TÍTULO:REINSERÇÃO SOCIAL DE PACIENTES PSIQUIÁTRICOS ATRAVÉS DA CAPACITAÇÃO PARA O TRABALHO E GERAÇÃO DE RENDA NO MUNICIPIO DE CARMO, RJ AUTORES: Maria Paula Cerqueira Gomes1; Daniely Silva de Viveiros2 INSTITUIÇÃO:Universidade Federal do Rio de Janeiro ÁREA TEMÁTICA: Saúde Introdução Um dos maiores desafios para as atuais políticas de saúde mental é a reversão da lógica da internação convencional, ato que condensa uma nova postura política e clínica, corporificada nas iniciativas de cuidado e adoção de dispositivos estratégicos tais como os centros de atenção diária, unidades psiquiátricas em hospital geral, ambulatórios especializados, criação de dispositivos residenciais terapêuticos, iniciativas de trabalho e geração de renda, dentre outras ações. Ações e dispositivos que, para abarcar a complexidade das transformações necessárias, devem ser construídos como uma rede integrada em que a ética do cuidado e a tomada de responsabilidade pelo serviço e técnicos, devem ser permanentemente inventadas. Neste contexto, as ações direcionadas aos pacientes de longas e repetidas internações, representada por uma população em sua maioria, inativa, sem vínculos familiares, sem vínculos previdenciários, etc., englobam uma problemática social grave, necessitando de um forte programa de suporte social vinculado a uma assistência de base territorial e à reconstrução ou construção de antigos e novos vínculos sociais, com programas de inserção comunitária. O Hospital Teixeira Brandão dentro do contexto de reestruturação da assistência em saúde mental Fundado em 1947, o Hospital Estadual Teixeira Brandão localiza-se em uma fazenda, com área de cerca de 160 alqueires, no município de Carmo – região serrana do Estado do Rio de 1 Coordenadora de Saúde Mental do Estado do Rio de Janeiro; Professora adjunta do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal/Faculdade de Medicina – Universidade Federal do Rio de Janeiro; pesquisadora do Núcleo de Políticas Públicas em Saúde Mental – NUPPSAM – Instituto de Psiquiatria – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Endereço eletrônico: [email protected] 2 Assistente social; estagiária do Núcleo de Políticas Públicas em Saúde Mental – NUPPSAM – Instituto de Psiquiatria – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Endereço eletrônico: [email protected] Janeiro. Tem como uma de suas características marcantes a sua instituição nos moldes de Colônia, com espaços destinados ao trabalho – olaria, curral, pomar, entre outros – e a localização afastada de um grande centro urbano (cerca de 250 km da cidade do Rio de Janeiro), em uma área tipicamente rural. Conta com 400 leitos credenciados e abriga, atualmente 280 pacientes, todos do sexo masculino. Desde as avaliações iniciais, feitas a partir de 2000 pela Assessoria de Saúde Mental da Secretaria de Estado de Saúde/RJ (ASM/SES) e pelo Núcleo de Políticas Públicas em Saúde e Saúde Mental (NUPPSAM/IPUB/UFRJ) acerca das condições da assistência prestada pelo HETB, uma característica se destacou entre muitas outras – ligação de uma parcela de pacientes com as atividades de trabalho existentes no hospital. Este trabalho - ou grupo de atividades descritas como trabalho - exerce uma função organizadora do espaço do hospital para uma pequena parcela desta população. A antiga denominação oficial e também a denominação coloquial e corrente na cidade de Carmo denunciam um momento histórico do tratamento dos acometimentos psiquiátricos. Hospital Colônia Teixeira Brandão – ou simplesmente “Colônia” para os munícipes de Carmo indica uma lógica de tratamento que pressupôs o isolamento dos pacientes do seu meio como forma de recuperação das suas “faculdades mentais”. De acordo com Lougon (1987), “as colônias surgiram frente às necessidades de ampliação da assistência aos doentes mentais, tanto em sua quantidade como em sua qualidade” (p. 113). Ainda segundo ele, a idéia central que norteava a criação destes estabelecimentos era a de manter os doentes mentais e, colônias agrícolas, dotadas de extensas áreas verdes e distantes do centro urbano onde sua presença era incômoda e, ao mesmo tempo, conservá-los ocupados cultivando a terra ou trabalhando em oficinas. [...] A idéia era defendida como uma alternativa para o confinamento dos doentes em hospitais fechados: a liberdade do trabalho nos campos das colônias em lugar da vida ociosa entre quatro paredes nos hospícios tradicionais (p. 86-7). Neste sentido, o trabalho exercia a função de instrumento terapêutico nas colônias, sendo “ordenador, moralizador, disciplinante” (idem, ibidem, p. 87), sendo sempre defendido como um ingrediente importante desta receita eficaz: isolamento e ocupação. A ocupação da mente como um afazer ainda é receita defendida como atitude diante do desequilíbrio e da anormalidade. A reorientação pretendida para o HETB indica a necessidade premente de reformulação de conceitos, entre eles, o papel do trabalho no cenário do cuidado e tratamento. O objetivo da reformulação dos núcleos de trabalho está intimamente ligado à retomada do poder de decisão dos pacientes diante da estrutura hospitalar, esvaziada durante os anos de institucionalização e pela falta de direção nas atividades. A justificativa para estas mudanças reside, entre outras coisas, no fato deste trabalho poder exercer um papel importante na inserção destas pessoas no ambiente social. 1. Objetivos do Projeto 1.1. Objetivos Gerais a) Reestruturação dos Núcleos de Trabalho existentes no HETB com vistas a reinserção psicossocial da clientela internada, centrados na promoção de ações de trabalho e geração de renda; e b) Aumentar a contratualidade da clientela internada, incluindo-a no processo de tomada de decisão das ações que envolvem as atividades laborais desta instituição, a partir da resignificação destes espaços. 1.2. Objetivos Específicos a) Potencializar os núcleos de trabalho existentes – Curral, Olaria, Pomar, Marcenaria e Horta; b) Aumentar o número de pacientes inseridos nas atividades laborais assistidas; c) Realizar programas de treinamento específico para cada um dos núcleos de trabalho com vistas a capacitar a mão de obra existente no hospital; d) Fomentar canais de negociação e circulação da comunidade situada no entorno do hospital, incluindo-a no processo de produção destes núcleos de trabalho; e) Desenvolver cooperativas de trabalho que possibilitam a comercialização dos produtos com vistas a geração de renda; f) Ressignificar estes espaços a partir do debate com a clientela internada do papel que os núcleos de trabalho exercem no cenário de cuidado e tratamento; g) Realizar ações de educação continuada com profissionais de saúde do HETB, habilitando- os para as ações de reestruturação da assistência psiquiátrica em curso no hospital. h) Confeccionar materiais didático-instrucionais referentes a cada núcleo de trabalho reestruturado no hospital. 2. Metodologia O interesse pela ação em curso no HETB surge a partir do trabalho que passa a ser desenvolvido pela ASM/SES/RJ no ano de 2001, com o intuito de reestruturar a assistência psiquiátrica oferecida no hospital. Foi possível constatar, a partir de uma série de visitas iniciadas no ano de 2000 pela equipe do NUPPSAM/IPUB/UFRJ, que a assistência prestada pelo Hospital era de péssima qualidade, apontando para urgência de ações de reorganização da dinâmica institucional e para a reinserção psicossocial dos internos/moradores do hospital. Nestas visitas, realizadas entre maio e agosto de 2000, foi possível uma primeira aproximação com o perfil desta população. No ano de 2001, foi realizado pelo NUPPSAM/IPUB/UFRJ e pela ASM/SES/RJ o Censo Clínico e Psicossocial dos Pacientes Internados no HETB, que forneceu um diagnóstico detalhado da situação dos internos, assinalando a necessidade de ações integradas de cuidado, tanto na área da saúde mental, quanto na clínica, na assistencial, previdenciária, habitacional etc. Além disso, o Censo revelou a fragilidade ou inexistência de vínculos sociais e afetivos, como resultado do longo período de internação que vêm sofrendo estes pacientes, fazendo com que se torne ainda mais difícil e cuidadoso o trabalho de reinserção social desta clientela. Desde a apuração dos resultados do Censo, visitas sistemáticas vêm sendo realizadas à instituição, como parte de uma série de ações de reestruturação da assistência no HETB. No final de 2001, foi elaborado um plano envolvendo diferentes equipes no desenvolvimento de tais ações. Entre elas, podemos destacar o trabalho das equipes de: Lazer Assistido, Residências Terapêuticas, Projeto de Suporte Social, Oficinas, Projeto de Retorno ao Lar e Trabalho e Geração de Renda, entre outras. As equipes são formadas tanto pelos próprios profissionais do HETB, quanto pelas equipes da ASM/SES/RJ e NUPPSAM/IPUB/UFRJ. Há de se ressaltar, entretanto, que é necessário também o treinamento sistemático e intenso dos profissionais da instituição, que durante muitos anos, mantiveram suas ações em conformidade com a inércia institucional frente ao tratamento desses pacientes. De acordo com o trabalho realizado pelas equipes do NUPPSAM e da ASM pôde-se constatar que seria possível promover uma modificação da dinâmica e do espaço institucional do HETB tendo como eixo a potencialização dos seus espaços de produção. Os diferentes núcleos de trabalho – Olaria, Curral, Pomar, Marcenaria e Horta – apresentam, hoje, uma produção muito aquém de sua capacidade, revelando a falta de direcionamento e planejamento de ações. O número de pacientes envolvidos nessas atividades é muito baixo, comparado ao que se poderia integrar-se às atividades, e grande parte deles passa o dia a esmo pelo hospital. Entretanto, observa-se, na conduta desses internos, a vinculação a esses espaços de trabalho. Um desses exemplos é a concentração de pessoas em torno da Olaria, que se encontra maior parte do tempo desativada. Outro reflexo da reestruturação das atividades seria a possibilidade concreta de geração de renda, através da comercialização dos produtos. Desta forma, na avaliação da equipe, uma das medidas mais importantes no auxílio da reinserção psicossocial destes pacientes seria a reestruturação das atividades laborais. Esta tarefa passa, portanto, pela reorganização dos núcleos de trabalho. Cada núcleo passou por um diagnóstico atual, apresentado abaixo de forma resumida, que apontou o número de pacientes atualmente envolvidos, os equipamentos existentes, o número de pessoas que poderiam ser atendidas com a reestruturação e a proposta de que cada equipe responsável pelo núcleo de trabalho passasse a assumir o papel de estímulo dos pacientes para essa reestruturação. a) Olaria A Olaria conta com a participação de 30 pacientes, realizando atividades assistemáticas, com periodicidade irregular. Observa-se a ausência de rotinas organizacionais e definição da finalidade da tarefa realizada. Quando em funcionamento, a olaria é responsável pela produção de e média 45.000 tijolos, mensalmente, sem destinação específica. A proposta atual é reestruturar este espaço, para que a produção seja regular com o objetivo de construir “kits residências” para o projeto de retorno ao lar, para as residências terapêuticas que serão construídas no entorno do hospital e para a construção de casas populares no município. b) Curral As atividades existentes no HETB e toda sua organização espacial são os de uma fazenda típica da região onde está inserido. Como tal, a atividade leiteira é uma das mais marcantes neste espaço, embora com uma produção muito aquém do que se poderia extrair se o gado fosse manejado corretamente e se a assistência técnica fosse regular. Novamente aqui aparece a carência de sentido. Do grupo que mantém a atividade do curral apenas três num grupo de oito pessoas são pacientes do hospital. O restante da equipe é de funcionários do HETB. O interessante é que nas assembléias diárias com os pacientes, em curso desde janeiro do presente ano (2002), cerca de 80 pacientes já explicitaram seu desejo em trabalhar direta ou indiretamente neste núcleo. Tal situação evidencia mais uma vez a exclusão dos pacientes na construção de seus respectivos projetos terapêuticos. A proposta para o curral é de reorganização do espaço, com vistas à qualificação técnica das pessoas envolvidas e, conseqüentemente, aumento da produção leiteira, o que será possível através da realização de cursos técnicos para manejo do gado, produção leiteira e derivados. c) Pomar Existe um pequeno grupo de mais ou menos cinco pessoas que mantém esta atividade em uma extensa área e não conta com qualquer suporte da equipe do HETB. A iniciativa de manter o cuidado com a plantação é de pura responsabilidade dos pacientes, não havendo qualquer incentivo organizado pelo hospital. Isso produz um outro efeito parecido com o da olaria. A produção de frutas é destinada ao consumo do hospital sem qualquer planejamento, produzindo o mesmo efeito de perda do sentido do trabalho. Além da perda concreta de boa parte da produção, uma vez que o cultivo é realizado aleatoriamente, sem planejamento e conseqüentemente não há um direcionamento do consumo. As propostas para reestruturação do pomar passam pela reorganização do espaço a partir de um levantamento do solo, clima e produtos mais propícios para o cultivo na região. A partir deste diagnóstico, a equipe de trabalho pode buscar a melhoria da qualidade dos alimentos. Também está sendo articulada a realização de curso de capacitação dos pacientes para o manejo adequado com a fruticultura. d) Marcenaria Há um espaço amplo com equipamentos adequados, onde a confecção do material não é revertida para o projeto de reestruturação do hospital. Os produtos confeccionados, como por exemplo, beliches, camas e armários são destinados aos alojamentos de funcionários e não para os internos. A proposta principal é reorganização do espaço para a confecção dos móveis a serem utilizados nas residências terapêuticas para os próprios internos. 3. Resultados Dentro do processo de reestruturação da assistência prestada no HETB, mudanças significativas vêm sendo apresentadas na vida diária dos internos. A principal delas se refere à modificação gradual das práticas de cuidado até então desenvolvidas, que atribuíam ao paciente um papel de não implicação na construção de seu cotidiano, apenas reproduzindo um quadro de abandono e de alienação que não permitia considerar outras possibilidades de vida que não a hospitalização. O modo como os recursos do hospital eram praticamente ignorados fazia com que o resgate do quotidiano e a reconstrução da vida dos internos raramente pudessem fazer parte de seus projetos terapêuticos. Desta maneira, o trabalho que passou a ser desenvolvido, a partir do diagnóstico feito pela equipe da ASM/SES/RJ e NUPPSAM/IPUB/UFRJ, bem como as visitas realizadas até então, reativaram um novo modo de utilização dos ricos recursos oferecidos pela instituição. Esses recursos, cujo eixo são as atividades laborais, permitem (re)elaborar de diversas formas a construção de novas propostas de ressocialização desses internos. Assim, a reestruturação dos projetos de trabalho vem trazendo uma nova tônica à instituição, fazendo com que os frutos desse trabalho tenham projeção além de suas cercas e também devolvam uma dinamicidade à “rotina” institucional, através da participação da comunidade. Um dos bons resultados obtidos até então foi a premiação do projeto no Programa Universidade Solidária – Módulo Regional, 2002. Com os recursos obtidos será possível ampliar não só os meios de produção, mas os conhecimentos produzidos acerca do tema para internos e comunidade, parceira essencial nesse projeto. 4. Referências Bibliográficas ASSESSORIA DE SAÚDE MENTAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO; NÚCLEO DE POLÍTICAS PÚBLICAS EM SAÚDE MENTAL Relatório Final do Censo Clínico e Psicossocial dos Pacientes Internos no Hospital Estadual Teixeira Brandão - Carmo. Rio de Janeiro, 2001. Mimeografado. LOUGON, Maurício. Os caminhos da mudança: alienados, alienistas e a desinstitucionalização da assistência psiquiátrica pública. 1987. 198 f. Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Monerat, Teresa. Trabalho Autônomo, cooperativas e rede de relações sociais. In: Práticas Ampliadas em Saúde Mental: desafios e construção. Cadernos IPUB – nº 14. Rio de Janeiro: UFRJ, 1999. MACHADO, Roberto et al. A Danação da Norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978.