Volume 33 Issue 2 us $7.50/CAN $9 Jaimiro e Azima Xavante no Warã, patio central da aldeia Pimentel Barbosa no Cerrado. Foto: Laura R. Graham Cultural Survival Antes que o dia termine, um indígena será morto ou deslocado de sua terra. Antes que o mês termine, uma terra indígena será desapropriada, desmatada ou inundada. Antes que o ano termine, dúzias de línguas indígenas desaparecerão para sempre. Governos e interesses econômicos poderosos perpetuarão essa devastação humana e cultural. Cultural Survival trabalha para inverter essa situação. Nós nos unimos aos povos indígenas para proteger suas terras, línguas e culturas, e lutar contra sua marginalização, discriminação, exploração e abuso. Fortalecimento Indígena Educação e Difusão A Cultural Survival se associa às comunidades indígenas para ajudá-las na suas lutas pela proteção de suas terras, línguas e cultura. Como exemplos dos vários programas que realizamos, estamos apoiando uma coligação de Organizações de Nativos Americanos (Estados Unidos) para salvar suas línguas; e uma rede de rádios comunitárias na Guatemala, com objetivo de ajudar povos Mayas a reconstruir suas culturas depois de 30 anos de genocídio. As publicações de Cultural Survival buscam promover o entendimento do público e apoiar os povos indígenas em sua luta. Além dessa revista, nós produzimos relatórios de pesquisa sobre as ameaças governamentais que pairam sobre os povos indígenas, como suporte para a análise periódica do Conselho de Direitos Humanos da ONU dos informes sobre direitos humanos relativos aos diferentes países. Nós também mantemos uma página web que inclui um grande número de dados sobre povos indígenas em todo mundo; e realizamos uma série de bazares de comércio igualitário, permitindo que mais de 30.000 pessoas por ano entrem em contato direto com artesões indígenas, ao mesmo tempo gerando recursos financeiros para as comunidades indígenas. Declaração da ONU sobre Direitos dos Povos Indígenas O trabalho da Cultural Survival é pautado pelos princípios estabelecidos pela ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas. INVERNO 2010 3 O Cerrado Brasileiro 4 A invasão dos tratores Enquanto o mundo se concentra na proteção da Amazônia, os povos indígenas do Cerrado estão lutando para preservar suas terras da destruição LAurA r. GrAhAm Todos os povos têm o direito de viver em um meio-ambiente limpo, com água fresca para beber e se banhar. Para os povos indígenas que vivem no Cerrado, a recente e massiva invasão do agronegócio constitui uma ameaça a esses direitos humanos básicos. 11 marãnã Bödödi – Caminho Pela mata recuperação do Território Tradicional Xavante 12 Salvem o Cerrado CiPASSé XAvAnTE O que o Cerrado significa para mim 14 Porque devemos proteger o Cerrado hiPAridi TOP’TirO unamo-nos para proteger o Cerrado! 19 O nosso Cerrado PAuLO SuPrETAPrã A ameaça que paira sobre a nossa Comunidade Eténhiritipa 20 O que a mOPiC pode fazer por nós TABATA KuiKuru, ELCiO TErEnA, TErEzA CriSTinA KEzOnAzOKErO Testemunhos indígenas sobre a mOPiC 21 Povos indígenas do Cerrado: Territórios e Culturas ameaçadas A mobilização dos Povos indígenas do Cerrado – mOPiC 24 Terra indígena raposa do Sol AnA PAuLA CALdEirA SOuTO mAiOr O que acontece quando o Supremo Tribunal e a Constituição discordam? é o que estão descobrindo os povos indígenas ao constatar que correm o risco de perder o controle sobre suas terras 26 A FunAi sob a mordaça do STF: e agora? GiLBErTO AzAnhA A responsabilidade atribuída ao Supremo Tribunal Federal de decisão sobre um processo de homologação de terra indígena é uma ameaça ao trabalho da FunAi 28 marãnã Bödödi mAriA LuCiA CErEdA GOmidE marã é a mata, marãnã é através da mata, e bödödi é caminho... caminho através das matas... Caminho através das matas do ró... 30 O caminho da lei….uma entrevista com a Procuradora da república dEBOrAh mACEdO duPrAT dE BriTTO PErEirA A Constituição Brasileira prevê a proteção das terras indígenas, mas o processo de reconhecimento legal é ainda complicado 31 O que diz a lei? A Legislação em matéria indígena Preparação do milho para estocagem feita por Batika Dzutsi´wa Xavante, anciã da aldeia Idzõ´uhu- T.I. Sangradouro/Volta Grande – MT. Foto: Daniela Lima COnSELhO TéCniCO-AdminiSTrATivO COnSELhO dirETOr Presidente Sarah Fuller vice-presidente richard Grounds (Euchee) Tesoureiro Jeff Wallace Secretários Jean Jackson Suzanne Benally (navajo) marcus Briggs-Cloud (miccosukke) Westy Egmont Laura r. Graham James howe Cecilia Lenk Pia maybury-Lewis Les malezer (Gabi Gabi) P. ranganath nayak vincent nmehielle (ikwerre) ramona Peters (Wampanoag) Stella Tamang (Tamang) martha Claire Tompkins roy Young Fundadores david and Pia maybury-Lewis Ellen L. Lutz, Diretora Executiva Mark Camp, Diretor de Operações e Coordenador do Projeto Rádio Guatemala Mark Cherrington, Diretor de Comunicações Paula Palmer, Diretora do Projeto Resposta Global Jamie Malcolm-Brown, Designer Gráfico David Michael Favreau, Diretor de Marketing Kristen Dorsey (Chickasaw), Relações públicas com Doadores Sofia Flynn, Gerente de finanças Cesar Gomez (Pocomam), Coordenador de Conteúdo e Training do Projeto Rádio Guatemala, Polly Laurelchild-Hertig, Diretor de Recursos para Programas Agnes Portalewska, Gerente de Programasr Rosendo Pablo Ramirez (Mam), Coordenador Assistente do Projeto Rádio Guatemala Alberto Recinos, Coordenador Jurídico do Projeto Rádio Guatemala Jennifer Weston (Lakota/Standing Rock Sioux), Gerente de Programas e de Comunicação Ancelmo Xunic (Kaqchikel), Contador do Projeto Rádio Guatemala Radio Phoebe Farris (Powhatan-Renape),Colaboradora de Edição e Arte COnSELhO EdiTOriAL Kristina Allen Kim Burgess Duane Champagne Brian Ferguson Robert Gordon Lotte Hughes Neil Jarman Theodore Macdonald, Jr. Fergus MacKay Ian S. McIntosh Sally Engle Merry Chris Rainier Tim Sieber rESPOnSávEiS dESTE númErO: Cultural Survival 215 Prospect Street Cambridge, mA 02139 t 617.441.5400 f 617.441.5417 www.cs.org Editora: Laura R. Graham, Antropóloga Professora Assistente, University of Iowa, EUA Editora Assistente: Rebecca Igreja, Antropóloga COnSELhO dE PrOGrAmAçãO Theodore Macdonald, Jr. Jessie little doe (Wampanoag) Jacob Manatowa-Bailey (Sac and Fox) ESTAGiáriOS E vOLunTáriOS Keisha Brice, Manasi Gupta, Sarah Habtermarian, Zachary Tate inFOrmAçãO GErAL Copyright 2010 Cultural Survival, Inc. A Revista Cultural Survival Quarterly(ISSN 0740-3291) é publicada trimestralmente pela Cultural Survival, Inc. Endereço: 215 Prospect St., Cambridge, Massachusetts, EUA, 02139. Distribuição postal paga na região de Boston, MA, 02205 e Agências de Correios adicionais. Para uso dos Correios: eventuais mudanças de endereço, reenviar para Cultural Survival, 215 Prospect St., Cambridge, MA 02139. Impresso em Papel Reciclado nos Estados Unidos. As opiniões emitidas nos artigos dessa publicação não refletem necessariamente o ponto de vista da Cultural Survival. Sobre regras para publicação de artigos veja nosso site web (www.cs.org) ou envie um envelope selado auto-dirigido para Cultural Survival, Writer’s Guidelines, 215 Prospect St., Cambridge, MA 02139. Sibupa Xavante, habitante da T.I. Pimentel Barbosa, era muito próximo do fundador da Cultural Survival, David Maybury-Lewis. “Eu voltei para vê-lo”, Maybury-Lewis disse, “meu irmão da tribo. Um homem sábio. Eu me dei conta do que ele ainda possui, do que eu deixei para trás. Pertencer a essa grande e complicada teia da vida. Participar de sua longa, longa construção”. Foto de Millenium series, Meech Grant Productions, Inc. mEnSAGEm dA dirETOrA EXECuTivA O Cerrado Brasileiro uando pensamos em indígenas e em florestas imediatamente vem a nossa mente a imagem da Amazônia e dos povos que lá vivem. Esquecemos, contudo, de um “outro” Brasil representado pela exuberância natural do Cerrado e pela presença de povos indígenas diversificados que nele habitam. O Cerrado brasileiro cobre uma área de aproximadamente 2.000.000 km2, quase um quarto do território brasileiro. Apesar de se estender por vários Estados do país, sua área nuclear está na região do Planalto Central, um platô com dimensão de 486.311 hectares. Trata-se de uma das regiões de Savana tropical com maior biodiversidade do mundo e do segundo maior bioma da nação, depois da Floresta Amazônica. Essa sua diversidade é propiciada pela presença dos rios que constituem três grandes bacias hidrográficas da América do Sul: Amazônica, Paraná/Paraguai e do São Francisco, garantindo índices pluviométricos regulares. Apesar de sua enorme riqueza natural, as taxas de desmatamento no Cerrado têm sido historicamente superiores às da floresta Amazônica, ao mesmo tempo em que o esforço de conservação do seu bioma é muito inferior: apenas 2,2% da área do Cerrado se encontra legalmente protegida. Segundo dados da Organização Conservação Internacional, diversas espécies animais e vegetais estão ameaçadas de extinção e estima-se que 20% delas não ocorram nas áreas legalmente protegidas. As principais ameaças à biodiversidade do Cerrado são: a erosão dos solos, a degradação dos diversos tipos de vegetação presentes no bioma e a invasão biológica causada por gramíneas de origem africana. Outro fator de ameaça é o uso de queimadas para a abertura de áreas virgens e para estimular o rebrotamento das pastagens. Para a organização “Conservação Internacional”, o Cerrado pode ser considerado como região de “Hotspot”, ou seja, com grande presença de biodiversidade e onde as ações de conservação são mais urgentes. O Cerrado atualmente é visto como uma região de grande potencial agrícola. Suas áreas estão sendo Q invadidas por plantações de soja e recentemente de cana-de-açúcar, e por pastos para a criação de gado. Essas atividades agrícolas e pecuárias estão crescendo em um ritmo intenso e exigem cada vez mais uma melhor infra-estrutura para baratear os custos do transporte da safra. Os impactos dessas atividades sobre o Cerrado têm sido imensos e têm deixado apreensivos todos aqueles que se dedicam a defesa da natureza. Povos indígenas social e culturalmente diversos vivem no Cerrado há séculos. Calcula-se que a região do Centro-Oeste sozinha é habitat para mais de 53 mil indígenas que pertecem a mais de 42 etnias diferentes. Todos esses grupos estão enfrentando sérios desafios para que possam preservar o Cerrado e nele permanecer. Lutam pela defesa da natureza e de suas terras. Buscam apoio de todos aqueles que possam lhe amparar nessa luta. Como o líder Xavante Cipassé diz: “A luta para salvar o cerrado não é só nossa, é de toda a humanidade”. O que está acontecendo no Cerrado provoca efeitos a nível planetário, prejudicando toda humanidade. ONGs nacionais e internacionais buscam apoiar os indígenas na luta pela manutenção de suas terras e pela preservação do Cerrado. Com este fim, o célebre antropólogo David Maybury-Lewis e sua esposa Pia criaram a Organização Cultural Survival. Maybury-Lewis realizou seu trabalho etnográfico na região na década de 1960, momento em que pôde testemunhar os vários abusos de que os indígenas eram vítimas. A situação atual não é diferente. Desde então, os indígenas têm visto a fragmentação de suas terras e a destruição de suas culturas diluídas e ameaçadas pela assimilação e pelo desenvolvimento. Nessa edição de Cultural Survival Quartely, nós enfocamos o cerrado e as ameaças que pairam sobre ele. Ellen L. Lutz, Diretora Executiva Cultural Survival Quarterly inverno 2010 3 A invasão dos Tratores Laura r. Graham O avanço do Agronegócio que está desmatando o Cerrado. Foto: Laura R. Graham 4 www.cs.org Todos os povos têm o direito de viver em um meio-ambiente limpo, com água fresca para beber e se banhar. Para os povos indígenas que vivem no Cerrado, a recente e massiva invasão do agronegócio constitui uma ameaça a esses direitos humanos básicos. s Xavante, indígenas pertencentes à família lingüística Jê, vivem na área de Cerrado do Estado do Mato Grosso. Historicamente, os xavante buscaram evitar o contacto com a sociedade nacional, atitude essa que os levou a serem conhecidos como povos orgulhosamente isolacionistas. Não obstante, alguns grupos estabeleceram contatos pacíficos a partir de 1946 e de maneira mais intensa e generalizada, nos anos 60. Mesmo depois de cinqüenta anos de intenso contacto, os Xavante mantêm muitos aspectos de sua vida tradicional. Ainda nos dias de hoje, observamos a grande riqueza de sua vivência espiritual e cerimonial. Os Xavante, no entanto, estão enfrentando atualmente grandes desafios. Suas terras estão agora à somente 12 horas de Brasília, situadas no coração do novo pólo agrícola e econômico do país. As nove pequenas reservas que o governo começou a delimitar nos anos 70 parecem hoje ilhas perdidas em um mar de soja. O agronegócio demonstra seu interesse sobre essas pequenas reservas, nas quais o rico ecossistema do Cerrado ainda está intacto. Meu acercamento aos problemas enfrentados pelos Xavante não é recente. Há mais de 25 anos atrás, como aluna de pós-graduação, iniciei minha etnografia sobre os grupos Xavante na comunidade de Eténhiritipa no centro do país, na Serra do Roncador. Desde então tenho sido testemunha das mudanças e dos novos desafios que esses grupos estão enfrentando, sobretudo com relação à defesa de seus direitos sobre as terras que ocupam. Esse artigo foi inspirado por minhas observações em uma viagem que realizei recentemente as comunidades em companhia de Ellen Lutz, diretora executiva da organização “Cultural Survival”. Compartilhamos com os indígenas suas preocupações e para isso, junto com eles estamos buscando a melhor maneira de apoiá-los. Enquanto latifundiários e corporações nacionais e multinacionais estão obtendo seus benefícios da crescente produção de soja no Mato Grosso e fazendo planos de desenvolvimento de projetos multimilionários, muitos Xavante não possuem o suficiente para comer, sobretudo os que se encontram instalados em pequenas áreas e que, portanto, não dispõem de suficiente caça ou inclusive de palmeiras necessárias para construir suas casas. A situação de saúde nas áreas Xavante é chocante! A mortalidade infantil é extremamente alta, muito acima da média regional e nacional e perto da existente no Nordeste. Essa taxa resulta da exposição dos indígenas a muitas doenças infecciosas e a uma atenção médica precária. É iminente o aparecimento de epidemias de hipertensão e de diabete. Xavante é somente um dos muitos grupos do O Centro-Oeste cujas terras e sobrevivência têm sido severamente afetados nas últimas duas décadas pela proliferação da colossal agroindústria. Em algumas áreas, vê-se a produção da soja, outras de cana-deaçucar para bio-diesel, e ainda, a invasão das plantações de eucalipto destinadas a alimentar as fornalhas das fábricas de processamento de óleo de soja. “O cerrado é uma fonte de vida para a comunidade indígena”, diz Elcio, índio Terena da cidade Cachoeirinha. “Nossa preocupação atual é com sua devastação, principalmente na nossa região onde os fazendeiros estão desmatando muito. O Cerrado tem uma biodiversidade muito grande e é onde nós conservamos a nossa vida, porque ali encontramos o quê comer: a caça, pesca, frutas, mel. Todas as coletas de matéria-prima são feitas no cerrado; ele fornece nossa alimentação. Por isso se a gente não proteger o Cerrado, a gente vai acabar com a nossa alimentação. As queimadas estão acabando com a diversidade do Cerrado. São um problema pois estão acabando com a guavira, que é uma fruta saborosa, de grande valor no mercado.” Os Xavante podem ser considerados afortunados pois vivem em reservas protegidas legalmente, mesmo que sejam de pequena extensão e invadidas de maneira frequente. Muitos outros grupos, por sua vez, vivem em terras que ainda não foram demarcadas. Em geral, as demandas de reconhecimento de suas terras ficam décadas perdidas nas gavetas dos escritórios das agências governamentais responsáveis pela demarcação e homologação de terras indígenas. A viagem que realizamos juntamente com Hiparidi Top’tiro, um dos líderes da comunidade Abelhinha localizada na Terra Indígena Sangradouro, e Daniela Lima, ativista dedicada a defesa dos direitos indígenas, durou menos de um dia. Estradas asfaltadas nos conduziram até aproximadamente 60 km da reserva Pimentel Barbosa. Uma jornada como essa era realizada em 1982 no mínimo em três dias (às vezes mais), em uma resistente camionete 4X4, atravessando estradas difíceis e passando por pontes instáveis, normalmente construídas com duas tábuas colocadas sobre as aguás. Na época de chuvas, quando aguaceiros torrenciais golpeavam o cerrado, as rodovias eram praticamente intransitáveis. Em nossa viagem vimos imensas carretas que transportavam produção agrícola, particularmente grãos de soja, para fora do Mato Grosso em direção aos portos e centros comerciais onde a carga seria exportada principalmente para os mercados na Europa, China e Japão. Viajamos quilômetros em meio de um cerrado desmatado, terras que agora eram propriedades de poderosos fazendeiros e corporações agrícolas. Vimos grandes armazéns de grãos, silos e outros complexos de Cultural Survival Quarterly inverno 2010 5 Mapa elaborado e cedido gentilmente pelos produtores do documentario “Os Donos da Água”. 6 www.cs.org armazenagem; e placas imensas com nomes de grandes transnacionais, como Cargill, Bunge, Monsanto, Maggi, ADM. Pequenos povoados tinham se transformado em cidades de tamanho considerável, classificadas entre as que mais crescem no país. O galopante crescimento da agroindústria exerce grande pressão sobre os povos indígenas. A atitude predominante na região é pró-desenvolvimento e próagronegócio. Qualquer pessoa que busque uma posição alternativa se depara com antagonismos e forte indignação. Isso é especialmente verdade para os povos indígenas que ao defender os seus direitos territoriais garantidos pela Constituição, a proteção do meioambiente e a habilidade de viver de acordo com suas tradições, são comumente considerados como entraves para o progresso. A agroindústria de soja começou a se expandir agressivamente pelo Cerrado Ocidental no final dos anos 80, quando variedades de soja adaptadas ao clima tropical tornaram-se disponíveis comercialmente. O crescimento agrícola acelerado junto com o aumento de megaprojetos de desenvolvimento de infra-estrutura (construção de rodovias, hidroelétricas, hidrovias), a exploração de minas e a extração de madeiras ilegais estão destruindo o meio-ambiente frágil do Cerrado e causando efeitos devastadores para os habitantes das comunidades indígenas. O aumento da colonização Durante os anos 60 e nos anos 80, o governo brasileiro utilizou esquemas de colonização de largaescala e generosos incentivos fiscais para atrair novos posseiros e pecuaristas do sul para regiões remotas do Cerrado. Com a fronteira avançando em direção ao Oeste, houve um aumento de conflito entre indíos e fazendeiros. O contato interétnico intenso teve como resultado a devastação de muitas comunidades causada por novas doenças como sarampo, para as quais elas não tinham imunidade. Aproveitando-se desse momento, agentes governamentais ou missionários conduziram os grupos sofredores para locais específicos como postos oficiais ou missões, para receberem tratamento médico e sanitário, enquanto o Estado vendíam suas terras, como se fossem terras “livres” de habitantes indígenas. Um dos exemplos mais flagrantes de desapropriação de terras Xavante aconteceu na área conhecida como Marãwaitsede, localizada na região do rio de SuyaMissu perto do Parque Nacional do Xingu. Depois de comprar terras dessa região por meios fraudulentos, um fazendeiro paulista promoveu vôos estratégicos sobre a área, lançando comida para os indígenas, deslocando os grupos várias vezes até situá-los em uma localização próxima da área onde foi estabelecida a produção. Pouco a pouco, os indígenas foram levados a trabalhar por comida e sujeitos ao assédio contínuo dos empregados não indígenas. As condições dos Xavante deterioram tão severamente que, em 1966, os proprietários – então o poderoso grupo italiano Ometto cuja corporação alcançou aproximadamente 15 mil km2 -, em colaboração com missionários Salesianos, do Serviço de Proteção aos Índios - SPI e da Força Área Brasileira, resolveram o “problema índio” transportando- os para uma Missão Salesiana em São Marcos, aproximadamente à 400 km de suas terras. Em duas semanas mais de 100 Xavante morreram de epidemia de sarampo no novo local de estabelecimento. Em 1996, os Xavante dessa área finalmente ganharam a longa batalha para recuperar um pouco de sua terra, com a demarcação e homologação oficial da Terra Indígena de Marawãitsede. Não obstante, desconsiderando as leis, fazendeiros que tinham se mudado para a àrea se recusaram a sair ou a permitir a volta dos Xavante. Ao contrário, encorajaram posseiros a ocupar completamente a àrea deflorestando grandes extensões. Em 2004, quando Xavante tentaram retomar suas terras, foram impedidos por homens armados. Os indígenas se refugiaram assim em um acampamento improvisado do lado oposto da rodovia (BR-158) e viveram neste lugar por 11 meses. As condições precárias do acampamento -- parecida aos dos Guarani causaram mais problemas de saúde para os indígenas, como por exemplo as três mortes de recém-nascidos por pneumonia agravada pela incessante poeira da estrada. Quando uma equipe responsável de realizar um estudo para o Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos tentou alcançar o acampamento por via terrestre encontraram pontes queimadas pelos fazendeiros que queriam dificultar seu acesso. A equipe, finalmente, teve de alugar aviões para chegar ao lugar por via aérea. Essa área ainda está marcada por conflitos e fazendeiros poderosos continuam desafiando os direitos dos Xavante nos tribunais. Pecuaristas continuam desmatando imensas áreas do Cerrado para pastagem em torno e mesmo no interior das áreas indígenas. O desmatamento e a formação do pasto abalam severamente a flora e a fauna do Cerrado, reduzindo a disponibilidade de animais para caça, uma importante fonte de proteínas para a dieta dos povos nativos. Além disso, sendo a caça central para muitas cerimônias, a falta de animais pode levar muitos grupos, tais como os Parecís do Oeste do Mato Grosso, a abandonarem atividades fundamentais para sua organização social e cultural. Antes da nova Constituição de 1988, a política do Estado brasileiro se dirigia a assimilação dos povos indígenas à estrutura social e econômica nacional (veja entrevista com Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira..pág.30). Na área do Cerrado, o governo procurou transformar os indígenas em fazendeiros capitalistas e agricultures comerciais. Por exemplo, em 1970, quando muitos fazendeiros estavam realizando o cultivo comercial de arroz para o mercado doméstico, a FUNAI implementou um projeto colossal de seu cultivo mecanizado nas áreas Xavante. A implementação desse tipo de projeto foi a forma encontrada pelo Estado para justificar a criação de reservas indígenas, uma vez que assim não se estaria “desperdiçando” a terra ocupada. Dessa forma, com o trabalho indígena, essas terras poderiam contribuir para o Produto Nacional Bruto PNB, como já fazem as outras fazendas comerciais da região. De fato, muitos latifundiários e agricultures se opõem a criação ou ampliação das reservas indígenas porque, segundo eles, impediría que terras potencialmente produtivas contribuissem para o desenvolvimento do país. Para os Xavante, o projeto de cultivo de arroz foi imensamente destrutivo pois criaram uma massiva dependência tecnológica, além de exacerbar as tensões dentro e entre as comunidades por causa das mudanças que provocou em suas estruturas, especialmente pela disputa pelos recursos disponibilizados pela instituição. Ademais, a substituição dos nutritivos alimentos tradicionais pelo arroz alterou dramaticamente a dieta traditional. Ma nutrição é agora um sério problema e novas doenças se tornaram endêmicas, especialmente a hipertensão e a diabete, doenças associadas a excessiva dependência de alimentos refinados e ao novo estilo de vida sedentário. Os projetos também abriram portas para que intermediarios não indígenas, principalmente funcionários da FUNAI, agindo de maneira corrupta, desviassem os recursos das transações financeiras, da restauração dos equipamentos, até da venda das colheitas das terras Xavante. Embora esses projetos tenham sido abandonados a finais dos anos 80, muitos dos problemas criados ainda persistem. 1990 – O boom da soja... A agricultura comercial no Centro-Oeste começou com arroz e poucas plantações de soja nos anos 70, expandindo-se com força nos finais dos anos 80 e nos 90 com a massiva agroindústria voltada para a exportação. O cultivo de soja é altamente mecanizado, de capital intensivo e usa grandes proporções de fertilizantes, herbicidas e pesticidas. Essa explosão agrícola no Cerrado coincidiu com o aumento da demanda global na época assustadora da doença da vaca-louca, momento em que os europeus necessitaram de soja para substituir a alimentação animal altamente protéica; e com a expansão do mercado mundial de óleo de soja, especialmente na China e no Japão. Em 2000, Mato Grosso tornou-se o estado maior produtor de soja, e em 2004, o Brazil suplantou os Estados Unidos na liderança Cultural Survival Quarterly inverno 2010 das nações maiores produtoras de soja. No Mato Grosso a área dedicada ao cultivo de soja aumentou 81% entre os anos de 1991 e 1994. Essa área quase dobrou de novo em 2003, e a estimativa indica que o estado tem potencial para plantar 10 vezes mais essa quantidade. As consequências ambientais e sociais dessa rápida e imensa explosão agrícola são assombrosas, principalmente para os vuneráveis indígenas da região que ainda não possuem a titulação de suas terras. Embora a Constituição brasileira garanta os direitos dos povos indígenas em ocupar permanentemente as terras onde tradicionalmente habitavam, o governo tem sido lamentavelmente incapaz no cumprimento de sua obrigação de identificar e demarcar essas terras. Em muitos casos, latinfundiários e corporações agrícolas suspendem os processos de homologação de terras impondo recursos legais que podem levar anos ou mesmo décadas para serem julgados como no caso da reserva “Serra Raposa do Sol” em Roraima (ver pág.24). Obviamente que enquanto os casos estão sendo decididos (ou não decididos), os fazendeiros continuam tirando proveito das terras indígenas. Eles constroem estradas, cercas, silos, armazéns, edifícios e inclusive cidades nas áreas reclamadas pelos indígenas. Esses “melhoramentos” sem duvida influenciam de maneira negativa na vontade política do governo em resolver a questão ou mesmo na sua capacidade para indenizar os proprietários pelo custo do investimento feito, aumentando assim a possibilidade de que ceda para a parte mais poderosa. São muitos os casos que demonstram as dificuldades que enfrentam os indígenas para reocupar suas terras. Isso aconteceu, por exemplo, com os Xavante de Marãwaitsede, que tiveram de acampar ao longo da rodovia, já que os fazendeiros se recusaram a deixar as suas terras, inclusive depois de terem recebido a indenização. Outro caso notável aconteceu na Ilha do Bananal em meio do Rio Araguaia, terra dos indígenas Karajá, Javaé e Ava Canoeiro. Mesmo depois de receberem a indenização que cobria a sua transferência para outra área, pecuaristas deixaram o gado na ilha, degradando o ambiente e poluindo as águas. Os grupos indígenas que desafiam o poder dos latifundiários estão sujeiros a uma enorme pressão. Por Os Donos da Água uma colaboração original entre dois cineastas indígenas e uma antropóloga, “Os donos da água” é um documentário convincente, com imagens etnográficas inovadoras. um xavante do Centro-Oeste do Brasil (Waiassé) , um wayuu da venezuela (Palmar) e uma antropóloga dos Estados unidos (Graham) exploram uma manifestação indígena para proteger os rios dos efeitos devastadores do cultivo descontrolado da soja no Cerrado. “Os donos da água” destaca um protesto cívico no qual os indígenas bloquearam uma rodovia e uma ponte, e fizeram o uso estratégico da cultura indígena para chamar a atenção para o desmatamento e para o uso excessivo de agrotóxicos no cultivo predador da soja. O documentário demonstra a diversidade de opiniões dos xavante, evidencia que os membros não-indígenas da população local tanto apóiam quanto se opõem às exigências xavante e também destaca os esforços indígenas para construir redes solidárias entre diferentes povos nativos e entre distintos países. Para mais informações sobre o documentário visite as páginas web: http://www.der.org/films/owners-of-the-water.html POrTuGuÊS:http://www.youtube.com/watch?v=umvB1mO5zYw Foto: David Hernández Palmar 8 www.cs.org conta disso, muitas comunidades sofrem de uma extrema desorganização e em algumas delas, especialmente no Mato Grosso do Sul, a incendência de suicídio é alarmante. Muitos indígenas se transformam em mártires de sua causa. Em 2007 e 2008, por exemplo, três líderes Xacriabá foram assassinados em uma disputa de terra. Especificamente no Mato Grosso do Sul, onde comunidades Guarani Kaiowá, Nãndeva e outras comunidades nativas estão confinadas em pequenas áreas, foram presos 80 indígenas. Eliso da Lopez é um desses líderes que, por causa da perseguição de fazendeiros, está impedido de ver sua família há mais de um ano. “ Nós queremos nossa casa de volta, então nós poderemos plantar e produzir”, ele diz. “Ainda que está terra seja nossa, nós estamos vivendo na beira da estrada. Essa situação é muito triste mas não voltaremos atrás. Mesmo que os fazendeiros matem um líder indígena, mil outros vão aparecer”. Alguns fazendeiros, não obstante, foram mais astutos ao se ocuparem do “problema” indígena. Por exemplo, fazendeiros vizinhos convenceram indígenas Parecís do Mato Grosso a formarem uma “parceria agrícola”, embora a agricultura comercial em área indígena seja ilegal. Em vez de apoiar os direitos indígenas, o governador do estado Blairo Maggi, fazendeiro milionário cujo grupo Maggi é um dos maiores produtores de soja no mundo, consentiu e oficialmente reconheceu esse tipo de acordo. Em 1995, os Parecís concordaram em permitir a plantação de 130 acres, em uma área que tem expandido a cada ano. Apesar de usarem o termo “parceiros” para descrever o acordo, segundo alguns informes, os fazendeiros ficam com 98% dos lucros, deixando somente 2% para os indígenas, que, com seu trabalho, cultivam a soja na sua terra. Governador Maggi é conhecido no Brasil como o “Rei da Soja”, mas ambientalistas o chamam de “Rei do Desmatamento”. Mato Grosso lidera os estados brasileiros em número de queimadas e de desmatamento. Aproximadamente 300.000 km2 de floresta e savana foram substituidos por plantações nos últimos 20 anos, de acordo com a WWF. O desmatamento, especialmente em torno das cabeceiras dos rios e riachos, está causando grande erosão e aumento de poluição. Durante a temporada de chuva, temporais levam os resíduos químicos usados na agricultura de soja- como o herbicida Roundup da Monsanto – diretamente para os rios onde os povos indígenas se banham, bebem água e pescam. Como o solo do cerrado é ácido e pobre em nutrientes, demanda grandes quantidades de cal e de fertilizantes químicos para ser produtivo. Os fertilizantes junto com os herbicidas usados em monoculturas intensivas vão escorrendo para os reservatórios de água e contaminando os lençois subterrâneos, tornando toda água perigosa. No Aquífero Guarani, o maior do mundo, contaminantes já alcançaram 80% do nível aceitável para o consumo humano. Químicos são levados e deixados pelo vento nas terras indígenas. Isso aconteceu na última temporada de plantação no território Xavante de Sangradouro, e Paulo Supretaprã, lider de Etéñhiritipa, informou que também está acontecendo na terra indígena de Pimentel Barbosa. Além disso, desde que o Presidente LULA retirou a proibição dos organismos geneticamente modificados em agosto de 2003, os fazendeiros de soja plantaram imediatamente variedades modificadas próximo ou mesmo dentro das áreas indígenas, embora seus impactos ambientais e humanos sejam ainda desconhecidos. Como Cipassé diz (veja pág.12) os Xavante estão preocupados com os animais que eles caçam e comem e que podem estar ingerindo substâncias tóxicas fora das áreas indígenas. Com planos de expansão de plantação de Cana-de-açucar e a instalação de fábricas para converter as safras em biocombustível, as pressões sobre os territórios indígenas provavelmente vão aumentar ainda mais no futuro. Remodelando o Cerrado Com a produção de soja se intensificando, mais de 4.5 milhões de toneladas por ano somente no Mato Grosso, e com as previsões de que a produção ainda crescerá mais, o Estado brasileiro está planejando um grande projeto de infra-estrutura integrado ao plano estatal “Avança Brasil”, para fazer a região mais acessível e transportar as imensas colheitas para os portos e centros comerciais. A hidrovia Tocantins-Araguaia, também conhecida como o Corredor de Transporte Multimodal Centro-Norte, é um projeto multimilionário que transformará a bacia hidrográfica mais extensiva do centro do país e do leste da Amazônia em uma hidrovia comercial que sustente os comboios de barcaças de transporte de soja e também de toxinas agrícolas. Esses projetos deixam os indígenas preocupados. No total, serão alterados mais de 2 700 km do sistema hidroviário Tocantins-Araguaia-Rio das Mortes. Isso inclui obras de engenharia em larga-escala, como hidrelétricas que serão construídas em ou próximo as zonas Xavante de São Marcos e Sangradouro, e que também afetará diretamente os territórios de Areões e Pimentel Barbosa. Uma recente barragem construida próxima da reserva Parabubure, uma das muitas planejadas nas cabeceiras do rio Xingu já está operando. Além disso, o projeto afetará no mínimo seis outros grupos indígenas: Apinajé, Javaé, Karajá, Krahó, Krikati Cultural Survival Quarterly inverno 2010 9 Expulsos de suas terras, índios Guaranis vivem atualmente em assentamentos provisórios situados à beira de estradas, enquanto esperam pela solução de seus problemas. Muitos povos do Cerrado se encontram nessa mesma situação. Foto: Naqillum (Flickr). 10 www.cs.org e Tapirapé. No total, a hidrovia poderá ter impacto direto nas vidas de mais de 10.000 indígenas que dependem do rio, da flora e da fauna para sua sobrevivência. Os indígenas estão lutando contra o projeto, e um processo judicial aberto por um Xavante de Pimentel Barbosa, em colaboração com o Instituto Sócio-Ambiental, logrou atrasá-lo; mas nada garante, no entanto, que será possível interrompê-lo. Sem desânimo, os indígenas empreendem esforços para melhorar suas condições. São diferentes projetos que estão sendo criados nesse sentido. Cipassé, líder da comunidade Wederã da T.I. Pimentel Barbosa, oferece como exemplo a criação de uma nova escola na comunidade, construída com fundos governamentais, equipada com moderna cozinha, biblioteca e sala de informática (ainda não tem os computadores ). Apresenta também o projeto da comunidade para criar, e com objetivo eventual de aumentar, a população de Queixadas ( Tayassu Pecari) em suas terras (ver artigo de Cipassé, pág 12). Wederã e muitas outras comunidades Xavante estão também desenvolvendo projetos, frequentemente com apoio de ONGs, que atestam o conhecimento tradicional das plantas do Cerrado e suas propriedades medicinais. Eles querem revitalizar as práticas de colecta e de processamento que foram abandonadas e estimular a alimentação de frutos nutritivos do Cerrado. Os Krahós também estão ajudando a melhorar o meio-ambiente através da participação em projetos de fruticultura no cerrado. Pequenos projetos como esses que podem fazer uma enorme diferença na vida de muitos indígenas estão em andamento em muitas comunidades espalhadas pelo Cerrado. Destaca-se entre os muitos projetos desenvolvidos pelos indígenas, o projeto Marãna Bödödi, ou Caminho pela Mata, que pretende unir os diversos grupos Xavante e indígenas Bororos que se encontram em pequenos territórios ao longo do Rio das Mortes, em uma área protegida comum. Em nosso esforço de encontrar a melhor maneira pela qual a organização “Cultural Survival” poderia apoiar os Xavante, contactamos funcionários da Coordenação de Assuntos Fundiários da FUNAI e da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, responsáveis por Assuntos Indígenas. As autoridades que encontramos parecem apoiar de maneira animadora os esforços que os grupos indígenas estão fazendo para proteger suas terras. Não obstante, sabemos que qualquer reivindicação dos grupos indígenas ainda encontrará uma forte oposição do Estado e dos poderes políticos locais, de agricultores e daqueles que se opõem de maneira feroz a ampliação dos territórios indígenas. A Constituição brasileira é a uma importante arma para os povos indígenas, mas garantir que os direitos indígenas previstos nela sejam colocados em prática exige muita dedicação e um longo e árduo trabalho. A Associação Xavante Warã e a rede extensa de alianças denominada Mobilização dos Povos Indígenas do Cerrado – MOPIC estão agindo para avançar na luta dos indígenas para a proteção do Cerrado. Como afirma Kuiusi Kisêdjê, líder da comunidade Ngojwere do Xingu: “Nós lutamos para recuperar nossa terra porque ela é sagrada para nós; nossos ancestrais estão enterrados aqui. Muitas pessoas pensam que nós estamos só interessados em dinheiro, mas o que nós queremos é a nossa terra”. marãnã Bödödi – Caminho Pela mata recuperação do Território Tradicional Xavante ssociação Xavante Warã é uma organização sem fins lucrativos que, nos seus doze anos de história, vem desenvolvendo diferentes projetos voltados para a auto-sustentabilidade do povo Xavante através da preservação/manutenção do Cerrado. A princípio, a Associação Warã atuava apenas em algumas aldeias da Terra Indígena Sangradouro, mais especificamente na comunidade Idzo´uhu, (Abelhinha), no entanto, devido ao sucesso obtido na execução de suas ações, tornou-se um modelo para as demais Terras Indígenas Xavante, o que a levou a ampliar sua atuação, articulando as distintas propostas apresentadas pelas diferentes T.I com o objetivo de constituir um movimento forte e unificado do povo Xavante. Atualmente, a Associação Warã tem como proposta principal, um projeto de recuperação do território Xavante, projeto MARÃNÃ BÖBÖDI – "Caminho pela Mata”. O território indígena Xavante localizado no cerrado do Estado do Mato Grosso está fragmentado em nove Terras indígenas, fato ocasionado pelo intenso processo de ocupação de seu território pela sociedade envolvente e que gera, até os dias de hoje, inúmeros impactos sócio-ambientais e culturais para esse povo. As T.I. Sangradouro, São Marcos, Areões e Pimentel Barbosa têm como eixo de ligação o Rio das Mortes, portanto, Marãnã Böbödi – O Caminho pela Mata - deve ser implantado na bacia do Rio das Mortes e parte da bacia do Xingu, interligando essas T.I e recuperando assim parte do território Xavante. O objetivo maior do projeto é consolidar a territorialidade Xavante nos cerrados mato-grossenses, através da revisão das terras indígenas, que embora demarcadas, não constituem o território Xavante. A ruptura causada pela fragmentação das terras Xavante em ‘ilhas isoladas’ gerou graves impactos na cultura, na perpetuação dos valores tradicionais e até mesmo na sobrevivência física deste povo. O Marãnã Bödödi é o caminho da territorialidade Xavante, com fundamento nos cerrados e nas matas, constituindo um território contínuo através da ligação das terras indígenas fragmentadas. Para desenvolver o projeto, será feita a sistematização dos conhecimentos Xavante relativos ao Cerrado, a caça, os rituais e a cosmologia, considerando o território Xavante como princípio. Os diversos ambientes - Amhu, Mara, Itehudu, Ape, Tsirãpré , Tsõwahu, Buru’rã, Tsinõ’rõtõ, Padzaiho’repré, Oto- que compõem o Cerrado, ao qual os Xavante denominam como Ro, detêm suas peculiaridades quanto ao tipo de vegetação , A animais , frutos e ervas medicinais, além de ser distinguido pela sua importância cosmológica e espiritual. Neste sentido, será realizado um levantamento detalhado dos conhecimentos Xavante para a criação do Marãnã Bödödi. Também será realizado um diagnóstico do entorno das terras indígenas que estejam contempladas pelo projeto a fim de propor estratégias de recuperação das áreas degradadas, contemplando um planejamento específico para regiões críticas, como as cabeceiras e o pantanal do Rio das Mortes. Os dados obtidos na elaboração do projeto fundamentarão os relatórios preliminares de revisão das T.I Xavante que serão enviados para a FUNAI e que fundamentaram um demanda de regularização fundiária das áreas delimitadas. A identificação do território tradicional Xavante será realizada por uma equipe de antropólogos, geógrafos e auxiliares Xavante e abarcará viagens de campo, coleta de depoimentos, visitas aos locais considerados relevantes e sistematização de dados através de relatórios que considere os seguintes aspectos: habitação permanente, atividades produtivas e de subsistência, recursos ambientais, reprodução física e cultural segundo usos, costumes e tradições. O Marãnã Bödödi é um projeto concebido pela Associação Xavante Warã e será coordenado em parceria com o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), entidade com 30 anos de existência e com várias ações em prol da regularização fundiária de dezenas de terras indígenas no Brasil. A coordenação do projeto será da Associação Warã e do CTI. O projeto também conta com o apoio da Organização “Cultural Survival”. A Fundação Nacional do Índio - FUNAI, como ente oficial responsável pelo processo de identificação, é um parceiro necessário. Cultural Survival Quarterly Crianças Xavantes da aldeia Idzô´uhu segurando os alimentos oriundos da roça. Foto: Daniela Lima inverno 2010 11 Salvem o Cerrado Cipassé Xavante é líder da comunidade Wederã localizada na T.I. Pimentel Barbosa no Mato Grosso. Essa T.I Xavante está localizada no município de Canarana. A aldeia de Cipassé, Wederã, conta com uma população de 70 pessoas. Cipassé Xavante e seu pai Urãwẽ diante da placa de inauguração da nova escola na aldeia Wederã, T.I. Pimentel Barbosa. Foto: Laura R. Graham. 12 www.cs.org Cerrado é visto nos dias de hoje como uma região para desenvolver a agroindústria e a pecuária. Com este fim, tem sido desmatado intensamente. Não só a criação de gado ou a produção de soja são as causadoras dessa devastação, mas também a plantação de cana-de-açúcar para a produção de biocombustível, atualmente incentivada no meio político brasileiro. O Mato Grosso é considerado um estado com grande potencial para o desenvolvimento da indústria do biocombustível. Nos anos 80, a soja foi introduzida na região em nome do “progresso” e acabou devastando o Cerrado e as terras indígenas, incluindo áreas do território de Pimentel Barbosa. Agora o cultivo da cana-de-açúcar também é incentivado com a mesma justificativa de promover o “progresso” para a região, mas igualmente destrói a vegetação para abrir espaço para as lavouras. O governo está promovendo o biocombústivel através de uma grande campanha na qual difunde a idéia de que é um combustível alternativo ao petróleo. As pessoas pensam que é uma alternativa “verde”. Quem realmente O vai sofrer com isso é o Cerrado que está sendo mais uma vez ameaçado de extinção. Nós também, os povos indígenas, estamos sendo ameaçados. Além disso, os fazendeiros nos pressionarão ainda mais tentando arrendar nossas terras para as lavouras. Eles tentarão nos convencer de que a cana é uma boa alternativa, mas nós iremos discutir e nos preparar para evitar ceder aos seus interesses. Os fazendeiros pensam que as pessoas que plantam soja vão querer plantar cana-de-açúcar porque é mais lucrativa e representa “progresso”. Três companhias paulistas já estão instalando suas usinas na região, em Xavantina, em Água Boa e outra próxima a Cascalheira, perto de Vila Rica. O governo federal e pequenos e grandes empresários estão incentivando e financiando essas instalações. Apesar dos problemas que traz a agroindústria que nos rodeia, continuamos como caçadores e coletores de frutas e vegetais do Cerrado. Tem sido assim por mais de 60 anos, desde que os Xavante tiveram o primeiro contato com os brancos. Não houve muita mudança, somente a diminuição do nosso espaço, do nosso território que hoje não passa de 300 mil hectares numa região cheia de relevo. Nós integrantes da comunidade Wederã não somente continuamos a caçar e coletar, mas também persistimos na realização de nossas cerimônias e nossas festas, repassando assim o conhecimento dos nossos ancestrais para as gerações mais novas e garantindo a continuação do nosso povo guerreiro e caçador. Mesmo que o espaço seja pequeno, ainda resta um pouco da fauna e da flora. O cerrado ainda está intacto em nossa área, mas o futuro depende de como nós usamos esse espaço. Quando vemos a terra em volta do nosso território, vemos tudo destruído. Os rios estão arruinados. Em volta dos córregos, só se vê desmatamento. Isso está começando a acontecer dentro da reserva, mas estamos tentando promover o manejo de nossos recursos para que possamos contar com eles por mais de 50 ou mesmo mais de 100 anos. Como a população de Pimentel Barbosa está crescendo, é difícil encontrar caça suficiente para as nossas necessidades de carne. Para isso, há cinco anos reativamos um projeto de manejo de caça que havia sido elaborado há uns 20 anos. O objetivo é realizar um diagnóstico sobre a disponibilidade de caça na região. Estamos nos concentrando agora na “Queixada” porque essa espécie vive em grupo e se reproduz muito facilmente. Além disso, é uma carne muito apreciada pelos Xavante, já que a usamos muito em nossas cerimônias, festas e casamentos. Estamos sendo apoiados em nosso projeto por pesquisadores e biólogos, que acompanham nossos caçadores para verificar se além das Queixadas, há outras espécies para a caça como, por exemplo, a anta, o catitu e o cervo. Além de verificar se ainda são muitos, queremos também ver se esses animais têm alimento suficiente e habitat adequado para se reproduzirem. As queixadas, por exemplo, viajam muito. Elas se movem em busca de comida mais farta. Se nossa terra não possui alimento suficiente para elas, elas vão embora. Estamos preocupados com isso e por isso estamos conscientizando nosso pessoal. Conversamos com todos na nossa praça central, warã, sobre a necessidade de pensar nesse projeto em longo prazo, ou seja, com resultados para 10, 15 ou 20 anos. Já estamos vendo os resultados. A caça é mais abundante agora e já observamos muitos grupos de Queixada. Devemos garantir a continuação dessa caça. Estamos preocupados agora com o uso das queimadas como estratégia. Caçadores devem controlar o uso do fogo porque quando queimamos muito afetamos o Cerrado. Então, as árvores que alimentam os animais, como pequi, jatobá, baru e macaúba, não dão frutos. Estamos resolvendo isso porque queremos que os animais fiquem aqui na nossa terra. Necessitamos plantar em áreas específicas para alimentar esses animais; verificar quais frutas existem na região; onde os animais estão ficando durante a estação de chuva que começa em abril e maio e que é a época de reprodução deles e por fim, onde vão durante a estação seca, quando começam a se deslocar para outras áreas. As queixadas começam a deixar o seu habitat na floresta em torno dos rios e ir para espaços mais abertos. Estamos observando esses movimentos. O Cerrado não é somente um lugar de onde tiramos o nosso alimento. É também a fonte da nossa força espiritual. É onde ensinamos as novas gerações como se tornarem grandes guerreiros, grandes caçadores. Conduzimos nossos jovens, os pré-iniciados wapté, e os grupos iniciados ritai’wa, em expedições de caça juntamente com seus padrinhos para marcar sua passagem de uma fase de vida para outra. Nós fazemos expedições de caça em família e também entre homens. Nossa relação com o Cerrado é muito profunda. Nossos vínculos físicos e espirituais são muito fortes. Muitas das nossas cerimônias são realizadas nas suas matas. Lá, nós preparamos os wapté para a cerimônia de furar as orelhas que os transformará em adultos, e só então caçaremos juntos. As pessoas vêem o Cerrado como um espaço para a agroindústria. Nós queremos que elas entendam que o Cerrado possui outros valores. É muito valioso por exemplo, pela rica biodiversidade de seus recursos naturais. Em geral, quando pensam em biodiversidade não se lembram do Cerrado, só da Amazônia, e esquecem que a maioria dos rios nasce na nossa região e só depois se dirige para o Norte. O Cerrado é a fonte de água para muitos rios brasileiros, e não só, para o mundo. Vivemos em um tempo de crise climática e a responsabilidade é de todo o mundo. A mudança climática está acontecendo não só aqui, mas na África, na Ásia, em todos os países, portanto, não é um fato isolado. Temos de estar conscientes desse problema e podemos começar a nos preocupar pelo desmatamento que está acontecendo aqui no Brasil. O governo não tem a consciência devida disso, mas é o que está acontecendo, sobretudo no Cerrado. O processo de desmatamento está acelerado e cada vez mais grave. Temos de pressionar o governo, porque do jeito como as coisas vão, os recursos naturais e mesmo as pessoas vão desaparecer. Nós temos muito carinho por essas terras e nos comprometemos com a sua sobrevivência, mesmo porque poucas pessoas conhecem o cerrado como nós. A gente tem uma relação muito especial com o Cerrado que é muito querido por nós. No entanto, todas as pessoas são responsáveis por cuidar dele. O mundo sempre existiu. Seres humanos foram criados, mas o mundo- a água, o céu e a terra- sempre existiram. É a humanidade que desaparecerá se não tomarmos cuidado. Essa é a minha mensagem. Esse é o motivo pelo qual convidamos a todos a apoiar nossa luta, a luta do povo do Cerrado. Cultural Survival Quarterly inverno 2010 13 Porque devemos proteger o Cerrado - Hiparidi Top ´Tiro Hiparidi Top´Tiro é líder Xavante do Estado do Mato Grosso. Por meio da Associação Xavante Warã, vem lutando desde 1998 contra o avanço do agronegócio, especialmente ligado ao cultivo de soja, no interior e no entorno das terras indígenas do Cerrado. Em novembro de 2006 assumiu a coordenação da MOPIC – Mobilização dos Povos Indígenas do Cerrado Hiparidi Top¹tiro participa de uma reunião de homens Xavante para discutir sobre como proteger os rios da região da poluição causada pela intervenção massiva e desregulamentada do agronegócio. Foto: Laura R. Graham 14 www.cs.org inha aldeia, Abelhinha – Idzö’u in Xavante está localizada na Terra Indígena Sangradouro no leste mato-grossense, próxima à Primavera do Leste, cidade considerada como uma das maiores produtoras de soja do Brasil. Grandes multinacionais como Bunge, Cargill e ADM e a Amaggi estão instaladas na região. Essas empresas estão destruindo todo o Cerrado. Além disso, quando os seus aviões passam fumigando as plantações acabam deixando cair agro-tóxicos sobre as nossas terras, envenenando nossos rios, nossa gente e nossas crianças. Nossas terras estão completamente rodeadas pelas plantações. Meu tio foi morto em 2003, lutando para recuperar parte de nosso território ainda ocupado por fazendeiros produtores de soja. Há uma guerra aqui. Outro grande problema é o desmatamento que causados pelos fazendeiros redor de nossas terras. Nossas áreas são tão pequenas que limitam nosso acesso aos recursos naturais que necessitamos para viver. Não há mais animais para a caça, aves cujas penas usamos para fazer os enfeites para os nossos rituais, matéria prima para construir nossas casas, palhas de indaiá e buriti para fazer nossos cestos, ervas medicinais, frutos dos cerrados, raízes como a batata, o cará. Tudo está desaparecendo! Assim, a nossa alimentação ficou restrita aos alimentos comprados na cidade já que a terra não é suficiente para o roçado. A Funasa calcula que atualmente nossa população é de 15 mil pessoas. O meu povo está todo fragmentado M em nove terras indígenas que são: Sangradouro, São Marcos, Areões, Pimentel Barbosa, Parabubure, Ubawawe, Marechal Rondon e Marãiwatsede, todas elas localizadas no Mato Grosso. Antes, cerca de 60 anos atrás, havia um único território contínuo localizado em torno do Rio das Mortes e a concentração de alguns Xavante em um território localizado em uma parte da bacia do Xingu, próximo ao Rio Culuene. O território Xavante era grande e vivíamos uma vida de semi-nômade, como os waradzu (não indígenas) chamam; isto é, vivíamos fazendo o zömori, longas expedições de caça e coleta que duravam vários meses. Toda comunidade caminhava unida pelo Cerrado caçando animais que naquela época eram muitos; ao contrário de hoje, quando eles estão desaparecendo por causa dos waradzu. Nós não queríamos o contato com os waradzu , então por isso fomos migrando do Estado de Goiás para o que hoje os brancos chamam de Mato Grosso, atravessando os rios Araguaia, Cristalino e depois o Rio das Mortes, onde nos estabelecemos e conseguimos ficar longe dos waradzu até na década de 1930. Nessa época os brancos fizeram varias tentativas de contato com meu povo, mas nós resistimos e guerreamos por muito tempo. Nós matamos padres, uma equipe do Serviço de Proteção ao Índio e colonizadores que invadiram o nosso território. Em alguns momentos distintos tivemos diferentes formas de contato. Uma vez foi em 1946, quando por meio do apoio de Francisco Meireles do Serviço de Proteção aos Índios, minha família subiu o Rio das Mortes, chegando à missão dos Salesianos em 1956. Outro grupo chegou mais tarde, em 1957. Fizemos contacto com os padres porque estávamos sendo massacrados e muitos de nós estávamos doentes com epidemias típicas dos waradzu. O Cerrado é onde caçamos, onde conseguimos nossos alimentos, onde estão os espíritos e a aldeia dos mortos e onde fazemos os nossos rituais. O mundo Xavante é o Ró ( Cerrado). O Ró é formado por varias partes que nós denominamos de marã, itehudo, amhu, apê e de outros nomes, que formam um grande conjunto. Conforme nós jovens vamos realizando determinados rituais, adquirimos maior conhecimento o lucro e o capitalismo. Para eles, nem o Cerrado, os animais, o povo, as crianças e a cultura das próximas gerações importam. Eu acredito que é possível pensar em outra forma de geração de renda para as comunidades. Quando nossa família mudou da Missão Salesiana em Sangradouro e fundou a aldeia da Abelhinha em 1998, nós constituímos a Associação Xavante Warã. Eu fui o presidente até 2007, quando meu sobrinho Tseredzaro assumiu o cargo. Os primeiros projetos da Associação foram pequenos e enfocados na sustentabilidade. Por exemplo, nós aprendemos a criar abelhas e a colher o mel para venda. Nós também realizamos um projeto que catalogou as frutas e a flora Tseredzaro Ruri´õ pinta o garoto do clã Xavante Poredza´õno para o ritual Oi´ó. Foto: Daniela Lima de Ró, que será maior ainda na medida em que vamos envelhecendo, já que os mais velhos têm maior domínio das coisas, do conhecimento. Assim, para que o nosso conhecimento continue, o Cerrado não pode desaparecer. Como vamos ser bons caçadores se não tivermos os animais do Cerrado para caçar? Como seremos bons curandeiros se não tivermos as ervas do Cerrado para curar? Como seremos bons guerreiros se os espíritos do Ró não tiverem mais onde ficar? Nossas cerimônias de casamento, nossos rituais de furações das orelhas para transformar nossos jovens em adultos, tudo isso vem do Ró, do Cerrado. O Agronegócio de soja já está invadindo nossa terra porque alguns parentes têm a ilusão de que plantar soja é bom pois pode trazer muito dinheiro e melhoria de vida para a comunidade. Eles se submetem aos fazendeiros e não percebem que estão sendo enganados por eles e pelo governo do Estado, que só têm em mente do Cerrado. Esse projeto se fundamentou principalmente no conhecimento das mulheres. Nós também realizamos eventos na cidade para atrair a atenção para a destruição do meio-ambiente que ameaça o nosso modo de vida causada pelo agronegócio, especialmente a soja. Em 2006, realizamos um protesto em Nova Xavantina, por meio do bloqueio de uma ponte sobre o Rio das Mortes, impedindo assim o trânsito de caminhões que carregam os produtos agrícolas para as grandes cidades. O cineasta Xavante Caimi Waiassé fez um filme sobre o protesto : “Os Donos da Água.” Quando eu era presidente da Associação Xavante Warã, em 2005, convidamos nossos parentes Krahó para se juntarem a nós em um evento em São Paulo. Nós nos demos conta que devíamos nos unir para proteger o futuro do Cerrado. Essa idéia que nos motivou a criar a MOPIC (ver pág 21) Cultural Survival Quarterly inverno 2010 15 A Convenção n° 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais Mulheres Xavante do T.I. Parabubure transportando cachos de bananas através do Rio. Foto: Laura R. Graham A Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes da Organização Internacional do Trabalho (OIT) foi aprovada em 1989, durante sua 76ª Conferência. Trata-se de um instrumento internacional primordial no tratamento dos direitos dos povos indígenas. A Convenção vem sendo fonte para a implementação dos direitos dos povos indígenas em seus mais diversos âmbitos: político, econômico, territorial, social e cultural, em muitos países da América Latina. No Brasil, após mais de dez anos de debate, a Convenção foi finalmente ratificada em 2002, por meio do Decreto Legislativo nº 143, em vigor desde 2003. Sua implementação integral ainda enfrenta muitos desafios e obstáculos impostos por aqueles que a vêem como uma ameaça à integridade nacional. Selecionamos a seguir alguns artigos da convenção que são fundamentais na nossa luta pela proteção da sobrevivência dos indígenas que habitam o meioambiente do Cerrado. Artigo 2° 1.Os governos deverão assumir a responsabilidade de desenvolver, com a participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua integridade. 2.Essa ação deverá incluir medidas: a) que assegurem aos membros desses povos o gozo, 16 www.cs.org em condições de igualdade, dos direitos e oportunidades que a legislação nacional outorga aos demais membros da população; b) que promovam a plena efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais desses povos, respeitando a sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, e as suas instituições; c) que ajudem os membros dos povos interessados a eliminar as diferenças sócio - econômicas que possam existir entre os membros indígenas e os demais membros da comunidade nacional, de maneira compatível com suas aspirações e formas de vida. Artigo 4° 1. Deverão ser adotadas as medidas especiais que sejam necessárias para salvaguardar as pessoas, as instituições, os bens, as culturas e o meio ambiente dos povos interessados. 2. Tais medidas especiais não deverão ser contrárias aos desejos expressos livremente pelos povos interessados. Artigo 7º I. Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bemestar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-Ios diretamente. 2. A melhoria das condições de vida e de trabalho e do nível de saúde e educação dos povos interessados, com a sua participação e cooperação, deverá ser prioritária nos planos de desenvolvimento econômico global das regiões onde eles moram. Os projetos especiais de desenvolvimento para essas regiões também deverão ser elaborados de forma a promoverem essa melhoria. 3. Os governos deverão zelar para que, sempre que for possível, sejam efetuados estudos junto aos povos interessados com o objetivo de se avaliar a incidência social, espiritual e cultural e sobre o meio ambiente que as atividades de desenvolvimento, previstas, possam ter sobre esses povos. Os resultados desses estudos deverão ser considerados como critérios fundamentais para a execução das atividades mencionadas. 4. Os governos deverão adotar medidas em cooperação com os povos interessados para proteger e preservar o meio ambiente dos territórios que eles habitam. TERRAS Artigo 13˚ 1. Ao aplicarem as disposições desta parte da Convenção, os governos deverão respeitar a importância especial que para as culturas e valores espirituais dos povos interessados possui a sua relação com as terras ou territórios, ou com ambos, segundo os casos, que eles ocupam ou utilizam de alguma maneira e, particularmente, os aspectos coletivos dessa relação. Artigo 14˚ 1. Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos apropriados, deverão ser adotadas medidas para salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar terras que não estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência. Nesse particular, deverá ser dada especial atenção à situação dos povos nômades e dos agricultores itinerantes. 2. Os governos deverão adotar as medidas que sejam necessárias para determinar as terras que os povos interessados ocupam tradicionalmente e garantir a proteção efetiva dos seus direitos de propriedade e posse. 3. Deverão ser instituídos procedimentos adequados no âmbito do sistema jurídico nacional para solucionar as reivindicações de terras formuladas pelos povos interessados. Artigo 15˚ 1. Os direitos dos povos interessados aos recursos naturais existentes nas suas terras deverão ser especialmente protegidos. Esses direitos abrangem o direito desses povos a participarem da utilização, administração e conservação dos recursos mencionados. 2. Em caso de pertencer ao Estado a propriedade dos minérios ou dos recursos do subsolo, ou de ter direitos sobre outros recursos, existentes nas terras, os governos deverão estabelecer ou manter procedimentos com vistas a consultar os povos interessados, a fim de se determinar se os interesses desses povos seriam prejudicados, e em que medida, antes de se empreender ou autorizar qualquer programa de prospecção ou exploração dos recursos existentes nas suas terras. Os povos interessados deverão participar sempre que for possível dos benefícios que essas atividades produzam, e receber indenização equitativa por qualquer dano que possam sofrer como resultado dessas atividades. Cultural Survival Quarterly inverno 2010 17 Os Parinai’a ainda vivem no ‘ró Uma música sonhada, como é descrita por Hiparidi Top’tiro Dzahadu te mo Dzahadu te mo ‘rópoto mono mono wa hã dzahadu te mo ‘rópoto mono mono wa hã dzahadu te mo Dzahadu te mo Dzahadu te mo Os Parinai’a ainda vivem no ‘Ró Eles ainda vivem no ‘Ró Os que criaram o ‘Ró Os que criaram o ‘Ró Eles ainda vivem no ‘Ró Eles ainda vivem no ‘Ró Wa ãma Tsímeí wê te wa dza ‘re wa to dza’ra Wa ãma Tsímeí wê te wa dza ‘re wa to dza’ra Wa ãma Tsímeí wê te wa dza ‘re wa to dza’ra Wa ãma Tsímeí wê te wa dza ‘re wa to dza’ra Wa ãma Tsímeí wê te wa dza ‘re wa to dza’ra Wa ãma Tsímeí wê te wa dza ‘re wa to dza’ra Nós celebramos para agradá-los Nós celebramos para agradá-los Nós celebramos para agradá-los Nós celebramos para agradá-los Nós celebramos para agradá-los Nós celebramos para agradá-los Dzahadu te mo Dzahadu te mo ‘rópoto mono mono wa hã dzahadu te mo ‘rópoto mono mono wa hã dzahadu te mo Dzahadu te mo Dzahadu te mo Eles ainda vivem no ‘Ró Eles ainda vivem no ‘Ró Os que criaram o ‘Ró Os que criaram o ‘Ró Eles ainda vivem no’ Ró Eles ainda vivem no’ Ró Essa música conta que os Paranai’a não partiram para viver na aldeia dos Mortos, eles continuam nos olhando e nos protegendo. Realizamos muitas cerimônias para agradá-los e outros seres que vivem no Cerrado, nosso Ró. Parinai’a são duas figuras que vivem desde o inicio do mundo. Eles apareceram e cantaram no sonho de Adão’s Sa’ãmri. Os Parainai’a fizeram surgir muitas coisas no Mundo dos Xavante ao transformarem-se prazerosamente nas plantas e animais do Cerrado. Eles fizeram surgir os alimentos do Cerrado que nós comemos: raízes mo’õni, a’õ (jatobá), abari(piqui), a’ódó (macaúba), e muitos outros. Nota do Editor: Essa música é baseada no sonho de um Xavante chamado Adão’s Sa’ãmri, narrado a Hiparidi Top’tiro em uma tarde em que eles trocavam idéias sobre os projetos da comunidade. A tradução não é literal, mas relata o conteúdo do sonho de Adão. Um áudio registro dessa música pode ser encontrado no site da Cultural Survival, www.cs.org. Letra transcrita por Laura R. Graham e traduzida por Hiparidi Top’tiro e Laura R. Graham. Música transcrita por T.M. Scruggs. 18 www.cs.org O nosso Cerrado depoimento Paulo Supretaprã, líder da comunidade Eténhiritipa localizada na T.i. Pimentel Barbosa. cerrado é muito importante para nós. Ele é fonte de tudo para nós. O cerrado nos dá a energia, o alimento e os remédios que necessitamos. No cerrado, nós caçamos, celebramos nossos rituais, nossos casamentos e nossas festas. Há muitos animais no Cerrado, caça que usamos para fazer nossos casamentos e nossas festas, isso é muito importante também. No Cerrado, colhemos nossas frutas, raízes e as batatas que nos alimentam. Ali tem muitas frutas para gente colher, tanto no verão quanto no inverno, pois dá no ano todo. Também tem uma área de plantação onde as mulheres colhem as raízes e plantas medicinais. O cerrado é a nossa vida. Em nossa comunidade o Cerrado ainda está vivo e em saúde, mas infelizmente, ao nosso redor, ele está sendo destruído pelas plantações de soja e pela pecuária. Em torno da nossa reserva há uma grande fazenda de agropecuária e outra de plantação de soja. Os fazendeiros estão desmatando toda a região, derrubando as árvores para abrir espaço para o pasto e para as plantações. Outras terras já estão sendo preparadas para o plantio de cana-de-açúcar, como nos municípios de Canarana e Água Boa. Já há um plano de construção de uma usina de álcool na região para a produção de biodiesel. Assim estão quebrando o Cerrado. Além disso, para o escoamento da produção, estão levando adiante o projeto de construção de uma hidrovia. Isso destruirá nosso rio, nossas terras e nosso modo de vida. Em outras áreas, em Areões e São Marcos estão planejando hidrelétricas. São muitas mudanças que estão ocorrendo no Cerrado. As pessoas pensam que porque temos nossas terras, o que acontece ao nosso redor não nos afeta. Tudo bem se nosso território ainda está intacto, mas o rio está aí, na nossa divisa, e sendo contaminado pela destruição ao nosso redor. Isso afeta a nossa terra que é a nossa vida. Nós temos de ser firmes, nós estamos nos preparando para enfrentar esses problemas. Nós temos de mostrar ao mundo que essa é a nossa terra, nosso mundo. Sabemos que muita gente está do nosso lado. Temos de procurar aliados para a nossa luta, pessoas que gostem de natureza, dessa água gostosa, que se preocupem com a sobrevivência de todos. O mais importante é que nós, Xavante, temos de nos entender bem, dar as mãos porque agora estamos no meio do mundo dos brancos. E nós não somos diferentes, somos da mesma família, portanto, temos de unir para poder brigar, defender nossos direitos, nosso anciãos, O mulheres, crianças. Temos de nos unir e trabalhar juntos. Nós teremos de trabalhar muito para obter o apoio de que necessitamos. Nós enfrentamos muitos problemas. A saúde, por exemplo, é muito ruim nas aldeias. Não temos meio de transporte para levar os doentes para o hospital. Não temos remédios, enfermeiras, nenhum apoio para a assistência dos doentes. Muito dos recursos que deveriam ser encaminhados pela Funasa foram desviados. Estamos muito preocupados com a questão da saúde. Do cerrado tiramos muitos medicamentos. Em nossa comunidade, por exemplo, não temos tido muitos casos de diarréia e outras doenças mais simples porque tratamos com as ervas do Cerrado. Nós temos de voltar a viver como antigamente, e assim estamos fazendo. Como resultado, nossas crianças estão mais sadias. É nosso rio, no entanto, que sofre a grande ameaça. O agrotóxico está descendo para água. Temos sorte de que a nascente do riozinho perto da aldeia está na nossa terra, mas durante a estação de chuva, quando chove muito e o rio transborda, as águas vão lavando os agrotóxicos das plantações, contaminando todo o rio e a água que bebemos. Além disso, quando os aviões passam fumigando plantações, acabam jogando agrotóxicos sobre a nossa terra. Já não sabemos mais com que reclamar. Tentamos reclamar com o governo ou com o IBAMA, mas nem todo mundo quer nos defender. Eu escrevi em português tanto para a FUNAI quanto para o IBAMA para reclamar da hidrovia que estão construindo, mas eles não responderam. Está tudo destruído, há muito desmatamento. Nunca somos consultados pelo governo antes que alguma medida seja tomada. Nosso rio é contaminado, nossa terra é desmatada, e nunca somos avisados, ouvidos ou consultados. Este mundo não pode ser acabado. Aonde vamos beber água, pescar? Não é só a pesca não. Os brancos pescam muito também, pescam muito pintado para ganhar algum dinheiro, então, todo mundo tem de entender que a questão do Cerrado não é só nossa. Nós só estamos defendendo o nosso território. Cultural Survival Quarterly Paulo Supretaprã Foto: Laura R. Graham inverno 2010 19 O que a MOPIC pode fazer por nós Testemunhos de líderes de povos indígenas do Cerrado Tabata Kuikuru – Kuikuro do Parque Indígena do Xingu - Mato Grosso á mais de 100 anos atrás, os brancos contactaram nosso povo. Quando eu nasci já havia relação dos brancos com os índios no Alto Xingu. Orlando Villas Boas foi quem salvou o Xingu. Ele foi quem nos ensinou o português e quem nos ajudou a todos do Alto, Médio e Baixo Xingu. Nossa população era pequena e estávamos todos morrendo de sarampo, mas agora está crescendo muito, pois já se vê em três aldeias quase mil pessoas. Há muitas coisas que nós retiramos do Cerrado, como as nossas matérias primas e os nossos remédios. Esse colar que estou usando, por exemplo, é feito de caramujos do cerrado. Da região também tiramos as frutas, como o pequi, que servem para a nossa alimentação. Infelizmente agora estamos tendo muitos problemas com as plantações de soja, porque os pesticidas que usam, principalmente na época de chuva, escorrem para os rios. No ano passado, morreram muitos peixes. Esse é um grande problema com o qual nos confrontamos. Tem soja demais, estamos cercados por plantações, e por causa delas, de estradas para todos os lados. Além disso, estão construindo muitas barragens nas redondezas. Paranatinga II é uma dessas barragens que já estão em funcionamento. Não vai sobrar nenhuma área verde do Xingu. Eu penso que o que está acontecendo ao nosso redor é um problema de todas as aldeias. É necessária a união de todos os povos. Por esse motivo é que a MOPIC tem de existir para nos fortalecer. Nós temos que avançar na nossa luta para proteger nossas aldeias, nosso rio e nossa floresta. Elcio Terena – Terena da aldeia Cachoeirinha, município Miranda, Mato Grosso do Sul O contato do povo Terena com o homem branco é muito antigo, tem origem no século XVII. No final do século XIX, tivemos uma maior relação com o governo que, apoiando os novos colonizadores, juntava os indígenas para trabalharem nas fazendas instaladas em suas terras. Esses anos são conhecidos por nós Terenas como anos de escravidão. Logo depois o SPI foi criado propondo um projeto de integração dos indígenas à sociedade branca. Até hoje os Terenas não contam com o apoio de uma política definida para os interesses da sua comunidade. O objetivo sempre foi nos retirar das aldeias convertendo-nos em trabalhadores escravos. Nossa terra está localizada no Cerrado. O Cerrado é a fonte de vida para a comunidade indígena. É muito importante para nós e por isso estamos tão preocupados com a devastação que se observa atualmente. Sua biodiversidade é grande e dela tiramos nossa alimentação: animais de caça, peixes, frutas e mel. Todas as matérias-primas que necessitamos se encontram no Cerrado. Ao redor da nossa comunidade só vemos fazendas, criação de gado, pastos, só devastação dos campos. Eles abatem todas as árvores, mesmo as frutíferas como os coqueiros. Usam muitos venenos para matar as palmeiras contaminando todas as águas ao redor, ou promovem queimadas destruindo mais ainda o Cerrado. Nós somente conseguiremos melhorar a vida da nossa H Tabata Kuikúru Foto: Daniela Lima 20 www.cs.org comunidade através de um projeto econômico alternativo. O governo necessita criar uma política voltada para o desenvolvimento econômico das nossas comunidades, nos apoiando com projetos educacionais que nos ajudem na elaboração de um projeto econômico alternativo. São várias as possibilidades, como por exemplo, a produção de artesanatos ou projetos ambientais como o manejo de frutas do cerrado. Necessitamos conscientizar a comunidade da importância desses projetos, porque só mendigamos o tempo todo e o governo não faz nada, só nos envia cestas básicas que não alimentam ninguém. Toda ajuda é temporária, e em geral clientelista, pois só chega em época de eleição atrás de votos. A participação na MOPIC é importante porque é uma entidade voltada para a defesa dos nossos direitos e da continuidade do Cerrado. O Mato Grosso do Sul está se tornando uma terra de agronegócio afetando diretamente a sobrevivência das comunidades indígenas. Estão destruindo o Cerrado. Precisamos apoiar a MOPIC para nos fortalecer. Tereza Cristina Kezonazokero – Pareci – Aldeia Rio Verde, Tangara da Serra – Mato Grosso O contacto do nosso grupo com os brancos se intensificou com a chegada do então Coronel Rondon no início dos anos 1900. A expedição chegou com muitos presentes, mas trouxeram também muitas doenças. Nos anos 30, muitos Parecís morreram por causa do sarampo. Antes, não sabíamos como viver com os não-indígenas e fomos muito prejudicados pelo contato, afetando a nossa cultura e a nossa organização social. Não há como fugir do contato porque estamos cercados, por isso é preciso aprender a se defender para manter a nossa vida tradicional ao mesmo tempo em que interagimos com os não indígenas. Daniel Kabixi hoje nos ajuda na nossa luta. Para os Parecís, o Cerrado é a vida do seu povo, mas há entre nós algumas pessoas que estão destruindo o pensamento dos povos tradicionais e se deixando levar por novas idéias, influenciadas e manipuladas pelos não indígenas. Elas esquecem que sem o Cerrado não temos como sobreviver. No entorno da Terra Parecí tem muita plantação de soja e criação de gado. O maior problema que enfrentamos na aldeia da qual faço parte é com a água. A nascente do nosso rio está em terras de fazendeiros e, portanto, essa água chega para nós já contaminada pelos agrotóxicos que eles usam. Além disso, nossa Terra tem diminuído de tamanho cada vez mais. Antigamente, nossa relação com os não indígenas que estão ao nosso redor era boa, mas agora, não podemos mais confiar. A vida do Pareci só vai melhorar se nós conseguirmos juntar todo o nosso povo que se encontra dividido em nove sub-grupos. Há muita discórdia e isso nos prejudica. Precisamos nos unir para lutar por um modo de vida com dignidade. Como liderança e professora indígena Pareci, fico muito preocupada, mas agora, com a MOPIC, sei que posso continuar lutando pelos nossos direitos porque percebi que apesar de povos diferentes, nossa luta é uma só. A MOPIC é uma organização muito importante e através dela poderemos alcançar os nossos objetivos. A Mobilização dos Povos Indígenas do Cerrado – MOPIC - é um movimento político constituído a partir da Corrida de Toras de Buriti, que tem como objetivo chamar a atenção da opinião pública e dos governantes para os problemas decorrentes do desmatamento no Cerrado brasileiro, fruto das atividades predatórias causadas sobretudo pelo avanço do agronegócio e pela construção de barragens que afetam diretamente os territórios indígenas. Criada com a finalidade de promover uma articulação política para garantia dos direitos dos Povos Indígenas do Cerrado, a MOPIC tem como objetivos específicos: promover o diálogo com as bases por meio das associações locais e lideranças das aldeias; recolher as demandas das comunidades para pressionar e cobrar ações do Governo; intermediar o diálogo entre as bases e os órgãos governamentais, organismos internacionais e ONGs; cobrar e incentivar ações de auto-sustentabilidade; exigir a segurança territorial das terras indígenas do Cerrado e finalmente, apoiar e promover a valorização cultural dos Povos Indígenas do Cerrado. Para entendermos a situação atual na qual se encontra o Cerrado brasileiro assim como as populações indígenas ali residentes, é necessário remeter-nos à história de ocupação do bioma, que com o incentivo do governo e atuação de alguns setores da sociedade, é caracterizada pela intensificação da concentração fundiária e pela destruição do modo de vida das populações locais, dependentes diretas dos recursos naturais advindos do Cerrado. Desde os anos 80, o Cerrado tem sido objeto de programas governamentais, tais como Polocentro e Prodecer (Programa de Cooperação Nipo-Brasileiro para o Desenvolvimento dos Cerrados), programas que tinham como objetivo a ocupação do bioma por meio de incentivos financeiros, isenção fiscal e baixo custo da terra, promovendo uma migração massiva de agricultores sulistas para a região central do Brasil. A Embrapa Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária desempenhou função vital neste processo de transformação do Cerrado em “celeiro agrícola”, com a introdução de tecnologias para correção do solo e para a produção de grãos em grande escala, especialmente a monocultura de soja. É no Cerrado onde há maior predominância do agronegócio e onde se encontram as transnacionais Bunge, Cargill e ADM, detentoras do monopólio de alimentos no mundo, e a nacional Amaggi, de propriedade do Blairo Maggi, atual governador do estado. Essas empresas dominam o mercado produtor de soja e lideram uma cadeia produtiva que envolve grande parte dos produtores da região. As atividades produtivas desenvolvidas e monopolizadas pelas transnacionais acima referidas são em grande parte dirigidas para a exportação, para a qual contam com a colaboração, parceria e incentivo dos governos municipais, estaduais e federal. É importante ressaltar, no entanto, que essa prática produtiva tem causado fortes impactos sociais, culturais e ambientais às Terras Indígenas do Cerrado. As Cultural Survival Quarterly Hiparidi Top’Tiro cumprimenta homens Krahó vencedores da corrida esportiva realizada no Encontro de líderes indígenas em São Paulo, em 2004. Foto: Sylvia Caiuby Novaes. inverno 2010 21 Desenho retratando o Cerrado, o ‘Ró, como um espaço físico e espiritual integrado onde os Xavantes vivem, caçam e colhem os frutos que eles necessitam. Autor: Öwa’u, ano 1999. Imagem: Associação Xavante Warã. 22 www.cs.org monoculturas de grãos e os inúmeros armazéns das empresas produtoras de soja estão localizados nas proximidades de diversos territórios indígenas do Cerrado, e por não cumprirem as legislações ambientais brasileiras, causam graves impactos ambientais, sócioculturais e à saúde dos povos indígenas. Problemas como desnutrição, desidratação, anemia, diarréia ocasionados pela contaminação resultante do uso excessivo de agroquímicos são agora comuns nas aldeias. Ainda como conseqüência dessa forma predatória de produzir, observam-se fenômenos de erosão e contaminação dos solos, desaparecimento de rios, extinção de animais de caça e plantas medicinais, o que compromete fortemente o modo de vida e a sobrevivência física e cultural das populações indígenas. A política desenvolvimentista de ocupação do Cerrado iniciada nos anos 80 e ratificada pelo atual governo com ferocidade e desrespeito ante as populações indígenas é reforçada pelo anúncio do PAC - Programa de Aceleração de Crescimento-, programa cujos benefícios estão voltados exclusivamente para o setor agrícola e hidroelétrico e cujos empreendimentos suscitarão danos diretos e indiretos às terras indígenas. Fazer alusão a existência de povos indígenas no Cerrado ainda soa com estranheza à grande parte da população brasileira e setores governamentais, cujo imaginário irreal está pautado no estereotipado “índio amazônico”; reforçando assim o preconceito e o desconhecimento sobre eles. Inúmeros territórios indígenas do Cerrado ainda não estão devidamente regularizados pelo órgão indigenista responsável, e muitas áreas estão com seus processos de demarcação paralisados na Fundação Nacional do Índio - FUNAI, o que compromete a qualidade ambiental desses territórios, gera insegurança para as comunidades indígenas e conflitos com políticos, empresários e o próprio governo. As terras indígenas que se encontram demarcadas e homologadas também sofrem constantes ameaças, pressões e invasões por parte dos fazendeiros, madeireiros e grandes produtores agropecuários localizados no entorno dos territórios, interferindo nas relações sociais dentro das comunidades causando conflitos e divisão interna. Neste sentido, destacamos a situação dos povos indígenas que vivem no Mato Grosso do Sul, (Guarani Kaiowa, Nãndeva, Kinikinawa, Terena, Kadiwéu) os mais oprimidos e desrespeitados por parte dos órgãos governamentais municipais, estaduais e federais. Notícias de morte de crianças Guarani e Kaiowa por desnutrição, assassinatos, encarceramento de lideranças, trabalho escravo e suicídio de jovens são constantes nos meios de comunicação alternativos. O aumento expressivo da construção de usinas de cana de açúcar em decorrência da produção de biocombustível (foram licenciadas recentemente a construção de 70 usinas) tende a intensificar o processo de marginalização dos povos indígenas nesse estado. Enfatizamos também a situação dos Caxixó localizados no município de Martinho Campos e Pompéu (MG) que embora tenham o reconhecimento oficial do órgão indigenista, não dispõem de uma terra demarcada. Cerca de 250 indígenas, vivem atualmente em uma pequena área de menos de mil hectares, rodeados por plantações de eucaliptos, e acuados e pressionados por um violento preconceito dos fazendeiros locais. Dado o processo histórico de colonização e ocupação da região, este povo teve aspectos culturais de suma relevância como a língua, danças e rituais fortemente comprometidos. O povo Xacriabá enfrenta também situação semelhante. Cerca de 50 mil indígenas habitam em um território de 8 mil hectares, localizado no norte do Estado de Minas Gerais, a 663 km de Belo Horizonte. Confrontam grandes dificuldades por causa da insuficiência de terra para plantio e subsistência e escassez de água para consumo. A área onde estão situados está fortemente devastada e parcialmente afetada pela construção de uma barragem. Deve-se mencionar ademais que em luta pela retomada de suas terras, três importantes lideranças do povo Xacriabá foram assassinadas por políticos e fazendeiros locais entre 2007 e 2008, crimes estes que se encontram impunes até o presente. A Ilha do Bananal, maior ilha fluvial do mundo e território dos povos Karajá, Tapirapé, Javaé e Avá Canoeiro, tem extensa área ocupada por cerca de 600 grandes fazendeiros, cujo processo para desintrusão tramita no Tribunal Regional do Trabalho – TRT - desde setembro de 2004. A desocupação da ilha teve inicio em 1995, contudo alguns grandes fazendeiros permaneceram no local apesar de terem recebido a devida indenização. A desocupação também deixou na ilha 155 mil cabeças de gado, pouco menos dos 175 mil que havia no período precedente à desintrusão. Outra grave ameaça à sobrevivência física e cultural dos povos indígenas da Ilha do Bananal é a construção da hidrovia TocantinsAraguaia, cujo projeto de iniciativa do governo federal envolve os cursos d´água do Rio das Mortes, Araguaia e Tocantins e ocupa áreas de cerrado e da floresta amazônica, afetando direta e indiretamente vinte e nove áreas indígenas. O Rio Araguaia é de suma proeminência na historia, cultura, mitologia e política dos povos da Ilha do Bananal. Além disso, é uma fonte de alimentação imprescindível para as aldeias que tem na pesca de peixes e tartarugas sua principal fonte de proteína. O governo de Mato Grosso, um dos estados brasileiros com maior presença indígena no país (cerca de 40 povos vivendo em áreas de Cerrado e transição), adota uma política desenvolvimentista em consonância com o governo federal, ancorada unicamente na produção de grãos como basal atividade econômica, gerando prejuízos sociais e ambientais sem precedentes para as populações indígenas. O governo está inteiramente fechado para o diálogo com os indígenas no que se refere às questões fundiárias e ambientais, desviando este tópico de maior relevância com táticas que se caracterizam por ações assistencialistas, tais como construção de casas populares e escolas, distribuição de cestas básicas e cobertores, etc. Além disso, se observam os impactos nocivos da construção de hidrelétricas na região do estado, verdadeiras ameaças para muitos grupos indígenas. A edificação de barragens nas proximidades das terras indígenas é prejudicial ao modo de vida nativo, principalmente pela redução drástica que provoca no estoque pesqueiro, afetando assim o abastecimento alimentar da população. Parte desses empreendimentos é de propriedade particular do grupo empresarial do qual o governador Blairo Maggi é integrante. Existem inúmeras hidrelétricas em construção no Mato Grosso, dentre as quais merecem destaque as 12 PCHs (Pequenas Centrais Hidrelétricas) em andamento na bacia do Juruena (além das outras 60 previstas para serem construídas) que afetam diretamente os povos Enawene Nawe, Paresi, Rikbatsa, Nambiquara e Myky. O processo de construção dessas barragens desrespeita o direito dos povos indígenas de serem previamente consultados, tal como previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. Neste sentido, os povos indígenas do Cerrado demandam a paralisação imediata das obras hidrelétricas localizadas não somente na bacia hidrográfica da Juruena, mas também da Teles Pires, do Rio das Mortes, do Tocantins (Rio Sono) e dos formadores do Xingu (Rio Von Steinen, Batovi, Culuene, Curizevo, Ronuro, Jatobá, Arraia, Manito, Sete de Setembro e Suya Missu). Demandamos também a suspensão da transposição do Rio São Francisco. Os povos indígenas do Cerrado sofrem fortes preconceitos por parte de diversos setores da sociedade brasileira, bem como por órgãos governamentais, dado o desconhecimento com relação à riqueza e importância sócio cultural e ambiental do Cerrado. A inexistência de dados sobre estes povos e a falta de visibilidade do Cerrado a nível nacional e internacional fortalece o único e irreal estereótipo do “índio amazônico”, para o qual, em geral, se dirigem os programas governamentais. A MOPIC tem lutado para conseguir maior atenção e apoio político e financeiro por parte dos segmentos governamentais. Com esse objetivo, tem buscado sensibilizar organizações internacionais para que auxiliem com pesquisas e investimentos que gerem dados concretos sobre o número de etnias existente no bioma, situações fundiárias e ambientais, aspectos culturais e outras informações relevantes, que contribuirão significativamente para o aprimoramento das ações e luta dos povos indígenas do Cerrado. Pará Miri é uma criança Guarani de 10 anos. Muitos Guaranis foram deslocados de seus territórios e vivem em muitas partes do Cerrado. Foto: Gregory Smith (Children at Risk Foundation, www.carfweb.net) Cultural Survival Quarterly inverno 2010 23 Terra Indígena Raposa do Sol O que acontece quando o Supremo Tribunal e a Constituição discordam? é o que estão descobrindo os povos indígenas ao constatar que correm o risco de perder o controle sobre suas terras …. Ana Paula Caldeira Souto Maior pesar da Terra Indígena Raposa do Sol não estar localizada no Cerrado, a decisão judicial que confirmou sua homologação afeta diretamente todos os processos de reconhecimento territorial impetrados pelos diferentes grupos indígenas. Isso porque, extrapolando o âmbito de análise do caso específico, a decisão judicial impôs, de maneira geral, restrições ao direito dos indígenas à posse permanente de suas terras e ao usufruto exclusivo dos recursos naturais nelas existentes. A análise do caso “Raposa do Sol” é, portanto, de suma relevância para nós que estamos comprometidos com a defesa dos direitos indígenas já reconhecidos constitucionalmente. O julgamento do Supremo Tribunal Federal que homologou a terra indígena “Raposa do Sol” de maneira contínua e ordenou a desocupação dos não indígenas da região marca, sem dúvida, um grande avanço no reconhecimento e na defesa dos direitos territoriais dos indígenas brasileiros. Foram mais de 30 anos de luta dos indígenas ingaricós, macuxis, patamonas, taurapangues e wapixanas contra a ocupação de suas terras por fazendeiros e exploradores dos recursos naturais da região. Não obstante, a responsabilidade atribuída ao Supremo Tribunal Federal de decisão sobre um processo de homologação de terra indígena deixa as lideranças indígenas extremamente preocupadas. O reconhecimento da Homologação da “Raposa do Sol” de maneira contínua foi condicionado à aceitação de 19 condições, 18 delas propostas pelo Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, falecido recentemente. Essas condições são válidas não somente para o processo discutido mas deverão ser aplicadas nas decisões futuras concernentes a novas homologações. Pode-se afirmar que A Menina da aldeia Idzô´uhu. Foto: Daniela Lima 24 www.cs.org tais condições representam um retrocesso em relação ao estabelecido na Constituição Brasileira de 1988, em matéria indígena. A expectativa anunciada pelo Presidente do STF de que o julgamento da demarcação deste caso estabeleceria uma nova forma de demarcar as terras indígenas sucumbiu ao constatar que a demarcação resultou de um procedimento administrativo sólido, construído ao longo de mais de trinta anos, alicerçado na obstinação dos seus habitantes naturais e em mudanças que permitiram o contraditório a todos os interessados. Em 1977, a FUNAI enviou um grupo de antropólogos para realizar a demarcação das terras indígenas –T.I.- em Roraima, habitadas por milhares de Macuxi, Wapichana, Yanomami, Yecuana, Ingarikó, Wai-Wai, Taurepang e Patamona. Roraima é o Estado brasileiro com maior presença de populações indígenas -16% de sua população total- e de maior área física ocupada por elas– 46% do território do Estado. Ao longo dos últimos anos, o Grupo de antropólogos da FUNAI precisou se multiplicar para dar conta de identificar e demarcar 32 terras indígenas. Destaca-se a T.I. Yanomami, de 9,5 milhões hectares, entre o Estado de Roraima e Amazonas, demarcada em 1992. No caso específico da Raposa/Serra do Sol, os Macuxis, quarta maior população indígena do país, recorreram à sua forte obstinação para ter a terra que ocupam protegida. Com este fim, participaram ativamente do processo administrativo iniciado pela FUNAI, apresentando documentos consensuais produzidos nas assembléias indígenas, relatos e denúncias de maltratos e violações à integridade física, aos bens materiais, ambientais e à vida do seu povo e dos demais habitantes da terra indígena. Em 1993, os Macuxis fizeram parte do grupo de trabalho de identificação da FUNAI. Já em 1996, quando foi expedido o novo decreto que ao regulamentar a forma de demarcar introduziu o direito do contraditório (Decreto 1775/96); a participação dos indígenas foi fundamental pois ofereceram os subsídios necessários para que a FUNAI pudesse desqualificar dezenas de contestações apresentadas por uma mineradora e por advogados contratados pela Assembleia Legislativa do Estado de Roraima para representar fazendeiros, um município e o próprio Estado. Declarada como de ocupação indígena em Portaria de 1998 do Ministro da Justiça, a T.I Raposa/Serra do Sol foi homologada apenas em 2005, em ato que criou uma dupla afetação em relação ao Parque Nacional do Monte Roraima, criado em 1989. A terra é indígena, mas o uso da unidade de conservação deve ser decidido em conjunto pelo órgão ambiental, o órgão indigenista e a comunidade indígena. Em abril de 2008, ao suspender a operação da Polícia Federal de retirada da zona dos ocupantes não-índios –ato reconhecido pelo STF como consequência natural da demarcação- e decidir revisar o procedimento administrativo da demarcação, o STF tomou para si a análise de um dos casos melhor documentado pela FUNAI e com grande participação indígena no seu desenvolvimento. Além disso, o processo de demarcação foi acompanhado de forte articulação nacional e internacional e por grande repercussão na mídia (http://www.socioambiental.org/inst/esp/raposa/). A decisão quase unânime, dez votos favoráveis contra um, de que o processo de demarcação não foi maculado por vício administrativo e de que a demarcação não atenta contra o patrimônio do Estado trouxe para todas as demarcações realizadas após a Constituição Federal de 1988 e que seguiram os critérios nela estabelecidos, uma sólida jurisprudência: • o procedimento administrativo de demarcação é correto; • a demarcação contínua é constitucional; • é possível demarcar terras indígenas em faixa de fronteira, sem que isso comprometa a integridade física do país, ou a defesa de sua soberania pelas forças armadas ; • a demarcação de uma terra indígena não compromete o desenvolvimento econômico do Estado em que se encontra, mesmo que a soma delas ocupe uma parte significativa de seu território; • a demarcação de uma terra indígena não compromete a existência do Estado federado, mesmo que a soma das terras indígenas, que são bens da União, ocupe uma parte significativa do seu território; A vitória, no entanto, foi marcada pela inovação da técnica jurídica de apresentar condições à decisão, impondo aos índios restrições ao uso da terra e de seus recursos naturais. Algumas condições contrariam disposições infra-constitucionais, constitucionais e internacionais as quais o Brasil se obrigou. Assim, em processo subjetivo que faz coisa julgada em relação às partes do processo e em relação à causa do pedido, o STF extrapolou a decisão sobre a demarcação, para criar 19 condições aplicáveis à Reposa/Serra do Sol e as demais terras indígenas do país. Observe-se que, delas, apenas uma faz observação ao procedimento de demarcação de terra indígena ao afirmar que os Estados devem participar, o que já acontece desde 1996. As condições que violam os direitos indígenas e causam preocupação são: • Não pode haver ampliação de terra indígena demarcada. Esta condição contraria dispositivo constitucional que diz que o direito dos índios a terra é imprescritível mas que, caso a administração tenha errado em sua demarcação, é possível legalmente pedir a reparação deste erro. Existem atualmente cerca de 60 pedidos de revisão de demarcação de terras indígenas (dados do Instituto Socioambiental; • As Forças Armadas podem intervir em território indígena sem consulta às comunidades indígenas e à FUNAI. O Estatuto do Índio (Art. 20 da Lei 6001/73) estabelece que em caráter excepcional e por imposição da segurança nacional, poderá a União intervir, se não houver solução alternativa, de acordo com condições estipuladas em decreto, em ato que terá a assistência direta do órgão federal indigenista. A exclusão de consulta às comunidades indígenas e à FUNAI além de afrontar a legislação específica contraria a Convenção 169 da OIT, que estabelece a consulta em caso de medidas legislativas ou administrativas que afetem às comunidades; • Limitações referentes à proibição às comunidades indígenas de cobrarem tarifas ou quantias de qualquer natureza em caso de ingresso, trânsito ou permanência de não-índios, como também em casos de utilização de estradas, equipamentos públicos, linhas de transmissão de energia e outros. As comunidades indígenas podem explorar meios de sobrevivência que implique em cobrar pela entrada e permanência em suas terras, como no caso do turismo, e têm direito de serem indenizadas, como qualquer outro brasileiro, em casos de danos materiais ou imateriais causados pela construção de qualquer obra em suas terras. A condição acima torna os índios desiguais aos demais brasileiros; Estas condições, não faziam parte do objeto de pedir, ou seja, a anulação do procedimento de demarcação, portanto não foram submetidas ao debate e ao contraditório. Surgiram de uma inovação na técnica jurídica de trazer considerações em abstrato sobre vários aspectos de um determinado assunto, indo neste caso de encontro a direitos materializados em lei. Apenas a aplicação em casos concretos poderá dimensionar o real alcance que elas terão. Cultural Survival Quarterly inverno 2010 25 A Funai Sob A Mordaça Do STF: E Agora ? O antropólogo Gilberto Azanha, coordenador do Centro de Trabalho indigenista – CTi*, vê como extremamente grave as condições impostas pelo STF. Gilberto Azanha o cenário mais factível, qualquer terceiro, ocupante ou não de terra indígena (por exemplo, o governo estadual), que se sentir prejudicado pelos estudos de identificação da FUNAI, em curso e futuros, poderá recorrer diretamente ao STF, que os submeterá a um relator e, se esse assim decidir, ao plenário do STF. São esses juízes que, fazendo às vezes de antropólogos honoris causa, verificarão os relatórios feitos por antropólogos nomeados pela FUNAI para realizar os estudos de identificação e delimitação de determinada Terra Indígena, como reza a lei infraconstitucional. Ora, vários atos legais não revogados pelo STF definem o papel da FUNAI e dos antropólogos no processo de identificação de uma Terra Indígena (Decreto Federal 1.775; Portaria 14 do Ministro da Justiça, entre outros), e todos eles são perfeitamente legais, já que o próprio STF nunca os declarou contrários à Constituição. Logo, o caráter de intervenção do STF em uma atribuição do Poder Executivo é flagrante. Resta questionar qual é o objetivo dessa interferência. Estaria o Tribunal aderindo aos interesses anti-indígenas que consideram um “ato arbitrário da FUNAI”, a prerrogativa desse órgão, estabelecida em lei, de conduzir com exclusividade (mas não sem deixar de considerar os interesses de terceiros – o chamado direito ao contraditório) o processo de identificação das terras indígenas? A FUNAI estaria sendo, portanto, limitada por duas decisões dos juízes, que automaticamente, segundo se supõe, virarão lei: primeiro, ficaria proibida a ampliação de terras indígenas já demarcadas; e segundo, a ocupação indígena somente seria reconhecida se já tivesse sido comprovada antropologicamente em todos os seus aspectos antes de 05 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Essa segunda decisão, ainda não confirmada, é verificada no voto de alguns relatores do caso Raposa/Serra do Sol e enfatizada pelo pedido de julgamento de uma Súmula Vinculante encaminhada N 26 www.cs.org pela Confederação Nacional de Agricultura ao STF, com o objetivo de estabelecer jurisprudência. Quais as conseqüências dessas duas decisões? O STF chama para si a árdua tarefa de julgar mais de 60 processos de revisão de terras indígenas demarcadas antes de 05 de outubro de 1988 e em curso na FUNAI. Tais terras estão sendo revisadas porque seus processos de identificação/delimitação não obedeceram qualquer critério antropológico. Esses povos ocupavam tradicionalmente suas terras, mas como não havia qualquer procedimento estabelecido, o Serviço de Proteção ao Índio e depois a FUNAI utilizavam aquele que mais lhe convinha: liberar as terras indígenas para a ocupação de terceiros e para o “avanço da civilização”. Logo, muitas das terras indígenas que foram demarcadas anteriormente a 1998 constituem frações insignificantes das terras tradicionais nativas e, portanto, trata-se de uma obrigação legal a sua revisão pela FUNAI. Caso a revisão dessas terras não seja feita se estabeleceriam dois tipos de T.I. no País, eleitas sob critérios diferentes, contrariando assim a própria Constituição Federal. Das terras indígenas em revisão ou em favor de povos indígenas “ressurgidos” (expressão pejorativa usada pela mídia brasileira para referir-se aos povos que reassumiram sua identidade étnica), 99% delas encontram-se subjudice, ou seja, já são objeto de contestação judicial por parte de terceiros interessados, ditos “prejudicados”. A FUNAI, a Advocacia Geral da União ou o Ministério Público Federal vêm conseguindo ganhar algumas dessas ações nos Tribunais Regionais de 2ª Instância. Com a decisão do STF, todos esses processos (e são centenas!), poderão parar nas mãos dos seus juízes. Diante do enorme número de processos de toda ordem julgados pelo STF, não é difícil imaginar que muitos desses julgamentos serão protelados indefinidamente, com prejuízo evidente para os povos indígenas e benefício exclusivo dos invasores que poderão seguir ocupando-as. Estabelecer como critério que os povos indígenas, que foram expulsos e expropriados de suas terras em tempos passados, não poderiam mais reivindicá-las, já que não as ocupavam plenamente em 05 de outubro de 1988, salvo comprovado que foram compulsória e violentamente expulsos como o relator do processo Serra/Raposa do Sol indicou, constitui uma negação ao reconhecimento das legítimas reivindicações de inúmeros grupos que há décadas querem reaver suas terras originais. Uma solução apontada pelo Presidente do STF, Ministro Gilmar Mendes, durante a discussão do processo da RSS foi a desapropriação pela União dessas terras caso fosse provada a sua necessidade. No entanto, caberia ao STF julgar o mérito da questão, decidindo inclusive quais terras “não seriam mais indígenas” e que tipo de ocupação de terceiros descaracterizariam o fato indígena, anulando, portanto, os direitos originários que os índios tinham sobre elas. Dezenas de terras indígenas no Nordeste e na Amazônia se encontram nessas condições, reivindicadas por povos, que sob pressão dos interesses regionais e discriminação étnica, tinham ocultado suas identidades étnicas por décadas mas que agora estão reclamando os seus direitos. Os Guarani (Kaiowá e Ñandeva) do estado do Mato Grosso do Sul, por exemplo, ocupavam até a década de 1920 aproximadamente 1,5 a 2 milhões de hectares entre os Rios Apa e Dourados. Nesse período, uma companhia extrativista de erva-mate, a Companhia Mate–Laranjeira, detinha uma concessão federal para explorar toda a área ocupada pelos tekoha Guarani (as unidades territoriais autônomas de famílias extensas Guarani), empregando mão-de-obra indígena. Entre 1928-1930, a agência federal do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) requereu ao Estado do Mato Grosso oito lotes de terra, correspondentes a pequenas parcelas de alguns tekoha, com 2.000 hectares em média cada, para fixar os Guarani e Kaiowá em Reservas Indígenas. Entretanto, a partir de 1940, o governo federal entregou as terras da companhia para o estado, para que fossem loteadas e colonizadas para a expansão da fronteira agrícola. As famílias indígenas despejadas de suas terras (tekoha) foram conduzidas pelo SPI para as oito Reservas que a instituição controlava e ocupadas pelas famílias extensas originárias da região. A transferência gerou muitos conflitos entre os Guarani e Kaiowá, pois as famílias residentes na área não aceitaram compartilhar a sua já pequena terra com “parentes” de outros tekoha. Quando a situação tornava-se crítica, os líderes dos tekoha despejados pelo SPI voltavam para suas terras de origem, até serem novamente expulsos e reconduzidos para as “reservas”. Estas idas e vindas de famílias Guarani deram início à diáspora desse povo, fenômeno observado até hoje! Todas as famílias extensas Guarani que formam os tekoha em diáspora não ocupavam suas terras originais em 05 de outubro de 1988 pelas razões acima explicitadas. Dessa forma, qual poderia ser a atitude dos juízes do STF frente a esse caso emblemático? A compra dessas terras pela União é praticamente inviável. Seria necessário, segundo a FUNAI, aproximadamente 600 mil hectares para resolver de vez um problema que se arrasta há mais de sete décadas (com um número extra-oficial de mais de um milhar de suicídios indígenas, 90% deles cometidos por jovens indígenas), a um custo médio na região (supervalorizada por conta da cana-deaçúcar e da soja) de US 1.200 o hectare, totalizando US 720 milhões. A União não possui condições para realizar essa desapropriação. São situações com as quais os juízes do STF se confrontarão, uma vez que decidiram interferir no trabalho executado pela FUNAI. Deverão decidir se, em casos como o acima relatado, aceitarão a identificação de terras indígenas proposta pela FUNAI, e assim o fazendo, contradizendo a jurisprudência que o Tribunal mesmo se impôs: a data limite da promulgação da Constituição de 1988. Se o Tribunal atuar desse modo enfrentará a pressão política de governadores, da “classe política” local e do agronegócio. Em suma, os juízes do STF se confrontarão com problemas que comumente a FUNAI enfrenta, sem contar com a experiência da instituição. Resta se perguntar por que o STF decidiu se ocupar desses assuntos. Teria o Tribunal assessoria para assumir essa tarefa? Demandará apoio dos quadros de funcionários da FUNAI? Em suma, nesse país institucionalmente esquizofrênico, a Suprema Corte legisla, o Congresso executa e o Executivo fiscaliza a si próprio. E tudo para calar as legítimas reivindicações dos povos indígenas, “originais senhores destas terras” como disse um soberano português no século XVII. Gilberto Azanha Homens Kalapalos confeccionam uma canoa com tronco de árvore do Cerrado. Foto: E. Giacomazzi (Flickr). * O Centro de Trabalho Indigenista –CTI - é uma Organização Não-Governamental constituída juridicamente como associação sem fins lucrativos, fundada em março de 1979 por antropólogos e indigenistas dedicados ao trabalho com grupos indígenas. O Centro apresenta como missão contribuir para que os povos indígenas assumam o controle efetivo de qualquer intervenção em seus territórios, esclarecendo-lhes sobre o papel do Estado na proteção e garantia de seus direitos constitucionais. (http://www.trabalhoindigenista.org.br/) Cultural Survival Quarterly inverno 2010 27 Marãnã Bödödi Marã é a mata, marãnã é através da mata, e bödödi é caminho... caminho através das matas... Caminho através das matas do Ró... Maria Lucia Cereda Gomide Batika Dzusi´wa preparando o bolo tradicional Xavante. Foto: Daniela Lima 28 O povo Xavante vive atualmente no estado do Mato Grosso, em oito terras indígenas: Marechal Rondon, Sangradouro, São Marcos, Parabubure, Culuene, Areões, Pimentel Barbosa e Marãiwatsede. Sua população é aproximadamente 15 mil pessoas, distribuídas de forma irregular em diversas aldeias nas terras citadas. A fragmentação do território Xavante se deu no contexto histórico da demarcação das atuais terras indígenas Xavante institucionalizadas pelo Estado. Os elementos históricos desse processo interligam a história dos grupos Xavante como também o processo de ocupação do Estado do Mato Grosso, este processo se deu articulado por vários fatores, inclusive o contato com o mundo waradzu (não indígenas), ou melhor, com os agentes de contato como a Igreja (missão salesiana) e o Estado (através do SPI e posteriormente da Funai). Esta fragmentação tem conseqüências no modo de vida indígena, tanto de caráter cosmológico e espiritual, assim como provoca a ruptura das relações sociais, pois ocorre um distanciamento entre os próprios parentes. A demarcação em ilhas provocou um distanciamento entre os próprios Xavante. A dificuldade de comunicação entre os diversos grupos Xavante ocorre inclusive pela falta de continuidade da própria cobertura vegetal do cerrado que segundo a cosmologia indígena favorece a comunicação feita pelos espíritos. Entre as terras Xavante existe uma barreira representada pelas fazendas (a maioria de monoculturas de grãos ou pela criação de gado) e pelas cidades do entorno. Nos seus depoimentos os Xavante explicam como a fragmentação é insustentável pois é causa de conflito permanente : O entorno das terras indígenas é uma pressão, (...) o fato de que existe uma cidade no meio, seja longe ou perto, está criando ruptura, destruindo o caminho que se tem, não só do ponto de vista físico, digo animais caminhadas no meio do cerrado, não é só isso tem outras coisas, vamos chamar assim que é o lado espiritual. Hiparidi ,2008 Aqui em Sangradouro não temos saída porque não pode passar nas fazendas ... e as vezes ele atira na estrada matar a ema, ai fazendeiro sai,acontece a briga...” Tserenhi’õmo, 2008 Os jovens tem sim dificuldade de entender e conhecer se os outros parentes ainda tem o que tem aqui, aqui a realidade é igual ou não eles não conhecem, se tem desequilíbrio cultural eles não conhecem, eles não tem muita informação então o que a gente tenta passar isso.” Cipassé, 2006 Nenhum governo faz demarcação direito, quem pensou para dividir a terra....” Pedro - liderança da T.I.Areões ,2005 A interrupção dos caminhos impede o fluxo dos animais dificultando assim a atividade de caça dos Xavante. A recuperação territorial e dos cerrados é de extrema importância para a vida Xavante. Mas como realizar essa conexão na atual situação de degradação e desmatamento intenso nas terras matogrossenses? A proposta como ponto de partida é o marãnã bododi, estratégia dos caçadores Xavante, conceito que abrange a sua territorialidade e possibilita que seja feita a ligação entre as terras. Unindo os diferentes grupos locais Xavante pelas diversas fitofisionomias que formam o mosaico dos cerrados. O marãnã bödödi deve unir as T.I. que foram demarcadas em ilhas e que hoje sofrem com a ruptura e a fragmentação territorial. O marãnã bödödi, é mais complexo do que a noção de mata ciliar ou beira-rio., Este termo que pode ser traduzido como o caminho das matas, tem um significado de interligação pelos cerrados, segundo uma dimensão da cosmologia Xavante. Nesta concepção estão incluídas as relações entre os diversos seres da natureza e da sobrenatureza que habitam os cerrados Xavante. São nestas matas que se realiza o mais importante ritual Xavante, o Wai’a, “ só é feito no local tipo desse ai, no marã´u. Porque o Wai’á , tem a sua força espiritual , não é qualquer ritual.” Hiparidi , 2006 Outra explicação sobre o termo lembra que marãnã bödödi é um “caminho dos guerreiros” Maranã Bödodi é quando você esta articulado, você está praticamente preparado para você conseguir algo que é de seu interesse. Então os guerreiros é que usam essa trajetória maranã bödodi. É para não ser visto e para não ser percebido isto já se trata de uma estratégia. Agora robnã bödödi, caminho no cerrado todo mundo pode ver, agora no marã, não é tudo mundo que consegue andar nesta picada, é só os guerreiros ou só os teimoso. Isto é bem claro para os Xavante. Ruriõ, 2008 O Marãnã Bödödi contempla várias dimensões entre elas a relação Xavante com os cerrados e sua espiritualidade, a territorialidade nos caminhos do Ró. Cada grupo Xavante é conhecido por um nome que representa a fitofisionomia dos cerrados, ou seja, eles formam uma biogeografia onde a distribuição espacial dos grupos Xavante é a distribuição das diversas fisionomias que formam o mosaico dos cerrados; assim, portanto a união destes grupos representa a união de seu território e dos cerrados por meio do Marãnã Bödödi. (Cada um destes termos refere –se a biogeografia local, desta forma Nõrõtsurã- babaçual, Ape – campo cerrado, Oihudú – vegetação que fica dentro do vale do rio (área de transição), Marãiwatsede – mata (mais alta, fechada, é uma área de transição). Os depoimentos Xavante enfatizam que o Marãnã Bödödi representa todo o mosaico dos cerrados, assim como a distribuição espacial das fitofisionomias, por outro lado a espiritualidade Xavante faz parte desse todo que é o Ró e que compreende a vida de outros seres que dão a força espiritual ao povo Xavante. Estamos brigando não só pelos Xavante mas pelos outros seres. É no marã que o Xavante se alimenta da força espiritual. Os espíritos onde caminham? Animal sai para comer e volta porque lá é a sua casa.Espíritos também sai e volta porque tem água e alimentos , se maranã acaba todos os animais serão extintos.[...] Os Xavante entendem marana bödödi como fluxo, comunicação[...]...porque eles não demarcaram nossa terra e nos dividiram e a gente não tem como fazer o fluxo de nosso caminho, alem de detonarem nossos espíritos , tão matando a gente. Os velhos acreditam que os novos estão se enfraquecendo porque não caminha mais...” Hiparidi, 2007 (negritos do autor) “Emendar”, restaurar a continuidade dos territórios e dos cerrados Xavante é reivindicação antiga entretanto nunca foi realmente proposta, pois não se acreditou ter condições jurídicas, e principalmente políticas, para tal empreendimento que embora difícil não é impossível. As oito terras indígenas Xavante não correspondem ao território indígena Xavante. Para que este território seja respeitado é necessária a terra contínua, ou seja, “emendar” como sugerem os velhos Xavante. Futuramente, conseguindo, tendo o território mesmo, de verdade, aí teremos mais liberdade de andar, caçar, buscar as coisas... Tserenhi’õmo, 2008 Cultural Survival Quarterly inverno 2010 29 O caminho da lei…. uma entrevista com deborah macedo duprat de Britto Pereira Nota do Editor: Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira é Procuradora da República, Coordenadora da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão (populações indígenas e minorias étnicas) da Procuradoria Geral da União. Esse artigo é uma adaptação de um encontro com a Procuradora em 2008, no qual participou Laura Graham, Hiparidi Top’Tiro, Ellen Lutz e Daniela Lima. ntes de 1988, a política indigenista brasileira tinha como objetivo a integração dos indígenas à sociedade nacional. O modelo de concessão de Terras Indígenas era essencialmente o de confinamento, ou seja, o Estado cedia pequenas áreas para os indígenas ocuparem durante o processo de transição para integração à sociedade nacional. Depois da Constituição de 1988, no entanto, a concepção do Estado sobre a ocupação indígena das terras mudou dramaticamente. A nova Constituição reconhece o direito dos povos indígenas em permanecer e usufruir de suas terras tradicionais. Assim, o novo processo de demarcação de territórios indígenas deve ser realizado com a participação indígena para melhor definir o limite de suas ocupações tradicionais. A concepção anterior do Estado pode ser considerada como hegemônica uma vez que, adotando uma perspectiva não indígena, determinava onde seriam as fronteiras que limitariam as terras indígenas. A partir da Constituição, o Estado entende que é necessário considerar a perspectiva indígena no processo de demarcação de suas terras. São os grupos indígenas que devem determinar as dimensões de seus territórios baseados na história da ocupação e no uso da terra. Essa é a grande diferença entre uma sociedade que se pretende hegemônica e uma pluralística. De acordo com a nova Constituição, a Procuradoria Geral da República é responsável pela defesa dos interesses e dos direitos dos Povos Indígenas. Por esse motivo, a Procuradoria esteve envolvida na defesa das cinco etnias que habitam na área da Terra Indígena – T.I. Serra/Raposa do Sol no processo julgado pelo Supremo Tribunal Federal – STF. Caso o Supremo Tribunal tivesse dado um parecer favorável ao governo do Estado onde se situa a T.I, contrário a demarcação contínua do território, as garantias constitucionais e federais que reconhecem as áreas indígenas seriam seriamente abaladas. A Procuradoria apresentou argumentos em favor dos direitos constitucionais dos habitantes indígenas e alegou que o sistema judicial não tem o direito de criar ou anular as demarcações de terras indígenas. O órgão oficial responsável por essa tarefa é a Fundação Nacional do Índio - FUNAI. A FUNAI segue o procedimento prescrito para determinar e designar terras indígenas. A sua realização A 30 www.cs.org exige a constituição de um grupo de estudo integrado por profissionais qualificados, que analisará o contexto histórico e atual daquela área, produzirá um relatório antropológico e fará recomendações sobre a demarcação de acordo com os direitos territoriais indígenas previstos pela Constituição. Caso a FUNAI não possa ou não queira realizar esse trabalho, a Procuradoria poderá solicitar nos tribunais a obrigatoriedade do cumprimento dessa ação ou poderá contratar um antropólogo, assumindo ela mesma a responsabilidade pela produção do estudo sobre a área. Se a FUNAI recusar o relatório produzido pela Procuradoria, poderá ser constrangida a aceitá-lo por meio judicial ou a própria Justiça poderá estabelecer as fronteiras da Terra Indígena em conformidade com o relatório apresentado. A FUNAI se ocupa atualmente do processo de revisão de muitas áreas que foram demarcadas antes da nova Constituição. Há muitos casos em que os indígenas estão demandando o direito de alargar as suas terras atuais, as quais não corresponderiam às áreas tradicionalmente ocupadas por eles, uma vez que foram designadas com base na concepção prévia de sistema de confinamento. O exemplo mais demonstrativo é o caso apresentado por indígenas Guaranis do Mato Grosso do Sul. Os Guaranis se encontram confinados em pequenas áreas que representam uma fração do seu território tradicional e por isso estão demandando a sua revisão. Há também um processo público para a revisão de áreas guaranis no sul do País. A situação no Sul e no Sudeste é muito mais complicada porque são regiões densamente ocupadas por não indígenas, que aí se estabeleceram há mais tempo, edificando muitas cidades. O programa de colonização do Mato Grosso foi iniciado realmente nos anos 80. Para poder reclamar como terra legítima, os grupos indígenas devem provar que ocupam e usam formalmente a área em questão. As demandas devem estar baseadas em qualquer tipo de ocupação, ou seja, o uso da área para caça ou para trânsito representa elemento suficiente para constituir uma demanda legítima. Novamente, uma vez preparada a demanda pelo grupo, há muitos caminhos para tê-la legitimada pelo Estado. O mais direto é via FUNAI, que seguirá o processo já descrito anteriormente. Caso a FUNAI não faça o trabalho por alguma razão, a Procuradoria poderá realizar o estudo e encaminhá-lo para a FUNAI ou diretamente a Justiça para que seja determinada a demarcação. A lei também requer que sejam realizadas reuniões com as partes opostas a demarcação indígena, o chamado contraditório. O processo, no entanto, deve ser sempre iniciado pela requisição à FUNAI. Nada disso é simples e fácil. Legislação indígena Constituição de 1988 Constituição Brasileira de 1988 trouxe inovações no tratamento da questão indígena. Já no início da Constituição, no artigo 20, se estabelece que as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas são integrantes dos bens da União. A grande inovação está na forma em que é definida a terra tradicionalmente ocupada pelos indígenas, não considerada somente pela sua ocupação física mas pela sua ocupação tradicional, ou seja, terras que são necessárias para a sobrevivência física da comunidade, assim como para a preservação de suas tradições culturais. A Constituição de 1988 abandonou a idéia de integração paulatina dos indígenas à sociedade nacional e preconizou o respeito às particularidades culturais indígenas, garantindo aos indígenas o direito de defender sua diversidade cultural. Assim, o índio não é mais visto como um ser em transição para a integração na cultura e sociedade nacional, mas ao contrário, como portador de uma identidade e cultura própria diferenciada. Os vários artigos em matéria indígena, como o 22, 49, 109, 129 e 215, em conjunto determinam a responsabilidade do Estado brasileiro em legislar sobre as populações indígenas, respeitando sempre suas especificidades culturais. São esses artigos que vão incumbir ao Estado ocupar-se da defesa jurídica dos interesses indígenas, de autorizar a exploração de suas terras e de lhes assegurar o direito ao ensino bilíngüe (art. 215). Os artigos 231 e 232 vão se ocupar de maneira direta ao reconhecimento dos direitos indígenas, tais como o reconhecimento da identidade cultural própria e diferenciada e dos seus direitos originários sobre a terra que ocupam, terras essas que devem ser demarcadas e protegidas pela União. São artigos de extrema importância para a garantia dos direitos indígenas, nem sempre respeitados pelas autoridades que se ocupam da defesa desses povos. Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e A as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. § 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. § 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei. § 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. § 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco. § 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a Cultural Survival Quarterly Tuira Kaiapo se dirige aos representantes da FUNAI como parte do protesto contra o projeto de construção da usina hidrelétrica Belo Monte. Foto: Eraldo Peres inverno 2010 31 Crianças Xavante na escola da aldeia Idzô´uhu. Foto: Daniela Lima ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. § 7º - Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º. Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo. O Novo Estatuto do Índio Diante da modificação na forma de se considerar os povos indígenas garantindo-lhes o direito à preservação de suas especificidades culturais e de suas terras tradicionais, o Estatuto do Índio, ( LEI Nº 6.001/73) deve ser substituído. De início, o Art. 1º do antigo Estatuto afirma que o objetivo é regular a “situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmonicamente, à comunhão nacional”. O Estatuto fere assim o estabelecido pela Constituição ao enfatizar na integração e não no reconhecimento da diversidade cultural indígena. Preocupado com a integração dos indígenas, o Estatuto também estabelece uma classificação dos povos indígenas em isolados, em vias de integração e integrados, diferenciação que também deixa de ter sentido com a nova Constituição, uma vez que essa devolve aos indígenas o direito a manutenção das suas tradições culturais. No início dos anos 90 foram propostas três novas versões do Estatuto, uma da FUNAI, outra do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) e a terceira do NDI (Núcleo de Direitos Indígenas). As propostas do CIMI e do NDI fundamentaram um substitutivo de autoria do Deputado Luciano Pizzato. Desde 1992, foi criada na Câmara Legislativa uma comissão para avaliar esse 32 www.cs.org substitutivo, que em junho de 1994 o aprovou disciplinando assim o “Estatuto das Sociedades Indígenas”. O projeto ainda aguarda um pronunciamento final pelo Plenário da Câmara. A diferença do antigo Estatuto e de acordo com a Constituição, a proposta do novo Estatuto já estabelece em seu artigo n˚1 o seu objetivo de regular “a situação jurídica dos índios, de suas comunidades e de suas organizações, com o propósito de proteger e fazer respeitar sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam e todos os seus bens”. Em seus artigos referentes às políticas de proteção e assistência aos indígenas, o Estatuto afirma que deverá ser uma finalidade dessas políticas a garantia às comunidades indígenas dos meios para sua autosustentação, respeitadas as suas diferenças culturais; assegurando-lhes também a possibilidade de livre escolha dos seus modos de vida e subsistência. Além disso, a proposta afirma que devem ser garantidas às comunidades indígenas a posse e a permanência nas suas terras consideradas partes integrantes de seu patrimônio. Segundo a proposta, os indígenas possuem o usufruto exclusivo de todas as riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas, incluídos os acessórios e os acrescidos e o exercício de caça, pesca, coleta, garimpagem, faiscação e cata. No que concerne a proteção ambiental, o capítulo V da proposta afirma, entre outros pontos, que será responsabilidade da União promover a fiscalização e a manutenção do equilíbrio ecológico das terras indígenas e de seu entorno. Para isso prevê que deverá ser realizado um diagnóstico sócio-ambiental, e se necessário, a promoção da recuperação das terras que tenham sofrido processos de degradação dos seus recursos naturais. Tudo isso sempre em parceria com as comunidades indígenas. Assim sendo, a nova proposta do Estatuto busca promover e garantir todos os direitos culturais, territoriais, civis e políticos dos indígenas. Em trâmite na Câmara Legislativa, a proposta já vem sofrendo várias emendas e não se logra que seja votada definitivamente. A discussão sobre um novo Estatuto do Índio é de suma importância para os indígenas, assim como pode ser a demarcação de suas terras. Monica Krahô foi uma das participantes na 1ª assembléia da MOPIC na T.I. Cachoeirinha – MS, em dezembro de 2007. Foto: Manuel Messina. Os Xavante, em busca de preservar suas terras, se manifestam constantemente. Um exemplo foi o bloqueio que realizaram de uma estrada e uma ponte, documentado pelo filme “Os Donos da Água”, cuja informação se encontra nessa revista, página 8. A foto de Jorge Protodi, cineasta que colaborou com o filme, foi tirada por David Hernández Palmar.