Instituto de Relações Internacionais AS OPERAÇÕES DE PAZ NA GUINÉ-BISSAU SOB A ÓTICA PÓS-COLONIALISTA Aluno: Caroline Teixeira de Figueiredo Orientador: Marta Fernandez Moreno Introdução O trabalho de pesquisa se constitui a partir do olhar sobre o continente colonial africano, em especial para a situação da Guiné-Bissau. Analisaremos os modelos de colonização portuguesa para a África, expondo suas generalidades e abrangências, mas, principalmente, salientaremos suas divergências de modo a exteriorizar os aspectos, fatores e acontecimentos que influíram na atual disposição guineense. Através de uma analise circunstanciada, do contexto histórico em que a mesma se insere, bem como sua problematização perante variáveis teóricas e contemporâneas. Tomaremos a critica póscolonialista como objeto de questionamento do Brasil como estratégia alternativa as atuações ocidentais de cunho hierarquizador nas missões de paz na África. Colonização Portuguesa Dominado pela ânsia de lucro comercial, acesso à mercados e buscas por matériasprimas e metais preciosos os portugueses foram levados a se lançar seu pioneirismo nas ondas da expansão marítima do século XV. Em suas empreitadas, colônias foram criadas como forma de garantir domínio do território e mostrar aos demais Estados seu potencial. De modo geral, Portugal, por meio de suas colônias, intencionava fortalecer sua soberania e ter direitos exclusivos de comércio sobre a área. A presença próxima de outras potências na região obrigava Portugal a agir de maneira calculada e premeditada para antecipar-se as pretensões ou reinvindicações de outros poderes. [1] Além disso, duas particularidades lusitanas são apresentadas, como explicita Leila Hernandez: a longa duração de seu império ultramarino e colonial; e o fato de basear suas Instituto de Relações Internacionais ações em um imaginário de variantes nacionalistas. Outra característica básica é que se desenvolveram de forma articulada tanto na religião quanto no comercio. Daí a maneira autoritária de agir que permeia toda história de atuação colonial portuguesa. Portugal pressupunha modelos de colônias e nações desenvolvidos e eficácia pratica, ao mesmo tempo que apresentava certa debilidade teórica, manipulando dados a fim de garantir sua justificação e dar base a dominação. O imaginário português se fundava na ideia de que uma nação espalhada por vários continentes, que manteria sua integridade nacional. Em meados de 1880 a 1910 iniciou-se uma fase na politica lusitana marcada por duas características essenciais. A primeira de cunho 'nacionalismo antibritânico' devido à posição portuguesa de subalternidade, principalmente, no plano simbólico, perante o meio internacional. Isso devido ao isolamento na conferencia de Bruxelas e ao impedimento da realização do “mapa cor-de-rosa” por parte de Portugal. E esses acontecimentos passaram a incitar dentro da população a criação de um sentimento de coletividade e consciência nacional. No entanto, ao mesmo tempo fez emergir um nacionalismo radical que veio a caracterizar a política portuguesa nas décadas seguintes e transformou o império em símbolo de dos valores nacional. A segunda característica foi marcada pelas convenções da Conferência de Berlim e no consequente emprenho português para transformar sua dominação formal em efetiva. Se antes a autoridade portuguesa se imponha apenas nominalmente sobre os territórios [2], com o estabelecimento da Conferência de Berlim, a Administração colonial portuguesa se empenha muito mais na sua legitimação territorial. Por determinação desta conferencia, deveria haver uma “effective occupation”. De acordo com o General Act of Berlin Conference princípio da ocupação efetiva afirmou que potências só poderiam adquirir os direitos sobre as terras coloniais se realmente as possuíam. Isto é, se eles tivessem acordos com líderes locais, se a suas bandeiras fossem fixadas , e se fosse instaurado um governo no território de modo a administra-lo com a existência de uma força policial que mantivesse a ordem. [3] Sob esse mesmo discurso de efetivação do domínio territorial, repercutia a ideia de pacificação a qual viria a configurar o período posterior de “pax lusitana” a findar-se com as guerras de independência africana. No entanto, Essa pacificação se constituiria, na verdade, perante efetivo controle militar por parte das autoridades portuguesas. Para tal, após o fim da monarquia em 1910, a administração da nova republica portuguesa estabeleceu um ministério Instituto de Relações Internacionais colonial que permitiu a Portugal a extensão de sua soberania, principalmente com a conquista militar portuguesa sob a Guiné Bissau em 1915. [4] Missão Civilizatória na Guiné- Bissau Entretanto, os esforços para estabelecer controle militar na Guiné requeriam grandes custos financeiros e humanitários. O que obrigava a administração colonial a cobrar altos impostos e taxações. Essa questão também estava presente no General Act de forma que o principio de ocupação efetiva sugeria que o poder colonial poderia fazer uso da colônia economicamente. De mesmo modo, o comércio era controlado pelos portugueses impedindo qualquer atuação por meio de empresa estrangeira, ou individual. A economia colonial permanecia de caráter essencialmente camponês, se baseando na exportação de comodities e na progressiva importação de bens manufaturados advindos da metrópole, o que mais tarde vai gerar uma crise na balança de pagamentos, já que as ondas da revolução industrial não passaram” de fato pela Guiné-Bissau. Além dessa subordinação e exploração econômica da Guiné portuguesa, havia a falta de comprometimento com o desenvolvimento social e econômico e faltas de investimento em infraestrutura. Usufruindo de rudimentares redes de transportes e estradas; nenhum tipo de pesquisa ou crédito para a agricultura; e saúde e educação de baixíssima qualidade. [5]. A soberania estendida se consolidava na forma do chamado “Indigenato Regime”[6], sistema de organização politica que subordinava a maioria de africanos nativos à autoridades locais administradas pela metrópole. Os habitantes dessas comunidades eram classificadas como nativos, costumavam ter língua, cultura e antepassados em comum e dispostos em tribos. Mais comumente, eram denominados como não-civilizados, aqueles que nasceram na província mas não conseguiram alcançar o completo usufruto dos direitos civis e políticos que são atribuídos aos habitantes guineenses. [7] “O ideário português explicitava racismo e etnocentrismo, enfatizando a superioridade de raça e dos valores da civilização ocidental” [8] Instituto de Relações Internacionais De tradição na história de Portugal, esses princípios hierarquizadores e desqualificantes reiteravam a ideia de que os nativos não eram civilizadores e por isso “careciam de uma transformação gradual em seus valores morais, sociais e nos seus costumes para alcançarem a civilização europeia e serem incluídos à nação portuguesa” [9] Ou seja, o respeito ou a simples aceitação do pluralismo cultural não entrava na pauta de Portugal. Além disso, era evidente que a denominação de um individuo como assimilado era incontrolável e arbitrário. [10] Mesmo assim, pelo fato dos assimilados serem em sua maioria “ex-indigenas”, eram tratados como cidadãos de segunda classe, alvos de preconceito racial, econômico e social. Viviam sob arcabouço paternalista de imposição social e cultural de uso deliberado da violência como forma de garantir o trabalho forçado - “Labor Code” [11]- , a coleta de impostos e a ordem publica. Não tinham o “direito de ir e vir”. Eram obrigados a andar com uma permissão para transitar devido ao controle de liberdade de movimento articulado por Portugal como forma de assegurar o domínio sob os habitantes das terras coloniais. Submetidos também a duras condições de trabalho, mesmo quando não fossem trabalhadores forçados sofriam com salários miseráveis, punições físicas e proibição de protestar. Enquanto os portugueses se viam como superiores, civilizados, portadores de uma 'herança sagrada' em que obtiveram predileção divina, por serem civilizados e por serem reconhecidos como povo de Cristo.[12] Ou seja, utilizavam também do cristianismo como base para as ações portuguesas e alternativa a civilização e salvação dos nativos julgados como primitivos e selvagens para atingirem seu objetivo: “An african people speaking only portugueses, embracing Christianity, and as ‘intensely nationalist portuguese as the metropolitan citizens themselves” [13] Se fazia necessária a esses nativos, uma elevação ao status de cidadão português. Para isso, tinham que agir em prol dos interesses da nação portuguesa. Bem como ter alfabetização e fluência no idioma; um emprego assalariado; e bom comportamento atestado por uma autoridade administrativa. A eles – mais tarde – passou a ser requerido o “Diploma de Cidadão” que explicitava a obtenção do status de “Assimilado” como prova da “desafricanização” dos guineenses. Ou seja, era preciso que abrissem mão de sua identidade Instituto de Relações Internacionais africana, se “desafricanizar” para adotar uma condição de assimilado socialmente e ser aceito como cidadão. Além sofrerem repressão cultual, ao serem obrigados a desprezar completamente sua modo de vida, os guineenses sofriam com a fome, analfabetismo, duras condições de trabalho, carência de infraestrutura e investimentos em saúde e educação. Isso, sob a vigência de altos impostos, fez crescer no seio da população o desejo por mudança em relação ao domínio português. Como resposta – em 1952- Portugal muda os status de todas as suas colônias “elevando-as” a posição de províncias e como forma de evitar a independência já aclamada pela ONU. [14] Entretanto, essa alteração no status em nada modificou as necessidades dos colonizados. Para aplacar o crescimento desse sentimento anticolonial. Em 1961, Portugal insistia na recusa em negociar a independência passa a considerar todos os habitantes como cidadãos. Optando mais uma vez por medidas paliativas que alteravam a situação apenas nominalmente em detrimento ao suprimento das demandas sociais mais básicas. Ascendendo ainda mais a onda do nacionalismo anticolonial. Nesse momento, habitantes de Guiné-Bissau se uniam aos de Cabo Verde, sob a liderança de Amilcar Cabral, de modo a criar uma integração nacionalista em forma de partido, Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), para chegar ao fim da presença colonial portuguesa sob quaisquer circunstancias e meios, incluindo guerra. [15] A questão problemática é que esse partido foi essencial para se alcançar a independência, mas após a mesma, o partido não oferecia bases estruturais que garantissem o desenvolvimento. E ainda, o modo pelo qual essa autonomia foi atingida, trouxe consequências com implicações nas atuais crises sofridas pela população. Como único país do oeste africano a utilizar a força para conseguir a independência, sua guerra que seria sucedida pela Paz, é na realidade seguida de 10 anos de crônica instabilidade. Isso porque, o PAIGC não conseguiu contornar o fato do poder colonial nunca ter construído suficientes sistemas político, burocrático e administrativo capazes de estabelecer bases para que um verdadeiro estado pós-colonial pudesse surgir. E até hoje nenhum líder político emergiu no sentido de garantir o estabelecimento de uma democracia política, fazendo com que os índices econômicos e de desenvolvimento social permanecessem Instituto de Relações Internacionais quase que inalterados desde os primeiros anos de independência [16] O país sofre, ainda hoje, de uma pobreza endêmica e de um cenário de intensa e constante violência proporcionados pela militarização do poder político e pela exiguidade de instituições públicas-sociais efetivas. Além disso, com a hierarquia militar ditando as regras, a presença do narcotráfico e de redes terroristas do Magreb, o risco de criminalização do país se torna cada vez maior. Missões de Paz As missões de paz na Guiné-Bissau vão se estabelecer nesse ambiente, como meio de garantir a segurança básica e suprir a carência de institucionalização e democracia. Diante do Ciclo de violência, instabilidade, deterioração das condições de vida e crescimento da vulnerabilidade da segurança alimentar as peacekeeping se inseriam como forma de não sucumbir a esses efeitos e garantir condições para estabilidade e desenvolvimento. Contudo, os esforços da cooperação internacional tem se mostrado como ineficientes, irregulares e com carência de informação tendo impacto insignificante na dinâmica guineense. É certo que se faz necessária atuação externa, visto as questões conflituosas militares e politicas que cercam a população, porém uma coordenação, planejamento e intervenção de longo prazo. Os programas a serem implementados pelos países colaboradores raramente saem do discurso para a prática. Isso devido ao baixo orçamento, imprecisão dos mandatos e conhecimento insuficiente sobre o país. Em termos gerais, as missões de paz acabam por reproduzir a mesma lógica estrutural problemática. Dessa forma, uma análise pós-colonial a respeito das operações de paz contemporâneas permite um relevante questionamento e problematização da reprodução do discurso liberal de paz que permeia os mandatos das missões das Nações Unidas. [17] Ao invés de focar nas praticidades dessas operações como faz a literatura tradicional, essa pesquisa pretende “dessolidificar” esses pressupostos logocêntricos tomados como universais. Tomando um enfoque diferente do ocidental no que tange a trajetória ocidental de não reconhecimento e desvalorização das formas de organização política, econômica e social africana. E ainda, desestabilizando o poder ocidental sobre a linguagem e o discurso que fabrica sujeitos, objetos e identidades de acordo com a sua percepção de mundo. Instituto de Relações Internacionais No contexto contemporâneo de desenvolvimento, repercutem-se as questões da subjetividade e identidade, e o fato de que as Relações Internacionais tem se constituído tradicionalmente e empregado inadequadamente o entendimento dessas significâncias. As RI refletiriam, nessa abordagem cunhada de pós-colonialismo, o aspecto das relações Norte-Sul , e por assim fazer serviria de “ponto de partida e chegada” para a analise de como esses assuntos afetam a posição da África no Sistema Global. O pós-colonialismo nos oferece uma leitura alternativa a essas relações Norte-Sul prometendo reexaminar as limitações das leituras tradicionais, e oferecer uma consideração mais radicalizada da posição do Terceiro mundo dentro da mundo político, apresentado antes como marginalizado e inferior, que repercute a mesma lógica hierarquizadora colonial. [18] Conclusão Portugal, nesse contexto, tem sido bem- vindo como parceiro colaborador da GuinéBissau apesar de não ter uma estratégica de 'peacebuilding' especifica, dando suporte nos setores basilares sociais como saúde e educação. Os lusitanos acreditam ter certa vantagem no que tange a capacidade de proporcionar ajuda eficiente por compartilhar de proximidade linguística e ter conhecimento sobre a disposição social e da administração publica militar advindo do período colonial. Por outro lado, o Brasil vem adotando um discurso diferenciado de ajuda desenvolvimentista. Expondo a necessidade de olhar atentamente as especificidades de cada caso e buscar entender as realidades especificas locais. A diplomacia brasileira de atuação foca seus objetivos também em segurança, defesa e luta contra o trafico, mas atenta para as áreas da saúde, educação e pequenos projetos econômicos e para a criação de uma economia estrutural e desenvolvimento de atividades sociais. Ou seja, preza por uma estratégia de longo termo que viabilize a promoção do desenvolvimento autônomo. “Because it is an emerging developing country, and because it has know-how and experience in agricultural-based economic structures, in addition to other peacebuilding experiences, such as Haiti, Brazil’s intervention and the type of partnerships it develops are welcomed in Guinea-Bissau and may become a positive influence in the country’s development if reinforced financially and applied to other areas of intervention” [19] Instituto de Relações Internacionais Todavia, apesar de o Brasil expor suas próprias percepções e sua vantagem multicultural, de uma maneira ou de outra, repercute o mesmo discurso internacional à medida que ocupa papel de 'destaque' nas Nações Unidas. Nesse sentido, sugerimos, com base na critica póscolonialista, esse questionamento, de até que ponto o Brasil se apresenta como uma nova possiblidade, um novo discurso em detrimento a ocidental colonizadora. Se o mesmo é capaz de exercer um modo alternativo de intervenção que não reproduza o discurso de depreciação da diferença encontrado durante a colonização de Guiné-Bissau. Dessa forma, esse trabalho, por adotar perspectiva pós-colonial além de permitir a problematização do entendimento formal a respeito das Missões de paz, levanta esse questionamento que cria bases para abertura de um novo tema para pesquisa futura. Referências 1. HERNANDEZ, L. A África na Sala de Aula: Visita à história contemporânea. 2005. São Paulo, Editora Selo Negro, 503-570 2. PINTO, J. T. A Ocupação Militar de Guiné. 1936. Lisboa. p.10 3. GENERAL ACT OF THE BERLIM CONFERENCE ON WEST ÁFRICA. Declaration relative to the essential conditions to be observed in order that new occupations on the coasts of the African continent may be held to be effective. Article 35. 26 February 1885. Signed by the representatives of the United Kingdom, France, Germany, Austria, Belgium, Denmark, Spain, the United States of America, Italy, the Netherlands, Portugal, Russia, SwedenNorway, and Turkey (Ottoman Empire). 4. MENDY, P. K. Portugal’s civilizing mission in colonial Guinea-Bissau: rhetoric and reality. The International Journal of African Historical Studies, vol. 36, no. 1, special edition “Colonial encounters between Africa and Portugal”, p. 42. 5. Idem p. 49-50 6. O’LAUGHLIN, B. 2002a. Class and the customary: The ambiguous legacy of the Indigenato in Mozambique, African Affairs, 99: 5-42. 7. Decree No.3168, 31 May 1917, cited in A.H Wilensky, Trends in Portuguese Overseas Legislation for Africa .Braga, Portugal, 1971. p.54 8. Idem n.1 p.509 Instituto de Relações Internacionais 9. Idem n.1 p.514 10. Idem n.4 p. 52 e Idem n.1 p.515 11. Regulamento de Transito, Fixação e Deslocação dos Indígenas, Boletim Oficial, 5, (1934), Article I. p.42. 12. Idem n.1 13. Idem n.4 p.55 14. GUINEA-BISSAU: IN NEED OF A STATE. International Crisis Group: working to prevent conflict worldwide. Africa Report N°142 , 2 July 2008 15. DAVIDSON, Basil. The Libertation of Guiné. Harmondsworth. United Kingdon, 1969, p.32 16. Idem n.14 17. MORENO, M. BRAGA, C & SIMAN, M. Trapped Between Many Worlds: A Postcolonial Perspective on the UN Mission in Haiti (MINUSTAH), International Peacekeeping, 2012, 19:3, 377-392 18. PAOLINI, A.J. Navigating Modernity: Postcolonialism, Identity & International Relations. Critical Perspectives on World Politics. United States of America, 1999. 19. ROQUE, S. Peacebuilding In Guinea-Bissau: A Critical Approach. Peace Studies Group / Centre for Social Studies, University of Coimbra, May 2009