos “pés descalços”, dos “excluídos” – como ele chamava – deve continuar intocada. Miguel Arraes era um homem de bem, na acepção da palavra. Polêmico. Às vezes duro. Quase sempre dócil. Um negociador hábil até com os adversários, que só se recusou a negociar com seus carrascos, em 1964. Para muitos, era um político difícil de ser interpretado, porque não gostava de falar muito. Mas era por seus gestos e atitudes que se podia entender o que ele queria dizer. Foi isso que aprendi em quase duas décadas de jornalismo, tempo em que mantive muitos contatos com o “velho”. Terminei premiado, se posso dizer assim, por ter sido a mim que ele concedeu sua última, e longa, entrevista. Foi para a série sobre os vinte anos da Nova República – publicada pelo JC entre janeiro e março de 2005 – e reeditada no caderno especial publicado neste domingo. O encontro foi partilhado pelo cientista político e amigo Túlio Velho Barreto e pelo companheiro Paulo Sérgio Scarpa, colunista do JC e um homem apaixonado por Arraes como poucos que conheci. Foram quase três horas de conversa sobre política na mais pura essência. O “doutor” falava com a mesma facilidade sobre conjuntura municipal, sobre o cenário nacional e sobre política internacional, sem perder o bomhumor característico. Fomos brindados, naquele dia, com várias das suas boas gargalhadas. No sábado, ao ouvir a frase do matuto sobre o “Pai Arraia”, como era chamado nas suas tu- O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas Sérgio Montenegro Filho multuadas visitas ao Sertão – que lhe valeram o apelido de “acabafeira” – caí na real: Arraes morreu! E o duro é saber que isso significa, acima de tudo, o fim de uma geração de políticos com P maiúsculo, que com suas lutas populares marcou a agitada segunda metade do século XX. Era uma gente que nada tinha a ver com essa “politiquinha” que se faz hoje. Ou “politicagem”, se preferir o leitor. Miguel Arraes foi juntar-se a homens como Leonel Brizola, Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Luís Carlos Prestes, João Goulart, Juscelino Kubitscheck, e outros tantos. Ideologias – e simpatias – à parte, essa foi uma geração se esforçou para deixar aos seus descendentes políticos um exemplo bravo de luta. Uma lição que, lamentavelmente, poucos aprenderam. Evaldo Costa (Org.) Arraes não gostava de ser chamado de mito. Dizia que não era infalível. E não era. Como político, havia os que o antipatizavam, criticavam ou condenavam por seus atos. E como homem comum, ele também tomou decisões erradas e fez desafetos. 116 Mas também enfrentou situações diante das quais muitos homens comuns poderiam ter sucumbido. Imagine entrar na política pensando em trabalhar pelo bem comum, pelo homem do campo, pelos pobres. De repente, exatamente por causa desse ideal, foi declarado inimigo do Estado, preso, deposto do cargo para o qual foi eleito pelo voto popular livre, e condenado a viver por quase vinte anos no exterior, proibido de retornar ao seu País. Assim foi com Miguel Arraes e com vários outros. Alguns voltaram, mas desistiram de lutar. Outros amargaram seqüelas permanentes. O ex-governador deposto optou por levantar a cabeça e buscar, novamente, o campo de batalha. Nacionalista, porém aberto às mudanças no mundo. Duro crítico dos oligarcas e dos monopólios. Defensor ardoroso do homem simples, oprimido. Assim era Miguel Arraes. Mas Arraes também era o marido de Madalena, pai de dez filhos, avô, bisavô. Gostava de arte e literatura. Fumava cachimbo e charuto. Apreciava um bom uísque e a comida regional. Um retrato modesto de um homem de bem, que tirou da vida o que ela pôde lhe oferecer, sem reclamar mais. E deixou uma enorme lição de humanidade. Só temos que agradecer. Sérgio Montenegro Filho é repórter, colunista e blogueiro do Jornal do Commercio. Fonte: JC Online Miguel Arraes, 1916-2005 O s obituários que sempre esvoaçam e rondam a agonia dos grandes homens desta vez falharam no alcance e na sua mira. Abutres, de bom faro e argúcia, desta vez os obituários erraram o cadáver do brasileiro que se vai. E não exatamente por falta de tempo e de informações. Miguel Arraes de Alencar, presidente do Partido Socialista Brasileiro, encerrou sua vida neste 13 de agosto depois de quase dois meses internado em um hospital. Na altura de lúcidos e incansáveis 88 anos de idade, tempo, importância, fatos e história não foram parcos. Os obituários que temos diante dos olhos, no entanto, foram todos redigidos e arquivados como se ele passasse por nós como uma sombra do golpe de 1964, como um sobrevivente que resistisse a nos lembrar aquela infâmia, com uma insistência cujo desagrado era inevitável. “Em seu primeiro mandato como governador, foi deposto pela ditadura militar. Exilou-se na Argélia, em 1965, e só retornou ao Brasil 14 anos depois, beneficiado pela Lei da Anistia. Já foi eleito três vezes deputado federal”, diz-nos a Folha Online, relacionando dramas históricos como a ocorrência de chuvas, sol e gripes passageiras. Como fatalidades fúteis. O Globo On Line, com menos má vontade e omissão, evita a economia na gravação dos dados de uma vida venturosa. Mas o mal vem informado no título, “o último representante da velha esquerda”. De Pernambuco, na imprensa local, o JC Online informa, desinforma, mal informa, nada informa: “Quando a ditadura militar foi instalada, o governador foi deposto e permaneceu quase um ano preso na ilha de Fernando de Noronha. Depois de conseguir um habeas corpus, o político embarcou para a Argélia, onde viveu 14 anos no exílio”. Nada, em suma, que alcance o homem que esteve sob seus olhos e olfato a padecer nos últimos 58 dias. Nada à altura dos 88 anos que se vão como um fio de luz neste sábado de agosto. E nem precisariam compor uma hagiografia, um perfil de um santo, o mais convencional e falso perfil que se faz O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas Urariano Mota Evaldo Costa (Org.) de alguém que morre. Não. Esse homem que se vai gerou também desgostos, inimizades e queixas no interior da própria esquerda brasileira. Havia militantes sindicalistas que o descreviam como coronel, caudilho, autoritário, pouco afeito a ouvir a divergência, porque, no governo, não atendia às reivindicações dos servidores públicos. Outros havia, ex-companheiros do tempo da resistência democrática, que o acusavam de concentrador, porque não distribuía com justiça cargos, valores e representações, e, pior, não abria espaço para que os ex-companheiros também ascendessem ao poder no tempo bom. E, por unanimidade quase, ONGs se irmanavam em condenálo como um ser atrasado, do século 19, a ver o mundo com os olhos das populações analfabetas do Nordeste brasileiro. Por coincidência, este foi o mesmo conceito com que o viu o Estado neoliberal no Brasil, dos Fernandos Collor e Henriques Cardoso aos conservadores de todas as convicções. 118 Mas por que e para que tanto furor contra esse dinossauro, mau orador, incapaz de discurso de arrepiar as massas, que falava baixo e ruim e com dicção difícil? – O povo o amava. O povo o idolatrava. O povo se rasgava por ele. O povo entrava em febre por ele. O povo entregaria a própria vida por ele. Uma das maiores dificuldades de Gregório Bezerra, no primeiro de abril de 1964, foi convencer camponeses a não virem ao Recife. Massas de trabalhadores se dispunham a vir à luta armados apenas de facões, facas e enxadas contra fuzis e tanques do exército brasileiro. Bastaria este fato para dar a dimensão desse homem que se foi. Mas ainda é pouco. A coisa dita assim, até parece que massas ignorantes, fanatizadas, dispunham-se ao sacrifício, a entregar o próprio corpo ao genocídio. Mas não. Tal amor é manifestação testemunhal por atos concretos do que foi o primeiro governo Miguel Arraes. É com ele que surge o revolucionário, o pioneiro e odiado “Acordo do Campo”: trabalhadores da cana-de-açúcar tiveram os mesmos direitos que os trabalhadores urbanos de Pernambuco: salário, décimo terceiro, carteira assinada... deixavam de ser escravos. Daí o fanatismo desses atrasados. Impossível não lembrar as palavras de um espartano citadas por Marx: “Você sabe o que é ser um vassalo, mas nunca provou a liberdade para saber se ela é doce ou não. Porque, se a tivesse provado, teria nos aconselhado a lutar por ela não apenas com lanças, mas também com machados”. Um homem assim, que gera tais sentimentos, quando se vai, deixa sempre na gente o gosto amargo da sua ausência. Mas quando isto se dá numa hora como a que todos no Brasil passamos, o que dizer? Talvez esperar em silêncio que “Como homem público, tenho que esperar tudo, sem queixa, porque é minha obrigação ir pra cadeia, se é pra manter a minha posição de defesa do povo e não capitular diante dele. É minha obrigação ir pro exílio, se não posso ficar na minha terra. É minha obrigação manter a posição, manter firmemente a posição que pode mudar o nosso país e melhorar as condições de Pernambuco”. Mais Miguel Arraes, urgente. Cartas de Agosto renasçam políticos à semelhança do Miguel Arraes de Alencar, que em discurso, entre pigarros e sem levantar a voz, declarou: Urariano Mota é jornalista. Fonte: www.lainsignia.org 119 O mito fica na história M iguel Arraes de Alencar faleceu, nesse sábado, aos 88 anos, após quase dois meses hospitalizado, e deixa um legado: o de fazer política com a alma e com rumo. Em toda sua história, fez muitos adversários, mas pouquíssimos inimigos. Era respeitado por todos, não só por sua força política, mas pela forma como atuava e por tudo que enfrentou. Era de falar pouco, porém, quando se pronunciava, era ouvido porque sempre tinha um algo mais a dizer. Daí, ter sido considerado um mito e visto até como um enviado dos céus pelos mais humildes. A morte todos esperam, contudo há pessoas que parecem que viverão eternamente, e uma dessas era Miguel Arraes. Para o Brasil, seu desaparecimento ocorreu num momento em que o País vive a maior crise da história, e o ex-governador, pelo que representava, seria fundamental para sairmos desse turbilhão. Arraes era o último ícone da esquerda que estava na ativa e poderia dar uma grande contribuição ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Mas quis o destino que não fosse assim, lamentavelmente. Pernambuco perde um dos seus maiores líderes, pois, apesar da idade avançada, o deputado se mantinha disposto e combativo em prol do Estado. Só nos resta prestar nossos sentimentos à família e ao PSB. As forças de esquerda ficam órfãs e sem aquele que poderia ser uma referência. Valdecarlos Alves é jornalista. Fonte: Folha de Pernambuco O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas Valdecarlos Alves Meu Pernambuco P deputado Fernando Gabeira para mexer com arraigados temores – no Congresso, nas igrejas e na classe média. Compreender melhor os seus últimos esperneios para manter-se no alto da árvore onde jamais poderia ter chegado sem os braços, a cumplicidade e os votos de muita gente que agora se mostra incomodada e com vergonha da sua companhia. Pode parecer prosaico, mas só não consegui engolir, até agora, a parte em que Severino Cavalcanti falou do “meu Pernambuco querido, cujo povo me conhece bem”. Por esta razão – acredita – recebeu mais de 80 mil votos no pleito passado e ainda elegeu a filha para ampará-lo nas largas caminhadas por corredores entupidos de câmeras, fios e microfones – diante dos quais o terceiro nome na linha de sucessão do presidente da República costuma cometer os seus maiores desvarios. A esta altura, só falta o desfecho para esta típica história de realismo fantástico começar a ser cantada integralmente nas feiras e rodas de cordel. Desde domingo, nada dá certo para Severino: o desempenho de ator mambembe; o charme da velha raposa da política com sotaque engraçado e origem pobre que venceu no Planalto; a pretensa sagacidade do conservador capaz de mirar no cangote do Leio um comovente texto jornalístico (inédito), produzido pelo jovem repórter Cláudio Leal, sobre a recente passagem do escritor Ariano Suassuna pela Bahia. Começa com um registro digno da obra do escritor que glosa a sua própria vida. Logo na entrada, o autor de O Auto da Compadecida – convidado para falar em um evento de moda em Salvador – foi barrado na porta. “O acesso ainda assei a semana com a entrevista do deputado Severino Cavalcanti atravessada no esôfago maltratado. De domingo para cá – com a cassação do deputado Roberto Jefferson e o aparecimento do cheque da propina que arrasta para a fila da forca o pescoço do presidente da Câmara –, consegui processar algumas atitudes do tosco parlamentar de João Alfredo. O adeus a Miguel Arraes em sites, jornais e revistas Vitor Hugo Soares não é permitido”, avisou um segurança. “Mas eu sou o palestrante!”, argüiu o escritor. “Confira!”, ordena uma auxiliar do evento. “Não é a primeira vez. Não tenho cara de autoridade, minha filha. Sempre me barram!”, explica o mestre de olhos espantados e sobrancelhas eriçadas a uma jornalista que o reconhece na porta. Evaldo Costa (Org.) O texto me recorda também que o criador do Movimento Armorial de Pernambuco nasceu na cidade de Nossa Senhora das Neves, atual João Pessoa, capital da Paraíba. Foi secretário de Cultura e um dos maiores amigos de Miguel Arraes, este o cearense mais pernambucano que já vi, em cujo rastro dei os primeiros passos de militante estudantil na campanha para o governo de Pernambuco, em 1962. 124 Aluno do Colégio Dom Bosco, dos padres salesianos em Petrolina (PE), exercia então o cargo de secretário-geral da aguerrida União Petrolinense dos Estudantes Secundários (Upes), ainda sem idade para votar, mas colado na campanha do nordestino que carregava nas duas mãos “todos os sentimentos do mundo”, como está escrito em sua lápide no cemitério do Recife. Embora nascido no lado baiano das barrancas do Rio São Francisco, Pernambuco sempre esteve perto de mim. Tudo que toca ou se diz sobre aquela terra e sua gente bole comigo. E isso vem do tempo de menino, quando acordava todos dias ao compasso dos frevos de Capiba e Nelson Ferreira, ou dos baiões e xaxados do gênio de Exu, Luiz Gonzaga, transmitidos pela Rádio Jornal do Comércio, “falando para o mundo”. O mundo, então, era a cidade de Santo Antônio da Glória, cujo território municipal abarcava também Paulo Afonso, gigantesco canteiro de obras onde tomava forma o sonho de Delmiro Gouveia a que Apolônio Sales deu jeito e forma e um decreto de Getúlio Vargas mandou executar. Engenheiros e milhares de “cossacos” nordestinos construíam a grande Hidrelétrica do São Francisco – a Chesf. Paulo Afonso da época era uma espécie de território livre de Pernambuco na Bahia. A relação afetiva estreitouse com os anos, apesar de ter aumentado a distância física. São pernambucanos muitos dos meus melhores amigos e algumas das figuras que mais admiro – intelectual e profissionalmente: na música, na literatura, na poesia, no teatro, no jornalismo, na política. Gente que só conheço de livros, discos e palcos, ou parceiros de estudo, trabalho e de muita conversa jogada fora em décadas de carnavais e mesas de bares. De Capiba e Gonzagão a Geraldo Azevedo – este vi cantando serenatas para as meninas que eu vou/ Busco-a em mim mesmo, onde Olinda sou”. Estes ficarão na memória do meu Pernambuco querido. Severino Cavalcanti, não. Cartas de Agosto do colégio das freiras, na avenida Guararapes, em Petrolina. De Julião a Arraes; de Hermilo Borba Filho a João Cabral; de Nelson Rodrigues a Guel Arraes e Jomard Muniz de Brito. De Noblat a Celso Marconi e Felix de Athayde – colega do Jornal do Brasil, parceiro das lutas e exílio de Arraes, saudoso amigo do peito –, o poeta que produziu um dos versos mais belos de amor a Pernambuco: “Quando eu quero Olinda, não é lá Vitor Hugo Soares é editor de Opinião do jornal A Tarde, de Salvador. Fonte: blogdonoblat.com.br 125 Produção Editorial Produção e edição final Tereza Vitale Diagramação Heonir S. Valentim Rogério Pinto CLSW 302 – Bloco B – Sala 123 – Ed. Park Center CEP 70673-612 – Setor Sudoeste – Cruzeiro, DF Telefax: (61) 3033-3704 / 9986-3632 e-mail: [email protected] [email protected]