A pesquisa no Hospital Universitário Luiz de Paula Castro O ensino da medicina e a ciência médica, dois irmãos inseparáveis, são muito mais antigos do que o hospital, antecedendo-o por milhares de anos. O bom ensino da medicina utilizou, antes do hospital, o domicílio do doente. Somente quando o hospital assumiu as características atuais, ao longo dos dois últimos séculos, é que passou a ser local de aprendizagem médica. Numa primeira fase, o hospital filantrópico foi o hospital de ensino clássico, até que, no século 20, recebeu a companhia do hospital universitário. O hospital universitário é uma das mais gratas contribuições dos EUA à humanidade e surgiu quando a melhor proposta hospitalar inglesa, emergente da revolução nightingaleana e do ensino junto ao leito, foi unida, na América do Norte, às melhores inovações laboratoriais e de serviço oriundas da Alemanha. William Osler e William Halsted, um clínico canadense e um cirurgião ianque, são os principais artífices desta concepção, cuja força inovadora está simbolizada na aberta cooperação entre ambos, no Hospital Johns Hopkins, despida daqueles preconceitos europeus que, no final do século 19, ainda se interpunham entre a medicina e a cirurgia. O coroamento de seus esforços se deu com a adoção nacional, nos EUA e no Canadá, das diretrizes decorrentes do Relatório Flexner sobre educação médica, divulgado em 1910. Essencial à proposta flexneriana é a indissociabilidade entre ensino e pesquisa, tanto que nuclearmente consiste em alternativa ao ensino livresco ministrado em salões de aulas magistrais. Estes, no ensino pré-clínico, seriam substituídos pelos laboratórios de ciências biológicas, a serem usados não por pesquisadores dispensados da docência e nem por pós-graduandos, mas pelos próprios futuros médicos, que participariam ativamente das investigações desenvolvidas por docentes-pesquisadores. No ensino clínico, as apressadas visitas tradicionais de grupos de estudantes às enfermarias filantrópicas seriam substituídas pela participação individual e ativa de cada futuro médico no atendimento dos pacientes, sendo este sempre e necessariamente integrante de pesquisa clínica em andamento. Ora, a estrutura e o funcionamento dos hospitais filantrópicos eram inadequados a esta pedagogia de ensino-pesquisa, o que fez surgir novo tipo de hospital escola: o hospital universitário, subordinado administrativamente à escola médica e sustentado economicamente pela universidade. Em tais condições, logo passou a ser sinônimo de assistência médica do mais alto nível e, em virtude da onipresença da pesquisa, a ser o local privilegiado onde cada última conquista da ciência estava disponível em primeira mão, não só de maneira democrática mas inteiramente confiável. Durante três décadas os EUA e o Canada virtualmente impuseram tal concepção pedagógica a suas escolas médicas. Hoje se sabe que foi muito mais fácil construir laboratórios e hospitais, plenamente equipados para o novo ensino, do que convencer os docentes de que nunca devessem ensinar sem pesquisar ao mesmo tempo. Mesmo assim, a simples exposição dos estudantes às estruturas e ao ambiente intimamente vinculados à investigação, respirando ciência e convivendo com autênticos cientistas, produziu efeitos notáveis e muito além do esperado, tanto em quantidade como em qualidade, de tal modo que a liderança internacional da América do Norte na medicina foi aceita inclusive pelos seus mais radicais críticos. Uma das conseqüências dessa revolução foi a multiplicação automática do número de cientistas, causada pela retenção dos melhores cérebros, fascinados pelo contato precoce com o mundo científico. Na quarta década de sua adoção, com o término da segunda guerra mundial, os EUA procuraram, por meio principalmente da Fundação Rockefeller, exportar o modelo flexneriano de laboratórios e hospitais a países como os da America Latina e do Oriente. Um dos resultados mais brilhantes em todo o mundo, ocorreu no Brasil, com as Faculdades de Medicina da Universidade de São Paulo, a de São Paulo e a de Ribeirão Preto, e com a Faculdade de Medicina da Universidade (Federal) de Minas Gerais (UFMG), quando adotaram com entusiasmo, em programa simultâneo, o modelo flexneriano de formação médica. O sonho de dispor de hospital próprio esteve sempre presente nas escolas médicas brasileiras fundadas na primeira metade do século 20, já por influência norte-americana, mas o hospital universitário, em seu completo figurino flexneriano, só chegou aqui em 1955 com as três faculdades mencionadas. Há evidências de que, em alguns aspectos pedagógicos, o benefício dos estudantes foi aqui, entre 1958 a 1968, maior do que nas melhores experiências norte-americanas. Também se sabe que aqueles aspectos da medicina e da pesquisa brasileiras reconhecidos internacionalmente como equivalentes aos dos países desenvolvidos resultam diretamente desta importação. Se o efeito benéfico na América do Norte se prolongou por mais de quatro décadas, no Brasil ele foi restrito a uma década e se prolonga a duras penas até hoje, em ilhas de esforço e de crescente decepção. Na verdade, o verdadeiro modelo flexneriano quando foi exportado dos EUA já se revelava inadequado à indústria de saúde emergente da guerra mundial, especialmente por sua característica de medicina de consumo. Esta logo chegou ao Brasil na década de 60, impondo, aqui como lá, a busca de adaptações ao modelo Flexner ou de novos modelos. Não cabe nesta oportunidade discorrer sobre tais transformações. Importante é dizer que nenhuma das novas propostas ousou decidir pelo fim do hospital universitário, em sua essência, que é a indissociabilidade entre ensino e pesquisa, praticada em plena confiabilidade metodológica e ética. Tem-se discutido o hospital universitário vinculado a toda a universidade e não apenas à escola médica, seu co-financiamento por fontes não exclusivas ou sua integração, como referência máxima, à rede regionalizada de atenção à saúde, mas nenhuma proposta séria inclui seu desaparecimento ou a extinção de seu compromisso com a pesquisa. Pelo contrário, com o agigantamento de mega-indústrias transnacionais, com seus bilionários departamentos de pesquisa, elas próprias têm no hospital universitário um juiz neutro e isento para a competitividade de seus produtos nos ramos farmacêutico e de outras tecnologias em saúde. Assim, o binômio ensino-pesquisa é unanimemente considerado conquista permanente e intrínseca ao conceito de universidade e, se é criticado, o é no sentido de que, embora necessário, se mostra insuficiente, pois a universidade atual, e dentro dela, mais que qualquer outra área, a escola médica, deve obedecer a um compromisso social. Em nome deste, o binômio ensino-pesquisa, em vez de ser desfeito, deve é ser completado para o trinômio ensino-pesquisa-serviço. Os dados acima apontados indicam inequivocamente que, se o hospital universitário abdicar de sua função de pesquisa, estará optando pelo suicídio. Quem sabe isso melhor do que ninguém, são os que ora conspiram contra a sobrevivência da autonomia universitária em geral e contra a universidade pública em particular, sobretudo em países emergentes como o Brasil. Sim, infelizmente é verdade: vivemos um tempo em que poderosos interesses objetivam extinguir a isenção metodológica e ética da ciência, exatamente quando o avanço desta toca as mais delicadas questões deontológicas de sua história. Não contentes com isso, querem ambiente desimpedido de qualquer escrúpulo e lutam de todos os modos contra a formação de profissionais reflexivos e críticos. Na mesma linha esforçam-se por inviabilizar a reunião e a convivência, em clima de liberdade acadêmica, de inteligências competentes, capazes de causas desinteressadas e de ideais superiores. Enfim, tramam contra a sobrevivência altiva da massa crítica de cidadãos senhores de sua cidadania e conscientes de seus deveres solidários. Minha trajetória, que não é pequena e que inclui a formação de várias gerações de pesquisadores clínicos e intensa troca de experiência no plano nacional e internacional, atesta claramente que não agora, mas há longo tempo, tenho defendido a convivência de universidades públicas, confessionais e privadas. Como presidente da Associação Brasileira de Educação Médica me esforcei tenazmente para que os hospitais escolas das escolas médicas confessionais e privadas caminhassem na direção de verdadeiros hospitais universitários. Como diretor da Faculdade de Medicina e do Hospital das Clínicas da UFMG, fui incansável na defesa de um hospital universitário a serviço de toda a universidade, integrado ao sistema público de saúde e sendo sua referência máxima, não por si, mas pela qualidade do atendimento, propiciada principalmente pela ciência e pelas linhas de pesquisa ali reunidos. Esta deve receber financiamento de origem diversa, sendo desejável que predomine o de agências públicas. Em todas essas circunstâncias cuidei das discussões sobre custo e benefício, quando não era moda tratar disto, e tenho registradas alternativas criativas diante da tecnologia de alto custo, uma delas a tecnologia apropriada, em que a UFMG é pioneira. Assim, suponho ter alguma autoridade, razão talvez do convite para aqui estar, para dizer que seria crime inominável a persistência da atual asfixia institucional dos verdadeiros hospitais universitários, mais grave se quem a promove o faz por mera razão contábil. Percebo que a aposentadoria precoce de gente experiente, capaz e combativa contribuiu para a passividade e o relativo silêncio com que é recebida tal asfixia institucional, ao lado de outras medidas, unilaterais e questionáveis, referentes à educação e à universidade. Ou a universidade brasileira se castrou ou o país foi abençoado por um punhado de burocratas iluminados, que, detendo um saber oposto ao que acumulamos, se propõem guiar toda a inteligência brasileira, à sua revelia, por caminhos equívocos e certamente sem volta. Conferência no Congresso da SBPC de 1997, em Belo Horizonte .