FUNDAÇÃO GETUUO VARGAS ESCOLA BRASILEIRA DE ADMINISTRAÇÃO PÚBUCA MARÇO DE 1998 -A) BELO MONTE: A CONSTRUÇÃO DO SONHO - O trabalho na comunidade de Antônio Conselheiro / "- PAULO EM/LIa MATOS MARTINS CADERNOS EBAP N° 91 RIO DE JANEIRO - BRASIL BIt: MAR:O J., L ' L "J~ ,_ ~ ~ '. C A .:. ::.~S~N .• ~ .; .; .", ~ ." .", ., .ti ~ ~ .,.- . ." .", ." 'fIfII ., ." ." 'fIfII 'fIfII ., ., . 'fIfII ., 'fIfII ." .-'" ... 'fIfII .., ., ..., ... .. .,; .., '" 'fi • •• BELO MONTE: A CONSTRUÇÃO DO SONHO O trabalho na comunidade de Antônio Conselheiro Paulo Emílio Matos Martins Professor: FGV I UERJ I UFF "O sertão está em toda parte. O sertão é do tamanho do mundo. " - Guimarães Rosa • Canudos: o fenômeno organizacional De junho de 1893 - fundação da comunidade do 8elo Monte por Antônio Conselheiro e seus seguidores - até outubro de 1897 - término da Campanha de Canudos, massacre de seu povo e destruição do arraial conselheirista - a comunidade sertaneja crescera da "tapera de cerca de cinqüenta capuabas de pau-a-pique,,1 (250 habitantes?) do relato euclidiano para "as cinco mil e duzentas vivendas [... ] cobertas de tetos de argila vermelha,,2 (26 000 habitantes?), de acordo com o mesmo depoimento, com base na contagem feita pelas tropas oficiais ao final do conflito. Ainda que seja razoável admitir que o censo perpetrado pela Força Terrestre brasileira tenderia naturalmente para uma estimativa magnificada do poder inimigo, e que as condições desfavoráveis de sua realização (povoado em ruínas, entulhado de milhares de cadáveres em decomposição e destroços dos bombardeios, explosões e incêndios impostos ao inimigo) propendessem ao erro pelas omissão e/ou dupla contagem, tal fenômeno demográfico '~ 1 Cunha, Euclides da. Os sertões - campanha de Canudos, 31a. ed. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1982, p 122. 2 Id., ibid., P 362 2 representa um extraordinário crescimento populacional (10.400 %) em curtíssimo espaço de tempo (pouco mais de quatro anos). Entretanto, admitida a razoabilidade de uma estimativa de tal magnitude (segundo maior aglomerado populacional do Estado da Bahia do final do século, só inferior à capital), forçoso é reconhecer que o fato sugere um notável caso de liderança de massa e um bem sucedido modelo de organização social e econômica capaz de prover a subsistência de tamanha população na região mais pobre do semi-árido baiano. Por outro lado, o confronto entre as tropas do litoral e sertaneja, mobilizando cerca de 12.3403 combatentes da República (aproximadamente 49,8% do efetivo total de 24 761 homens do Exército Brasileiro do ano de 1897)4 - organizadas em quatro expedições, envolvendo diretamente no conflito o próprio Ministro da Guerra de então, Marechal Carlos Machado Bittencourt (que deslocou-se para o teatro de operações no final da campanha para organizar a logística dos combates), cinco oficiais-generais (entre eles alguns antigos combatentes na Guerra do Paraguai) e a elite dos coronéis e demais oficiais superiores da Força Terrestre da República, além de diversos batalhões de quatro Forças Públicas estaduais (AM, BA, PA e SP) - contra os piquetes dos jagunços broncos, sem educação e mal armados do sertão, resulta em um fantástico esforço de resistência militar que se estendeu por um período de quase um ano e sacrificou um total de mais de 20.000 vidas de ambos os lados. Data de 18745 a primeira notícia de Antônio Conselheiro - líder religioso cearense, construtor de igrejas, cemitérios e açudes, chefe e organizador da comunidade do Belo Monte. Após uma longa peregrinação de sua terra natal Ver: Fundação Casa de Rui Barbosa. Canudos: subsídios para sua reavaliação histórica. Rio de Janeiro, 1986, p 23-75. 4 Id., ibid., P 32 5 O Rabudo (periódico sergipano), 22 de novembro de 1874. Apud: Calasans, José. A vida de Antônio Vicente Mendes Maciel (1830 - 1897), Salvador, Museu Eugênio Teixeira Leal, s/d. 3 3 (Quixeramobim - CE) até as províncias de Sergipe e da Bahia e o exercício dos ofícios de comerciante, mestre-escola, caixeiro, advogado dos pobres (requerente junto ao fórum local), beato, pregador e conselheiro, Antônio Vicente Mendes Maciel concluí em 1885 as obras da igreja do Senhor do Bonfim de Chorrochó - BA, sua maior construção remanescente. Mais tarde (1892), Conselheiro e seu grupo terminam a edificação da capela do Bom Jesus, no arraial do mesmo nome, localizada na atual cidade de Crisópolis fundada pelo líder peregrino. Encerrando um período de quase vinte anos de vida nômade pelos sertões, Antônio Conselheiro se dirige para a antiga fazenda abandonada de Canudos, às margens do rio Vaza-Barris, no Município de Monte Santo, onde viria a fundar o seu Belo Monte inspirado nas comunidades fraternas e igualitárias - modelo das sociedades cristãs primitivas. • O mundo do sertão Conselheiro e seus seguidores protagonizariam uma tragédia que, na tese euclidiana, se explicaria no confronto entre os Brasis do mundo moderno do litoral e seu universo retrógrado do sertão. De fato, a lucidez do imortal poeta de Os sertões, muito mais do que um relato de guerra de incomparável estilo literário, legaria à historiografia de Canudos e ao povo brasileiro uma tentativa de explicação desse dramático episódio testemunhado pelo jovem engenheiro-cronista de O Estado de São Paulo. Com base na dialética do então desconhecido escritor fluminense, a compreensão desse fenômeno supõe não apenas a explicitação de duas dinâmicas que se negam, mas o choque violento entre duas civilizações: o litoral europeizado, dominador e cêntrico e o sertão colonizado, dominado e 4 periférico. Assim, a análise euclidiana, de certo modo, antecipa as teorias do dualismo econômico e da dependência que só muito mais tarde viriam a ser propostas. o jogo dessas forças em oposição - os mundos sertanejo e litorâneo - é aqui interpretado segundo um modelo tridimensional em que suas variáveis se determinam e são determinadas reciprocamente. São essas dimensões: a política, a religiosa e a econômica, que irão iluminar a leitura que fazemos da fracassada tentativa de realização de um sonho engendrado pela gente de Antônio Conselheiro. A religiosidade da gente do sertão pode ser lida como a assimilação do distante catolicismo medieval europeu, trazido pelo colonizador ibérico para o litoral e sincretizado pelos povos-atores do nosso processo civilizatório. Para alguns, sebastianista, milenarista, messiânico, o pensamento católico que iria se consolidar nas terras do interior brasileiro conservaria a magia do mundo sagrado da Idade Média, na sua versão lusitana - difundida, principalmente, pelos representantes da Companhia de Jesus - mesclado aos interesses políticos da Coroa Portuguesa, impostos ao colonizado através das ordenações elaboradas à distância oceânica, por um governo de população muito reduzida e empenhado, ao mesmo tempo, na conquista do mundo e na dificílima empreitada de ocupar um território de dimensões continentais e civilizar sua gente selvagem. De tão desafiadora missão resultaria um particular modelo de cristianismo - moralista e permissivo - proclamador de uma fraternidade universal e escravista, pregador da penitência purificadora e, até certo ponto, hedonista - embriagado pela exuberância do ambiente tropical paradisíaco -, autoritário - como representante oficial da metrópole exploradora - e libertário - como porta-voz da palavra do Deus-Homem -, místico e mesclado do misticismo dos povos pagãos ameríndio e africano, e materialista ou, a um só tempo, uma religião de Deus e de César, inauguradora na cultura 5 na cultura pátria em gestação de uma tendência para o descompromisso entre ~ o discurso e a prática. Na moldura que assim se desenha é que o representante oficial da Igreja de Roma no sertão mesclaria os traços de um moralismo dogmático com o pragmatismo materialista da missão colonizadora. Dessa contradição e da tentativa de superá-Ia é que o universo sertanejo gestaria os fenômenos de liderança religiosa-política do Pe. Ibiapina, de Antônio Conselheiro, do Pe. Cícero e de tantos outros. A dimensão política do mundo sertanejo, onde florescerão movimentos sociais como o de Canudos, é também predominantemente marcada pela contradição de um pensamento liberal-social forjado na Europa a partir do Iluminismo, das revoluções burguesa e industrial e do socialismo utópico do século XIX, e a realidade de um país que foi colônia até quase o final do primeiro quartel do século passado e que praticou os modos de produção escravista, até o final do século XIX e de servidão, em muitos casos, até os nossos dias. o modelo centralizado e autoritário do Estado que tem, de fato, do na figura coronef, a representação local do poder central, anteriormente desempenhado pelo capitão-mor do período colonial, como o catolicismo sertanejo, é também profundamente contraditório contrapondo as idéias mal assimiladas de um pensamento progressista com o anacronismo de formas de organização econômica e social de há muito superadas. A terceira variável do modelo de análise aqui utilizado, também se explica e é explicada pelas demais. Dito de outro modo, a dimensão econômica, vista no sentido restrito do modelo de produção praticado, se Ver: Leal, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o Município e o regime representativo no Brasil.. São Paulo, Editora Alfa-Omega, 1975. 6 6 configura no mundo sertanejo pelo embate de forças antagônicas onde, de um lado, se coloca a tradição muito forte do trabalho coletivista herdado das três principais matrizes étnicas da formação do povo, isto é, dos adjuntos minhotos, das vezeiras, das lamas de boi, dos moinhos do povo, do fomo comum, do rogar, das vessadas e de tantas outras formas de trabalho solidário e de ajuda mútua trazidos pelo colonizador lusitano; do apatxiru dos Tapirapés, do magaru (caça coletiva) dos Bororos e das formas assimiladas da tupambae (coisa de Deus) e da amambae (coisa do homem), estas últimas desenvolvidas pelos jesuítas da região missioneira do Sul e adaptadas da tradição coletivista do aborígene americano; da morança dos Manjacos da Guiné Portuguesa, das montarias (caça coletiva) dos Mandigas, também da Guiné Portuguesa, dos partidos de trabalho (limpeza e lavoura coletiva do solo), dos Bambas da África Equatorial Francesa, das ayar ayong (cooperativas de trabalho para construção de casas, caminhos, derrubadas, etc.) dos Fang do Gabão do Norte, do donkpê do reino de Dahomey, etc. 7 , práticas legados pela contribuição africana e, de outro lado, o modelo de produção de base escravista do grande latifúndio, legado das Sesmarias da fase colonial e do poder de representação real do capitão-mor e de seu sucessor histórico - o coronel. • A construção de um sonho Seria o Belo Monte de Antônio Conselheiro a civitas sinistra do erro, a urbs monstruosa de barro, a Tróia de taipa dos jagunços, que se construía a esmo, adoidadamente, como o vê Euclides da Cunha? 8 Ver: Caldeira, Clóvis. Mutirão: formas de ajuda mútua no meio rural. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1956, p 47-82. 8 Cunha, Op., cit., p 122-3. 7 7 Ainda que o genial autor de Os sertões tenha o mérito de haver intentado a primeira explicação sociológica para a Guerra de Canudos e a coragem de não resistir ao impulso de revelar-se, em sua obra-prima, um pensador em pleno processo de crise com o seu referencial teórico, sua análise ratifica a figuração que a visão litorânea tem do sertão, ou ainda, da ciência social de cunho universalista produzida nos grandes centros europeus e norte-americanos e descompromissada com a realidade do universo social periférico - produção literária típica do intelectual brasileiro do final do século passado e que levou Euclides a uma leitura reducionista do fenômeno em observação, equívoco este que iria marcar a historiografia sobre Canudos por mais de meio século, dado as força do discurso épico daquele escritor e sua incomparável beleza estilística. Entretanto, um olhar sobre a comunidade que Antônio Conselheiro idealizou e presidiu não comprometido com os cânones da ciência positivista, sugere uma reflexão mais elaborada sobre o fenômeno que esta encerra. Como foi possível que tamanha população provesse seus meios de subsistência em região tão árida e, ainda, que produzisse algum excedente econômico para troca com as regiões vizinhas e mesmo para exportação no mercado intemacional?9 Como explicar a fantástica resistência militar de uma gente bronca, precariamente armada e sem instrução a um tão significativo esforço bélico perpetrado por um exército equipado com a melhor tecnologia da época, comandado por oficiais experientes e educados segundo uma atualizada ciência da guerra? Como justificar uma liderança que arrastou pelas suas sendas nos sertões mais de vinte mil pessoas e que durante um período de pouco mais de quatro anos foi capaz de construir e chefiar uma comunidade em condições tão desfavoráveis? Como entender que um homem que espalhou pelo seu chão inúmeras obras de cunho social, como cemitérios, "Aquela povoação proporcionava ao Estado pingue [gorda] fonte de receita do imposto de exportação sobre peles." Ver: Zama, César (Wolsey). Libelo republicano acompanhado de comentários sobre a Guerra de Canudos. Bahia, Tipografia e Encademação do Diário da Bahia, 1899, p 54. 9 8 açudes e igrejas - algumas delas, como reconhece o próprio Euclides da Cunha, novas e elegantes 10, ou belíssima(s), como o autor se refere a Igreja do Bom Jesus do atual Município de Crisópolis 11 - pudesse ser o grande homem pelo avess0 12 , o anacoreta sombrio 13 de oratória barbara e arrepiadora, truanesco e pavoroso, ou o bufão arrebatado numa visão do Apocalipse 14? A reinvenção do mundo sertanejo formulada por Antônio Maciel e malograda, como tantas outras experiências sociais transformadoras, parece ter-se baseado num modelo político de Estado teocrático de inspiração cristã e participativa, de concepção comunitária - modelo das fraternidades do cristianismo rústico -, cujos princípios norteadores Conselheiro foi buscar na leitura e reflexão dos Textos Evangélicos, como bem atestam suas duas obras manuscritas 15 encontradas no Santuário pelas tropas federais, entre os escombros da ex-morada do peregrino e seu corpo sem vida, lá sepultado por seus seguidores nos dias derradeiros da vida do arraial. Se, por um lado, a dimensão política do modelo de Estado conselheirista decorre da dimensão religiosa do pensamento de seu fundador e, assim, ambas se suportam reciprocamente, o mesmo parece ter ocorrido com a dimensão econômica do desenho daquela sociedade. De fato, a fortíssima raiz cultural do trabalho coletivista e da ajuda mutua no meio rural, herdados, como já vimos, dos três vetores da formação étnica de nosso povo e sincretizada nas formas sertanejas do adjunto ou adjutório cearense (experiência social do Op., cit., P 116 Ibidem, p 119 12 Ibidem, p 119 13 Ibidem, p 109 14 Ibidem, p 113 15 Ver: 1 - Maciel, Antônio Vicente Mendes. Tempestades que se levantam no Coração de Maria por ocasião do Mistério da Anunciação. Povoado do Belo Monte, 1897. In: Nogueira, Ataliba.. Antônio Conselheiro e Canudos· revisão histÓrica. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 2a. ed., 1978 e 2 - _ _ Apontamentos dos preceitos da Divina Lei do Nosso Senhor Jesus Cristo, para a salvação dos homens. Belo Monte, 1895.(manuscrito depositado no Núcleo Sertão da UFBA). 10 11 o 9 também trágico episódio do Caldeirão do beato José Lourenço), as arrelias da Paraíba e as faxinas do Rio Grande do Norte, as tapagens (fechamento de um braço do rio para pesca coletiva), as juntas pernambucanas, o batalhão ou adjunto, a traição ou roubo e os bois-roubados (denominações essas devidas -. -. ao sentido de surpresa, para seus atores, que esses trabalhos mútuos assumem), largamente empregados na região da caatinga 16, sugerem que o Estado conselheirista desenvolveu-se com a prática disseminada de um modelo de economia centrada na produção coletivista e que Canudos foi na realidade um grande mutirão. Parece óbvio, entretanto, que o Belo Monte - de tão breve e tumultuada existência e trágica história - não chegou a consolidar qualquer experiência social do seu projeto de reinvenção do mundo sertanejo. É freqüente mesmo na historiografia da sociedade do povo do Vaza-Barris a menção ao caráter mercantilista do modelo de economia de propriedade privada que a gente do sertão teria engendrado. Argumenta-se tal tese com o suposto enriquecimento da família Vila Nova explorando o principal armazém comercial do povoado; com as lutas travadas entre aquela família e a família Mota - antigos comerciantes locais mandados assassinar pelos Vila Nova sob a acusação de traição no combate de Uauá. Fala-se ainda da estratificação social que a comunidade canudense já conhecera e que ficara testemunhada nos vestígios arquitetônicos das casas vermelhas (de telha) das classes abastadas e nos casebres miseráveis das populações pobres dos bairros periféricos ou, ainda; no poder econômico que Antônio Vila Nova havia transformado em poder político como verdadeiro prefeito da urbe e magistrado quando do julgamento e condenação da família Mota - sua concorrente comercial nos negócios do povoado. 16 Ver: Caldeira, Op., cit. .... .. 10 Como contestação a esse argumento fica a lembrança de que o Belo Monte viveu sua experiência de construção de um sonho e reinvenção do sertão sob o fogo de uma cruel e desproporcional guerra que durou quase um .... -.. -. quarto de sua brevíssima existência e que, provavelmente, empenhado nesse extraordinário esforço de resistência, os modelo de sociedade e liderança de Antônio Conselheiro tiveram que ceder lugar a um estado e a uma economia bélica, daí resultando, provavelmente, o enfraquecimento do poder carismático de seu fundador transferido à competência guerreira dos novos líderes, entre eles, o próprio Antônio Vila Nova, João Abade, Pajeú e tantos outros que sepultaram com sua gente nas margens do Vaza-Barris o sonho de reinventar o sertão ... ...... ... ... ... ... -. ~ ~ ~ ... ...-.., -. ~ ~ '-' ~ ~ ~ -. ~ ~ '- ., BIBLIOTECA MAI\IO HENRIQUE SIMONSEN ... ." ." ." ." 000084152 11 "111111111111111111111111111111111