DEFESA DE TESE
BOIA, Mônica da Silva. O ensaio de María Zambrano
no
contexto
da
modernidade.
Rio
de
Janeiro,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de
Letras, 2011. Tese de Doutorado em Letras Neolatinas.
Área de Concentração em Estudos Literários Neolatinos.
Opção em Literaturas Hispânicas.
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________________
Professora Doutora Silvia Inés Cárcamo de Arcuri (UFRJ) – Orientadora
__________________________________________________________________
Professora Doutora Ester Abreu Vieira de Oliveira (UFES)
__________________________________________________________________
Professor Doutor Marco Lucchesi (UFRJ)
__________________________________________________________________
Professor Doutor Júlio Dalloz (UFRJ)
__________________________________________________________________
Professora Doutora Ana Isabel Guimarães Borges (UFF)
__________________________________________________________________
Professora Doutora Elena Palmero González (Suplente – UFRJ)
__________________________________________________________________
Professora Doutora Mirtis Caser (Suplente – UFES)
Defendida a Tese de Doutorado.
Conceito:
Em:
/
/ 2011.
2
O ENSAIO DE MARÍA ZAMBRANO NO CONTEXTO DA
MODERNIDADE
por
Mônica da Silva Boia
Departamento de Letras Neolatinas
Tese de Doutorado em Letras Neolatinas
(Área de Concentração em Estudos
Literários
Neolatinos.
Opção
em
Literaturas Hispânicas) apresentada ao
Conselho dos Cursos de Pós-Graduação da
Faculdade de Letras da Universidade
Federal do Rio de Janeiro como quesito para
a obtenção do Título de Doutora.
Orientadora: Professora Doutora Silvia Inés
Cárcamo de Arcuri.
U F R J
1º Semestre de 2011
3
Para minha família,
Aos meus pais, Erineuto (in memoriam) e Aidê,
ao meu irmão Leonardo e
aos meus avós José (in memoriam) e
Atenísia (in memoriam)
pelo amor, pelo apoio e pelas conversas que
me indicaram os possíveis rumos da
minha vida e da minha carreira.
4
AGRADECIMENTOS
À minha família,
pela compreensão e pelo carinho constantes nos momentos de alegria
e de dificuldade. Sem dúvida, os meus pais, Erineuto (in memoriam) e Aidê e o meu
irmão, Leonardo, desempenharam um papel fundamental durante a realização dessa
pesquisa, por meio da qual tivemos a oportunidade de crescer juntos e trilhar o
caminho da criação, do conhecimento e da cumplicidade. Aos meus avós (in
memoriam) e tios pelo amor incondicional e pela preocupação com o meu bemestar e com a minha felicidade.
A todos os amigos,
próximos ou distantes sempre presentes em minha trajetória, que, de
alguma forma, colaboraram para o término desse trabalho.
À minha orientadora,
Silvia Inés Cárcamo de Arcuri, Doutora e amiga, que acompanhou
todo o meu percurso acadêmico. Sua confiança no meu trabalho, competência e
generosidade conduziram-me a descobrir o espanhol e, em especial, os encantos da
literatura. Depois de sua colaboração na escritura da minha Dissertação de
Mestrado sobre A construção do sujeito no discurso autobiográfico de Miguel
de Unamuno (1998), agradeço à minha grande professora por me orientar
novamente, agora, nessa Tese de Doutorado.
A todos os Professores,
que comigo gentilmente compartilharam o seu conhecimento e
consolidaram a minha formação acadêmica.
5
À Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
na figura de todos os seus funcionários que, todo o tempo,
procuraram me ajudar em tudo o que fosse necessário.
À Academia Militar das Agulhas Negras,
instituição onde trabalho, um muito obrigada especial por todo o apoio que o
Comando, a Divisão de Ensino, o Chefe da Seção de Ensino “G” e o Chefe da
Cadeira de Espanhol me deram, para que eu pudesse realizar e concluir o meu
Doutorado. Agradeço também a todos os Oficiais da Cadeira de Espanhol,
companheiros de lavor e inestimáveis amigos, pelo entendimento e pela
solidariedade nos momentos em que mais precisei de sua ajuda nas substituições ou
trocas de aulas ou ainda em outras missões. A todos, o meu mais sincero afeto e
gratidão.
À Associação Educacional Dom Bosco,
por todo o incentivo e auxílio econômico.
6
BOIA, Mônica da Silva. O ensaio de María Zambrano no contexto da
modernidade. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade
de Letras, 2011. 248 fls. Tese de Doutorado em Letras Neolatinas. Área de
Concentração em Estudos Literários Neolatinos. Opção em Literaturas
Hispânicas.
RESUMO
A importância do ensaio de María Zambrano no
contexto da modernidade. De uma perspectiva diacrônica,
contemplam-se, entre outros, alguns dos seus textos mais
sobressalentes: “Por qué se escribe” (1934 – Revista de
Occidente), “La reforma del entendimiento español” e
“Misericordia” (1937 e 1938, respectivamente – Hora de
España), La confesión: género literario y método (1943) e
El hombre y lo divino (1955), a fim de representar o
desenvolvimento cronológico e intelectual do pensar
filosófico da ensaísta malaguenha. Essa organização pretende
evidenciar as transformações que a escritura zambraniana
adotou ao longo do tempo, sob a influência de vivências tão
marcantes como a Guerra Civil Espanhola e o extenso exílio
de 45 anos, que se notabilizou, para a autora, como uma
experiência metafísica única.
A partir de uma necessidade visceral e irrenunciável
pelo desejo de escrever e um compromisso político e social
entusiasta a favor da República, María Zambrano assume a
postura ética e estética de uma intelectual moderna, que
analisa o pensamento espanhol e ocidental, reinterpretando
uma proeminente tradição cultural e artística nas figuras
literárias clássicas de sua nação, como Cervantes e Galdós e,
também, pensadores de outros países, a partir de parâmetros
conceituais referentes ao trágico moderno. A autora, em seu
discurso ensaístico, valoriza, como uma rejeição dos valores
impostos por uma modernidade que privilegia o exclusivismo
do triunfo, da razão e do coletivo, o re(encontro) do indivíduo
degredado e perdido no mundo e do mundo, como uma
realidade e uma metáfora de sua própria vida.
O sentido confessional autobiográfico dos escritos
zambranianos deixa-nos claro a interpenetração existente
entre as experiências contingenciais da ensaísta e seu ofício
de pensadora filo-poética, que revelam um sujeito em
construção, que gravita entre os limites misteriosos e
imprecisos da realidade e da ficção, na medida em que lê a
história e a individualidade. A dádiva de criar do artista
outorga ao ser humano a possibilidade de reconstrução
contemporânea do sentimento do divino, como resposta a
uma aspiração primordial de transcendência.
Palavras-chave: Ensaio. Modernidade. Trágico.
7
BOIA, Mônica da Silva. El ensayo de María Zambrano en el contexto de la
modernidad. Río de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Facultad de
Letras, 2011. 248 hjs. Tesis de Doctorado en Letras Neolatinas. Área de
Concentración en Estudios Literarios Neolatinos. Opción en Literaturas
Hispánicas.
RESUMEN
La importancia del ensayo de María Zambrano en el
contexto de la modernidad. De una perspectiva diacrónica, se
contemplan, entre otros, algunos de sus textos más
sobresalientes: “Por qué se escribe” (1934 – Revista de
Occidente), “La reforma del entendimiento español” y
“Misericordia” (1937 y 1938, respectivamente – Hora de
España), La confesión: género literario y método (1943) y
El hombre y lo divino (1955), a fin de representar el
desarrollo cronológico e intelectual del pensar filosófico de la
ensayísta madrileña. Esa organización pretende evidenciar las
transformaciones que la escritura zambraniana adoptó a lo
largo del tiempo, bajo la influencia de vivencias tan
marcantes como la Guerra Civil Española y el extenso exilio
de 45 años, que se notabilizó, para la autora, como una
experiencia metafíscia única.
A partir de una necesidad visceral e irrenunciable por
el deseo de escribir y un compromiso político y social
entusiasta a favor de la República, María Zambrano asume la
postura ética y estética de una intelectual moderna, que
analiza el pensamiento español y occidental, reinterpretando
una proeminente tradición cultural y artística en las figuras
clásicas de su nación como Cervantes y Galdós y, también,
pensadores de otros países, a partir de parámetros
conceptuales referentes a lo trágico moderno. La autora, en su
discurso ensayístico, valoriza, como un rechazo de los
valores impuestos por una modernidad que privilegia el
exclusivismo del triunfo, de la razón y de lo colectivo, el
(re)encuentro del individuo degredado y perdido en el mundo
y del mundo, como una realidad y una metáfora de su propia
vida.
El sentido confesional autobiográfico de los escritos
zambranianos nos deja claro la interpenetración existente
entre las experiencias contingenciales de la autora y su oficio
de pensadora filo-poética, que revelan un sujeto en
construcción, que gravita entre los límites misteriosos e
imprecisos de la realidad y de la ficción, en la medida en que
lee la historia y la individualidad. La dádiva de crear del
artista otorga al ser humano la posibilidad de reconstrucción
contemporánea del sentimiento de lo divino, como respuesta
a una aspiración primordial de transcendencia.
Palabras clave: Ensayo. Modernidad. Trágico.
8
BOIA, Mônica da Silva. María Zambrano´s essay in the context of modernity.
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro Federal University, Language College, 2011. 248
pages. Doctorate Thesis in Romance Language. Area of concentration in Romance
Literary Studies. Option in Spanish Literatures.
ABSTRACT
The importance of María Zambrano’s essay in the
context of modernity. From a diachronic perspective, include,
among others, some of their noteworthy texts: “Por qué se
escribe” (1934 – Revista de Occidente), “La reforma del
entendimiento español” y “Misericordia” (1937 and 1938,
respectively – Hora de España), La confesión: género
literario y método (1943) and El hombre y lo divino
(1955). This organization aims at presenting the
transformations which the Zambranian writing adopted over
the course of time based on such remarkable experience as
the Spanish Civil War and the long exile of 45 years, which
became known to the author as a metaphysical experience
unique.
From a deep and indispensable need for the desire of
writing and from a political and social exciting commitment
in favor with the Republic, María Zambrano takes on an
ethical and aesthetic posture of a modern intellectual who
analyses the Spanish and occidental thought re-interpreting a
prominent cultural and artistic tradition of literay classical
figures like Cervantes and Galdós and, also, thinkers from
other countries, from conceptual parameters for the modern
tragic. The author, on her essay speech, values, as a rejection
of the values imposed by a modernity which favors the
exclusivity of the triumph, the reason and the collective, the
finding again of the individual annihilated and lost in the
world and the world as a reality and a metaphor of her own
life.
The confessional autobiographic sense of the
Zambranian writings make the interpretation existing
between the author’s own experience and her occupation of
philo-poet thinker clear. It reveals a person in construction
and gravitates between the myterious and imprecise limits of
reality and fiction in that reads the history and individuality.
The gift of the artist to create grants human beings the
possibility of reconstruction of the contemporary sense of the
divine as a response to the aspiration of transcendence.
Keywords: Essay. Modernity. Tragic.
9
“[...] en el ensayo se comienza insistiendo en el valor de la ignorancia [...]
como punto de partida y de llegada del filosofar y en la convicción de que lo sabido
no clausura el saber porque la esencia de la actividad filosófica radica en la actitud
de búsqueda más que en el resultado obtenido.”
CHAMIZO DOMÍNGUEZ, J. P., 1984, pp.17, 18.
10
SINOPSE
O ensaio de María Zambrano no contexto da
modernidade. A Revista de Occidente, a revista
Hora de España, Filosofía y poesía, La confesión: género literario y método e El hombre y
lo divino como uma representação da evolução
cronológica e cognoscitiva do pensamento filosófico zambraniano. O exílio como uma experiência metafísica singular. A crítica da tradição
literária e cultural espanhola e o conceito do trágico moderno. A presença da confissão autobiográfica no discurso ensaístico e a leitura da história e do eu. A recriação contemporânea do sentimento do divino no homem e a vontade de
transcendência.
11
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO
...13
2. O ENSAIO COMO UMA ESCRITURA DO SÉCULO XX
...25
2.1. A modernidade em crise e o discurso ensaístico
...31
2.1.1. A recepção da época moderna na cultura espanhola
...35
3. UM CONCEITO DIFERENTE DO TRÁGICO
...37
3.1. A representação do herói trágico no mito do escritor
...39
3.2. A razão poética como método de reconciliação
...40
4. MARÍA ZAMBRANO NA REPÚBLICA E NA GUERRA CIVIL ...44
4.1. Uma pensadora na Revista de Occidente
...59
4.2. Dimensão reflexiva e política em Hora de España
...83
4.2.1. Revolução, modernidade e reencontro com o passado
...86
5. DIÁLOGOS COM A TRADIÇÃO ESPANHOLA
...94
5.1. Cervantes
...95
5.2. Galdós
...108
6. UMA FALA COM A CONTEMPORANEIDADE: Cernuda
...140
7. A EXPERIÊNCIA INTELECTO-EMOCIONAL DO EXÍLIO
...159
7.1. O desamparo do homem
...160
7.2. A poesia como uma forma de pensar o trágico
...163
8. A CONFISSÃO AUTOBIOGRÁFICA NO ENSAIO
...170
8.1. A escritura como simulacro
...171
8.2. A confissão e o leitor
...176
12
9. A TRANSCENDÊNCIA
...194
9.1. O binômio originário homem-sagrado
...196
9.2. O homem moderno e suas relações com o divino
...199
10. CONCLUSÕES
...208
11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
...222
13
1. INTRODUÇÃO
A presente tese constitui uma extensão de alguns temas discutidos na
Dissertação de Mestrado em Literatura Espanhola, que defendemos na própria
Universidade Federal do Rio de Janeiro no ano de 1998 e que teve o título de A
construção do sujeito no discurso autobiográfico de Miguel de Unamuno,
escritor espanhol basco, nascido em 1864 e integrante da geração de 1898. Esse
trabalho também teve a orientação da Professora Doutora Silvia Cárcamo, que
compõe o corpo docente dessa mesma instituição.
Naquela época do mestrado, o objetivo da nossa pesquisa foi estudar a
construção de um sujeito ficcional trágico dentro da obra unamuniana, a partir do
discurso autobiográfico. A conexão que intencionamos fundar entre os escritos
autobiográficos de Miguel de Unamuno e os sucessos históricos do final do século
XIX e do princípio do século XX baseou-se no fato de que o autor evidenciava, na
obra de arte, uma insatisfação do homem na cultura européia e, sobretudo, espanhola. Na verdade, entendemos que a autobiografia, na visão de um breviário da
existência humana convertido em matéria literária, concebe a vida, a história e a
arte como capazes de desempenhar a missão de renovar perpetuamente o encanto
enigmático da criação.
De maneira semelhante ao que pretendemos fazer agora, a nossa pesquisa
de mestrado formou-se a partir de três pilares de sustentação, que consideramos
intimimamente ligados. Foram eles: a autobiografia, o trágico e a modernidade.
As obras selecionadas para a abordagem do tema da Dissertação de
Mestrado, A construção do sujeito no discurso autobiográfico de Miguel de
Unamuno, procuraram abranger a heterogeneidade artística do referido escritor
através de um corpus integrado por três obras: Teresa (poesia – 1924), Diario
íntimo (diário – composto por cinco cadernos recopilados, com uma primeira
publicação póstuma em 1970) e Cómo se hace una novela (romance – 1926, em
francês; 1927, em espanhol). Nessas três obras, a intertextualidade, forte
característica das produções modernas, estava presente de forma intensa.
Teresa apresentava como intertexto a obra de Gustavo Adolfo Bécquer, um
dos grandes nomes do romantismo espanhol. A interferência romântica de
Bécquer na literatura moderna unamuniana intenciona sublinhar uma crítica
14
mordaz do escritor basco ao movimento literário do romantismo. Além disso, a
autobiografia pôde ser observada de uma maneira interessante, em vista de que
Miguel de Unamuno desdobra-se em outro personagem chamado Rafael, poeta
romântico desconhecido apaixonado pela falecida Teresa, a quem lhe dedica esse
livro de poesias, que leva o nome da amada.
Em Diario íntimo, cativou-nos a atenção a reflexão de Miguel de Unamuno
com referência aos seus próprios escritos e à identidade de autor construída por
ele mesmo ao longo do tempo, da qual já se percebe escravizado artisticamente.
Na obra, abordam-se, o papel do escritor perante o seu público e a conhecida
problemática das angústias da efemeridade da vida terrena, por meio das copiosas
remissões às passagens bíblicas. Os temas veiculados são originários de uma
profunda crise espiritual que experimentou o autor nos últimos anos do século
XIX, a qual modificou o rumo da sua vida e a sua concepção do mundo.
Finalmente, em Cómo se hace una novela, Miguel de Unamuno, através da
autobiografia, propõe uma renovação do romance, que deixará de ser uma obra
estruturada com princípio, meio e fim, para ceder lugar à uma obra aberta, onde o
leitor possa desempenhar um papel importante na criação literária e na qual o
mesmo se reconhecerá como um indivíduo com poder de transformação dentro da
própria história contada. A participação na configuração da obra literária
transforma, sem dúvida, o leitor, entendido artisticamente igual ao escritor como
uma entidade ficcional, em pessoa humana, vital e concreta, que abandona a
recepção pura e simples da mensagem e aceita o diálogo da construção da obra de
arte.
A pesquisa contou com o suporte teórico de autores que se ocuparam da
autobiografia, como uma forma de expressar a cultura moderna e o conceito do
trágico dentro dessa mesma cultura. Essas observações são relevantes, pois
queremos ressaltar que, nessa Tese de Doutorado, iremos revisitar alguns dos
pressupostos teóricos que utilizamos na Dissertação de Mestrado evidentemente
com um enfoque diverso para o estudo do ensaio de María Zambrano.
Assim, na Dissertação de Mestrado, a autobiografia foi discutida por
teóricos como Philippe Lejeune, Paul De Man, Georges Gusdorf e Nora Catelli,
que a tratam como um espaço de criação ficcional e simbólica. O conceito do
15
trágico foi abordado por pensadores como Nietzsche, Rafael Argullol e o próprio
Unamuno, os quais nos possibilitaram a compreensão do conflito e do estado de
impotência frente à circunstância histórica, instaurados no momento finissecular.
Miguel de Unamuno parte de um sentimento trágico experimentado pela
modernidade para reagir inteligentemente aos conceitos florescentes de confiança
inquebrantável no cientificismo, no progresso e na razão. Com referência à obra
unamuniana, o eu, no papel de sujeito da enunciação, domina o texto regido por
um espaço autobiográfico. Desse ponto de vista, a relação determinante entre o eu
autobiográfico e a modernidade literária permite-nos traçar uma identidade entre
escritura e autobiografia, onde há com um impacto deveras negativo uma tomada
de consciência da imanência ontológica em contraposição à transcendência
teológica que, durante muito tempo, havia povoado de modo inconteste a
consciência do homem.
A nossa condição dentro da modernidade é trágica, pois a perda da fé em
um tempo infinito e maravilhoso, fomentado na Idade Média, fez-nos cair na
trágica realidade de que somos seres para o nada, condenados a desaparecer para
sempre. Miguel de Unamuno, na verdade, utilizou uma crise religiosa pessoal,
com o objetivo de justificar, por meio da ficção, uma mudança de pensamento na
história. É, de fato, o uso ficcional de sua crise religiosa, que nos autoriza afirmar
que o escritor basco pretendia ser o centro de atenção da sua própria produção
artística. Através do recurso autobiográfico, o autor pôde transformar-se em uma
espécie de herói trágico moderno com uma missão ética na sociedade e com o
objetivo de se imortalizar pela palavra artística. Os mitos dos deuses Dionísio e
Apolo desenvolvidos pela tragédia grega trazem-nos uma lição muito importante
na construção do trágico moderno, que é o uso da máscara: o autor é ele mesmo e
outro(s) simultaneamente; é portador de uma máscara ou máscaras, tendo o poder
da metamorfose, e isso é essencial em qualquer forma de arte. É imperativo que o
a(u)tor transforme-se no ser que representa. O autor-ator tem orgulho de se sentir
como um ser supremo, pois o teatro, que é o canal mais tradicional e adequado
para a representação da tragédia, atribuiu aos atores o privilégio dos deuses de se
transmutar em formas e pessoas diversas. A autobiografia aborda à miude o
mistério da alteridade, já que somos, em última instância, uma multidão
16
constituída por um corpo e por uma mentalidade influenciados pela história de
variados lugares e povos. Todo sujeito e texto autobiográficos representam uma
comunidade social, testemunha de um tempo e de um espaço vital. No entanto,
essa capacidade de se transmutar em outros faz com que o autor-ator se desligue
da velocidade natural do tempo e vislumbre como inviável igualar-se a um Deus,
sendo tal constatação a causa de um sofrimento terrível e interminável. Esse
sofrer verdadeiramente a existência faz parte da missão do ser humano para
descobrir a sua identidade e encontrar o real sentido da sua vida, apesar de
estarmos fadados a buscar respostas para o que se estabeleceu como indecifrável.
Esse é o fundo trágico da existência da humanidade, constante em todas as formas
de cultura, mediatizada pela consciência do homem de sua insignificância, de sua
solidão e de sua impotência frente ao futuro.
O estudo realizado comprovou plenamente as hipóteses de que, em Miguel
de Unamuno, triunfa a onisciência sobre uma composição esfacelada somente na
aparência. O trânsito entre o eu e o outro em Unamuno é um fracasso da mesma
forma que a sonhada modernidade, posto que não há como lutar contra o
progresso e os seus males, da mesma maneira que não há como lutar consigo
mesmo: os dois são irreversíveis e invencíveis. Assim sendo, a obra unamuniana
caracteriza-se também por demonstrar que o artista já almejava repensar as suas
identificações com o mundo e com a arte. As obras de Miguel de Unamuno são
caracterizadas por formas estilísticas paradigmáticas, que possuem o intuito de
consolidar uma imagem e um modo de escrever muito peculiares ao autor, pois a
figura unamuniana de escritor literário ao lado do desejo constante de vencer o
tempo e de conseguir a imortalidade pela palavra artística apresentava,
igualmente, o objetivo de polemizar a condição trágica do homem frente à crise
do fim do século XIX e do princípio do século XX, onde se constatou o inegável
fracasso da modernidade.
Pretendemos deixar claro, no Mestrado, que o intertexto é o eco de um
mundo de leituras e, no escritor, a leitura é o indicador mais fiel da formação de
uma consciência. O mundo interior do artista e o mundo externo da história
apresentam transformações constantes, já que se prefiguram por uma ilusão, uma
interpretação que fazemos por meio de inferências obtidas por experiências de
17
vida referenciais. Se formos capazes de mudar nossa interpretação pessoal,
interna, e histórica, externa, conseguiremos descobrir universos completamente
novos e inusitados. Para Miguel de Unamuno, autobiografar-se era o mesmo que
relatar a história, na qual o homem espanhol deseja encontrar a sua filiação, a sua
origem. O sentimento da solidão do artista em seu ofício, abordado tantas vezes
por Unamuno, concorreu com as mesmas raízes do sentimento religioso
essencialmente importante em sua produção literária, no sentido de que nos
contemplamos como órfãos, que possuem a obscura consciência de que fomos
extirpados de Alguém ou Algo, cujo profundo conhecimento nos foi denegado. A
obra autobiográfica unamuniana, que utiliza a religião como filão inventivo,
empreende concomitantemente uma busca, uma fuga e um regresso em direção ao
Todo na tentativa de restabelecer os laços que uniam o homem ao Grande Criador
de toda criação, pois não há nada que fascine mais o escritor que tal poder de
conceber, engendrar.
Essas considerações iniciais acerca da nossa pesquisa de Mestrado
pareceu-nos assaz pertinente, pois já naquele tempo, há um pouco mais de dez
anos atrás, uma ideia de tema para iniciar um projeto de Curso de Doutorado
começou a se revelar. Entre os teóricos selecionados para a pesquisa no Mestrado,
começamos a ler com interesse a ensaísta espanhola María Zambrano, que nasceu
em Vélez-Málaga, em 1904 e faleceu em Madri, em 1991. A ensaísta foi discípula
de Ortega y Gasset e lecionou nas Universidades de Madri (Espanha), Morelia
(México) e Havana (Cuba). Esteve durante 45 anos exilada, onde publicou três
das obras que iremos estudar, Filosofía y poesía (1939), La confesión: género
literario y método (1943) e El hombre y lo divino (1955). Em 1984, retornou a
Espanha, para a cidade de Madri, que, como todo o país, gradativamente, foi
reconhecendo a importância da autora para a cultura nacional, visto que há uma
produção crítica bastante significativa na Espanha sobre a obra de María
Zambrano. Podemos destacar alguns fatos relevantes que comprovam claramente
o prestígio da autora no círculo literário espanhol como a publicação, em 1966, do
artigo de J. L. Aranguren “Los sueños de María Zambrano” na Revista de
Occidente, onde se inicia uma valorização do mérito da obra zambraniana dentro
do seu próprio país. Nesse mesmo ano, o texto de J. A. Valente, intitulado “María
18
Zambrano y el sueño creador”, publicado na revista Ínsula (núm. 238), contribuiu
no despertar de uma consciência na Espanha em torno a María Zambrano e do
destaque da sua escritura como uma leitura do pensamento e da cultura espanhola.
Em 1981, concederam-lhe o Prêmio “Príncipe de Asturias” de Comunicação e
Humanidades pela Fundação de mesmo nome. A revista Los Cuadernos del
Norte dedica à figura e à obra de María Zambrano um número especial (núm. 8),
no qual se recolhe, junto a outras e importantes colaborações, o testemunho e o
reconhecimento do filósofo E. M. Cioran. Em 1984, lança-se um número dos
Cuadernos Hispanoamericanos em homenagem à escritora. Em 1987, aparece
um amplo dossiê de documentos e textos de María Zambrano na revista
Anthropos. Nesse mesmo ano, inaugurou-se a Fundação María Zambrano. Em
1988, enfim, brindam à autora com o “Premio Cervantes de Literatura”. A nosso
ver, sem dúvida, todas essas homenagens justificam a relevância da escolha dessa
ensaísta espanhola para uma Tese de Doutorado, sobretudo, no Brasil, onde
muitos não conhecem a figura e a obra de María Zambrano.
Na presente tese, propomo-nos a analisar, a partir de uma perspectiva
diacrônica, alguns dos ensaios de María Zambrano, relacionando o gênero
ensaístico com dois pilares de sustentação fundamentais que, como vimos,
também embasaram a nossa dissertação: a modernidade e o trágico, os quais
representariam uma configuração do pensamento filosófico da autora articulado à
uma leitura da história e de uma tradição literária espanhola no século XX.
Evidentemente, as nossas indagações iniciais girarão em torno dos alicerces de
apoio que estabelecemos para levar a termo a pesquisa. Obedecendo a essa
orientação de estudo, perguntamos: os ensaios filosóficos zambranianos adquirem
novas características ao longo de sua criação artística? Se os textos da autora, na
verdade, vão sofrendo transformações, como essas modificações ocorrem? Essas
mudanças realmente respondem à uma vivência particular da autora em seu
tempo? Existe a presença da ideia do trágico nesses escritos, que corresponderia a
uma condição do homem dentro do contexto da modernidade? Por questões de
delimitação do recorte de análise e para que consigamos atender a essa abordagem
ao
longo
do
tempo
como
estratégia
de
investigação
metodológica,
19
estabeleceremos períodos capitais de criação artística da escritora, que,
claramente, acompanharão momentos sobressalentes da história da Espanha.
Na medida em que ansiamos trilhar os caminhos de juventude, amadurecimento e auge artístico-criativo de María Zambrano, precisaremos ater-nos a ensaios por nós considerados de maior envergadura para a linha de estudo escolhida.
Dessa forma, apresentaremos ordenadamente os ensaios que serão lidos como
vertentes de análise e direção para o nosso estudo. O sumário dessa tese procurou
mostrar uma linha didática de investigação, que, introdução à parte, apresenta capítulos, que associam fortemente o ensaio, a modernidade e o trágico, além de enfocar, de maneira ampla, escritos que acreditamos serem vitais para o desenvolvimento do nosso pensamento. São eles: “Por qué se escribe” (Revista de
Occidente, Madri, t. XLIV, n.º 132, junho 1934, pp. 318-328), “La reforma del
entendimiento español” (Hora de España, Valência-Barcelona, n.º IX, setembro
1937, pp. 13-28), “Misericordia” (Hora de España, Valência-Barcelona, n.º XXI,
setembro 1938, pp. 29-52), Filosofía y poesía (México, 1939), La confesión:
género literario y método (México, 1943) e El hombre y lo divino (México,
1955). É óbvio que outros textos de María Zambrano irão compor, à maneira de
suporte teórico e discursivo, os capítulos desse trabalho, já que esse material foi
lido, estudado e contribuiu, portanto, para iluminar o nosso entendimento com relação aos ensaios condutores do tema da tese.
Durante a sua juventude, María Zambrano viveu em Madri, onde concluiu
a sua formação acadêmica e conseguiu publicar os seus primeiros trabalhos filosóficos. Ao lado do lançamento do seu primeiro livro em 1930, Horizonte del liberalismo, a ensaísta espanhola escreveu, nesse tempo, com regularidade, haja
vista os seguidos anos de publicação, para algumas revistas como Los Cuatro Vientos (1933), Cruz y Raya (1933-1934), Revista de Occidente (1933-1934),
Cuadernos de la Facultad de Filosofía y Letras (1936), El Sol (1936) e Hora
de España (1937-1938).
Após dissertarmos sobre as questões do discurso ensaístico, a problemática da modernidade e o sentimento do trágico moderno no segundo e no terceiro
capítulo da tese, “O ensaio como uma escritura do século XX” e “Um conceito diferente do trágico”, respectivamente, no capítulo seguinte, “María Zambrano na
20
República e na guerra civil”, faremos alusão ao dramático conflito espanhol que
tão categoricamente influenciou a vida da autora malaguenha. Nesse mesmo capítulo, procuraremos discorrer sobre a importância das revistas literárias espanholas
do início do século XX, que propiciaram a diversos escritores, entre eles, María
Zambrano, desenvolver um pensamento vanguardista de notáveis inovações estéticas, que, mais tarde, associou-se a um compromisso ético de refletir e lutar pela
reconquista de um espaço legitimamente republicano e democrático usurpado
pelo golpe de estado perpetrado pelas tropas franquistas em 1936. Na publicação
da Revista de Occidente, tomaremos o ensaio “Por qué se escribe” (Madri, t.XLIV, n.º 132, junho 1934, pp.318-328), primeiro texto filosófico de María Zambrano, o qual revela uma nascente produção da autora situada antes de 1936, precedendo, portanto, o nefasto advento bélico que arrasou a estrutura da Espanha e a
vida dos espanhóis. Antes, porém, de analisar “Por qué se escribe”, estudaremos
dois outros ensaios precedentes escritos por María Zambrano também na Revista
de Occidente, cujos títulos são “Hoffmann: «Descartes»” (resenha, Madri, t.XXXIX, n.º 117, março 1933, pp.142-145) e “Robert Aron y Arnaud Dandieu. «La
Révolution Nécessaire»” (resenha, Madri, t.XLIV, n.º 131, maio 1934, pp.209221). Acreditamos que esses dois outros textos delineam alguns dos pressupostos
mais sobressalentes do pensamento estético zambraniano, antecipando a construção de “Por qué se escribe”, cujas ideias irão se transmutando e aperfeiçoando ao
longo de sua obra literária ensaística.
Sem lugar a dúvidas, a contribuição de María Zambrano na Revista de
Occidente a torna ainda mais conhecida do público leitor e revela uma formação
erudita, na qual já se pressente a constituição de uma filosofia singular em torno
do poético, sustentada na reflexão da crise do pensamento ocidental e da política
social espanhola.
No quinto capítulo, “Diálogos com a tradição espanhola”, discutiremos
como o período de 1937 e 1938 inclui os duros anos de conflito na Espanha, onde
a crise do país coincide dramaticamente com os problemas políticos e sociais
europeus. Nessa época, observaremos uma significativa escritura de ensaios para
a revista Hora de España, que demonstrarão o desassossego e a reflexão
inteligente e desalentadora de María Zambrano, com respeito às desventuras
21
vividas pelo seu país de origem a partir da construção de textos que manifestam
um olhar filosófico-crítico sobre a história e se apóiam na tradição cultural
literária espanhola, que, no nosso caso, de acordo com os textos escolhidos, estará
representada pelas figuras de Miguel de Cervantes e Benito Pérez Galdós. Para
esses anos específicos de criação estética da autora, selecionaremos os ensaios
“La reforma del entendimiento español” (Valência-Barcelona, nº IX, setembro
1937, pp.13-28) e “Misericordia” (Valência-Barcelona, n.º XXI, setembro 1938,
pp.29-52) da revista Hora de España. Dentro desse capítulo, ainda, verificaremos
a relação entre Benito Pérez Galdós e Luis Buñuel, visto que este cineasta
espanhol produziu Nazarín (1958) e Tristana (1970), filmes baseados em duas
obras importantes do escritor canário com o mesmo nome.
O sexto capítulo, “Uma fala com a contemporaneidade”, examinará o
poema “Díptico español” do poeta sevilhano Luis Cernuda, que compõe a obra
Desolación de la Quimera, publicada em 1962. Essa análise servirá como outro
ponto de vista a respeito da figura de Galdós, que além da Espanha, de suas
tradições e crenças, aparece, no texto, como um exemplo desse passado de glória
espanhol.
O sétimo capítulo irá abordar o ano de 1939, onde María Zambrano
publica Filosofía y poesía, obra que estabelece relações com o exílio voluntário
da ensaísta iniciado justamente nessa data, no qual, apesar da distância em sua
estada por diversos países da América e da Europa, como México, Porto Rico,
Cuba, Roma e Suíça, sempre revelou interesse e preocupação pela terra natal e
seu povo, jamais deixando de publicar suas reflexões que, nessa obra,
metaforizam essas aflições, por meio de importantes lucubrações sobre a ética, a
mística, a metafísica e a poesia na história ocidental da filosofia, polemizada, em
seus primórdios, por Sócrates, Platão, Kierkegaard e outros pensadores
originários. Daí o fato de que María Zambrano defenda que o pensamento, a
filosofia e a poesia amalgamam-se por instituírem diálogos que conformam a
realidade ou o simulacro inóspito de toda a nossa cultura ocidental, na proporção
em que complementam o estar angustiado do homem no mundo e em si mesmo.
No oitavo capítulo, por meio da obra La confesión: género literario y
método (1943), pretendemos discutir como María Zambrano conjuga o ensaio e a
22
autobiografia confessional para simbolizar a crise entre a existência e o
racionalismo da modernidade. Esse capítulo denuncia que as relações entre a vida
e a criação artístico-literária de María Zambrano são muito evidentes e como a
sua história foi pautada por uma série de conflitos e crises, essa obra aparece com
uma grande ênfase no conhecimento espiritual e no saber da alma, alicerçados,
principalmente, nas confissões de São Agostinho e de Jó, a fim de procurar
explicar o sentimento angustiante de estar perdido tanto do mundo como também
no mundo. O estudo dessa obra parece-nos muito importante no sentido de que
anuncia o encaminhamento filo-poético do pensamento zambraniano em direção
ao desejo de transcendência, tema do nono capítulo do nosso trabalho. Assim,
esse período considerado proeminente e literariamente pleno de María Zambrano,
no qual nos deteremos como última etapa do corpus dessa pesquisa dedica-se ao
estudo de um dos seus livros mais emblemáticos ou a sua obra fundamental, como
ela mesma chega a sugerir, El hombre y lo divino (1955). A partir dessa fase de
amadurecimento e apogeu criativo, María Zambrano caminha cada vez mais para
um contínuo reconhecimento de sua contribuição à cultura espanhola, o que, por
sua vez, afiança a qualidade e a relevância de sua obra no contexto literário
espanhol e, em consequência, confere validação ao nosso intuito de trabalho. El
hombre y lo divino, conforme o título, tratará do binômio homem-divino, que,
segundo reconhece a própria autora, na 2ª edição dessa obra, em 1973, poderia
representar todo o conjunto da sua criação literária. Na medida em que analisamos
a existência humana, é imprescindível meditar sobre a presença do divino, posto
que a sensação de elementos preeminentes ao homem ou o seu enigma invade o
imaginário coletivo desde tempos muito remotos. A filosofia zambraniana explora
essa temática pelo viés de que a não total exclusão de pólos terrenos e divinos na
vida do homem levam-no a vivenciar uma multiplicidade de interpretações desses
lugares, de acordo com suas experiências históricas, as quais manifestam
momentos de notoriedade e obscurecimento com relação a ambos os conceitos.
Por meio da abordagem desses ensaios, que representam épocas marcantes
da vida e do pensamento de María Zambrano, podemos notar que a autora
malaguenha, além de contar a própria história em uma, digamos assim,
‘autobiografia ensaiada’, realiza, consequentemente, uma leitura da história da
23
Espanha, tomando como farol o pensamento tradicional do ocidente. Esse fato,
portanto, realmente, destaca a sua proeminência dentro do ensaísmo espanhol do
século XX.
A pesquisa contará com um suporte teórico de autores, que se ocuparam
do ensaio, como uma forma de expressão literária subjetiva, moderna,
assistemática e híbrida, capaz de conjugar o ficcional e a retórica com a
representação da realidade por meio da leitura de uma época e suas tradições.
Essa temática conduz a intermediações inseparáveis com a concepção trágica da
existência que encontra lugar em uma modernidade, cujos saberes e crenças de
gerações anteriores são colocados constantemente em juízo crítico. Assim, como
apoio basilar e científico ao trabalho, contemplaremos o gênero ensaístico a partir
dos estudos de Georg Lukács (1911; 1975), Luis Gómez Martínez (1992), María
Elena Arenas Cruz (1997), Theodor W. Adorno (2003), Belén Hernández (2005)
e Alberto Giordano (2006), que afirmam ser o ensaio um gênero moderno atinente
à vivência do homem na história, que alimenta a necessidade do sujeito em
demarcar uma região ameaçada pela racionalidade e pela industrialização
excessiva da sociedade. A ideia do trágico e suas repercussões hodiernas serão
discutidas por conceitos de Nietzsche, Rafael Argullol (1990), Peter Szondi
(1994) e Roberto Machado (2006), que irão confirmar o carácter fragmentado e
frustrante do indivíduo na modernidade em resposta a uma condição ontológica
inerente, que se alia a fatos concretos desencadeadores de um mal-estar no
mundo, como certeiramente asseverou Freud. É, precisamente, em virtude dos
desastrosos acontecimentos na Espanha a partir, sobretudo, dos anos 30 que María
Zambrano instaura as polêmicas que envolverão o homem no seu tempo, como
fruto da constatação de suas lutas, mas também de sua impotência com relação a
uma modernidade esmagadora, que preconiza o triunfo crescente da ciência, do
progresso e da razão.
A modernidade é um fator assaz importante para a melhor compreensão da
cultura espanhola e também da obra de María Zambrano, no sentido de que a autora escreve a partir dos seus projetos e efeitos. Teóricos como Octavio Paz
(1990) e Eduardo Subirats (1989) certificam que a modernidade acentuou a consciência da condição trágica, na medida em que detraiu a confiança do homem na
24
crença religiosa e nos desígnios divinos, que lhe conferiam a estabilidade emocional necessária para enfrentar os revesses da história. Na verdade, por que tanto se
diz que somos seres trágicos e o nosso tempo se define como uma atualização da
tragédia clássica? Porque simplesmente temos dúvida, criticamos e não aceitamos
tudo o que é estabelecido, determinado ou canônico. Isso é o que mostra María
Zambrano e é o que nos define dentro das contradições modernas. Evidentemente,
o ensaio, pelas suas características, surge como um canal de comunicação propício para sedimentar, na eternidade da escritura, os pensamentos contraditórios de
um homem aturdido, que segue, contudo, uma linha ascendente de evolução cognitiva. Dentro da nossa tragédia da insuficiência moderna, esse é, simultaneamente, o nosso desafio, mas também o nosso esplêndido êxito e é exatamente esse
percurso de crescimento espiritual e intelectual que a nossa pesquisa intenciona
comprovar por meio da análise da obra da ensaísta espanhola. Julgamos que a atualidade do texto de María Zambrano insere-se justamente na eleição de um discurso ensaístico de comunicação com o leitor-autor, que ao mesmo tempo em que denuncia o esgotamento do projeto onírico material da modernidade, anuncia a insurgência de um sentimento trágico humano original, que nos convoca a preencher, a partir do ato mágico de escrever-crescer, o doloroso, contudo igualmente
encantador vácuo da vida.
25
2. O ENSAIO COMO UMA ESCRITURA DO SÉCULO XX
Na atualidade, o ensaio desfruta da atenção de uma série de estudos que se
propõem o árduo objetivo de estabelecer algumas de suas características
nucleares, que acabam por colocá-lo em uma posição de destaque no âmbito da
escritura moderna do século XX. Afirmamos ser este um trabalho penoso, em
razão de que o ensaio tem como traço diferenciador a intenção de manifestar uma
perspectiva individual, livre e assistemática sobre um determinado tema e isso,
por si só, já dificulta e muito qualquer esforço de classificação ou norma, que
pretenda regular ou identificar esse tipo de discurso. Apesar dos fatores
complicadores, é justo sustentar que o ensaio pertence a uma peculiar classe de
textos, onde existe uma macro-estrutura fundamental, que salienta a presença de
um gênero dialógico-argumentativo, dado a partir de variadas possibilidades de
enunciação. Por outro prisma complementar, Lukács assegura que o ensaio é, em
essência, uma linguagem que ambiciona questionar conceitos defendidos em uma
vigência histórica.
O ensaio sempre fala de algo já formado ou, na melhor das hipóteses, de
algo que já tenha existido; é parte de sua essência que ele não destaque coisas
novas a partir de um nada vazio, mas se limite a ordenar de uma nova maneira as
coisas que em algum momento já foram vivas. E como ele apenas as ordena
novamente, sem dar forma a algo novo a partir do que não tem forma, encontra-se
vinculado às coisas, tem de sempre dizer ‘a verdade’ sobre elas, encontrar
expressão para sua essência. (Lukács, G., 1911, p.23)
Adorno, por sua vez, com outras palavras, corrobora o pensamento de
Lukács sobre o ensaio como uma maneira de abordar um assunto específico não
inédito sem a obrigação de esmuiçá-lo rigorosa ou exaustivamente ou, ainda, de
colocar-lhe um fim último, pois compreender não significa supor haver esgotado
um tema, mas sim implica o processo de buscar o seu conhecimento, regido pelos
estímulos temporais, espaciais e intrínsecos que influenciam as interpretações
únicas do sujeito.
O ensaio reflete o que é amado e odiado, em vez de conceber o espírito
como uma criação a partir do nada, segundo o modelo de uma irrestrita moral do
trabalho. Felicidade e jogo lhe são essenciais. Ele não começa com Adão e Eva,
mas com aquilo sobre o que deseja falar; diz o que a respeito lhe ocorre e termina
onde sente ter chegado ao fim, onde nada mais resta a dizer: ocupa, desse modo,
26
um lugar entre os despropósitos. Seus conceitos não são construídos a partir de um
princípio primeiro, nem convergem para um fim último. Suas interpretações não
são filologicamente rígidas e ponderadas, são por princípio superinterpretações
[...] Quem interpreta, em vez de simplesmente registrar e classificar, é
estigmatizado como alguém que desorienta a inteligência para um devaneio
impotente e implica onde não há nada para explicar. (ADORNO, T. W., 2003,
pp.16, 17)
A nosso modo de ver, esses conceitos são extremamente pertinentes à
pesquisa que realizamos, porque María Zambrano expressa, praticamente em
todos os momentos, uma vontade de problematização que, de maneira sedutora,
‘moderniza’ os mecanismos culturais que condicionam a sociedade européia e,
sobretudo, espanhola. Além do mais, se aceitarmos o fato de que a escritura, na
forma de uma materialização do pensamento, tem o encargo de fazer com que o
leitor, por outros fluxos de reflexão, observe de uma maneira diferente o que já se
disse antes, poderemos crer que o ensaio é uma modalidade discursiva moderna
esclarecedora e abrangente, porém não doutrinária, que acolhe a dúvida e a
polêmica como uma certeza dentro de seus principais parâmetros de elaboração.
Desse modo, o ensaio caracteriza-se como uma escritura em constante
avanço ou progressão, que denota uma simbiose com o seu tempo, pelo fato de
que a cultura e a comunidade onde surge disponibilizam os instrumentos
necessários para o desenvolvimento da reflexão do ensaísta, que colabora com a
possibilidade de reforma do pensamento em voga. Esse aspecto errático,
descentrado e inespecífico do ensaio, segundo assevera Adorno (ibidem), é o que
lhe outorga a se desobrigar de uma habitual noção de verdade, já que a sua forma
de expor indica sempre só uma aproximação concludente, que solicita
desestabilizar as bases de um mundo exclusivamente lógico.
Assim sendo, a grande adesão ao ensaio nos tempos mais recentes de
nossa história literária articula-se à uma epistemologia da modernidade, que
comumente integra mais de uma forma de expressão e diversos campos do
conhecimento, a fim de imprimir outros enfoques à realidade circundante.
Segundo Belén Hernández (2005, pp.148, 149), a proliferação de publicações
ensaísticas, em nosso tempo, responde a uma necessidade crítica própria da
sociedade moderna, ávida por novas informações e novas vozes dissidentes, que
27
mantenham acesas as chamas da argumentação e da força intelectual renovadoras
do meio que, mais do que nunca, nossas contingências reclamam.
Seguindo essa linha de exposição, Arenas Cruz (1997, p.27) defende o
raciocínio de que os textos relacionados a reflexões não puramente técnicas
deveriam ser considerados sob uma perspectiva de orientação mais global que
denomina de ‘gênero argumentativo’, diferentemente da nomenclatura de gêneros
ensaísticos proposta por Aullón de Haro. Essa tentativa de mudança lexical visa
incluir não somente o ensaio, mas também outras classes de textos
argumentativos, como a epístola, o diálogo, a glossa e a miscelânia, que, de
acordo com a autora, funcionaram, durante muito tempo, como uma forma de
reflexão crítica da cultura.
El diálogo, la epístola, la miscelánea, el ensayo, la glosa, el discurso, etc son
formas personalizadas de comunicación, donde tanto el yo del autor como el tú del
receptor aparecen reflejados, donde el lenguaje está cargado de toda la
ambigüedad y riqueza de la lengua normal, donde la razón puede argumentar
libremente, en función del aquí y el ahora, sin sujeciones a ningún tipo de lógica
formal o de orden en el razonamiento. Sólo estas peculiares condiciones permiten
pensar y reflexionar acerca de las cuestiones realmente importantes para la vida, la
sociedad y el hombre en su dimensión histórica. (ARENAS CRUZ, 1997, p.45)
Para Arenas Cruz, além do ensaio, todas essas formas discursivas
reivindincam um espaço na teoria acerca dos gêneros literários junto aos modos
tradicionais de expressão lírica, narrativa e dramática, pois traduzem, igualmente,
através dos tempos, a comunicação da consciência humana. Tanto a posição de
Aullón de Haro, como a proposta de Arenas Cruz deixam claro a necessidade
moderna de, ao lado do relevante estudo científico e técnico, tratar urgentemente
de questões antropológicas da existência, que somente esses canais de
comunicação são capazes de realizar. Esse movimento expressivo, conforme
sentencia Lukács (1975, p.23), é fundamental ao que entendemos também como
vivência cognitiva e avanço cultural da sociedade, representante do poder anímico
humano, combustível da própria vida.
María Zambrano, em sua produção ensaística ou, digamos agora como
Arenas Cruz, argumentativa, sempre escrutou a Espanha como um problema, que
merece a reflexão de um homem que a vive e, dessa maneira, constrói-na para um
destino e, realmente, dessa responsabilidade não podemos escapar. A sua obra
28
compila artigos e ensaios que incluem a época da guerra civil espanhola,
mostrando uma mulher republicana extremamente compromissada com o seu
tempo, onde analisa sóbria e contundentemente a situação do homem espanhol e
da Espanha naquele momento. Esse ‘dolorido sentir’, como chegou a dizer Azorín
(Epílogo de Las confesiones de un pequeño filósofo, 1904, influenciado por
Garcilaso, Égloga I, 1543), permite à autora, assumindo uma atitude filosófica,
aprofundar-se na intra-história do seu país, buscando as origens de seus
problemas, como a única forma realmente eficaz de levar a cabo o seu
pensamento. Desse ângulo de visão, insistimos em afirmar que os escritos
zambranianos apóiam-se em pilares de uma estrutura estética ensaística
relacionada à modernidade e ao trágico, refletindo recortes temporais que
espelham fases da vida da autora dentro de um carácter provisório e real, porém
também imaginativo, onde se estabelece como fio condutor a relatividade de tudo
o que é considerado definitivo ou absoluto. É justamente nesse aspecto que, para
nós, é muito relevante o estudo da obra zambraniana através de uma perspectiva
de conjunto, com relação aos seus ensaios, sem congelar o nosso olhar em uma
etapa específica, pois o que queremos é apreender a sua forma de pensar durante o
percurso de uma vida literária. Na verdade, é interessante meditar sobre até que
ponto os sucessos concretos favorecem certas mudanças no pensamento
zambraniano, na sua maneira de tratar questões éticas no ensaio ou no seu modo
de construir o próprio ensaio.
De acordo com essas reflexões e levando-se em conta a inevitável
mutabilidade do seguir existindo do mundo e do sujeito, ao longo da sua vida
literária, é possível detectar que María Zambrano sugere modificações temáticas
em seus textos que, algumas vezes, simultaneamente, se contrapõem à abordagem
de umas mesmas questões universais a partir de novos direcionamentos
provocados por estímulos extraliterários. Entendemos essa peculiaridade
autobiográfica na obra de María Zambrano como uma forma possível do ensaio,
uma vez que consegue congregar o pensamento à vida. Devemos acrescentar
ainda que a característica autobiográfica no ensaio de María Zambrano também
patentiza uma reflexão incompleta acerca dos problemas discutidos, posto que a
disposição enunciativa do ensaio apresenta a predominância de um ponto de vista
29
particular, que, em geral, é antagônico às perspectivas assentadas pelas crenças de
toda uma herança tradicional. Esse fato, mais uma vez, justifica a defesa do ensaio
como uma forma estética moderna, cuja agudeza crítica e o fortalecimento da
primeira pessoa do sujeito, em contraste com suas variadas tentativas de
obscurecimento na modernidade, encontram-se em franca linha de ascensão em
nossos tempos mais recentes. Segundo José Luis Gómez-Martínez (1992), na
Espanha, se o século XIX marcou brilhantemente a produção do romance, o
século XX foi a idade de ouro do ensaio, apesar de que, no final do século XIX, o
ensaio já mostrava uma presença significativa em diversos círculos intelectuais.
Esse período de opulência do gênero ensaístico no século XX deveu-se, em parte,
na Espanha, à grata influência de certos autores como Miguel de Unamuno e
Ortega y Gasset, que reiteraram e divulgaram, em suas obras, os pressupostos
referentes à essência do ensaio manifestados por Montaigne há três séculos.
A modernidade do ensaio consiste exatamente na dificuldade de sua
classificação, no entanto, este obstáculo não é uma peculiaridade sua, já que são
geralmente frustrantes as tentativas de categorização principalmente no âmbito
ficcional e subjetivo dos gêneros literários, como o romance, a poesia e o drama.
Contudo, essas avaliações são fundamentais, para que possamos trabalhar a partir
de parâmetros de orientação, que, em lugar de limitar, instituam articulações com
outros modos de expressão; daí que o estudo de Arenas Cruz pleiteie a
nomenclatura de gênero argumentativo para um conjunto de classes de textos,
entre eles, o discurso ensaístico. José Luis Gómez-Martínez (1992) alerta que esse
caráter impreciso nos critérios de padronização dos gêneros literários cultiva a
semente moderna da ‘insolução’ e mostra a consciência amadurecida do crítico ao
reconhecer que cada obra de arte possui um peso individual não comparável e
único. O ensaio, assim, respondendo a uma natureza vaga quanto à sua definição e
forma, revela entroncamentos enriquecedores com outros modos de pensar
modernos, como a autobiografia, o diálogo e a confissão, os quais evidenciam que
os acontecimentos factuais não são realidades estáticas, mas fluem e se
desdobram no homem e, em consequência, em suas criações, entre elas, a obra de
arte. É o que Alberto Giordano (2006) procura afirmar por meio da análise do
ensaio de alguns escritores. O autor atesta que o ensaio fomenta o surgimento de
30
uma ‘autofiguração subjetiva’, que leva ao que se ensaia a esquecer ou a se
desviar do curso das estratégias que prevêm a construção da imagem do escritor,
distanciando-o, cada vez mais, da capacidade de se reconhecer com motivo da
identificação que realizaria das outras faces diferentes dele mesmo. No ensaio, de
alguma maneira, o outro não constituiria um simulacro alheio de algum nome da
realidade ou de um personagem tradicional, porém anseia consolidar um sujeito
sui generis que se manifesta na subjetividade da figura do escritor. Dentro da
instância individual, o escritor cede à tentação de divulgar uma personalidade
discordante da do ensaísta propriamente dito, com o objetivo de apontar uma
enunciação do saber única, cuja origem está especificada com um nome ficcional
propagador da assinatura de um nome idiossincrático, cuja maior aspiração é
ocupar um espaço de realce também na dimensão da realidade.
(...) cada ensayo es un acto único, un paso de polémica que se ejecuta de
acuerdo con condicionantes únicas, para conseguir un efecto disolvente también
único. Y lo que haya de verdad en cada caso (la verdad que el ensayo produce en
el acto de la polémica, no una verdad a la que se representa, a la que se obedece)
vale, en principio, sólo para él. (GIODARNO, A., 2006, p.35)
Alberto Giordano (2006), em seus estudos, profere que a posição subjetiva
do ensaísta edifica-se na sua própria decisão ética de escrever, ato que não
intenciona puramente unir-se ao leque de interpretações diversas sobre algum
autor, tema ou obra, a fim de se alcançar êxito ou insucesso entre a
intelectualidade de uma época todavia nasce, como diria Borges, de uma
voluptuosidade ‘íntima’. Essa ânsia individual, de alguma forma, pretende
esclarecer o sujeito escrevente e satisfazer a sedução que o feito de criar exerce
sobre ele. Essa opinião também é declarada por María Zambrano na obra La
confesión: género literario y método, quando enuncia que:
No se escribe ciertamente por necesidades literarias, sino por necesidad que
la vida tiene de expresarse. Y en el origen común y más hondo de los géneros
literarios está la necesidad que la vida tiene de expresarse o la que el hombre tiene
de dibujar seres diferentes de sí o la de apresar criaturas huidizas. (ZAMBRANO,
M., 1995, p.25)
Chama-nos a atenção a maneira de se pensar que a escritura seria um
modo de confissão desvirtuada em consonância com um sentimento de gozo
31
necessário em relação a uma subjetividade em crescente exposição, cuja intenção
seria conseguir uma liberdade do escritor favorável à criação de uma metáfora
autorreferencial de si mesmo. A literatura, explica Alberto Giordano (2006, p.62),
pode ser entendida essencialmente como um exercício imaginativo, que possui o
desejo de ver a realidade com olhos singulares. Esse mirar especial sugere que a
importante função desempenhada pela razão está submetida, ou melhor, está
aliada a uma forte vontade de reinventar identidades, espaços e tempos pelo
enfoque do sujeito que medita. Os aspectos culturais da realidade espanhola e
européia foram observados desde a interpretação teórica e vivencial de María
Zambrano, que, inegavelmente, nos permite construir, como leitores, a nossa
própria visão, conformando, assim, a maior esperança didática da filosofia: a
independência emancipativa da consciência e do verbo. Nas palavras de
Wittgenstein, podemos ler: “no quisiera con mi escrito ahorrarles a otros el
pensar, sino, si fuera posible, estimular a alguien a tener pensamientos propios.”
(WITTGENSTEIN, L., 1988, p.13) Utilizando as ideias de Concha Fernández
Martorell (2004), julgamos que as interpretações possíveis dos ensaios
zambranianos pelas referências concretas à sua obra conduzem o leitor a entender
o texto como uma oportunidade de conhecer um pouco mais o ser humano e suas
condicionantes históricas, tendo como ponto pendular dinamizador os elementos
culturais que o próprio autor e a crítica são capazes de produzir. Eticamente,
portanto, o ensaio, como uma obra de arte da modernidade que se afirma e se
nega constantemente, notifica, além de valores referentes ao estilo e à tentativa de
uma forma peculiar, atributos que afetam a subjetividade tanto do escritor, como
também do leitor. Tanto um como outro são incitados, pela pujança da criação
estética, a pensar, a imaginar e, consequentemente, a escrever e a ler algo que
valha por si só, na medida em que há a representação de um sujeito autor e leitor,
que possui a característica de ser único, especial e irrepetível.
2.1. A modernidade em crise e o discurso ensaístico
É ponto pacífico que o papel que a modernidade desempenha no
pensamento filosófico artístico dos séculos XIX e XX e também, convenhamos,
em nossa contemporaneidade é fundamental, já que continuamos a vivenciá-la e a
32
sofrer as suas consequências positivas e negativas até hoje. Alguns admitem e
outros rechazam a ideia de uma modernidade eterna, porém, de qualquer maneira
e fora as opulentas críticas, é fato que, cambaleante e um pouco instável, ela ainda
se encontra em curso, embora saibamos, com Octavio Paz (1990, p.31), que o
termo perde a sua significação assim que acabamos de produzí-lo. Em vista disso,
Octavio Paz (ibidem) afirma que o moderno é tão difícil de discutir dado o seu
caráter efêmero e cambiante. Na verdade, vivemos vários momentos de
modernidade ao longo dos tempos. Ora, o moderno é o que experimentamos em
nossa circunstância atual. Pensando dessa forma, realmente seria possível falar de
uma eterna condição moderna. Octavio Paz sustenta que “La Edad Moderna no
tardará en ser la Antigüedad de mañana. Pero, por ahora, tenemos que resignarnos
y aceptar que vivimos en la Edad Moderna, a sabiendas que se trata de una
designación equívoca y provisional.” (ibid., pp.31, 32) A reflexão filosófica, fruto
de todas as transformações havidas na sociedade moderna, consistiu justamente
na negação do racionalismo, que havia impregnado a existência humana desde a
segunda metade do século XIX, estendendo-se no século XX. Vários pensadores
do século XX, entre eles, María Zambrano, considerarão a razão como uma
ferramenta insuficiente para explicar, com certa plausibilidade, o nosso mundo.
Isso pode ser explicado em virtude de que, na própria modernidade, a ciência
derrubou conceitos antes inquestionáveis por ela mesma em um movimento de
asserção e negação contínuas, o que também caracteriza e muito os tempos
modernos. Esse, opina José Luis Ocasar, foi um tiro fatal contra toda uma
concepção do universo oferecida pelo racionalismo. Diz o autor: “si la propia
ciencia comienza a desdecirse de sus enunciados básicos, ¿qué confianza puede
suponer para una humanidad que había destruido la religión con la propia
ciencia?” (OCASAR, J. L., 1997, p.12) Podemos contrabalançar essa afirmação
com as suposições de Octavio Paz (1990, pp.31, 32) que declara existir muitas
teorias a respeito do surgimento ou do começo da modernidade, que incluem o
renascimento, a reforma, a descoberta da América, a criação dos estados
nacionais, o nascimento do capitalismo, a ascensão da burguesia e a revolução
científica e filosófica. Octavio Paz (ibidem) assevera que todas essas conjeturas
são possíveis somente se vislumbradas a partir de uma visão de conjunto, pois só
33
assim é viável ter uma compreensão mais coerente dessa problemática.
Acreditamos ser esse pensamento extremamente óbvio, visto que a modernidade
não se caracteriza por um ou outro acontecimento isolado. Como explica Paz
(ibid., p.33), isso ocorre, porque a modernidade é por si só o espelho do não
completo ou se distinguiria por ser um híbrido histórico. Na verdade, ela foi
semeada a partir de uma série de fatores, acontecimentos e descobertas
importantes que vieram a consolidar a ideia de que tudo é transitório e
possivelmente não de todo correto ou incorreto. Se tudo é relativo e cambiante, o
que devemos pensar? Pensar mudando, pensar duvidando, pensar polemizando
assim como faz o ensaio que não pretende esgotar nenhum tema pelo suposto
primordial de que nenhum conhecimento é defintivo. A completude do pensar é
impossível em qualquer espaço de tempo. Isso já muito bem defendia Montaigne:
Reflexiono sobre las cosas, no con amplitud sino con toda la profundidad de
que soy capaz, y las más de las veces me gusta examinarlas por su aspecto más
inusitado. Me atrevería a tratar a fondo alguna materia si me conociera menos y
me engañara sobre mi impotencia. Soltando aquí una frase, allá otra, como partes
separadas del conjunto, desviadas, sin designio ni plan, no se espera de mí que lo
haga bien ni que me concentre en mí mismo. Varío cuando me place y me entrego
a la duda y a la incertidumbre, y a mi manera habitual que es la ignorancia.
(MONTAIGNE, M., 1962, p.303)
A teoria de Montaigne sobre o ensaio confirma a crise do domínio do
saber técnico na modernidade, pois todas as circunstâncias estão sujeitas ao olhar
daquele que vê e como cada indivíduo vê de um jeito, toda e qualquer observação
sempre modificará as condições do que é visto. Embora a fugacidade dos
conceitos presente no pensamento do século XX seja muito salutar, lançou-nos
em um abismo do nada. Se tudo em que acreditamos pode mudar a qualquer
momento, desfazer-se como pó, então nós não temos, em realidade, nada, todas as
nossas crenças são tão fortes como um castelo de areia. Esse é todo o nosso
fascínio e todo o nosso drama até os dias atuais. A filosofia comprova que os
tempos mais recentes definem-se a partir de uma preemência para desfigurar
ideias e projetos, enfim o conhecimento. Mais do que nunca, temos a consciência
de que a evolução cognoscitiva está não exatamente em descartar, mas em
desafeiçoar, o que seria, no final das contas, o pensar e o ensaio não é outra coisa
34
a não ser isso, alinhando-se, desse modo, a toda uma vigorosa forma de
pensamento relacionada principalmente aos nossos dois últimos séculos.
A utopia é uma questão importante da modernidade debatida por Octavio
Paz. Para o autor (1990, p.33), as grandes revoluções que propiciaram o
surgimento da história moderna encontraram inspiração no pensamento do século
XVIII, porque essa centúria foi próspera em uma série de projetos de reforma
social e também em utopias. Não podemos negar que a racionalização da vida foi,
sem dúvida alguma, um projeto utópico. É certo que, pelas utopias, o mundo
cometeu várias injustiças, mas, de qualquer forma, a utopia, mal ou bem, nos
trouxe ao lugar em que estamos agora. Foi, graças à utopia, que foram realizadas
as ações e os sonhos ambiciosos da modernidade. Paz (ibidem) acredita que as
utopias do século XVIII foram o grande estímulo que conduziu os rumos da
história dos séculos XIX, XX e, por que não dizer, também entusiasma as
aspirações do século XXI, já que, sem algum tipo utopia, não é possível existir. A
utopia tem tudo a ver com a crítica; ela é, na realidade, a sua outra face. Assim
sendo, para Octavio Paz (ibid.), quem elabora uma crítica está propondo alguma
esperança utópica; somente uma idade crítica tem condições de idealizar utopias.
Como sonhos ativos da razão, as utopias pretendem e, algumas vezes, conseguem
transformar-se em revoluções que mudam o caminho da história de nações e
povos. A utopia, para Paz (ibid., p.34), é outro traço característico da Idade
Moderna, que denota a importância que o futuro ocupa na vida do homem. O
melhor não se encontraria no passado tampouco no presente, ainda estaria por vir
no porvir.
Levando-se em consideração que a utopia, eixo motriz principal da
modernidade, funda-se na idealização onírica do que ainda não existe no plano
concreto, Octavio Paz (ibid., p.32) afirma que a era moderna tem seu início como
uma crítica da religião, da filosofia, da moral, do direito, da história, da economia
e da política. Como já dissemos, a crítica sinaliza o nascimento da Idade Moderna
e funciona como um método de análise, de criação e de ação, que questiona o
progresso, a ciência, a técnica, as revoluções e todo o mais que merecer também
ser criticado. Dessa forma, todas as noções cimentadas que possuíamos em
relação ao ser humano, a valores e à verdade caíram por terra, visto que a história
35
e o homem avançaram, mudaram e, em um e em outro ponto, evoluíram
significativamente. No entanto, o problema é que essas transformações em lugar
de nos conceder o sentimento do otimismo, acabaram legando-nos enormes
preocupações, na medida em que não conseguimos confiar nelas plenamente. Por
exemplo, o que devemos pensar da engenharia genética, da energia atômica, da
informática e da tecnologia? Essas áreas do conhecimento, junto à uma série de
esperanças e utopias, causam e ainda vão nos provocar inumeráveis angústias e
perturbações que muitos escritores estão discutindo nas diversas obras artísticas e
filosóficas de nosso tempo.
2.1.1. A recepção da época moderna na cultura espanhola
A modernidade, como um fenônemo abrangente que vai influenciar toda a
Europa, tem semelhantes reflexos na história social e cultural espanhola. Dizemos
semelhantes, visto que, de acordo com Eduardo Subirats (1987, p.94), desde o
século XV, a Espanha não acompanhou diretamente os fenônemos culturais, entre
eles as correntes religiosas e filosóficas, que desaguaram na cultura moderna. A
modernidade filosófica de teor humanista e os desejos de liberdade e autonomia
do sujeito foram experimentados, por grande parte da cultura espanhola, como
algo distante e negativo. A diferença no entender a modernidade na Espanha
explica-se pelo fato de que toda a reforma do pensamento europeu que acabou
alavancando o crescimento tecnológico interagiu com a decadência social
espanhola e a continuada perda de controle e influência econômica e política
sobre as colônias. A cultura moderna e a racionalização, defende Subirats
(ibidem), foram impopulares na Espanha, pois exigiam o sacrifício de uma
herança religiosa, mitológica e poética central na conformação da cultura
tradicional do país. Com efeito, o moderno, dentro da realidade espanhola, foi
compreendido de uma maneira negativa no momento em que ameaçou a
estabilidade e o status de uma história sócio-cultural secular, que assentava sua
identidade em um poderoso sistema de influência, sobretudo, religioso. Daí que a
modernidade, principalmente, na Espanha tenha adquirido um signo trágico todo
especial, que favoreceu o desenvolvimento de uma filosofia crítica direcionada à
transcendência, onde o sujeito se assoma como uma forma de conhecimento
36
empírico possível, contrapondo-se a um movimento de despersonalização da
sociedade, a partir da organização burocrática da vida do homem e da cultura de
massa. Desse ponto de vista, repetimos, María Zambrano parte de um cenário de
crise e, portanto, desenvolve uma filosofia também da crise, oriunda de um
trágico rompimento epistemológico da razão, da ciência e da história com
elementos culturais subjetivos, como a moral, a ética e a religião. Essa filosofia
crítica, regida obviamente por características conceituais instáveis, norteará toda
uma concepção do trágico dentro do panorama moderno do século XX.
37
3. UM CONCEITO DIFERENTE DO TRÁGICO
Em determinados momentos de impotência e angústia diante da
implacabilidade da existência, a crença espiritual torna-se cada vez mais
apremiante na vida do homem e o faz dar-se conta de que a ciência e o
pensamento racionalista não são suficientemente competentes para sanar as suas
mais íntimas necessidades. O político e ensaísta peruano José Carlos Mariátegui
profere que:
Ni la razón ni la Ciencia pueden satisfacer toda la necesidad de infinito que
hay en el hombre... No se vive fecundamente sin una concepción metafísica de la
vida. El mito mueve al hombre en la historia... La historia la hacen los hombres
poseídos e iluminados por una creencia superior, por una esperanza
superhumana... Los motivos religiosos se han desplazado del cielo, a la tierra. No
son divinos, son humanos, son sociales. (MARIÁTEGUI, J. C., In: SKIRIUS, J.,
1994, p.22)
Indissociavelmente à ideia da modernidade e dos limites do racionalismo,
aparece o conceito do trágico que, tendo suas origens milenares evidentemente na
tragédia, desfrutou dentro da história de momentos de clímax e opacidade. Ao
lado das incertezas de uma definição ocidental com respeito à tragédia como uma
emoção, uma atitude ou um gênero, existe a forte crença de que o estado trágico
surge na representação de uma vivência histórica muito particular, na qual
provavelmente uma fragilidade religiosa, social, política e cultural estão
acentuadas.
Com base nos estudos de Peter Szondi (1994, p.175), podemos afirmar
que Aristóteles pensou em uma poética da tragédia, mas foi Schelling, no final do
século XVIII, quem idealizou uma filosofia do trágico. A partir dessa constatação,
é possível inferir que a filosofia do trágico nasceu de uma recepção da poética de
Aristóteles e, reinventando um processo originário de transformações, ela vai se
modificando ao longo do tempo, sempre adquirindo uma nova representatividade,
em um movimento mimético de abstração do conhecimento, que legará sempre o
aprendizado prazeroso da descoberta reveladora. De acordo com Szondi (ibidem,
pp.175-178), portanto, a tragédia possui dois pontos de vista diferentes: a poética
da tragédia e a filosofia do trágico. Em Aristóteles, funda-se uma tradição de
análise poetológica da tragédia, na qual predominará, ao lado de sua finalidade
ética e moral, a preocupação pela forma, pela estrutura e pela organização,
38
favorecendo, na verdade, o estudo da técnica poética em geral. O que nos
interessa nesse trabalho, entretanto, é justamente a filosofia do trágico como uma
manifestação de uma determinada sabedoria ou perspectiva do mundo que a
modernidade vai preferir chamar de trágica.
Dessa maneira, nos últimos dois séculos, mas, sobretudo, no século XX,
sob os efeitos de uma construção moderna, a noção do trágico sofreu reajustes no
panorama da cultura ocidental, sendo alvo da atenção de filósofos, escritores
literários e pensadores em geral. No bojo dessa reformulação, é evidente que se
mantiveram peculiaridades intrinsecamente ligadas ao vocábulo original em
questão, em que se sublinha a sua relação com uma imagem de perigo, ameaça,
violência, além da sensação da iminência de um destino fatal inevitável, de uma
derrota implacável e da própria morte, ou seja, existe uma conexão com uma
efetiva visão trágica do mundo, a qual é negociada constantemente a partir de uma
contingencialidade. A percepção trágica do homem com respeito à sua
mortalidade é um sentimento que o aflige sobremaneira justamente pela
consciência da impossibilidade de reverter tal situação escatológica. De modo
assustador, talvez a morte seja realmente a única barreira trágica que o homem
ainda não conseguiu transpor verdadeiramente e talvez, enfim, esse seja o motivo
pelo qual o tema provoque tanto encantamento na esfera filosófica, literária e em
outros campos do saber. O trágico é potencializado a um patamar de
procedimento estético na literatura, colaborando com a construção de um ideário
metafísico, que pretende estabelecer determinadas reflexões sobre a condição
humana, sobre o espaço que ocupamos no mundo.
A concepção literária do trágico como uma simbologia de um momento
ímpar da vivência humana, que busca uma verossimilhança entre o dramático e a
realidade empírica do ser humano, configura-se como um importante sinal da
angustiante desarmonia entre o homem e a contingência na qual está inserido.
Entre as diversas peculiaridades existentes nas interpretações do trágico, segundo
Roberto Machado, a mais importante delas talvez seja exatamente aventar uma
possibilidade de visão ontológica da tragédia. Escreve o autor: “[...] quando se
fala de pensamento filosófico moderno sobre a tragédia, “filosófico” tem o
sentido forte de “ontológico”, isto é, a tragédia diz alguma coisa sobre o próprio
39
ser, ou a totalidade dos entes, a totalidade do que existe.” (MACHADO, R., 2006,
p.44) Essa impressão resultante das consequências da modernidade apresenta
conexões com o advento da secularização e da decepção do homem em relação ao
mundo e aos rumos seguidos pela civilização, corroborada pela crescente
mecanização da natureza e pela minimilização do ser humano.
3.1. A representação do herói trágico no mito do escritor
No âmbito literário espanhol, ao lado de outros nomes de vulto no espaço
europeu como Shakespeare e Racine, o sentimento trágico apresentou uma
profícua substantividade com as obras de Cervantes (1547-1616), Lope de Vega
(1562-1635), Calderón de la Barca (1600-1681), Galdós (1843-1920), Unamuno
(1864-1936) e García Lorca (1898-1936), só para citar cronologicamente alguns
dos ícones da cultura literária à qual pertence María Zambrano. Importante é
salientar que, sob outra óptica histórica, os alicerces que motivaram a criação
literária européia romântica e pós-romântica revelaram que o século XIX e o
século XX continuaram com uma tendência de perspectiva trágica tanto na
Europa como na Espanha, seguindo uma forte herança deixada por escritores
precedentes. Na realidade, esses dois séculos também foram tragicofílicos. Enfim,
indubitavelmente, os termos ‘tragédia’ e ‘trágico’, com o passar dos tempos e das
experiências do homem em seu contexto, resignificaram-se em diversos
panoramas cotidianos da existência, recebendo, desse modo, interpretações
distintas conforme os momentos históricos vivenciados, sem se relacionar
precipuamente com as suas remotas procedências. Com outras leituras, na
modernidade, o conceito do trágico foi revitalizado e utilizado como indício
sintomático da problematização do homem. O escritor, no papel de um intelectual
que pensa sobre a sociedade, a história e a cultura, muitas vezes, aparecerá como
um herói que buscará compreender as opções que fizeram o homem, quiçá,
inevitavelmente, trilhar certos caminhos e não outros, respondendo às
necessidades da condição humana dentro dessas respectivas ‘atualidades’, melhor
ainda, em consonância com o tempo a partir do qual se reflexiona.
Gostaríamos de destacar, desse modo, o fato da filosofia evidenciar que a
reflexão sobre o trágico gira em torno também da questão da teatralidade do
40
discurso, em que irrefutavelmente aparece, como já abordamos antes, a poética do
eu heróico. Rafael Argullol (1990, p.13) anuncia que o trágico implica uma
contemplação heróica do homem, pois esse difícil entendimento da limitação da
existência humana somente poderia provocar um sentimento de resignação, caso
não estivesse acompanhada de uma ‘vontade heróica’ em relação àquilo que, em
princípio, não se poderia ter em relação ao que se acredita ilimitado. Essa
identificação do artista com a figura do herói trágico é o que confere maior
veracidade e caráter moderno ao texto e cria uma consciência nova e
revolucionária da concepção do mundo. Para Argullol (ibidem, pp.17, 21, 22, 23),
o pensamento trágico moderno é desenvolvido desde o movimento romântico, no
qual a revitalização do sujeito tem a intenção de indicar a retomada de uma ideia
renascentista, que vislumbrava ilusoriamente o homem como unidade de poder,
de conhecimento e de subjetividade contrastadas tragicamente com as frustrações
da impotência, do mistério e da natureza não domesticada. Em sua obra, María
Zambrano não deixa de responder aos critérios estéticos de uma intelectual
moderna, que autoprojeta, no século XX, a figura do herói trágico dentro da
representação de um mito de escritor, a fim de expressar as suas vivências
pessoais, o seu país e a Europa, a partir de um testemunho particular sob a forma
de ensaio, capaz de exprimir as suas reflexões originadas de um caudaloso e rico
conjunto de leituras filosófico-literárias.
3.2. A razão poética como método de reconciliação
A razão poética foi um estilo zambraniano utilizado expressamente como
uma possibilidade de realização não somente estética, mas também ética e
pessoal, mostrando-se, para a autora, cada vez mais necessária em nossos tempos,
nos quais a severidade do racionalismo vulnera o espírito humano e oculta as
dimensões enigmáticas da vida. Por meio da palavra literária, esse método
zambraniano possui o poder de iluminar os caminhos misteriosos da história e
conceder-lhes um depoimento que aspira a contribuir para a formação de uma
consciência circunstancial e ampla no homem ante um mundo por vezes confuso,
ameaçador e sombrio. A história, na concepção de María Zambrano, manifesta-se
como uma espécie de mal necessário que desafia o ser humano a superá-la ou
41
transcendê-la, posto que a existência compõe um universo desejoso por
confidenciar infinitas e insuspeitadas revelações. Em contraposição aos presságios
de guerras na Europa e de difíceis tempos de ditadura, a linguagem artística, a
razão poética de María Zambrano ocupa um lugar privilegiado ao oferecer
explicações da realidade em uma relação de significado diferenciada. Dentro de
um contexto ocidental, a opção estética zambraniana denota uma leitura política,
ética e social de seu país, que necessita urgentemente exteriorizar-se por meio de
uma liberdade enunciativa da escritura ensaística, crítica e poética, como um
modo de reforçar os seus questionamentos com referência à história.
María Zambrano, em “Adsum” (1955, In: ZAMBRANO, M., 1987a, pp.37), exibe uma experiência de declaração do eu, a partir da exposição da sua
criação literária, que conjuga pensamento-conhecimento e invenção-teatralização
da referencialidade escritural ao dissertar sobre a sua profunda vocação filosófica,
onde a morte e o nascimento metaforizam o signo trágico da existência oriunda do
desejo divino.
Había querido morir, no al modo en que se quiere cuando se está lejos de la
muerte, sino yendo hacia ella. No la había llamado, simplemente debió de ponerse
en marcha por el camino que a ella lleva o quizá equivocarse; quizá fue que cayó
en una trampa o que se fió de un espejismo; un error. Y el error se paga con la
muerte. Por eso es inexorable morir para todos. También porque nunca se ha
estado vivo del todo ni sea posible estarlo. [...] La tragedia única es haber nacido.
Pues nacer es pretender hacer real el sueño. Nacer es realizar o pretender realizar
el sueño de nuestros padres; el sueño de Dios inicialmente. (ZAMBRANO, M.,
1987a, pp.3, 4)
Em “Adsum”, a autora comenta alguns de seus escritos, à primeira vista
mais sobressalentes, na Revista de Occidente. O primeiro texto que menciona é
“Por qué se escribe”. Nele, mantém suas concepções sobre a existência de três
formas de razão: a razão cotidiana, a razão mediadora, a qual, esclarece, aparece
depois no prólogo de seu livro El pensamiento vivo de Séneca (1944) e, embora
sem declarar exatamente a expressão, a razão poética, recuperada um pouco mais
tarde em seu outro ensaio “Hacia un saber sobre el alma”, publicado
primeiramente na Revista de Occidente em dezembro de 1934. Após alguns
anos, em 1950, o referido ensaio passa a compor um livro com o mesmo título.
42
Rememorando alguns de seus ensaios, a escritora garante que suas
apreciações sobre a razão poética também surgem, entre outras publicações, em
uma nota sobre um livro de Antonio Machado, ““La guerra” de Antonio
Machado” redigida em dezembro de 1937 para a revista Hora de España. A
autora explica que esses artigos foram publicados muito próximos às vicissitudes
da guerra civil espanhola. Para María Zambrano, não somente os infortúnios
experimentados na Espanha nesse período, mas também a história em geral é
captada na forma de um constante processo de transmutação poética, que visa
reconstruir uma identidade subjetiva e transcendente do homem na modernidade.
Diante dessa perspectiva, o ensaio, para Arenas Cruz (1997, p.55), submete a
experiência argumentativa às idiossincrasias do escritor, que, em lugar de revelar
um conhecimento arbitrário, almeja alicerçar e defender uma posição particular
em seu tempo. Sendo assim, o papel singular do ensaísmo literário de María
Zambrano, dentro dos juízos levados a cabo com referência à uma racionalidade
moderna, é digno de uma contemplação crítica investigativa. É óbvio que o
tratamento temporalmente diferenciado de determinadas problemáticas em
estudos filosóficos, como o que estimula o ser humano a um exercício tão
espinhoso como a escritura ou o autoexame de sua própria história e cultura ou
ainda o pensar sobre a importância de uma razão poética no âmbito da existência
e a religação espiritual do indivíduo com o sentimento do divino, está
estreitamente conectado à assertiva de que o homem caracteriza-se como uma
questão fundamental para si mesmo, visto que denota um eterno desejo pela
realização pessoal, anímica e material. Certamente, se a plenitude da satisfação
existencial fosse uma meta facilmente alcançada em nossas contingências, não
seria viável a contínua problematização humana ao longo da história da filosofia e
da literatura. O tema da ‘razão poética’, ao contextualizar as obras zambranianas e
conformar um dos núcleos primordiais do seu pensamento, serve ao propósito de
dilucidar os matizes característicos de uma subjetividade moderna, influenciada
por uma sucessão de fatos culturais, históricos e sociais extremamente distintivos,
que peculiarizam a situação trágica do homem na modernidade provocada pelos
excessos do racionalismo. A razão poética cumpre a função de humanizar a
história e recobrar os valores espirituais do homem moderno.
43
Tomando-se em consideração todo o exposto anteriormente, dentro da
presente pesquisa, ratificamos que as correspondências existentes entre o discurso
ensaístico, o discurso filosófico, o conceito atualizado do trágico, as reflexões
suscitadas pelo fenômeno da modernidade e todos os seus vetores intrínsecos de
abordagem perfilam-se como pilares de sustentação que consideramos
intimamente correlacionados e aparecem como parâmetros fundamentais ao
desenvolvimento do nosso pensar.
44
4. MARÍA ZAMBRANO NA REPÚBLICA E NA GUERRA
CIVIL
Na medida em que María Zambrano lutou em prol da República e vivenciou, ao lado do povo espanhol, a alegria da vitória de um novo regime de projetos
políticos e sociais mais liberais, com uma forma de governo mais justa e democrática, porém, logo depois derrubado pelo golpe militar que desencadeou a catástrofe
da guerra civil, julgamos conveniente abordar o percurso temporal que ambientou
esses momentos importantes da história espanhola e condicionaram, de um modo
contundente, a obra da ensaísta.
De acordo com os fatos históricos que antecederam a guerra civil espanhola, a deposição temporária dos Bourbons absolutistas por ação das tropas de Napoleão Bonaparte em 1808, a Guerra de Independência contra a ocupação francesa, a
abertura, em 1810, das Cortes de Cádiz e a proclamação da Constituição liberal de
1812 marcaram o desaparecimento do Antigo Regime espanhol, considerado, durante o reinado de Carlos III, um modelo de Despotismo Esclarecido. Entretanto,
ao longo do século XIX e no início do século XX, a Espanha não conseguiu levar a
término, no âmbito político e social, a sua revolução burguesa, a fim de construir
um espaço de institucionalidade liberal e democrática sólida.
Na Espanha, o século XIX protagonizou muitas lutas entre liberais e absolutistas, entre isabelinos e carlistas, personagens rivais da Casa de Bourbon e, mais
tarde, entre monarquistas e republicanos com o pretexto da perda das colônias
americanas e filipinas. Por outro lado, a economia espanhola, do final do século
XIX ao princípio do século XX, apresentou um acelerado incremento especialmente nas indústrias mineiras e metalúrgicas, que granjearam uma grande expansão na
Primeira Guerra Mundial ao proporcionar insumos às partes em contenda. Esse
importante crescimento, contudo, não ofereceu transformações nas condições sociais dos espanhóis, que viam a agricultura permanecer em poder de latifundiários,
com enormes extensões de terras sem cultivar. Para agravar tal situação, a pujante
influência da Igreja Católica também contribuía a uma não concretização de reformas sociais, pois era aliada dos interesses da elite agrária. A monarquia espanhola
precisava sustentar-se na força militar para preservar o regime. Infelizmente, a
queda da monarquia e a chegada da república em 1931 não alteraram as circuns-
45
tâncias vivenciadas. Para completar o preocupante quadro, a Igreja e o Exército
mantiveram-se monárquicos e as tentativas de golpe fizeram-se frequentes.
Juntamente aos avanços econômicos, houve um aumento do movimento
operário, cuja fundação da sua primeira sociedade ocorreu em 1840, na cidade de
Barcelona, disseminando-se logo depois por todo o país. Sobretudo na Catalunha,
principal região industrial espanhola, o anarquismo notabilizou-se como a tendência política mais propagada entre os trabalhadores. Nesse tempo, havia uma violência muito grande entre as classes, inclusive, com grupos de extermínio, que tentavam aniquilar os sindicatos por meio da morte dos seus principais representantes
e adeptos. Eram assíduas as insurreições armadas de direita e de esquerda.
Com o afastamento por renúncia do ditador Primo de Rivera devido a
escândalos de corrupção, o rei Alfonso XIII procurou restabelecer o regime parlamentar e constitucional. Para tal, em 1931, convocaram-se eleições municipais,
que deram a vitória aos monarquistas, embora os republicanos tivessem conquistado a maioria dos votos nas grandes cidades. Alfonso XIII, profetizando a explosão
de uma guerra civil, deixa o trono e, assim, é proclama a Segunda República Espanhola. A promulgação da Constituição de 1931 tornou a Espanha uma república
democrática para os trabalhadores de todas as classes com a separação entre igreja
e estado, Parlamento unicameral, regime parlamentarista, sufrágio universal, com
direito a voto também das mulheres e dos soldados, e autonomia regional para o
País Basco e a Catalunha. Confiava-se na possibilidade de encetar a prática do pluralismo político e da diversidade de partidos, que garantiriam a liberdade de expressão e a criação das organizações sindicais. Além disso, os títulos de nobreza
foram extintos, estabeleceu-se o divórcio, uma lei agrária de 1932 implementou a
expropriação dos latifúndios, as propriedades religiosas foram disponibilizadas à
nação e o ensino leigo quase vingou se não fosse a carência de professores e escolas. Com essas mudanças, crescia o anseio de que a Espanha fosse capaz de acompanhar os demais países ocidentais e de introduzir, enfim, reformas realmente modernizantes.
Essas enérgicas transformações, todavia, não se realizaram na prática, pois
se esvaíram na violência desmedida de todos os lados e em várias greves e rebeliões. Os militantes de direita organizaram-se em três movimentos, a saber: a Confe-
46
deração das Direitas Autônomas, de Gil Robles, as Juntas da Ofensiva Nacional
Sindicalista (JONS) e a Falange Espanhola fundada por José Antonio Primo de Rivera em 1933. A direita, unida através desses três movimentos, logrou, em 1933,
vencer e derrubar o gabinete de Manuel Azaña, Presidente do governo da Espanha,
e os dois governos considerados moderados que se lhe seguiram. Em 1936, a Frente Popular, coligação criada pelos principais partidos de centro-esquerda da Espanha, inclusive os nacionalistas, ganhou as eleições e devolveu o poder a Azaña.
Em contrapartida, o desejo de que as reformas sociais colocadas em vigor fossem
promissoras e as esperanças de um futuro próspero para o povo incompatibilizaram-se com os interesses dos segmentos mais conservadores e tradicionais da sociedade espanhola, que, igualmente, se sentiram abalados pela ocupação de terras
pelos camponeses, pelos incêndios de instituições religiosas e pelo empastelamento e destruição dos jornais da oposição.
O assassinato do líder monarquista José Calvo Sotelo por agentes da Guarda de Assalto e por pistoleiros socialistas em julho de 1936, provavelmente em represália à morte, algumas horas antes, de um oficial, o tenente Castillo, agravou
muito a crise, irrompendo a revolta militar que deu início à guerra civil espanhola.
O poder militar do Exército foi fundamental para a oposição ao governo legítimo
da República. Em 1936, um grupo de generais, entre eles, Emilio Mola, Francisco
Franco, José Sanjurjo, Joaquín Fanjul e José Enrique Varela, encontrou-se para estudar o possível sucesso de um golpe. Em julho de 1936, a guarnição militar do
Marrocos espanhol rebelou-se. Nos dias que se seguiram, outras guarnições militares em território espanhol também se sublevaram, principalmente, nas regiões do
centro e do norte do país. Nas províncias de Madri e Barcelona, as forças de segurança, apoiadas por trabalhadores armados pelo governo, subjugaram os revoltosos. Na realidade, enquanto a república conseguia controlar as principais cidades
industriais da Espanha, os nacionalistas conquistavam espaço em regiões agrícolas
importantes, o que resultou em uma austera falta de alimentos nas áreas dominadas
pelos republicanos. Desse modo, as fábricas possuíam, como única alternativa,
adequar-se a uma rigorosa, porém necessária redução do mercado em função da
guerra.
47
Após a morte do líder da rebelião, o general Sanjurjo, em um desastre, a recentemente constituída Junta de Defesa Nacional nomeou o general Francisco
Franco como Chefe de Estado e Comandante Supremo. Franco, ao congregar aliados simpatizantes ao movimento, escolheu a cidade de Burgos como sede do seu
governo provisório durante a guerra civil espanhola. O governo socialista, fundado
no direito e na justiça, presidido por Francisco Largo Caballero, possuía prestígio e
soberania em Madri, entretanto, as contundentes pressões à capital levaram-no a
uma compelida mudança à província de Valência. No ano de 1937, em Barcelona,
depois de um conflito entre anarquistas e comunistas, Francisco Largo Caballero
foi substituído por Juan Negrín. A inteligente estratégia do fator supresa somada à
superioridade das tropas militares franquistas, que contavam massivamente com o
apoio da Alemanha de Hitler e da Itália de Mussolini, renderam ao governo de
Franco o controle de Cádiz, de Saragoça, de Sevilha e de outras cidades do sul do
país, além dos limites da fronteira portuguesa. Contou-se, ainda, com a ajuda de
António de Oliveira Salazar, ditador português entre 1932 e 1968, que facilitava o
aprovisionamento dos rebeldes. Também em 1937, da cidade aragonesa de Teruel,
os nacionalistas avançaram rumo a Málaga, Bilbao, Santander e Gijón. Em contrapartida, Madri resistiu ao assédio das forças militares nacionalistas durante mais de
dois anos. Na época, os republicanos tinham a esperança de serem apoiados pela
França e pelo Reino Unido, contudo esses países adotaram uma política não-intervencionista, receando, provavelmente, uma guerra generalizada. O maior auxílio
veio da União Soviética que, desde 1936, começou a enviar aviões, tanques, assessores técnicos e material militar. O México também colaborou e um comitê reunido em Paris organizou o recrutamento de voluntários estrangeiros em defesa da
República, formando as chamadas Brigadas Internacionais, que conseguiram vencer as tropas italianas em Jarama e Guadalajara em 1937. Em abril desse ano, aviões alemães, em reforço militar aos nacionalistas, bombardearam a cidade basca de
Guernica, fato considerado o maior evento trágico da guerra civil espanhola, cuja
devastadora demonstração de força bélica instigou a perplexidade e a revolta da
opinião pública do mundo todo.
A oeste de Madri, no povoado de Brunete, deu-se uma das grandes batalhas
da guerra civil e os nacionalistas, depois de uma sangrenta luta, derrotaram os re-
48
publicanos. Um pouco mais tarde, a ofensiva republicana, depois de um cerco que
durou vários dias, retomou a cidade de Saragoça nas batalhas de Aragão e, em seguida, Belchite, entretanto, a obstinada defesa das tropas nacionalistas fizeram
com que essas vitórias não resultassem em nenhuma vantagem significativa para o
governo ameaçado, pois os dois confrontos desgastaram o lado da República e provocaram centenas de mortes, delatando um grave equívoco do seu exército popular: a falta de preparo para sustentar as posições conquistadas em um ataque, de
início, bem-sucedido. Seu maior triunfo foi a investida contra Teruel, onde um
exército de mais de cem mil homens forçou a cidade a se render. No ano seguinte,
em 1938, Franco reconquistou a cidade de Teruel após uma intensa contra-ofensiva, cujo auge foi a batalha de Alfambra. Depois disso, Franco pôs em execução a
marcha das tropas até o Mediterrâneo, mas, ao invés de começar o ataque pela Catalunha, cometeu, segundo conta a história, uma séria falha estratégica, quando optou por uma complicada ofensiva a Valência. A consequência dessa decisão foi a
desastrosa batalha do rio Ebro, que teve início em julho de 1938. Com o objetivo
de socorrer Valência, os militantes da República acometeram cruzando o rio. Nos
três meses de duração da campanha, o lado republicando foi sucumbindo aos ininterruptos contra-ataques do adversário. As tropas nacionalistas alcançaram a vitória e dirigiram-se rumo à desembocadura do rio Ebro, onde a Espanha republicana
foi segmentada em duas. Essa operação de guerra teve como resultado a exaustão
do exército popular e a perda republicana de mais de 85.000 homens.
Em janeiro de 1939, o exército franquista entrou em Barcelona, ocasionando uma maciça evasão, pela fronteira francesa, dos ativistas republicanos, extenuados e insatisfeitos com a irredutível linha de combate dos comunistas e de Juan
Negrín, que, incansavelmente obstinados, persistiam na estratégia de resistência.
Em março, o coronel Segismundo Casado deu um golpe de estado contra Negrín e
tratou das condições para a rendição. Um pouco depois, os nacionalistas chegaram
a Madri, encontrando uma cidade exaurida e debilitada pela fome. No dia primeiro
de abril, foi declarado o fim da guerra, instaurando-se, por todo o país, o regime
personalista de Francisco Franco, que durou até a sua morte no ano de 1975. Com
a guerra civil espanhola, só em combate, mais de meio milhão de vidas foram sacrificados, excetuando-se os que morreram de fome, desnutrição e doenças diver-
49
sas oriundas do conflito. A guerra civil espanhola, como uma luta de cunho expressamente ideológico e político, foi seguida pelo mundo todo com grande atenção, pois se via, nesse estado de beligerância, o anúncio de um enfrentamento internacional.
Na realidade, como vimos em um breve relato histórico, a guerra civil espanhola constituiu-se de dois lados antagônicos, que professavam convicções políticas e ideológicas muito diferentes. Por uma parte, havia os poderes do nacionalismo e do fascismo vinculados a grupos sociais e instituições tradicionais do estado
espanhol, como o Exército, a Igreja e o Latifúndio. Por outra parte, posicionava-se
a Frente Popular, que representava o Governo Republicano por meio dos sindicatos, dos partidos de esquerda e dos defensores da democracia. O objetivo da direita
espanhola era, através de uma verdadeira cruzada, salvar o país da influência comunista e da francomaçonaria, a fim de restaurar os valores tradicionais de uma
Espanha autoritária e católica. Para atingir esse propósito, era necessário, então,
derrubar a República, proclamada em 1931 com a queda da monarquia. O pensamento da esquerda espanhola concordava na urgência de interceptar a progressão
do fascismo, que já havia triunfado em outros países, como a Itália, em 1922, a
Alemanha, em 1933 e a Áustria, em 1934. Conforme deliberações da Internacional
Comunista de 1935, os movimentos de esquerda precisariam acercar-se aos partidos políticos democráticos da classe média para formar uma Frente Popular, que
pudesse opor-se às relevantes conquistas nazi-fascistas. Assim, comunistas (estalinistas e trotskistas), anarquistas e democratas liberais deveriam unir forças para pelejar contra a propensão mundial em torno dos regimes a favor da direita. De fato,
o choque entre essas duas ideologias políticas fez com que a guerra civil passasse
de um acontecimento especificamente espanhol para se transformar em um cabo
de guerra entre crenças de poder que altercavam um sonho de domínio hegemônico do mundo. Como advertimos anteriormente, enquanto a Alemanha nazista e a
Itália fascista apoiaram o golpe do general Francisco Franco, a União Soviética posicionou-se do lado do governo legítimo da República.
Na década de 30, a Espanha era considerada um anacronismo histórico,
pois enquanto a Europa ocidental já dispunha de instituições políticas modernas há
pelo menos um século, o estado espanhol ainda configurava um território de puro
50
tradicionalismo e nostalgia com referência a um passado imperial magnânimo em
plena modernidade. O país seguia uma doutrina tríplice reacionária composta pelo
Exército, pela Igreja Católica e pelo Latifúndio, cuja última manifestação se encontrava na mornarquia boubônica de Alfonso XIII, procurando, com extrema dificuldade, perdurar em um tempo que exigia outros sistemas legais, bem como distintas formas de ser e de pensar. No campo da religião, a igreja simbolizava a continuação do obscurantismo e da intolerância dos tribunais eclesiásticos da Santa Inquisição e repudiava as transformações da modernidade. Na zona rural, a quantidade de famílias pobres, servas de uma rotina feudal escravizante por parte dos cerca
de cinquenta fidalgos, senhores da metade das terras do país, era imensa, chegando
a somar entre dois a três milhões de camponeses.
O franquismo foi condenado pela Organização das Nações Unidas em
1945. No ano seguinte, delegados diplomáticos foram afastados do território espanhol. No entanto, o embargo internacional ao governo serviu inversamente para reforçar um afã nacionalista e afirmar a presença de Franco na condução política do
país, pois o povo, devidamente influenciado por órgãos institucionais formadores
de opinião pública, acreditou que as represálias estrangeiras feriam a honra nacional.
Sem dúvida alguma, María Zambrano é uma pensadora que subscreve os
ideais republicanos, porém, assistiu ao fracasso dessas mesmas aspirações na política do seu país com a guerra civil espanhola, a qual marcou profundamente a sua
vida, sobretudo, ao lhe fazer decidir por um desterro de vários anos. A ensaísta
manifestou-se peremptoriamente contrária à sublevação de parte das Forças Armadas contra o governo legítimo da República. Em suas obras, a defesa por um regime de administração estatal republicano, frequentemente combatido por diversas
esferas de poder da Espanha, refletirão a presença de um sentimento trágico na
modernidade.
Em virtude de que, nesse capítulo, iremos estudar a participação de María
Zambrano na Revista de Occidente e em Hora de España, é apropriado salientar
que essas publicações seriadas, como símbolo de uma geração de escritores, um
tempo, um país, um povo, uma história, são cruciais para analisar o espaço literário e cultural da modernidade, porque permitem visualizar fatores sociais, políticos
51
e estéticos dos intelectuais daquele momento, demonstrando suas alianças, confrontos e projetos artísticos habitualmente compromissados com a situação da Espanha. Ressalvando-se o hiato produtivo ocasionado pela guerra civil espanhola,
as revistas literárias foram capazes de manter os elos entre os escritores exilados
no exterior e o que se preferiu chamar de escritores em condição de exílio interior.
Na Espanha, desde o princípio do século XX, as revistas literárias,
coincidindo com um momento especial de criação artística conhecido como a
idade de prata da cultura espanhola, conquistaram uma função ética e estética
singular na representação dos acontecimentos factuais desse país, chegando a se
alcunhar esse período como a geração das revistas literárias. Entre elas, podemos
mencionar a Revista de Occidente, de 1923, criada por Ortega y Gasset, o
suplemento literário do jornal murciano La verdad, lançado entre 1923 e 1926,
cujos redatores eram José Ballester Nicolás e Juan Guerrero Ruiz, o qual, mais
tarde, também passou a ser publicado como revista, Litoral, impressa, desde 1926,
em Málaga, por Manuel Altolaguirre e Emilio Prados, Carmen, fundada em
Santander no ano de 1927 por Gerardo Diego e complementada com Lola, uma
publicação de caráter festivo, Cruz y Raya, de 1933, dirigida por José Bergamín,
El Mono Azul, de 1936 e Hora de España, de 1937. A verdade é que sem a
colaboração dessas revistas escrever sobre a trajetória literária e histórica
espanhola do início do século XX se tornaria uma tarefa muito mais intrincada. De
acordo com Rafael Osuna:
La historia de nuestras revistas es la historia de nuestra sociedad y sin esta
historia no se explicarían ni la formación de los grupos que la hacen, ni las
reagrupaciones que efectúan los individuos que los componen, ni la ruptura que
como grupos sufren. (OSUNA, R., 1986, p.15)
Conforme acreditam alguns críticos e ressalvando-se as notórias e fundamentadas dissidências teóricas, que não são, nesse trabalho, o nosso objetivo de
discussão, segundo Juan Manuel Rozas López (1978, pp.117, 118), a polêmica
Geração de 27, da qual faria parte María Zambrano, notabiliza-se como a geração
das revistas literárias. No entanto, a consciência do relevante papel das revistas literárias na Espanha já havia sido percebida antes do período da idade de prata da
cultura nesse país, por meio da importância que essas publicações tiveram no surgimento dos movimentos de vanguarda, principalmente o ultraísmo, e seus respec-
52
tivos estudos sobre as diversas manifestações inovadoras existentes nesse âmbito
artístico no resto da Europa. Dessa época, contamos com títulos como Cervantes,
Ultra, Grecia, Alfar, Cosmópolis, Reflector, Tableros, Horizonte e Plural. Outras ilustres edições periódicas com a ativa participação da Geração de 27 aparecem dentro dessa fase áurea das revistas literárias espanholas, a saber, pelo menos
algumas delas: Litoral, Verso y Prosa, de 1927, dirigida por Juan Guerrero Ruiz
e Jorge Guillén, Mediodía, de Sevilla, Meseta, de Valladolid, La Gaceta Literaria, dirigida por Ernesto Giménez Caballero, Caballo verde para la poesía, de
1935, sob a direção de Pablo Neruda e Octubre, organizada por Rafael Alberti.
Evidentemente, insistimos agora e o reforçaremos mais tarde, os anos em que se
sucedeu a guerra civil espanhola favoreceram a tendência de um caráter ideológico
politizante das revistas, que experimentaram um sinistro refreio produtivo por ocasião do conflito e do degredo tanto dos escritores quanto também dos intelectuais
daquele momento. Quando termina a guerra civil, a Espanha, praticamente um deserto cultural por causa da fuga da intelectualidade do país, teve as revistas como
uma ponte de união e continuidade entre a tradição literária espanhola e uma nova
geração de leitores: os ‘filhos da guerra’. Estes não só possuíram a oportunidade
de ler, mas, acima de tudo, de conhecer os nomes mais sobressalentes da história
artística do seu país, os quais, desafortunadamente, se encontravam meio esquecidos, na medida em que suas obras ou já não se publicavam mais ou não conseguiam lá chegar.
Juan Manuel Rozas López (1978, pp.117-126) indica etapas que
conformam uma visão cronológica e uma especificidade temática das revistas
literárias em um período de tempo que abrange os anos de 1910 a 1939, isto é,
desde o nascimento das primeiras vanguardas até o golpe de estado do dia 18 de
julho. Assim, segundo Rozas López, existiriam seis fases distintivas: a primeira
iria de 1910 a 1919 e configuraria uma etapa preliminar com os precursores dos
movimentos literários, a segunda, de 1918 a 1922, representaria a etapa ultraísta, a
terceira, de 1922 a 1925, seria a etapa da poesia pura, a quarta, de 1926 a 1929,
marcaria a idade de ouro das revistas, a quinta, de 1929 a 1936, abrigaria a época
da politização e a sexta e última, de 1936 a 1939, sinalizaria o período da guerra
civil e do exílio. Não temos a intenção de dissertar exaustivamente sobre as seis
53
etapas das revistas literárias na Espanha propugnadas por Rozas López, contudo,
nas primeiras fases, queremos ressalvar o interesse que as fundamentações teóricas
do ultraísmo despertaram entre os intelectuais, embora se contestasse a
insuficiência da criação e da qualidade poética desse movimento de vanguarda.
Como havíamos escrito antes, as revistas principais da estética ultraísta foram
Cervantes
(1916-1920),
Grecia
(1918-1920),
Cosmópolis
(1919-1922),
Reflector (1920), Ultra (1920-1922), Tableros (1921-1922), Alfar (1921-1927),
Horizonte (1922-1923) e Plural (1925). Apesar das grandes dificuldades para
publicação, essas revistas traduziam as maiores tendências dos movimentos
artísticos europeus ao colocar de relevo o imaginário, a reconstrução da linguagem
e a crítica dos valores literários tradicionais, com o intuito de demonstrar as
transformações que estavam ocorrendo naqueles tempos.
Depois de terminado o primeiro grande conflito mundial, o ultraísmo foi o
primeiro movimento autóctone de vanguarda na Espanha, no qual se observa uma
atitude reagente aos desastres do confronto. O desfecho da guerra, além de uma
crise política e graves problemas sociais, suscitou, entre intelectuais e artistas, um
sentimento de fim dos tempos, que requeria iniciar uma era alicerçada em outras
concepções. Desse modo, as vanguardas são interpretadas como uma força
opositora na arte às difíceis contingências sociais e políticas daquele momento.
Ramos Ortega sentencia que “en efecto, los ultraístas se sentían en el umbral de
una nueva época y tomaron sobre sí la misión de forjar una expresión literaria
también nueva, a tono con el momento histórico.” (RAMOS ORTEGA, M. J.,
2001, p.17) A característica principal dessas revistas foi o desejo incessante pela
novidade, estimuladas pela inclinação progressista do seu próprio movimento, que
intencionava romper com um passado de frustrações e decadência ao sonhar com
um futuro repleto de promessas possíveis. É interessante notar que nas páginas
seguintes que analisarão a contribuição de María Zambrano na revista Hora de
España, poderemos averigurar que, inversamente, a ensaísta malaguenha parte à
procura do passado como uma maneira de repudiar a insatisfação do presente e de
reaver, em tempos pretéritos, o esplendor literário da cultura espanhola. Entretanto,
deveras, no caso dos ultraístas, esses escritores ambicionavam reformular
profundamente os valores da sociedade espanhola baseados em uma tradição em
54
crise. Embora não tivessem conseguido utopicamente exterminar o passado,
provavelmente esse seu radicalismo de propósitos imediatos tenha precipitado o
fracasso do movimento, o seu triunfo foi superar a resistência às mudanças
inovadoras na poesia, abrindo caminho, mais tarde, ao surgimento e ao êxito
poético da Geração de 27.
É inegável que apesar de que os poetas do ultraísmo tenham desaparecido
juntamente com as suas revistas, essa escola de vanguarda acabou integrando o
espaço literário aonde se desenvolveu a geração seguinte dos poetas de 27,
certamente influenciando, de alguma maneira, a estética renovada desse grupo.
Entre 1921 e 1929, manifestam-se as primeiras criações poéticas da Geração de 27.
Ramos Ortega (ibidem, p.23) profere que alguns escritores do Grupo de 27
publicaram obras em volume somente depois de muito terem progredido na
carreira literária, mas que seus textos já podiam ser lidos por meio da grande
quantidade de revistas em circulação na década de 20. O período compreendido
entre 1923 e 1936, segundo Ramos Ortega (ibid.), apresentou a mais alta
excelência da criação literária espanhola escrita no século XX, onde algumas das
expressões mais significativas podem ser encontradas nas publicações da Revista
de Occidente, Litoral e Verso y Prosa. A importância dessas revistas deve-se não
somente à seleta plêiade de escritores presente nas edições ou à sua proeminente
representatividade naquele tempo, mas também é preciso sublinhar a notória
herança que colocaram à disposição dos seus descendentes e que serviu de canal
de comunicação entre a sua época e a dos anos subsequentes à cisão de 1939.
Dentro da nova geração de 27, constituída em homenagem a Luis de Góngora,
uma das grandes preocupações é o trabalho com a metáfora. Nas revistas desse
momento, vários poetas e intelectuais explicaram o seu conceito sobre esse recurso
de linguagem e de que forma compreendiam o seu papel dentro da poesia. Sua
concepção do uso metafórico em nada se diferenciava das crenças ultraístas, que o
entendiam como a aproximação de elementos em princípio incompatíveis para, em
um processo de transformação extraordinária, construir uma relação de semelhança
inusitada. Podemos afirmar que, de alguma maneira, María Zambrano, como
membro da Geração de 27 ou, caso prefiram, como uma escritora que tangencia
esses tempos, aproveita a noção de metáfora que tanto atraiu a atenção desse
55
grupo, para construir o seu método da razão poética em que, igualmente, ideias
supostamente contrárias aliam-se, a fim de instaurar uma nova perspectiva sobre a
criação ensaística literária da autora. Vale a pena citar as palavras de Federico
García Lorca, em sua conferência sobre “La imagen poética de don Luis de
Góngora”, onde o escritor andaluz declara ser o poeta um ‘caçador de imagens’ e
vislumbra, do mesmo modo que os ultraístas, a metáfora como a harmonização de
objetos ou pensamentos contrários: “La imagen es, pues, un cambio de trajes, fines
u oficios entre objetos o ideas de la naturaleza. Tiene sus planos y sus órbitas. La
metáfora une dos mundos antagónicos por medio del salto ecuestre que da la
imaginación.” (GARCÍA LORCA, F., 1932; também em RICO, F., 1984, p.284)
Juan Cano Ballesta (1996) assegura que a transição da década de 20 à
década de 30 simbolizou a passagem da pureza à revolução, onde, conforme uma
pesquisa levada a cabo entre os anos de 1927 e 1928 pela revista La Gaceta
Literaria, o rechaço de muitos dos escritores do Grupo Poético de 27 no tocante à
política justificava-se pela confiança de que a arte ocupava um patamar muito
superior e não deveria se permitir influenciar por essas questões públicas de
excusos interesses e de propagandas em benefício de partidos e aspirações
pessoais. Na verdade, essa rejeição inicial aos assuntos da política transmutou-se
em contundentes inquietações no que tangia aos destinos dos espanhóis e da
Espanha. Conforme o estudo de Ramos Ortega, entre os anos de 1930 e 1936,
[...] el mundo intelectual y artístico español se escindió precisamente por la
cuestión de la relación entre arte y sociedad, separándose entre los que siguieron
fieles a un ideal de pureza y los que abogaron por un mayor compromiso de su arte
con las preocupaciones sociales y políticas del día. (RAMOS ORTEGA, M. J.,
2001, pp.25, 26)
Essa tendência à dissensão referida à maneira pela qual o escritor deve
contemplar a arte advertiu-se nos vários projetos de revistas que os autores do
grupo de 27 dirigiram ou neles cooperaram, conciliando-se com a dissipação
paulatina das alianças estabelecidas entre os componentes da própria geração
desde o movimento de homenagem a Luis de Góngora no Ateneu de Sevilha.
Ramos Ortega (ibidem, p.26) explica que esse afastamento relacionado à
concepção artística da poesia entre esses escritores acentuou-se ao longo do
período republicano e os limites fincaram-se na maior ou menor adesão à causa da
56
poesia pura. Tomando a obra de María Zambrano, inferimos que a ensaísta
espanhola não se distancia da necessidade da poesia ou, pelo menos, da expressão
poética dentro da literatura da modernidade, como um modo de rehumanizar a arte
e a vida do homem em um espaço de existência trágica a partir da tecedura de
laços de afinidade com o compromisso apaixonado de lutar pelo sonho republicano
e democrático tanto no âmbito da realidade factual, mas também no poderoso
espaço da linguagem metafórica da criação estética.
Após esse percurso pela história de algumas das revistas literárias espanholas mais sobressalentes do início do século XX, no que concerne à colaboração de
María Zambrano nas duas publicações seriadas escolhidas para o desenvolvimento
dessa tese, reiteramos que enquanto a Revista de Occidente interrompe as suas tiragens quando inicia a guerra civil, Hora de España assume a responsabilidade
de continuar defendendo a República durante o conflito. Certamente, nessas duas
publicações, a intenção de atuar na formação de uma consciência cultural e política com relação aos acontecimentos vivenciados naquele tempo aliou-se a outras
manifestações de criação artística e de crítica literária, além de ensaios e questionamentos reflexivos engajados discutidos, por exemplo, também nas páginas das
revistas Cruz y Raya, Los Cuatro Vientos, Cuadernos de la Facultad de Filosofia y Letras e El Sol, que contam com a participação da autora espanhola. As
contribuições zambranianas na revista Cruz y Raya, dirigida pelo escritor e amigo
José Bergamín, começam no ano de 1933 com vários artigos. Vejamos: “‘Cocktail de ciencias’”, com a apresentação do discurso de Julio Rey Pastor, “Los progresos de España e Hispanoamérica en las ciencias teóricas”, “San Basilio”, uma
nota biográfica e antologia, “Señal de Vida”, Obras de José Ortega y Gasset e
“Renacimiento Litúrgico” sobre El espíritu de la liturgia de R. Guardini. Em
1934, a ensaísta publica “Por el estilo de España” sobre a obra Lope de Vega y su
tiempo, de Vossler. Já na revista Los Cuatro Vientos (n.º 2), a autora espanhola,
em 1933, publica “Nostalgia de la tierra”, texto posteriormente utilizado por Paul
Ilie na obra Documents of the Spanish Vanguard, editado pela Universidade da
Carolina do Norte em 1969. Na revista Cuadernos de la Facultad de Filosofia y
Letras, em 1936, María Zambrano escreve o ensaio “La salvación del individuo
57
en Spinoza”, tema da sua tese de doutorado. Também em 1936, na revista El Sol,
a autora contribui com “Ortega y Gasset universitario”.
Na obra Los intelectuales en el drama de España (1937), Zambrano se
refere ao período inicial após a eclosão da guerra civil, lembrando de quando o trabalho e o combate revestiram o ‘mono’ azul operário, “que llenaba los ojos en el
Madrid luminoso y espléndido en su tragedia, en el Madrid inolvidable, todavía
intacto, de julio y agosto de 1936.” A título de esclarecimento, El Mono Azul, que
desfrutava de uma grande admiração de María Zambrano, foi uma revista publicada pelos republicanos durante a guerra civil espanhola com o apoio da Alianza de
Intelectuales Antifascistas para la Defensa de la Cultura. As suas temáticas
eram muito diversas e englobavam desde instruções militares até escritos sobre literatura e política. O primeiro número foi lançado em 1936 e entre os seus colaboradores estão os mais notáveis intelectuais daquele momento, pertencentes, na sua
grande maioria, à geração de 27. Como destaques, podemos mencionar os nomes
dos espanhóis Miguel Hernández, Lorenzo Varela, Antonio Aparicio, Vicente
Aleixandre, Rafael Alberti, Manuel Altolaguirre, José Bergamín, Luis Cernuda,
Antonio Machado e Ramón J. Sender. Entre os estrangeiros, a revista contou com
Pablo Neruda, Vicente Huidobro e André Malraux. A denominação El Mono
Azul inspirou-se no ‘mono’ (espécie de macacão) que trajavam os ‘milicianos’ durante a guerra civil espanhola no corpo de voluntários para lutar pela causa republicana e pelo seu governo legítimo. Um dos maiores objetivos da revista era alcançar os soldados e conscientizá-los do seu papel na defesa da república e do regime democrático em contraposição ao fascismo representado na figura dos sublevados. No mesmo período de publicação de El Mono Azul, apareceram outros canais de comunicação seriados como Milicia Popular, Avance e A vencer.1 Com o
breve panorama exposto, intencionamos sublinhar que compreender a evolução da
obra ensaística de María Zambrano parte, em primeira instância, de uma análise
das publicações ocorridas nas revistas literárias, que acompanharam o tempo da
1
Dada a relevância de El Mono Azul, parece-nos interessante salientar que, entre as seções mais
lidas da revista, estava o “Romancero de la Guerra Civil”, onde se compilavam os ‘romances’
enviados por soldados e famílias de todos os rincões da Espanha. Em Buenos Aires, no ano de
1944, Rafael Alberti, na obra Romancero General de la Guerra Española, reuniu esses escritos.
Segundo a história da revista, apesar de algumas dificuldades, El Mono Azul resistiu a
quase todo o tempo da guerra, totalizando quarenta e sete números. Suas aparições também
acompanharam o jornal La Voz e Cuadernos de Madrid.
58
aspiração republicana e o período da guerra civil espanhola como fator de união e
debate entre os intelectuais que delas participaram e, ali, apregoaram e divulgaram
as suas crenças.
Anteriormente, pudemos perceber que María Zambrano apresenta uma
relevante contribuição em publicações seriadas na Espanha. Convém alertar que a
autora espanhola naturalmente também escreveu para revistas em outros países da
Europa e da América, as quais ratificaram e contribuíram com o progressivo
desenvolvimento do seu pensar filosófico, favorecido, sobretudo, em seus vários
anos de exílio. Em outras palavras, María Zambrano vai traçando, a partir de uma
rica experiência pessoal, suas próprias linhas conceptivas de um conhecimento
singular acerca da realidade espanhola e da contingência histórica que lhe
correspondeu existir, configurando, como afirma Julián Marías (1969), uma
estrutura empírica que alia vida e criação artística. A ensaísta interessa-se pela
interpretação de alguns autores que constituem o cânone da literatura espanhola,
expressando, dessa maneira, o desejo de ler e discutir a história de sua época.
Nesse movimento de retroalimentação artística entre Zambrano e a tradição
literária espanhola, a escritora consegue formular sua visão civilizatória a partir da
releitura ou evocação da memória cultural do seu país. Compreendemos que a
escritura que remete ao outro é uma maneira de ouvir o pensamento alheio, com a
finalidade de uma auto-aprendizagem ou auto-enriquecimento diverso, na medida
em que somos uma combinação enciclopédica de experiências, informações,
leituras e sonhos coletivos e individuais, que se interpenetram e se misturam
continuamente. A nossa cultura ocidental, conforme sustenta Rafael Enrique
Aguilera Portales (2007), é a do lógos, engendrada a partir de distintos campos do
saber e modalidades enunciativas. A palavra ‘cultura’ que vem do latim ‘colere’,
que significa cultivar não é senão uma forma particular de ver o mundo e o
homem.
4.1. Uma pensadora na Revista de Occidente
Como já tivemos a oportunidade de observar, consideram-se os anos que
compreendem o período de 1923 a 1936 como a idade de ouro das revistas
literárias. Entre essas importantes publicações está a Revista de Occidente.
Reforçamos que a sua importância não está somente na qualidade de seus textos e
59
na plêiade de escritores que fizeram parte de seus colaboradores, mas também se
encontra nas significativas marcas que deixaram e que serviram de elo de
comunicação entre a sua época, os anos subsequentes e a chamada cisão do ano de
1939. É perfeitamente compreensível o fato de que nos anos 30-36 os autores
fossem resituando as preocupações pela criação de um mundo metafórico e
independente de fatores políticos presentes na Geração de 27 por uma politização à
força dos acontecimentos históricos que foram ocorrendo paralelamente às
publicações das próprias revistas, as quais, é evidente, foram juntamente aos seus
colaboradores testemunhas de tais acontecimentos. A literatura deveria deixar de
possuir um caráter eminentemente minoritário e ser capaz de falar ao mundo e às
pessoas de forma geral, onde o autor deveria posicionar-se de maneira clara e
decisiva diante dos acontecimentos políticos e sociais por meio da palavra escrita e
de uma atuação representativa que pudesse defender a liberdade do estado
espanhol. As revistas possuem as etapas de pré e pós-guerra, que imprimiram um
pensamento ideológico à cultura espanhola.
Como afirmamos antes, a Revista de Occidente representa o período
criativo zambraniano antes de 1936, ano em que a Espanha padece sérios
infortúnios com o início da guerra civil. A participação da ensaísta na Revista de
Occidente a torna ainda mais conhecida do público leitor e revela uma formação
erudita inspirada, sobretudo, por Ortega Gasset, García Morente e Zubiri. Seus
escritos dão cabida à constituição de uma filosofia singular em torno do poético
alicerçada na reflexão da crise do pensamento ocidental e da política social
espanhola, onde a guerra civil iniciada em 1936 exercerá um papel fundamental,
pois determinará um exílio voluntário da autora por mais de quarenta anos em
razão do governo franquista. Infelizmente, a Revista de Occidente deixou de ser
publicada no início da guerra civil espanhola.
A Revista de Occidente, como uma publicação espanhola de relevo,
apresenta artigos culturais e científicos heterogêneos pertinentes a várias esferas da
comunidade culta, expandindo-se tanto pela Europa quanto também pela América
Latina. Foi comparada por Ernst Robert Curtius a outras importantes revistas
culturais da Europa naquele momento, como Nouvelle Revue Française e Neue
Rundschau. Sempre ligada às tendências inovadoras do pensamento, da arte e da
60
literatura, despertou naturalmente enorme interesse como um veículo irradiador de
uma cultura espanhola e européia em constante renovação pela excelência de seus
colaboradores. No espaço destinado às Humanidades, houve traduções e textos
sobre importantes filósofos contemporâneos. Foi inaugurada e dirigida pelo
pensador espanhol José Ortega y Gasset em 1923 e apresentou edições até 1936.
Sob a responsabilidade de Ortega y Gasset, a Revista de Occidente tinha o
propósito de reestruturar a vida de uma Espanha em decadência por meio de um
trabalho de europeização, que poderia modificar significativamente a cultura
política do país, embora desde a sua fundação em 1923 até 1930, a revista tenha
vivido as opressões do governo ditatorial de José Antonio Primo de Rivera.
Para levar a efeito essa proposta de europeização, partilhou o seu
engenhoso saber com os leitores da Revista de Occidente uma notável lista de
pensadores estrangeiros, como Carl Jung, Thomas Mann, Max Scheler, Georg
Simmel, Albert Einstein, Werner Heisenberg, Jean Cocteau, Luigi Pirandello,
Benedetto Croce e Johan Huizinga. A publicação dos artigos desses intelectuais na
Revista de Occidente com tradução à língua espanhola viabilizou um acesso mais
facilitado do seu saber ao mundo hispânico.
Entre os colaboradores espanhóis, encontramos ícones como Rafael
Alberti, Vicente Aleixandre, Dámaso Alonso, Max Aub, Francisco Ayala,
Américo Castro, Luis Cernuda, Rosa Chacel, Federico García Lorca, Ramón
Gómez de la Serna, Jorge Guillén, Benjamin Jarnés, Gregorio Marañón, José
Antonio Maravall, Ramón Pérez de Ayala e María Zambrano. Por outro lado,
como Ortega y Gasset tinha a intenção de globalizar o conhecimento tornando a
revista plural e aberta a vários países estrangeiros mediante o uso da língua
espanhola era imprescindível a publicação também de autores latino-americanos,
construindo, realmente, uma convergência intelectual pan-hispânica significativa
para a história espanhola de publicações seriadas. A revista contou com artigos de
Jorge Luis Borges, Pablo Neruda, Eduardo Mallea, Victoria Ocampo, Alfonso
Reyes, Torres Bodet entre outros.
De fato, o nome dado à revista refere-se ao objetivo de congregar trabalhos
de pensadores estrangeiros às não menos relevantes produções nacionais. A
Revista de Occidente foi importante na história intelectual espanhola, pois no seu
61
período fundacional ocorreram encontros, tertúlias e grupos de discussão nos
gabinetes editoriais da revista, o que a caracterizou como um grande núcleo
catalisador da vida intelectual espanhola, cujos leitores faziam parte de um
segmento extremamente culto oriundo principalmente das universidades e das
profissões liberais. Embora inicialmente a revista não intencionasse abordar
acontecimentos políticos, seu perfil foi alterando-se ao longo dos anos em virtude
das
transformações
ocorridas
no
próprio
panorama
político
espanhol,
principalmente a partir do ano de 1929, que se distinguiu como um momento
importante de transição política para o povo espanhol com o abandono, em 1930,
do poder por parte de Primo de Rivera. Essa mudança de postura da Revista de
Occidente procurou aproximar a sua oratória da vida cotidiana espanhola e
despertar o interesse de novos leitores.
Tendo a sua história dividida em fases, a revista cessou suas publicações
em 1936, porém, no ano de 1962, retornou às suas atividades sob a supervisão de
José Ortega Spottorno até o ano de 1980. A partir dos anos 80, a sua filha Soledad
Ortega Spottorno incubiu-se da direção da revista e atualmente lança onze
números por ano, pois o formato dos meses de julho e agosto é duplo.
Como uma publicação já muito conhecida e respeitada no meio intelectual,
María Zambrano começa a publicar na Revista de Occidente em 1933 e
permanece entre seus colaboradores até o ano de 1935, um pouco antes de
terminar a primeira fase da história da revista. No total, a pensadora espanhola
publica oito artigos entre 1933 e 1935, que podemos caracterizar como ensaios
filosóficos, tipo de discurso constante em sua trajetória literária. É interessante
observar que sua vida intelectual recém havia começado efetivamente, já que antes
de sua incorporação à Revista de Occidente havia publicado sua primeira obra
Horizonte del liberalismo (1930), na qual já se encontrava compromissada com o
movimento de oposição à ditadura de Primo de Rivera nesse mesmo ano
terminada. O desejo de uma geração renovadora das ideias e do fim de um regime
político de opressão define essa primeira obra zambraniana de 1930, que, através
de uma filosofia política, leva a termo uma filosofia crítica da modernidade. Com
o liberalismo e a democracia, o homem moderno pode chegar a ser pessoa. No
entanto, para lograr esse objetivo, o ser precisa rediscutir-se, entrar em crise,
62
equilibrando-se entre a necessidade de uma inescapável razão histórica e uma
urgente sede de razão poética.
Na Revista de Occidente, no período de 1933 a 1936, a atividade
intelectual em núcleos editoriais foi protéica, propiciando um importante contexto
de debates filosóficos na Espanha. Essa revista era, decerto, um centro que reunia
e disseminava um labor periodístico intelectual de peso, contudo, no ano de 1936,
essa publicação já não existe e, um pouco mais tarde, uma série de escritores
abandona o país e parte rumo ao exílio.
María Zambrano, em seus primeiros artigos, que defendem a República,
dedicou-se a escrever críticas a obras literárias, sob as quais podia desenvolver
seus próprios conceitos artísticos. Vários desses textos podem ser encontrados na
obra Los intelectuales en el drama de España (1937). Nas publicações
posteriores, a autora espanhola começa a abandonar a crítica literária e surge com
textos que vão desenhando um método original de reflexão filosófica. “Por qué se
escribe” e “Hacia un saber sobre el alma” tornar-se-ão emblemáticos dentro do
conjunto de sua obra.
Conforme havíamos explicado na introdução, na Revista de Occidente,
nosso intento é estudar o ensaio “Por qué se escribe” (Madri, t.XLIV, n.º 132, junho 1934, pp.318-328), primeiro texto filosófico de María Zambrano, que traduz
uma criação originária de cunho marcadamente pessoal anterior a 1936, ano em
que teve início a guerra civil espanhola. Antes dessa análise, contudo, parece-nos
apropriado fazer referência a dois outros ensaios precedentes escritos por María
Zambrano também na Revista de Occidente, cujos títulos são “Hoffmann: «Descartes»” (resenha, Madri, t.XXXIX, n.º 117, março 1933, pp.142-145) e “Robert
Aron y Arnaud Dandieu. «La Révolution Nécessaire»” (resenha, Madri, t.XLIV,
n.º 131, maio 1934, pp.209-221). Acreditamos que, para a nossa pesquisa, esses
dois últimos textos deixam transparecer as linhas mestras que orientam o pensamento estético zambraniano e subsidiam a construção de “Por qué se escribe”,
além de prepararem o leitor para a recepção desse primeiro ensaio filosófico particular da autora, cujos pressupostos artísticos serão reiterados e desenvolvidos no
decorrer de sua obra.
63
No ensaio “Hoffmann: «Descartes»”, María Zambrano comenta o livro de
Hoffmann, escritor alemão, que discute o sistema de Descartes aliado aos seus
pensamentos e crenças, onde também podemos perceber a remissão a alguns dados
biográficos do filósofo francês do final do século XVII. Temos ciência de que
Descartes, como uma das figuras basilares na revolução científica, se notabiliza
como um dos intelectuais mais relevantes e influenciadores na história do
pensamento ocidental. Como o primeiro filósofo moderno, conseguiu cativar a
atenção tanto dos seus contemporâneos como também dos seus descendentes. No
texto, Zambrano afirma que a tradição filosófica aparece, em diversos momentos,
como um questionamento às suas obras e até mesmo a autores inspirados pelo
pensador francês. No processo de construção dos ensaios de María Zambrano,
observamos que a autora remete-se a grandes nomes da filosofia, realizando um
metadiscurso, onde lhe é possível tornar públicas as suas próprias visões sobre o
tema. Em “Hoffmann: «Descartes»”, a escritora malaguenha disserta sobre o ofício
de ser filósofo, como um modo de ser e de viver humano que conduz à promoção
de suas aflições a níveis racionais e teoréticos.
Un filósofo es el hombre en quien la intimidad se eleva a categoría racional;
sus conflictos sentimentales, su encuentro –encontronazo– con el mundo se
resuelve y transforma en una teoría. Es el hombre que logra cristalizar su angustia
en el diamante puro, geométrico y transparente de un pensamiento sistemático, de
un logos, el que resuelve sus pasiones more geometrico. La biografía de un filósofo
es un sistema. (ZAMBRANO, M., 1933, p.345)
No caminho do filósofo, porém, há muitos percalços, pois antes de tudo ele
é um simples homem, com vacilações e paradoxos. Por isso, a autora diz que a
Filosofia, ao contrário de um dom divino ou iluminação, desponta como um
esforço racional por tentar amenizar um caos interno. Caos interno e metafísico,
que põe em dúvida as próprias circunstâncias. Zambrano assegura que justamente
um homem e um homem de seu tempo foi Descartes em uma Europa em clímax
histórico, na qual a juventude representa a fé de todos ao mesmo tempo em que
questiona o seu próprio contexto. A autora menciona o viver sempre em perigo,
mas conservando a lucidez nietzscheano para se referir à consciência sobre a
natureza da vida e a condição contraditória do homem em um mundo que
experimenta constantemente a crise e o desejo permanente de renovação do
64
destino: “La vida del filósofo Descartes nos muestra que no le son necesarias a la
vida humana, aventuras extraordinarias para estar en peligro, pues es ella misma el
acontecimiento más peligroso del universo.” (ibidem, p.346) María Zambrano
critica a intolerância européia às vertigens ou às inseguranças, dúvidas tão
necessárias à rotina da vida, a menos que dificilmente possa se encontrar algo
verdadeiro ou apaziguador que consiga aquietar o anseio dessa busca pessoal. A
vida em desespero é relegada quando o homem não é capaz de constatar a ausência
de algo, embora o destino humano esteja atormentado pelo inquietante sentimento
de carência. Essas angústias são comuns aos pensadores, que tomam para si o
compromisso ético de delatar as incongruências de seu tempo. María Zambrano
considera esse pensamento oposto à situação vital ou às tendências modernas de
bovarismo presentes naquele tempo, pois, segundo a autora, “Madame Bovary y
sus discípulas necesitan que les ocurran cosas, que su vida se vea rota por
acontecimientos inusitados, llegados de fuera, extraños a ella, para darse cuenta,
por el peligro ante lo inesperado, de que en verdad existen.” (ibid., p.347) Em
razão da leitura de María Zambrano, julgamos que o entendimento humano de suas
próprias estruturas culturais, econômicas, sociais, políticas respondem à uma ânsia
de consciência de si mesmo, da descoberta de uma quintaessência primordial do
sujeito, que ao revelar o desconhecido, também se desvela na aventura de sua
existência e no sabor desafiador das incertezas que o rodeiam.
Pero hoy el intelectual en Europa tiene, además de los motivos permanentes
y esenciales que originaron la duda cartesiana, otros críticos, concretos y actuales
que añadir al peligro. Como ser humano, dotado de un imperativo de claridad, tiene
el europeo de hoy los mismos motivos de Descartes para dudar metafísicamente de
la totalidad de cuanto existe. Pero se encuentra, además, viviendo en un mundo en
crisis, en medio de una cultura, de una estructura económica y social que parece
negarse a seguir sosteniéndole. Ahora más que nunca el intelectual europeo vive en
peligro y su imperativo de claridad le exige que viva serena y luminosamente en
peligro, alumbrando con su propia luz sin llamas el fondo oscuro en que tal vez su
cultura, su mundo y con él el sentido de su propia existencia, pueden disolverse un
instante u otro. (ibid., p.348)
É óbvio que essa forma de pensar a realidade em toda a sua amplitude é
inegavelmente influenciada pela ideia de modernidade, que, ao lado da concepção
do progresso, identifica-se com o que é novo, o qual, por sua vez, aponta para a
ruptura do já existente através do procedimento crítico da mudança e da
65
renovação. Naquela época de esplendor parisiense do século XVII, certamente,
Descartes, afirma Zambrano, possuía um foco diferente do sentimento da dúvida
em torno de tudo que circunda o homem, pois a sua consciência forma-se mediante
o perigo em que se encontra, sob a égide de uma permanência ou essencialidade
das coisas, quando, na verdade, permanência e essencialidade complementam
conceitos, mas não os abrangem totalmente. Sem dúvida, a escritora espanhola
concebe, por meio de um discurso do saber filosófico sustentado pela consciência
crítica e autônoma do intelectual, uma imagem de ensaísta, que vislumbra a sua
circunstância histórica moderna como uma idade em que incertezas e
transformações de toda ordem fazem parte indissociável da subjetividade em crise
do escritor: “La vida sólo precisa de la conciencia de ser vivida para constituir la
más peligrosa y fantástica aventura que puede pensarse. En su virtud, el filósofo es
el más audaz aventurero, el que ejecuta el más arriesgado juego, poniendo su vida
en el máximo peligro al pretender alcanzar la suma claridad de su conciencia.”
(ibid., p.347)
Em “Hoffmann: «Descartes»”, a ensaísta escreve que o ‘método
cartesiano’, seguindo uma tendência da modernidade, refere-se a um ceticismo
metodológico, no qual se preconiza a dúvida de cada ideia que não tenha clareza
ou que seja distinta. Isso vem contradizer o pensamento grego e da escolástica
tradicionais, que defendiam a existência quase que divina das coisas por elas
precisarem simplesmente existir e era assim porque deveria ser dessa maneira.
Segundo esse ensaio zambraniano, a grande contribuição filosófica de Descartes
foi mostrar que só se pode dizer que existe o que pode ser provado, isto é, eu
duvido até que provem que o objeto da minha descrença é claro, diferente e
irrefragável. A existência cartesiana da subjetividade está na crença de que o eu
duvida e, por conseguinte, prova que é sujeito de alguma coisa e de Deus –cogito
ergo sum. No texto da autora, lemos que Descartes é o precursor do racionalismo
da Era Moderna, movimento a partir do qual foi possível, alguns anos mais tarde, o
surgimento de uma visão reagente propiciada pelo pensamento empírico de John
Locke e David Hume. Conforme esse ângulo de visão, podemos afirmar que o
gênero ensaístico surgiu como uma classe de texto que questiona o sujeito
fabricado pelo absolutismo do racionalismo moderno, na medida em que acaba
66
renegando o caráter individual, histórico, biográfico e empírico do homem. Ao
longo do trabalho, será possível comprovarmos que o método ensaístico filopoético de María Zambrano adota um impacto dramático espetacular de escritura,
cujo ponto de partida, em resposta à crise da subjetividade, compreende o eu do
ensaísta como uma representação de si mesmo no próprio texto. Dentro dessa
perspectiva, o ensaio configura-se como um gênero discursivo capaz de não
desprezar a experiência, visto que não nega o sujeito como uma instância de
enunciação. Dessa maneira, o filósofo aparece como um pensador que se atribui
uma responsabilidade ética e moral, que almeja se aprofundar nas especificidades
da existência e no projeto de se colocar sempre em tensão, com o objetivo de
converter a sua vivência transparente ou consciente à sua própria razão. Apesar de
ser uma publicação bem posterior, é interessante observar o que María Zambrano
nos confessa em “Adsum” (1955): “[…] cuando lo mido (mi yo), siento que es
mío, que podría ir más allá, pero que este más acá a donde he ido a parar, ahí soy
yo, ahí no tengo más remedio que aceptar responsabilidad, porque es el punto de la
moral y es un punto también de revelación.” (ZAMBRANO, M., 1987, p.70)
Retomando a figura de Descartes, sabemos que, como um inquiridor do seu
tempo, o escritor defendia que a essência do sujeito e da vida era a consciência.
Para María Zambrano, o labor filosófico começa com a percepção do divino,
mediante o qual o homem procura elucidar a vida diária para escapar da
ignorância, da falta, do desconhecimento do ser mediante o extrapolamento de
todos os conceitos racionais. A atitude filosófica está precisamente no ato
indagador que pretende entender as ‘coisas da vida’. Ao lado da atitude filosófica
interrogadora, sedenta por acalmar a tragicidade indigente do desconhecimento,
emerge, na concepção literária zambraniana, a atitude poética, que responde aos
desassossegos do homem, preenchendo os seus vazios e atribuindo, de alguma
forma, sentido a tudo, enfim, conferindo-lhe identidade. Se aceitarmos a realidade
de que o ato de perguntar é eterno e que continuamente conceitos estão sendo
destruídos ou revistos pelo pensamento humano, teremos, inegavelmente, a
consciência de que sempre retornaremos ao estado atemorizante, sagrado ou
trágico do começo. Esse conceito da necessidade de regressar ao princípio de tudo,
tendo como objetivo a autocompreensão é promovido pelo pensamento
67
zambraniano diversas vezes na escritura das suas obras e, nós, o abordaremos de
modo intenso.
A interpretação desse ensaio zambraniano, “Hoffmann: «Descartes»”, énos pertinente, pois, como vimos, surge como um ponto crítico de inflexão da
modernidade, que María Zambrano vai desenvolver de uma maneira repetidamente
inovadora em seus escritos, tomando como sustentação basilar a assertiva de que o
homem moderno tem a característica de persistir na dúvida em relação a quase
tudo, pois se nos é claro que o mundo da modernidade é o da crise, o do perigo, é
natural que a busca por uma clareza jamais é categórica, pelo contrário, ela se
renova por meio da recusa ao absolutismo de valores ditos permanentes e na
brecha do pensar revigorado de que tudo o que existe, inclusive o eu, pode mudar a
qualquer momento.
Em “Robert Aron y Arnaud Dandieu. «La Révolution Nécessaire»”
(resenha, Madri, t.XLIV, n.º 131, maio 1934, pp.209-221), María Zambrano
explica que na obra se critica o pensamento, a obra teórica e a consequente
inspiração revolucionária comunista de Marx mediante a ideia da revolução como
essência criadora do homem, opondo-os às concepções de Bakunin, teórico
político russo, expoente principal do anarquismo, o qual expressaria o verídico
sentido da revolução. Segundo o último:
El instinto de revuelta es un hecho primordial, animal, se le encuentra en
diferentes grados de cada ser viviente, y la energía, la potencia vital de cada uno, se
mide según su intensidad. En el hombre, al lado de las necesidades económicas,
deviene ella el agente más poderoso de todas las emancipaciones humanas.
(BAKUNIN, M., 2009 apud ZAMBRANO, M., 1934, pp.209, 210)
A natureza revolucionária e anarquicamente transformadora faz parte da
idiossincrasia humana e da sociedade, como forma de sua (re)criação e como fonte
geradora da (re)construção da história através da consciência pessoal e do
estabelecimento da ordem pública, que identificam o ser humano como um ente
em conflito pela crise do mundo capitalista.
Bakunin parte –nos dicen los autores– de una naturaleza humana concreta,
naturalmente es revolucionaria. Esta persona concreta está dentro de la masa, pero
la masa no es de distinta contextura que la persona concreta; en ella sigue siguiendo
el instinto revolucionario creador, es, como el individuo, anárquica. (ibidem, p.210)
68
Bakunin, defensor da ‘teoria da ação política’, acreditava que o objetivo
revolucionário deveria atuar no sentido de aniquilar o Estado, ‘as coisas’ e não o
homem. Lutava a favor da continuidade de uma herança antiautoritária e em prol
da característica anarquista descentralizadora da autoridade e do Estado, que
pretendia possibilitar o desenvolvimento do indivíduo e dos países. Na verdade,
Bakunin deixou muitos ensinamentos, visto que, depois de sua morte em 1876,
fatos políticos como a Insurreição Anarquista do Rio de Janeiro em 1918, a Guerra
Civil Espanhola e a Revolução Espanhola em 1936 tiveram intensa participação de
defensores de uma mentalidade anarquista. María Zambrano tenta esclarecer o
conceito de algumas terminologias utilizadas em La Révolution Nécessaire, como
‘masa’, ‘sociedad’, ‘estado’:
[…] masa es la reunión humana espontánea, anárquica, para pasar a la cual el
individuo no ha tenido que tender ningún puente, pues ningún abismo les separa. Al
igual que en el hombre existe una naturaleza espontáneamente revolucionaria, es
decir, que en el hombre en su pureza es revolucionario, la sociedad, en su pureza aestatal, es de idéntica naturaleza revolucionaria. Existe una identidad de naturaleza
esencial entre individuo y masa. El hombre y la masa son espontánea y
necesariamente anárquicos y revolucionarios […] (ibid., p.211)
69
María Zambrano reflete também sobre outros conceitos colocados a
maneira de citação no seu texto crítico sobre La Révolution Nécessaire, como o
enfrentamento entre o indivíduo e a sociedade considerados igualmente
anárquicos, onde, na realidade, portanto, inexiste uma oposição. Esses são
fenômenos de ‘idêntica natureza’, já que um se insere no outro como seres vitais
formados a partir de uma vivência comum. De outro lado, certo segmento da
crítica opina que Marx substitui o conceito de ‘massa’ por ‘classe’. Assim, quem
realizaria a revolução comunista seria a classe, onde a figura do homem
incorporaria a do proletário e não a massa como homem. Na visão zambraniana,
isso acaba resultando em um mascaramento dos ideais revolucionários do
marxismo, além de colocá-lo em paralelo com o capitalismo burguês, na medida
em que é o homem como burguês que se protege da revolução marxista e é o
homem como proletário dentro de uma classe desfavorecida e oprimida que deseja
substituir a elite dominante. Segundo a autora, essa dicotomia aparece como um
equívoco recorrente no pensamento anarquista. Dessa perspectiva, capitalismo e
comunismo partem de uns mesmos princípios e sucumbirão sob os efeitos de suas
próprias revoluções. O progresso define-se por meio da ideia de acumulação e
crescimento nos âmbitos monetário, científico e tecnológico, que nutrem a
permanência e tornam materialmente promissor o nosso projeto histórico. Na
concepção de Eduardo Subirats, o plano da modernidade nasce ao mesmo tempo
em que o plano do progresso, estando, por conseguinte, um unido
indissociavelmente ao outro. Como o termo ‘modernidade’ traz à memória a noção
de crise, Subirats afirma que modernidade, crise e progresso são peças-chave que
singularizam o nosso tempo. O espírito crítico moderno favorece a utilização de
um discurso polifônico, onde a figura do intelectual surge como uma entidade à
margem da opinião comum.
A finales del siglo pasado, Karl Marx puso en entredicho el ideal romántico del
progreso cultural, el cual suponía una identidad de principio entre el desarrollo
científico-técnico y la libertad humana en un plano espiritual y social. Su análisis
sociológico-filosófico muestra la herida de una sociedad a partir de entonces
definida como antagónica. Es cierto que, entre tanto, la capacidad política y
tecnológica de integración de los Estados modernos desarrollados, permiten
neutralizar este antagonismo, bajo formas de control institucional en lo que respecta
a los conflictos sociales entre clases, o bajo las formas de intervención militar en lo
que respecta a los conflictos entre países pobres y ricos. Pero la realidad de una
70
sociedad antagónica de intereses persiste en la conciencia de todos. (SUBIRATS,
E., 1991, pp.129, 130)
71
A verdadeira revolução aparece muitas vezes abandonada pelos
revolucionários atuais. Contra isso é que María Zambrano também adota a posição
do intelectual dissidente e oposicionista, que promove sua personalidade artística a
partir da construção de uma identidade em resistência, cuja distinção essencial é a
de possuir afinidade com o fracasso e a perda da mesma forma que Unamuno, em
seu tempo, procedia à criação de um herói trágico moderno, cuja peculiaridade
fundamental era vencer a morte e o esquecimento funesto da existência humana
por meio da salvação da escritura imortalizadora. Dessa maneira, o sujeito, como
instância de enunciação, necessita reafirmar-se em situações de polêmica, para que
o ensaio cumpra o objetivo de denúncia que o impulsiona e justifica. O ensaio
cresce à luz de uma responsabilidade discursiva que deseja reforzar valores do
lado contrário do poder constituído.
72
Dentro desse ensaio sobre La Révolution Nécessaire de Robert Aron e
Arnaud Dandieu, María Zambrano propõe-se a debater diversos capítulos dessa
obra dada a importância que o tema infunde em suas concepções filosóficas do
existir em defesa da luta pela realização histórica e espiritual de si mesmo. Em La
Révolution Nécessaire, um dos capítulos comentados é ‘Esprit et Révolution’,
que discute brevemente a natureza da ‘verdadeira revolução’ instaurada mediante
um sentimento de crise, que inaugura uma ordem nova em resposta à uma angústia
do indivíduo. A autora espanhola comenta que Marx admite que existe a luta de
classes, em que o regime dominante se apóia no segmento social menos
favorecido. Por esse motivo, para María Zambrano, esse é o núcleo da obra, apesar
de ainda tecer-lhe algumas críticas sobre a falta de esclarecimentos sobre as
relações entre indivíduo e sociedade, que aparecem com terminologias
precipitadas e oscilantes. Em La Révolution Nécessaire, a ensaísta ainda
polemiza o capítulo ‘De la esclavitud al servicio’, o qual revela que o fato de
existir o proletariado, uma classe explorada tanto econômica como também
espiritualmente, possibilita o nascimento das autênticas revoluções, pois, de uma
forma ou de outra, o povo toma consciência de sua condição e de sua importância,
entendendo, assim, que merece um lugar mais destacado na pirâmide social, a fim
de obter um padrão de vida mais elevado e digno. Zambrano afirma que esse
querer, essa ambição e também a frustração são o alimento do movimento
revolucionário legítimo, embora a figura do proletário seja a que passe
permanentemente por crises situacionais dentro da historia das sociedades
capitalistas. A revolução apresenta, na sua essência, a ideia da criação, cujo
fundamento encontra-se no momento presente, com o intuito de conseguir um
resultado diferente e novo no futuro. Sua característica principal é a
imprevisibilidade que alberga a oportunidade de recomeçar ou mudar o que
insatisfatoriamente se vive.
73
María Zambrano escreve, com apoio na análise de La Révolution
Nécessaire, que o elemento primordial revolucionário cristaliza-se na tensão
propiciadora da criação, cujo ponto de partida é o presente buscador de uma
realidade inédita, diferente, a qual funcionará como uma tentativa de válvula de
escape para a desorganização vigente: “Revolución es eso: afloración de algo, un
nuevo orden que antes no existía y que viniendo a sustituir a un viejo desorden no
está dado, sin embargo, enteramente en función de ese orden, aunque venga a
remediarle.” (ZAMBRANO, M., 1934, p.215) No entanto, a fé no homem deve
prosseguir para a instauração das esperanças em um futuro renovador. O
sentimento revolucionário é inerente à constituição humana e ao desenvolvimento
da própria história. María Zambrano assevera que o livro em questão foi escrito na
mais alta sensibilidade vivenciada em sua época e, por isso, padece a carência de
distanciamento para vislumbrar de maneira mais imparcial os problemas, que
alertam para a necessidade de uma busca de teorias libertadoras do homem em seu
meio, que anunciem uma filosofia radical de transformação. Com efeito, os
intelectuais sempre lutam por encontrar ideias que lhe permitam uma iluminação
ante si mesmos e ante as coisas do mundo, que sirva como subsídio para
compreender a essência e os mistérios anímicos primordiais do homem. O espírito
em crise de mudança, portanto, como o maior desejo revolucionário, manifesta-se
pela violência como princípio vital, pois luta com a finalidade de autopreservar-se
e sobreviver às intempéries da existência.
74
Para Zambrano, guerra e crise desfrutam de uma origem eminentemente
filosófica, pois constituem a própria vida e vida e filosofia possuem ligações
estreitas, fazendo nascer o próprio conceito da razão vital, propugnado por Ortega
y Gasset. Em La Révolution Nécessaire, segundo María Zambrano, o desejo de
uma teorização do homem persiste no capítulo ‘Theorie de la Révolution’, onde o
cartesianismo e o hegelianismo se criticam como uma manifestação do
pensamento racional acerca da vida do homem. A realidade não está sujeita tão
somente à razão humana, mas também possui uma característica enigmática que
não se pode prescindir e que escapa ao controle racional e é exatamente nesse
espaço oculto e desconhecido que sonha o futuro, onde o homem poderá exercitar
sua capacidade inventiva, criadora. Ao longo de seus primeiros textos, julgamos
que María Zambrano já sugere, constrói e desenvolve sua teoria sobre a razão
poética, como uma necessidade espiritual do homem na sua vida, que o conduz ao
divino, enfim, à uma possibilidade de transcendência. A multiplicidade do sujeito
esclarece que o ser humano não está formado essencialmente só pela capacidade
de ter consciência, ou seja, pela racionalidade. Se assim o fosse, correríamos o
risco de ser um todo homogêneo muito mais empobrecido sob as tensas rédeas da
razão. Para nós, é transparente o modo como María Zambrano manifesta, em
vários pontos de seu discurso, a sua crítica do racionalismo, o que vai se tornar
uma perspectiva dominante em seu ensaio. Desse modo, podemos inferir que o
discurso ensaístico, como uma escritura em constante avanço ou progressão,
denota uma simbiose com o seu tempo, pelo fato de que a cultura e a comunidade
onde surge disponibilizam os instrumentos necessários para o desenvolvimento da
reflexão do ensaísta, que colabora com a possibilidade de reforma do pensamento
em voga. Esse aspecto errático, descentrado e inespecífico do ensaio, segundo
certifica Adorno (2003, p.17), é o que lhe outorga a se desobrigar de uma habitual
noção de verdade, já que a sua forma de expor indica sempre só uma aproximação
concludente, que solicita desestabilizar as bases de um mundo exclusivamente
lógico.
75
O filósofo alemão George Simmel (2008), também citado por Eduardo
Subirats (1991, p.130), referiu-se, do mesmo modo, à crise da modernidade sob o
uso da expressão ‘tragédia da cultura’. Simmel, reeditando ideias de outros
pensadores como Scheler e Cassirer, estudou os aspectos dissociadores e
aniquilantes que o progresso com o desenvolvimento econômico e científicotecnológico apresenta e os efeitos alienantes para a cultura que advêm do
racionalismo prático da sociedade. Juntamente a um processo expansionista
moderno, verificam-se também perdas significativas para o ser humano, que lhe
mostram que todo processo civilizatório possui preços a pagar. Em um rápido
parêntesis, permitimo-nos acrescentar que, há muito, esse pensamento vem sendo
debatido por autores como Freud, visto que, na sua obra Mal-estar na civilização,
escrita em 1929, o fundador da psicanálise já polemiza a questão da repressão
social, onde o homem está vulnerável a um tipo de controle, que o alheia e inibe o
seu próprio desenvolvimento. José Donizetti Morbidelli sustém que, como o
instinto humano é primordialmente agressivo, quando o homem se liberta de um
sistema opressor, a sua inclinação é a de destruir o meio em que vive. Na verdade,
segundo Morbidelli, “o desenvolvimento do indivíduo, bem como da civilização
da qual faz parte, somente são possíveis a partir do controle das pressões impostas
ao homem” (2009). Para Freud, estamos sob a orientação de dois princípios
conflitantes: o princípio do prazer ou de vida e o princípio da realidade ou de
morte. De acordo ainda com Morbidelli (ibid.), na teoria de Freud, enquanto o
instinto de vida tem como fundamento interagir na civilização de forma a
aproximar os indivíduos, trabalhando em favor da vida comunitária, o instinto de
morte age de forma oposta, isto é, contra a civilização. Por encontrar-se alienado
no meio ao qual pertence diante das determinações de uma sociedade tirânica e
sem o vislumbre de um ambiente que permita a total liberdade, o ser humano não
encontra chances para a concretização da sua felicidade, entendida, conforme as
teorias freudianas, como a liberação das energias instintivas. Seguindo os
ensinamentos de Freud, é plausível dizer que nada superaria a felicidade em seu
âmago, contudo sofremos continuamente o desabor de compreender que a
plenitude não existe a não ser na busca, que nos recompensa com alguns
momentos de satisfação temporária, consequência de impulsos, sobretudo, sexuais.
76
Nesse sentido, a nosso ver, a filosofia zambraniana atualiza a teoria de Freud de
que necessitamos o íntimo, a poesia, o divino na existência, posto que constituem a
utopia imprescindível da superação da vida. Como nos caracterizamos pela
procura de ser, paradoxalmente, entretanto, não desistimos da felicidade ou da
completude constantes impossíveis como objeto de nosso amor ou desejo, embora
seja precisamente essa busca que nos provoca a dor, a insatisfação, o fracasso e o
sentimento da tragédia do viver, pois quanto mais controlado instintivamente o
homem, mais agressivas são suas ações.
Essa maneira de ver a realidade e a alma pode ser perfeitamente
interpretada dentro do âmbito anti-racionalista da crítica moderna da qual María
Zambrano faz parte. Desse ponto de vista, podemos deduzir que a crise cultural
moderna ou a cultura moderna do estilaço ou da fragmentação do início afeta a
vida cotidiana em geral, incluindo a arte e a literatura, na medida em que o sujeito
construído pelo racionalismo moderno se distingue pela negação da experiência,
elemento fundamental para o desenvolvimento cultural e espiritual do indivíduo
enquanto pessoa que anseia evoluir a partir da sua própria criação. É fato que a
prosperidade do discurso ensaístico em tempos modernos justifica-se pela
reivindicação da realidade empírica do sujeito concreto através da linguagem
abstrata da filosofia. Defendemos que o malogro do homem moderno propicia que
o ensaio seja o discurso da modernidade e o filósofo seja um dos que pode intervir
no mundo como uma pessoa que almeja ser diferente e única.
77
Se entendermos que o aparecimento do novo, do pensamento, de um desejo
de revolução surgem pelo motivo de que o antigo não conseguiu satisfazer as
necessidades do homem e, por isso, precisa ser renovado, podemos advertir
igualmente que o fracasso do projeto humano e a inacessibilidade a todo o
conhecimento desembocam na ruína, na morte-ressurreição do homem e do seu
mundo. Daí, como sentencia Zambrano, no capítulo sobre ‘Theorie de la
Révolution’de La Révolution Nécessaire, seja realmente justo afirmar que o
espírito revolucionário se origine do próprio pensamento racionalista, que já
profetizaria, subliminarmente, a sua natural derrota. Por meio da inteligência, o
homem conquista, defende-se, cresce, mas também erra e tenta de novo acertar e
encontrar as suas soluções ensaiando outros caminhos. Em função dessa luta
‘dioturna’, a inteligência racional, embora muito necessária e importante,
dificilmente poderá ser considerada onipotente, pois se funda em sua autoiminência de falência, que viabiliza, em contínuos movimentos circulares, a sua
própria revisão (re)criadora. María Zambrano profere que tal pensamento
anarquista colocado por Robert Aron y Arnaud Dandieu em La Révolution
Nécessaire frustra-se, na medida em que esses pensadores não conseguem levar a
cabo o que teorizam e seus conceitos, como a ontologia do homem e do
conhecimento, não são expostos ou formulados com clareza. Além disso, esses
teóricos padecem o infortúnio de viver as vicissitudes que conformam o próprio
destino malogrado de um tempo. Também, segundo a autora malaguenha, talvez
resida precisamente no fracasso dos intentos da obra, toda a sua simpatia e toda a
sua inspiração para reflexões: “Porque resultaba extraño en un pensamiento que
combate el racionalismo, su revolucionarismo esencial. Y ahora se ve claro; es
revolucionario porque no ha conseguido encontrar los pensamientos necesarios
para superar el racionalismo, como era su pretensión y su necesidad.”
(ZAMBRANO, 1934, p. 220) Na verdade, a noção de revolução nasceu do
pensamento racionalista, que tem a consciência de que a vida humana não pode
estar submetida exclusivamente a uma razão total ou pura. Revolução e
racionalismo possuem mais implicações do que de fato se pensaria em admitir.
Entre a contemplação da vida e a consecução do método de análise, os autores de
La Révolution Nécessaire acabam afirmando o que antes haviam rechaçado, pois
78
é extremamente difícil conjugar o social e o político com o metafísico e o
espiritual. Na verdade, o lógos conceitual ou a razão, apesar de não exclusiva ou
hermeticamente única fonte de saber, aparece como um patrimônio cultural
herdado do nascimento da filosofia na Grécia. Na antiguidade clássica, as relações
entre o geral e o particular, o mundo e o indivíduo eram vislumbradas com intensa
harmonia, porém, hoje, a consciência racionalista tenta infrutiferamente dissociar o
que constitui a pluralidade humana e, por isso, muitas vezes, sofre a insuficiência
de suas próprias conceitualizações.
Nos escritos publicados na Revista de Occidente, María Zambrano, ao
lado da crítica literária de obras de autores pertinentes, sobretudo, ao campo da
filosofia, começa a produzir um discurso filosófico singular. Como dissemos
algumas páginas atrás, nessa revista, Zambrano publica “Por qué se escribe”
(Madri, t.XLIV, n.º 132, junho 1934, pp.318-328), seu primeiro ensaio, onde
principia dizendo que “escribir es defender la soledad en que se está”
(ZAMBRANO, M., 1934, p.318) como se a figura intelectual do escritor fosse a de
um exilado consentido, voluntário, que ambiciona o encontro com algo especial,
inédito que somente pode ser alcançado no desterro da escritura, diferentemente do
ato de falar, que se mostra muitas vezes imediato e espontâneo. O fato é que o uso
da palavra liberta provisoriamente de uma situação momentânea e urgente, sendo,
assim, uma reação comumente desencadeada por fatores externos que não
proviriam da verdadeira essência do sujeito.
Escribir viene a ser lo contrario de hablar; se habla por necesidad
momentánea inmediata y al hablar nos hacemos prisioneros de lo que hemos
pronunciado, mientras que en el escribir se halla liberación y perdurabilidad –sólo
se encuentra liberación cuando arribamos a algo permanente–. Salvar a las palabras
de su momentaneidad, de su ser transitorio, y conducirlas en nuestra reconciliación
hacia lo perdurable, es el oficio del que escribe. (ibidem, p.321)
79
A solidão manifesta-se como uma condição da escritura e da crítica acerca
da pulverização do sujeito e das instituições que configuram nossa cultura
ocidental. A ideia do esgotamento da palavra está presente no texto de María
Zambrano, com o conceito de que embora vençamos certos momentos de urgência
pelo uso verbal, logo em seguida a reincidência de fenômenos opressores
sucessivos acaba por subjugar nossa investida, transmutando vitória em derrota.
Ao contrário da confiança no projeto de coletividade, da ruptura dos costumes e da
independência da opinião pública da elite pensante e contestadora, na atualidade, o
intelectual assume o encargo de sua claudicação, como um ente que reconhece e
procura lidar com o sentimento da falta e da imperfeição. Em Intelectual
engajado: uma figura em extinção? (s/d), Marilena Chauí recorre a conceitos
interessantes da Crítica da razão indolente. Contra o desperdício da
experiência (2007), de Boaventura dos Santos, que defende haver-se fundado o
projeto histórico moderno sobre dois pilares: o da regulação e o da emancipação,
sendo que este último encontrou embasamento no que a autora denomina de três
lógicas da autonomia racional, a saber: a racionalidade expressiva das artes, a
racionalidade cognitiva e instrumental da ciência e da técnica e a racionalidade
prática da ética e do direito. Marilena Chauí diz que, assim, o projeto da
modernidade acreditava ser viável um desenvolvimento harmônico da regulação e
da emancipação e a racionalização completa da vida individual e coletiva. No
entanto, a característica abstrata de tais princípios conduziu a uma tendência de
maximização de cada um, que acabou por excluir um deles. O fato é que o projeto
da modernidade e o surgimento da economia capitalista garantiram o triunfo da
80
regulação em detrimento do princípio de emancipação, que seria o lugar ocupado
pelo artista, pelo pensador, enfim, pelo intelectual2. Declara a autora:
Mantendo a terminologia de Boaventura dos Santos, podemos dizer que o pilar
da emancipação ou a lógica da autonomia racional das artes, ciências, técnicas,
ética e direito foi determinante para o surgimento da figura moderna do pensador e
do artista não submetidos às instituições eclesiástica, estatal e acadêmicouniversitária. A autonomia racional moderna das ações (artes, ética, direito e
técnica) e do pensamento (ciências e filosofia) conferiu a seus sujeitos algo mais do
que a independência: conferiu-lhes autoridade teórica e prática para criticar as
instituições religiosas, políticas e acadêmicas, como fizeram os philosophes da
Ilustração Francesa e, no século XIX, para criticar a economia, as relações sociais e
os valores, como fizeram os socialistas utópicos, os anarquistas e os marxistas. O
pilar da autonomia racional tornou possível o surgimento daqueles que, durante o
caso Dreyfus, Zola convocou à cena pública com um novo nome: os intelectuais.
(CHAUI, M., s/d, p.1)
2
A palavra ‘intelectual’ foi usada pela primeira vez na França, nos finais do século XIX, durante
o caso Dreyfus, escândalo político que dividiu o país por muito tempo, para descrever aqueles que
eram ‘Dreyfusards’: Émile Zola, Octave Mirbeau, Anatole France. O termo ‘intelectual’, como
substantivo em francês, é atribuído a Georges Clemenceau em 1898, também um proeminente
defensor de Dreyfus. A entrada e a difusão da nomenclatura ‘intelectual’ na língua castelhana
ocorreram quase ao mesmo tempo em que na francesa graças à mobilização dos professores e
escritores daquele país em torno da polêmica nacional em questão, com o objetivo de influenciar a
opinião pública. Em 1897, descobriu-se que o comandante d’Esterhazy havia identificado um
documento falso utilizado para condenar por alta traição o capitão Alfred Dreyfus, oficial de
artilharia do exército francês, de religião judaica. Como Dreyfus era inocente, o Estado Maior, a
partir de uma estratégia de manipulações, negou-se, a princípio, a revisar o processo e, em
dezembro do mesmo ano, o parlamento francês exonera por votação a d’Esterhazy. Os oficiais de
alta patente da França procuraram ocultar o erro judicial por meio de nacionalismos e xenofobias,
que se difundiram pela Europa no final do século XIX. Diante dessas circunstâncias, o caso
transferiu-se à opinião geral com a publicação, no dia 13 de janeiro de 1898, de J’accuse, de Émile
Zola, no jornal L’Aurore, que, posteriormente, abriu espaço para dar voz a revisionistas e
dreyfusistas. Depois do documento revolucionário de Zola, apareceu uma série de petições e
declarações que foram batizadas de Manifestes de Intellectuels, onde se estreou o referido
vocábulo de repercussão espantosa naquele período.
Na Espanha, a geração de 1898, como um grupo de intelectuais, assumiu a responsabilidade que
a denominação com origem francesa implicava, expressando, com bastante veemência, o intuito de
influenciar culturalmente o país. Podemos comprovar facilmente essa afirmação através da
quantidade de reclamos, circulares e revistas em que observamos juntas as assinaturas de
determinados autores, cujo propósito principal era modificar o sistema político e social espanhol.
81
Em “Por qué se escribe”, María Zambrano entende, portanto, como uma
intelectual do século XX, que do fracasso do falar, nasce a ‘exigência do escrever’:
“Se escribe para reconquistar la derrota sufrida siempre que hemos hablado
largamente.” (ZAMBRANO, M., 1934, p. 319). De acordo com a autora
espanhola, a vitória somente será possível no mesmo lugar da derrota, ou seja, no
campo das palavras, pois estas gozarão de uma perspectiva, de uma função nova
dentro do campo da escritura. Assim como destrõem, as palavras também criam,
tendo a capacidade de preencher o vazio do tempo e mostrando-se como um
espaço de recolhimento defensor da integralidade do momentâneo vital. Walter
Ong considera a escrita como uma forma de tecnologia que causa um grande
impacto em relação à língua falada, podendo transformar imensamente o
pensamento do outro a partir da recriação da oralidade na palavra escrita, que
utiliza o escrever como garantia da preservação da cultura, diferentemente da fala,
que precisa de estratégias diversas para manter a informação, como provérbios,
histórias moralizantes e heróis superdimensionados, que funcionam como
condensadores de todo o saber de um povo. Em Oralidade e cultura escrita
(1998), Walter Ong pretende discutir as diferenças entre a oralidade e sua
expressão verbal em sociedades, onde a população não conhece a tecnologia da
alfabetização ou da escrita. Segundo o autor, essa transição da pura oralidade para
a escrita demonstrou transformações fundamentais no pensamento, que ampliou os
seus horizontes auditivos para a dimensão da visão, como um dom divino,
profético, ilimitado para resguardar o conhecimento e renová-lo a partir do ensino,
do leitor e do tempo.
82
Por sua parte, María Zambrano, em “Por qué se escribe”, anuncia que se no
falar observamos um soltar de palavras, no ato de escrever, há um movimento de
retenção, que torna possível a apropriação e o domínio do sujeito sobre a
enunciação. A partir dessa noção, portanto, o homem buscaria a vitória por meio
de uma reconciliação com as tiranas palavras, enfim, com uma potencialidade
especial de comunicação: “Salvar a las palabras de su vanidad, de su vacuidad,
endureciéndolas, forjándolas perdurablemente, es tras de lo que corre, aun sin
saberlo, quien de veras escribe.” (ZAMBRANO, M., 1934, p.320) Essa é a sede de
vitória sobre as palavras, que nos escapam e nos escarnecem. A revelação do
segredo, do oculto, aquele que não se pode dizer falando talvez por ser verdadeiro
demais, da vida, do tempo é o que se precisa descobrir paulatinamente e comunicar
escrevendo, durante a gestação solitária da escritura, a qual favorece essa avidez
pela busca do conhecimento, da verdade, da iluminação, como em um ato de fé e
fidelidade. Este é o momento da comunicação em que o escritor sai da solidão e
compartilha o seu mistério com o leitor, que, como produtor igualmente de
significados, terá a missão de tentar desvendar o(s) seu(s) sentido(s). Aí se
manifesta a glória do escritor e posteriormente a do leitor, na medida em que se
tornando universal, o escrito deseja produzir um efeito no outro que ele mesmo
momentaneamente não é capaz de conhecer ou dominar. Objetiva fazer com que
alguém se inteire de alguma coisa que desconhecia para alumiá-lo, livrá-lo da
mentira e fazê-lo viver de outra forma. O conhecimento da verdade libera o
homem, livrando-o do silêncio em que se encontrava, pois geralmente a privação
do falar oculta algo que, na verdade, precisa ser dito: “Lo escrito es igualmente un
instrumento para este ansia incontenible de comunicar, de «publicar» el secreto
encontrado, y lo que tiene de belleza formal no puede restarle su primer sentido; el
de producir un efecto, el hacer que alguien se entere de algo.” (ibidem, p.323)
83
É evidente que, em “Por qué se escribe”, María Zambrano denota a
importância da recepção do escrito e da relevância do leitor, na medida em que
coloca em questão o apelo que o autor faz ao seu interlocutor para com ele
compartilhar as suas ideias, as quais atribuem vida e sentido à obra escrita e
publicada, formando uma espécie de androginia divina, complementária do ser em
sua totalidade, quando diz que “un libro, mientras no se lee, es solamente ser en
potencia, tan en potencia como una bomba que no ha estallado.” (ibid.). A
comunhão do escritor com o seu público realiza-se no ato da escritura, quando
existe uma comunicação empreendida pelo escritor. É certo, entretanto, que ela
não se dá somente depois da obra publicada, pois o leitor existe antes da escritura
ou da leitura da própria obra. Pozuelo Yvancos profere que o autor é socialmente
compromissado com a sua obra e que na autobiografia isso adquire uma relevância
ímpar em relação ao leitor, na proporção em que este compreende que “el autor es
productor de textos, que su obra justifica su narración y quizá su vida.” (2006,
p.28) Parece-nos vital ressaltar que, como característica do ensaio e também do
processo autobiográfico que se vale da memória para recordar analogamente o
vivenciado, os escritos de María Zambrano apresentam-se dispersos na forma de
reflexões descontinuadas, que intencionam criar uma consciência emancipatória no
leitor incluído no seio de uma sociedade racionalista moderna. “Por qué se
escribe” e as publicações posteriores da autora espanhola obedecem a um
progressivo discorrer intelectual, mas, no interior dos textos, existe a
fragmentariedade própria do ensaio, que revela uma e outra vez a crise da escritura
instaurada pela crise do sujeito e das sociedades. Os avanços tecnológicos e
industriais propendem à aniquilação da harmonia social sustentada por uma base
de valores religiosos, éticos e estéticos para ceder lugar a uma sociedade
organizada em função da técnica em franco processo de desumanização, tal como
profetizavam pensadores como Ortega e Spengler. A destruição de valores
culturais, segundo Eduardo Subirats, acarreta o aumento das diferenças
econômicas e sociais da mesma maneira que se assiste efusivamente ao
crescimento tecnológico. Paradoxalmente, a racionalização da cultura acompanha
a sua concomitante irracionalização no que se refere ao político, ao psicológico, ao
social, ao ecológico.
84
En cualesquiera de los aspectos institucionales bajo los que se contemple el
progreso tecnológico de nuestro tiempo chocamos con uno y el mismo fenómeno
cultural de desintegración: crisis de la idea de sujeto personal, liquidación de las
concepciones históricas, ya sean filosóficas, ya religiosas, que sostienen nuestra
idea de dignidad humana, de libertad, de integridad física, de moralidad o de gusto
estético. A ello se añaden fenómenos sociales de desesperada desintegración, como
la drogadicción y el terrorismo, según respondan a los conflictos urbanos o a los
conflictos territoriales de nuestra civilización. Ambos extremos son mucho más
ricos como símbolos de un movimiento civilizatorio centrífugo y de fragmentación
de lo que su usual criminalización por parte de los Estados modernos permite ver.
Pero, sobre todo, ponen de manifiesto la contraparte de las nuevas formas de
racionalización tecnológica en la sociedad moderna. (SUBIRATS, E., 1991, p.132)
Em tempos críticos, também é tempo de crítica e a filosofia, como uma
experiência em busca do esclarecimento, possui a função de discutir a existência
humana e o mundo. A cultura moderna, constituída pelos interesses econômicos e
pela busca tecnológica, necessita de uma instância de enunciação contrária para o
exercício da argumentação e para a manutenção do princípio de esperança utópico,
que efetive a continuidade da história e da própria humanidade. Diante do
panorama obstaculizador, mas, ao mesmo tempo, estimulante para a criação ou
para a imaginação crítica, outros modelos de reflexão tornam-se sempre urgentes,
a fim de que consigam atender às exigências dos conflitos vivenciados na
modernidade, como, talvez, um dos melhores meios de libertação do ceticismo e
do desassossego que angustiam o homem.
Na Revista de Occidente, observamos que entre um ensaio e outro, María
Zambrano vai dando continuidade ao seu pensamento, como um grande livro
fragmentado em vários espaços, fazendo comprovar a amplitude e a atualidade de
suas ideias. A autora obedece à característica central da sociedade contemporânea
da ‘reafirmação da aparência’ ou da ‘performatização da experiência’, que visa
criar uma imagem pública através dos meios de comunicação modernos, entre os
quais, o texto escrito ou, hoje em dia, também o material virtual estão nitidamente
presentes. A ideia desse simulacro pretende criar, reforçar ou reconstruir a
experiência, o modo de apreender o mundo e fragilizar a autenticidade das relações
interpessoais. A edificação da figura do escritor baseia-se evidentemente na
consciência de sua própria capacidade auto-inventiva, a qual responde a uma
tendência retórica moderna da ilusão que reavalia fatos históricos, valores éticos e
estéticos, conforme a demanda intrínseca e mercadológica do momento. Na
85
modernidade, o conceito de ‘fachada’ adotado por Eduardo Subirats adquire uma
importância social singular no que se refere à difusão da identidade, que, por sua
vez, acaba desempenhando uma função encobridora do real e, muitas vezes, com
ele estabelece uma relação simbiôntica.
Este carácter de fachada constituye, precisamente por ello, un rasgo
predominante de la cultura moderna, al lado precisamente de su fundamental vacío:
se trata, en definitiva, de una concepción escenográfica de la cultura como
espectáculo mediáticamente generalizado, como representación total (cuya primera
formulación fue la teoría de la obra de arte total; su segunda, la concepción
nacional-socialista de la política como obra de arte; y su tercera, la cultura de los
valores éticos-estéticos mediáticamente escenificados). (SUBIRATS, E., 1991,
p.135)
É inegável que a construção da subjetividade, dentro dos tempos modernos,
é alimentada pela contundente influência dos instrumentos midiáticos e públicos,
fazendo com que a sociedade seja, ao mesmo tempo, idealizadora e consumidora
das próprias imagens e máscaras criadas. Desse ponto de vista, é necessário o
reconhecimento da importância dos meios de comunicação tão necessários e
amplamente utilizados ao longo da história, que legitimaram, sobretudo, a atuação
jornalística e projetaram, de maneira dinâmica e a um público numeroso, tantos
escritores dentro dos diversos campos do conhecimento, entre eles, María
Zambrano. A ensaísta, como uma intelectual moderna, concentra na sua própria
figura a mais alta contradição e, ao mesmo tempo em que critica a tecnologia dos
meios de comunicação de massas, precisa desse canal enunciativo para existir
socialmente na cultura da notoriedade, do espetáculo e da representação, onde
possa exercer o seu papel de crítica e de reflexão a favor de um saber da alma de
libertação primeiramente individual.
Mais uma vez, de acordo com uma perspectiva histórica, após a restauração
bourbônica (1874 a 1931) na Espanha, que termina o exíguo tempo da Primeira
República Espanhola, de 1873 a 1874, proclamou-se, em 1931, a Segunda
República Espanhola com a vitória dos republicanos nas eleições municipais. A
Segunda República criou a Constituição de 1931, também com vários atos
violentos e repressores, como incêndios e assaltos a colégios e conventos em uma
perseguição anticatólica, que igualmente se valia de uma significativa censura à
imprensa. María Zambrano, embora dentro desse contexto cerceador, posicionou-
86
se totalmente a favor desse regime. Na realidade, como uma intelectual moderna
republicana, vislumbrava, nesse sistema político, uma possibilidade de que
homens e mulheres pudessem ter os mesmos direitos e oportunidades. Nesse
período, houve a adesão de vários escritores, como Antonio Machado, Menéndez
Pidal e Pérez de Ayala. A autora malaguenha apresentou uma ativa participação
política em comícios, deu conferências, teve entrevistas com o presidente Azaña e
até lutou pela assinatura de Ortega y Gasset em favor da república, porém não
conseguiu que o pensador defendesse o novo governo em uma emissora de rádio.
A pesar de que, no início, Ortega y Gasset também acreditou na causa republicana,
logo se desiludiu com o governo, criticando-o em artigos e recusando honras
oficiais, que muitos militantes tomaram como deserção. O filósofo espanhol foi
acusado de falangista e fascista, ao qual, um tempo mais tarde, replicou da
seguinte maneira:
Mientras en Madrid los comunistas y sus afines obligaban, bajo las más
graves amenazas, a escritores y profesores, a firmar manifiestos, a hablar por la
radio, etc., cómodamente sentados en sus despachos o en sus clubes, exentos de
toda presión, algunos de los principales escritores ingleses firmaban otro manifiesto
donde se garantizaba que esos comunistas y sus afines eran los defensores de la
libertad. (ORTEGA Y GASSET, J., 1998, p.252)
Realmente, como já mencionamos, com a proclamação da Segunda
República, conseguiram-se muitas conquistas sobressalentes, como o voto
feminino, a igualdade de direitos entre homens e mulheres, a lei do divórcio e do
aborto e a escola mista. Entretanto, esses triunfos somente duraram alguns anos até
subir ao poder a ditadura de Franco em 1939, que arrebatou todos os direitos
conseguidos como o voto das mulheres, a conta bancária particular, o passaporte e
o mais grave de todos: o poder da fala. Com efeito, o governo franquista impingiu
uma série de privações aos espanhóis, que somente reconquistaram os seus direitos
depois de longos 40 anos. María Zambrano chegou a dizer que a República
adiantou-se muito ao seu tempo e, por isso, fracassou. Josep Pla (2006), por sua
vez, afirmou que o sonho republicano foi derrotado, porque caminhou rápido
demais, querendo tudo de uma vez só.
Assim sendo, compreendemos que a criação artística zambraniana na
Revista de Occidente, situada temporalmente nos princípios dos anos 30, e, em
87
especial, no ensaio “Por qué se escribe”, responde às bases de sustentação que
queremos conferir à pesquisa, pois apresentam questões pertinentes como a crítica
do pensamento racionalista ocidental, a necessidade de uma análise e de uma
mudança da história por uma revolução republicana das ideias e a maneira como a
qual o sentimento da falta e a angústia do ser humano levam o intelectual a
escrever por um irresistível desejo de adicionar, na eternidade da escritura,
argumentos diferentes aos vigentes a problemáticas distintivas do homem
moderno, como o questionamento da subjetividade e sua representação artística em
um mundo da encenação da personalidade. É clara a percepção de que María
Zambrano, na Revista de Occidente, por meio de uma escritura literáriofilosófica, já demonstra inquietações éticas e políticas, visto que muito lhe
incomodavam as circunstâncias decadentes em que se contemplava a Espanha
daquela época.
4.2. Dimensão reflexiva e política em Hora de España
Com edições entre janeiro de 1937 e novembro de 1938, somando-se 23
números, Hora de España também representa muito no que diz respeito à
qualidade de seus textos e escritores, como um enlace importante entre a sua época
e a ruptura instaurada em 1939 com a assunção de Francisco Franco ao comando
do governo espanhol. Nesse sentido, dentro do papel político-sócio-intelectual das
revistas literárias, entre elas Hora de España, a escritura apareceu como uma
ferramenta fundamental, para que uma arte emergencial contra a opressão passasse
a ser o foco principal naquele tempo de guerra, cujo objetivo era, de alguma
maneira, assegurar a cultura em um ambiente de obscuridade, onde florescesse,
ainda com mais intensidade, a força de sua produção periódica nos anos
posteriores ao conflito. Do mesmo modo que a Revista de Occidente, Hora de
España dirigia-se a um público privilegiado cultural e intelectualmente, que
encontrou nesta uma continuidade do trabalho da publicação anterior, cujas
edições, como já explicamos, foram suspensas em 1936, sendo, entretanto,
retomadas certo tempo depois. Foi natural o fato de que os leitores fiéis da Revista
de Occidente se tornassem leitores assíduos de Hora de España, obedecendo a
uma ideologia, onde se preconizava que, apesar de homens de letras, o escritor
deveria ter a missão apartidária de discutir, junto com o leitor, a realidade
88
vivenciada naquele momento, sem se enclausurar pessoal ou esteticamente,
colocando-se distante de suas circunstâncias. Em vista disso, podemos asseverar,
segundo Belén Hernández (2005, p.149), que a figura do leitor encarna um
indivíduo pertencente à uma coletividade, sendo um partícipe decisivo na
formação pública da consciência, na medida em que simboliza uma outra
modalidade discursiva de longo alcance com uma proeminente função social.
Decerto, o importante era, acima de tudo, operar em favor da cultura e do
povo, reagindo à uma hora de guerra obrigada ou imposta, que massacrava o
desenvolvimento de toda uma vida cultural em promissor crescimento. Desse
ponto de vista, Hora de España tornou possível o desenvolvimento de um intenso
ritmo de vida intelectual e de produção artística, apesar de todas as aflições do
conflito.
Es cierto que esta hora se viene reflejando en los diarios, proclamas, carteles
y hojas volanderas que día por día flotan en las ciudades. Pero todas esas
publicaciones que son en cierto modo artículos de primera necesidad, platos fuertes,
se expresan en tonos agudos y gestos crispados. Y es forzoso que tras ellas vengan
otras publicaciones de otro tono y otro gesto, publicaciones que, desbordando el
área nacional, puedan ser entendidas por los camaradas o simpatizantes esparcidos
por el mundo, gentes que no entienden por gritos como los familiares de casa,
hispanófilos, en fin, que recibirán inmensa alegría al ver que España prosigue su
vida intelectual o de creación artística en medio del conflicto gigantesco en que se
debate. (Hora de España, 1937, n.º I, enero, pp.5, 6)
Hora de España estava com as páginas abertas às opiniões divergentes, ao
republicanismo, às ideologias esquerdistas, porém sem defesa restrita a qualquer
partido. Porém, sabemos que Hora de España apresentava, ao seu leitor, um ideal
político fortíssimo, que combatia metaforicamente na arte, pela análise do cânone
literário espanhol, a opressão do governo franquista e o projeto da modernidade
como um fracasso do homem na sua existência.
Lendo Propósito, que começa o primeiro número da revista Hora de
España, podemos entender o sentido do seu título e os seus objetivos precípuos:
“El título de nuestra revista lleva implícito su propósito. Estamos viviendo una
hora de España de trascendencia incalculable. Acaso su hora más importante. [...]
Quede, pues, en HORA DE ESPAÑA, y sea nuestro objetivo literario reflejar esta
hora precisa de revolución y guerra civil.” (ibidem) De fato, os anos seguintes
serão de muita dor e sofrimento, um estado de vida trágico para a Espanha e os
89
espanhóis. Dentro da nossa pesquisa, a análise diacrônica da obra-vida de María
Zambrano durante os anos de 1937 e 1938 manifestam um tempo de conflito na
Espanha, onde a crise do país coincide dramaticamente com os problemas políticos
e sociais europeus, a Guerra Mundial e a desdita pessoal e familiar que abateu a
escritora com o falecimento do pai e da mãe, o que reforça a imbricação entre
história, modernidade, tragédia e vida na obra zambraniana. O ensaio, como uma
das maneiras de enunciação mais utilizadas dentro da revista, foi o modo com o
qual uma série de autores deixou patente o espaço de manifestação democrático e
polivalente tanto estilístico como ideológico da publicação.
Muitos autores da geração de 27, como Rafael Dieste, Antonio Barbudo,
Ramón Gaya escreveram para Hora de España e a fundaram com a ajuda do
Ministro da Propaganda da época, Carlos Esplá. Em meados de 1937, María
Zambrano, face ao seu retorno recente do Chile, uniu-se aos colaboradores da
revista. Em Hora de España, encontramos ensaios, poemas, narrações, obras de
teatro, comentários culturais e políticos. Na verdade, insistimos, a publicação
representa uma grande contribuição à vida cultural espanhola em plena guerra com
amplitude internacional. É mister destacar tanto o significado da revista para a
cultura e o homem espanhol, como também a função ou papel dos intelectuais
espanhóis que apoiaram a publicação naquele período de guerra e de revolução.
Apesar de uma forte tendência à politização, Hora de España não perde sua
notável virtude intelectual, que propiciou um maior conhecimento por parte do
público leitor de grandes nomes da geração de 27, bem como de outros autores.
Nesse rol, colocamos García Lorca, Rafael Alberti, Antonio Machado, Dámaso
Alonso e María Zambrano. Chama-nos a atenção o fato de que Hora de España e
todas as revistas, contêm, por vezes, um material de índole rara e preciosa que se
não fosse por sua ação, provavelmente, não chegaria ao público, pois não havia a
intenção de seus autores de que os seus escritos se transformassem em livros.
Vários textos proferem que as revistas surgem com um afã iconoclasta, que
pretende reconstruir conceitos anteriores nos mais diversos campos do saber
científico, social, político, cultural e literário. Daí a quantidade de movimentos,
manifestos, proclamas e propósitos que costumam compor esse tipo de publicação.
Quase todos os autores demonstram um início de produção literária em revistas,
90
nas quais semeiam seus argumentos estéticos e ensaiam seus textos, seu estilo
retórico e a expressão de sua linguagem. Com María Zambrano, não foi diferente e
foi exatamente em virtude desse fato que escolhemos começar a estudar o ensaio
da autora a partir de algumas de suas publicações nesse meio de comunicação.
Podemos declarar, assim, que as revistas prenunciam a obra de um futuro escritor,
na medida em que revelam essas figuras em sua essência originária de produção
escrita e apoiarão o desenvolvimento das obras desses autores até que sejam
consolidadas, se for o caso, em livros. Por apresentarem os modos de pensar e as
crenças de jovens escritores em início de produção artística, a inquietação e as
ideias inovadoras que se contrapõem ao anterior ou ao então estabelecido estão
muito presentes. Sabemos que, em grande medida, os escritores conhecidos do
século XIX e do século XX publicaram uma parte relevante de seus escritos em
revistas ou periódicos literários fundados por eles mesmos ou por companheiros
das letras.
4.2.1. Revolução, modernidade e reencontro com o passado
Em Hora de España, reforçamos o acentuado caráter do seu projeto
político realizado pelos escritores na literatura, denotando um singular
vanguardismo da publicação. Nos números da revista em que publica Zambrano,
seu texto localiza-se ao lado de escritores como Antonio Machado, Montesinos,
Luis Cernuda, Serrano Plaja, Rosa Chacel, Vicente Aleixandre, Vicente Huidobro,
Emilio Prados, Octavio Paz, Altolaguirre, Miguel Hernández e Sánchez Barbudo,
muitos deles da geração de 27, que, no geral, pretendem resgatar um passado
tradicional da Espanha a fim de entender a situação atual em que se encontra o
país. Alem disso, vários discursos referentes à guerra, à revolução e toda uma
defesa da difusão da cultura são questões frequentes ao longo da revista.
Como María Zambrano constrói uma imagem de escritora e de intelectual
no âmbito literário de seu tempo, no texto “La reforma del entendimiento
español” (Valência-Barcelona, n.º IX, setembro 1937, pp. 13-28), se discutirá,
por meio da figura de Dom Quixote, a crise do pensamento ocidental e a
identidade no sangrento espaço da guerra civil daquele momento. A autora, a
partir de questionamentos diversos, reforça seus supostos básicos, que lhe
91
garantem assumir uma singularidade de enunciação no discurso ensaístico.
Podemos afirmar que dito ensaio divide-se em dois momentos, na medida em
que, na primeira parte, a escritora discute o passado espanhol e os motivos que
levaram à decadência política da Espanha às portas da modernidade. Essa forma
de entender a própria história irá conduzir inevitavelmente María Zambrano a
estudar e polemizar as características mais profundas e específicas de toda uma
tradição cultural hispânica.
Dentro da vivência de um contexto trágico, a autora, a partir da leitura do
passado, tem o objetivo de compreender as causas da tragédia que afetava o povo
espanhol naquele momento da escritura do referido ensaio. Na segunda parte de
“La reforma del entendimiento español”, temos o romance de Don Quijote de la
Mancha e o personagem Dom Quixote como núcleo temático. “La reforma del
entendimiento español”, como outros ensaios da pensadora, interpreta a tradição
cultural do povo espanhol, o qual, pela palavra, procura erguer o seu futuro e
conquistar uma independência libertadora. Os escritos zambranianos centram-se
em uma luta pela conscientização de um silêncio sufocante em relação ao
passado, que precisa ser preenchido pela representação literária. A história,
conforme assevera Roger Chartier, é “[…] una escritura siempre construida a
partir de figuras retóricas y de estructuras narrativas que también son las de la
ficción” (CHARTIER, R., 2007, p.22), que, sem sombra de dúvida, requerem um
significativo esforço intelectual por descifrar os mistérios do acontecer pretérito.
Os fatos e a criação, portanto, não são antinômicos, visto que se interpenetram
constantemente tanto na fala como também na escrita. Entretanto, nesse plano da
constituição do ensaio nomeado por Arenas Cruz (1997, pp.33, 34) como
sintático-semântico, é preciso dizer que entre história e escritura, há uma
presença do paradoxo, que elabora o saber não como uma repetição do discurso,
mas como uma construção enunciativa, auxiliada fundamentalmente pelo
conhecimento do alheio. María Zambrano valoriza essa ideia quando em “La
reforma del entendimiento español” distingue as peculiaridades da cultura
espanhola em contraposição aos demais países europeus: “Difícilmente pueblo
alguno de nuestro rango humano ha vivido con tan pocas ideas, ha sido más
ateórico que el nuestro.” (ZAMBRANO, M., 1937, p.14) Para a ensaísta, essa
92
característica supostamente ateórica do povo espanhol é questionável, pois a
Espanha não somente compartilhou, mas também assumiu um compromisso
político sério ao se aliar à luta européia contra a crise desencadeada pela ameaça
fascista. Embora a elite européia houvesse criticado duramente os valores da
tradição cultural espanhola, o povo espanhol solidarizou-se com o resto da
Europa, a fim de salvá-la de um destino nefasto de repressão. Segundo a autora:
“No parece ciertamente Europa merecer lo que por ella hace el pueblo español, y
ni Paris, ni Londres se merecen a Madrid; pero si no se lo merecen, lo necesitan.”
(ibidem, p.16) A identidade define-se por um enfrentamento com o outro, que,
por sua vez, propicia esses muitos sujeitos que inventamos para nós mesmos; daí
que a identidade é uma construção literária e, na verdade, somos a partir do
momento em que tomamos consciência. O ensaio sempre causa polêmica, pois
inclui o alheio e o outro na modernidade, sendo encarado a partir de uma
perspectiva histórica, que necessita de contornos épicos que valorizem o relato.
O fato de que a construção ensaística de María Zambrano se sustente por
um tipo particular de relação que possui com o passado leva-nos a acreditar que a
identidade no está definida propriamente pelos eventos históricos, mas pela
palavra que os dramatiza e os organiza no homem íntimo. Essa é a diferença entre
o passado e a sua representação, cuja memória cumpre o papel de promover a
continuidade de uma história que já não existe, a não ser pela capacidade de
organização psíquica e pela experiência de quem a viveu de uma maneira muito
sui generis. Além disso, é importante também recordar que, hoje em dia, todos os
envolvidos são outros, ou seja, pessoas completamente diferentes.
La lucha terrible que conmueve al pueblo español ha puesto de manifiesto
todo nuestro pasado. Pasa nuestro pasado por nuestra cabeza como si lo soñásemos.
Con ser ahora cada español protagonista de tragedia, diríase que, sin embargo,
deliramos y es nuestro delirio el ayer que «siglo a siglo y gota a gota» sucede
atravesando todas las conciencias. (ibid., p.13)
O sentimento de catástrofe é lugar comum na obra de María Zambrano, que
critica as derrotas de um estado republicano e o padecimento dos horrores da
guerra civil, que provocou uma paralisia intelectual com o exílio de diversos
autores espanhóis, entre eles, a própria ensaísta em 1939. Sabemos que a
93
percepção do trágico moderno espanhol é o pilar essencial de sustentação dessa
época, sobre o qual se poderá desenhar uma imagem da Espanha. Nesse momento,
foi fundamental a formação de um grupo, que instaurou um cânone literário e
artístico com razões ideológicas, nacionalistas, estéticas muito definidas e firmes,
que tentou combater o fracasso do neoliberalismo. Esses intelectuais, muitos deles
exilados, considerar-se-ão um tipo de vanguarda política e social importante de
meditação e participação política no cenário espanhol, capaz de questionar a sua
própria cultura e tradições por meio de linhas de pensamento não conclusivas, que
caracterizam o discurso ensaístico. Na Espanha, a filosofia não está em sistemas
filosóficos, mas na arte. Muitos dos escritores daquela época eram amigos e as
tertúlias realizadas funcionavam como uma instituição para-literária, que tinha
grande valor histórico e artístico, cuja liderança determinava os ideais de todo o
grupo.
Aproveitando-nos dos estudos de Ulrich Grumbrecht (2001, p.9-12),
podemos dizer que a noção do trágico, na forma de um gênero dentro da literatura,
apresenta algumas afinidades com a cultura espanhola em períodos decisivos de
sua história. De fato, as grandes manifestações da cultura ocidental da tragédia
emergiram de uma situação política, cultural e religiosa específica, porquanto o
trágico abarca um sentido extremamente sintomatológico. Por isso, é necessário
analisar esse conceito na cultura ocidental moderna. A experiência do tempo como
trágica requer um estado de espírito em que os conflitos tenham um reflexo
atemorizador em sua vida imediata.
Em um tempo onde a razão queria instalar-se completamente na realidade
humana, se pôde vislumbrar que os acontecimentos históricos arrasaram o delírio
da modernidade e, ainda mais, constatou-se que a ineficiência da racionalidade
pura indicava o fracasso do próprio homem, o qual, acatando a uma diretriz agora
não mais simplesmente histórica, mas também filosófica tenta recuperar-se da
situação de perda pelo uso da palavra ficcional, que transcende a destruição e pode
construir outro porvir. Essa maneira que o sujeito encontra de contemplar o seu
próprio espírito conduz-lhe à surpresa de uma verdade, a uma descoberta de
conceitos tão somente subjetivos, pessoais, cujo valor, em primeira instância,
estará estreitamente relacionado com o indivíduo revelado, com o qual se pode
94
começar a viver e a se expressar novamente de modo particular. É possível que a
busca da verdade parta de um estado romântico intelectual de solidão, no entanto,
desemboca em um encontro com uma comunidade, com os outros que se é e com
os quais dialoga e divide suas inquietações.
A constatação de que a vida precisa ser ilustrada por ideias ou conceitos
acalma as tensões da alma humana, livrando-a das trevas da irreflexão e elevandoa a um nível de sagrado: “En la incertidumbre que es la vida, los conceptos son
límites en que encerramos las cosas, zonas de seguridad en la sorpresa continua de
los acontecimientos.” (ZAMBRANO, M., 1937, p.13) Conforme mencionamos
antes, segundo María Zambrano, ao contrário dos outros povos europeus, os
espanhóis estiveram ‘carentes de ideias’ e, por isso, fundaram padrões
extremamente rígidos para o entendimento do mundo. Como crítica à estupidez da
guerra civil espanhola, a autora indaga-se sobre como pode um povo com tantas
qualidades ficar privado, em sua vida quotidiana, do poder do discernimento
intelectual, que combate o negro sentimento da angústia. O saber não é um
privilégio de poucos que podem tê-lo, mas um movimento importante para que a
vida não se esgote inutilmente. María Zambrano discute os resultados que a forma
de pensar a sua própria cultura proporcionou à vida e ao povo espanhol. Entre as
principais consequências, está o carácter dogmático característico do pensamento
espanhol desde a Contra-reforma. Para o surgimento de ideias, a ensaísta coloca
como imperativo a associação entre vida e pensamento com o objetivo de construir
realidades mais transparentes e mais poeticamente racionais e humanas.
[…] el pensamiento es función necesaria de la vida, se produce por una
íntima necesidad que el hombre tiene de ver, siquiera sea en grado mínimo, con qué
tiene que habérselas, por ser la vida algo que tenemos que hacernos y no regalo
cumplido y acabado, por estar rodeada la misteriosa soledad de cada uno, de cosas
y aconteceres que no sabe lo que son, y por haber destrucción, muerte y sinrazón, es
necesario –y hoy más que nunca– el pensamiento. (ibidem, p.14)
A forma de conhecimento desenvolvida pelo espanhol durante séculos
distanciava-se da que fluía nos ambientes do saber clássico e filosófico dos outros
países da Europa. Dentro do contexto da modernidade, esta disparidade
concatenava perfeitamente com a conturbada situação social do país e a imagem de
êxito e prosperidade do sistema capitalista em plena expansão pelo mundo, que
95
observava com menosprezo o atraso da vida espanhola, embora esta fizesse parte
da cultura do Ocidente. Frente à circunstância de isolamento cultural da Espanha
com relação à Europa e na aparente carência de conceitos e ideias para reencontrar
e compreender o passado de toda uma nação era imprescindível, para a escritora,
descobrir as origens da selvageria irracional que havia provocado uma bárbara
guerra civil. O crescimento da decadência política na Espanha, afirma María
Zambrano, provocou um afastamento dos valores culturais em ebulição no restante
do continente europeu. Nesse cenário de paralisia cultural, surge um forte sistema
dogmático espanhol, quase sagrado, sobre certos conceitos como a honra, a
religião, a unidade nacional, a monarquia, a mistificação do passado, a forma de
ser da Espanha e do espanhol. Ana Bundgard sustenta que
Desde el momento en que se inicia la decadencia del Estado español no
habría existido en el país un pensamiento capaz de desarticular el dogmatismo de la
Iglesia que en colaboración con una Monarquía absolutista y unitaria había
desintegrado paulatinamente a la sociedad desde los tiempos de los Reyes Católicos
hasta el siglo XX. (BUNDGARD, A., 2000, p.308)
Diante desse panorama, torna-se mais lógico pensar que a história
espanhola houvesse se diferenciado por um alto grau de misticismo em
contraposição à uma não oportunidade de se oferecer como um objeto de
conhecimento sistemático e filosófico puramente racional. Tais temas tornam-se
cruciais dentro da história do pensamento hispânico e acabam refletindo um
determinado sentimento niilista vigente, que exprimia um contraste entre a
verdadeira vontade dos espanhóis e a sua circunstância. Para María Zambrano,
essa situação de enfraquecimento político e evidentemente cultural era
extremamente preocupante e grave, na medida em que ocasionou uma forte
segregação entre as classes dominantes, segundo a autora, responsáveis por
congelar o pensamento e por fazer fracassar o estado espanhol e o povo, que, em
sua grande maioria, inconscientemente, acabou tanto realizando o ideário político
do governo, como também sofrendo as suas perversas consequências. Essa
mencionada falta de ideias dificultou ao povo espanhol examinar analiticamente a
sua própria história, o que também impediu que se refletisse suficientemente sobre
a colocação histórica e cultural da Espanha à margem da Europa.
96
Mientras Europa creaba los grandes sistemas filosóficos desde Descartes a
Hegel, con sus consecuencias; mientras descubría los grandes principios del
conocimiento científico de la naturaleza desde Galileo y Newton a la física de la
Relatividad, el español, salvo originalísimas excepciones individuales, se nutría de
otros incógnitos, misteriosos manantiales de saber que nada tenían que ver con esta
magnificiencia teórica, como nada o apenas nada tenía que ver su mísera vida
económica con el esplendor del moderno capitalismo. (ZAMBRANO, M., 1937,
p.15)
Faltou a consciência de que o olhar pretérito é essencial para a
compreensão do seu próprio ser e para verificar em que momentos acertou ou se
equivocou. Para María Zambrano, refletir sobre o passado é condição
indispensável para a análise do presente e do futuro da Espanha; é fundamental
para entender a sua forma de construir o conhecimento. Há certa atitude serena ou
madura do sujeito quando, diante do trágico, mostra-se em relação ao destino ou
ao inevitável no que concerne à sua tragédia pessoal, histórica e cultural. A
tragédia ocidental floresceu no momento em que o equilíbrio de uma visão
objetiva racional do mundo chocou-se com uma cultura moderna, na qual
imperava uma cultura da subjetividade. Dentro da sociedade moderna, segundo
Gumbrecht (2001, pp.15, 16), há elementos ‘desparadoxificadores’, que amenizam
ou tentam resolver esses conflitos dentro do mercado capitalista e midiático das
relações financeiras e comerciais.
O único mal ainda irremediável e limitador da ação humana, sustenta
Grumbrecht (ibidem, p.16), é a morte, sobre isso já falava Miguel de Unamuno na
transição do século XIX para o século XX. A morte é o que nos causa pavor e dela
queremos fugir ou retardar a todo custo em um sentimento tragicofóbico inerente a
nosso estar no mundo, levando-se em consideração que somos tragicofílicos, na
medida em que somos também filhos da tragédia do pecado dentro da formação
ocidental da filosofia cristã. Nesse sentido, o sentimento do trágico inicia no nosso
nascimento, permeia nossa vida em diversos instantes e está mais do que presente
em nosso fim. A vida do homem segue o esquema do início, meio e fim trágico, o
qual apresenta relação com a ideia de fracasso, como um sentimento não de
destruição irrevogável, mas sim como uma oportunidade de reflexão filosófica, o
que se torna uma oportunidade também de subir ao palco e fazer de si, como os
ciclos de vida e de morte, também um espetáculo, do qual devemos tirar o melhor
proveito e prazer, já que sua situação é concreta e irremediável. Ao longo de toda a
97
história, o fascínio e a repulsa pela morte, pela tragédia e pelo fracasso são
inegáveis. Muitas vezes, torcemos para que isso aconteça em um movimento
interior de catarse de nossos próprios medos. O pensamento sobre o fracasso é um
valor intelectual e filosófico para María Zambrano, como uma maneira de lidar
com o que a aterroriza e a faz sofrer como escritora e intelectual e como uma
mulher espanhola durante um período de guerra em seu país ao expor o seu
pensamento em relação às suas próprias tragédias e às suas próprias mortes, bem
como as de seu povo com uma intenção estética e ética responsável.
98
5. DIÁLOGOS COM A TRADIÇÃO ESPANHOLA
El Ingenioso Don Quijote de la Mancha de Miguel de Cervantes, desde a
publicação de sua primeira parte em 1605, foi merecedor de uma série de estudos e
críticas literárias. María Zambrano, como uma autora clássica e erudita, também
criou textos sobre esse personagem espanhol. Em Hora de España, em 1937, a
ensaísta espanhola escreve “La reforma del entendimiento español”, que utiliza, na
sua segunda parte, a figura de dom Quixote para refletir, do mesmo modo, sobre a
sua história e seu povo. Segundo podemos perceber, esse é o primeiro ensaio em
que María Zambrano decide abordar a figura ficcional de dom Quixote ao lado da
importância e do sentido dessa obra de Miguel de Cervantes, como uma metonímia
simbólica do homem espanhol. Também em España, sueño y verdad, obra
publicada em 1965, a autora discute o personagem criado por Miguel de
Cervantes. Se dom Quixote foi e é um mito exaustivamente alvo de inúmeras
interpretações, por que motivo María Zambrano, da mesma maneira, o retoma e
escreve ensaios sobre o personagem cervantino? Que relação pretende estabelecer
entre a sua ensaística e a figura de dom Quixote? O que significa esse personagem
para uma escritora espanhola do século XX, que, como outros autores, lê esta obra
de Cervantes séculos após a sua primeira edição?
As reflexões que estabelece María Zambrano com o mito espanhol de dom
Quixote revelam a importância que este inestimável legado literário possui na
criação ensaística da escritora espanhola. Repensar a tradição é empreender um
compromisso com a vida histórica de um povo, que busca, em seus alicerces mais
vigorosos, reconstituir o sólido amparo de sua existência. Na abordagem filopoética zambraniana, Cervantes e outras personalidades da literatura espanhola,
como Galdós, Antonio Machado e Pablo Neruda integram, de modo diverso, mas
inter-relacionado, uma forma de interpretar e reagir a um tempo responsável e
vítima da violência, do conformismo, do sonho, do delírio e do fracasso. Ao ler e
interpretar Dom Quixote, María Zambrano consegue visitar autores importantes
da tradição literária espanhola como Ortega e Unamuno, que também realizam
suas leituras sobre esse personagem de vulto universal, mas que, para a nação
espanhola, adquire uma significação emblemática totalmente particular e especial.
Essa referência persistente aos autores centrais da literatura espanhola colabora,
99
em María Zambrano, obviamente, com a construção de seu processo de
conhecimento, que vê, por exemplo, em dom Quixote, uma das faces do homem
espanhol, cujas angústias e sonhos espirituais configuram a sua (in)consciência
primordial. Juntamente ao estudo de uma série de autores espanhóis, surge como
tema paralelo a importância do romance como veículo de socialização de crenças
dentro do mundo ocidental e como um modo de descifrar o homem e a vida do
espanhol com todas as suas esperanças, acertos e desajustes. Definitivamente, ao
lado de Galdós, Cervantes aparece como um dos mais proeminentes romancistas
espanhóis.
5.1. Cervantes
Como observamos anteriormente, na primeira parte de “La reforma del
entendimiento español”, María Zambrano disserta sobre como as circunstâncias do
malogrado país se articulam com a falta da reconstrução de uma filosofia própria,
que expressasse as vicissitudes da história espanhola. A autora malaguenha utiliza,
de forma introdutória, esse pensamento com o intuito de apresentar o fracasso do
estado espanhol e da vida espanhola como temática central do seu ensaio que
sustentará a sua leitura da figura de dom Quixote e da importância do romance
como gênero literário para determinados momentos da história: “Ni la filosofia ni
el Estado están basados en el fracaso humano como lo está la novela. Por eso, tenía
que ser la novela para los españoles lo que la filosofia para Europa.”
(ZAMBRANO, M., 1937, p.20) O que realmente chama a atenção, reiteramos, é
como o fracasso do estado espanhol e da vida espanhola chocam-se contra uma
nova época de civilização que se contrói na Europa. Nesse texto, o fato da ensaísta
lançar mão de um símbolo nacional, como o de Cervantes e a figura de dom
Quixote, deixa-nos entrever, na sua escritura, contundentes reminescências de uma
consolidada cultura literária espanhola representada por autores como Unamuno e
Ortega y Gasset, que, como já declaramos, muito influenciaram o pensamento da
autora, no sentido de cultivar uma sensibilidade aguçada, no que diz respeito à
existência angustiada, combativa e consciente do homem no mundo.
Em “La reforma del entendimiento español”, as reflexões de María
Zambrano giram em torno do romance moderno como gênero artístico, de Miguel
100
de Cervantes como escritor e de dom Quixote como um personagem de ficção que
encarna determinados perfis da própria realidade espanhola. Para a autora, a figura
de dom Quixote, como um ser ficcional romanesco, é perfeita para simbolizar o
povo espanhol e, nela, realmente, o povo espanhol deveria buscar apoio e
exemplo, já que, em 1937, data de publicação do ensaio, os espanhóis lutavam
bravamente na guerra civil. O objetivo de María Zambrano era demonstrar que em
virtude do absolutismo político e ideológico imperante na Espanha durante tantos
séculos, o romance, e não a filosofia, como no resto da Europa, foi o meio pelo
qual o país pôde desempenhar o seu pensamento crítico. Assim, a não realização
da reforma do entendimento espanhol através do questionamento do estado por
seus próprios membros ou por um pensador político ou, ainda, por filósofos não
ligados à criação literária fez com que houvesse um rompimento das premissas
orientadoras do governo e da vontade geral do povo, originando o período de
guerra civil. A carência da reforma do entendimento espanhol, ou seja, dos
pressupostos ideológicos pátrios, resultou na disseminação original do pensamento
do país no âmbito do romance e dom Quixote, exemplo magnífico de ser humano,
ocupou o restrito espaço ficcional. Para entender os avatares dramáticos
provocados pela guerra civil espanhola, María Zambrano acreditava que o
romance de Cervantes aparecia como uma herança cultural espanhola sem par, que
poderia explicar a questão não ‘reformada’ ou ‘vencida’ do fracasso espanhol,
como se fosse uma verdadeira teoria filosófica. A diferença é que o romance não
está preocupado em encontrar respostas ou soluções aos problemas como a
filosofia; somente vive o fracasso e o desnuda.
Para a autora, muitos romances espanhóis estão baseados na noção do
fracasso humano e, por isso, conseguem criar um verdadeiro sistema de ideias no
nível da prestigiosa moderna filosofia européia. Na verdade, enquanto a religião ou
a filosofía pretendem restaurar o homem e o cosmos mediante a fé, o romance
nada pretende restabelecer, pois vislumbra o mundo tal como é: como um fracasso
histórico dentro da verossimilhança literaria.
Supone la novela una riqueza humana mucho mayor que la Filosofía, porque
supone que algo está ahí, que algo persiste en el fracaso; el novelista no construye
ni añade nada a sus personajes, no reforma la vida, mientras el filósofo la reforma,
creando sobre la vida espontánea, una vida según pensamientos, una vida creada,
101
sistematizada. La novela acepta al hombre, tal y como es en su fracaso, mientras la
Filosofía avanza sola, sin supuestos. (ibidem, p.21)
Por meio de uma reinterpretação da tradição cultural da Espanha, María
Zambrano descobre, em dom Quixote, uma forma ética para a convivência, ideal
importantíssimo para o povo espanhol submergido na mais profunda crise histórica
na guerra civil. Esse saber conviver eticamente abarca a consciência da caridade,
da fraternidade, do sentimento solidário e de confiança, que se identificam na
relação estabelecida entre dom Quixote e Sancho Pança. Se a autora defende que
dom Quixote traduz um modelo que deveria seguir o povo espanhol, ao mesmo
tempo, assegura que, como o personagem cervantino, o povo espanhol é
responsável por reerguer social e espiritualmente o seu próprio país. Esse
pensamento denota um raciocínio extremamente natural se levarmos em
consideração que María Zambrano é uma intelectual da República, que crê na
força, por que não dizer, mística do popular.
O quixotismo, na verdade, representa uma religião do povo espanhol e é
específico da cultura espanhola, porque inclui a aceitação e a confiança em crenças
que retratam o cenário da comédia trágica contemporânea, onde a dúvida e o não
dogmático estão presentes em formas de expressão literária, como o romance e o
ensaio com o intuito de transcender o senso comum e marcar uma identidade
tipicamente espanhola, na qual a luta quixotesca define-se por persistir na batalha
embora se saiba que irá perder.
Para María Zambrano, o pensamento espanhol, no lugar de estar presente
na Filosofia, encontra espaço na literatura, mais precisamente no romance desde a
obra cervantina até a galdosiana, sem mencionar a importante influencia da
picaresca. A queda do Estado republicano espanhol e o estancamento do
pensamento filosófico pela intolerância religiosa e humanista não tornaram
possível uma reforma do entendimento do homem e de suas instituições. Por essa
razão, dom Quixote não fala do seu tempo, mas explora a condição de existência
de outro tempo, da Idade Média e mostra em sua anacronia uma quebra da
sociedade espanhola. E é nesse universo ficcional-real do fracasso que Cervantes
desfila a imagen encantadora e idealista, mas esquálida, sonhadora, ridícula e
derrotada do personagem principal como uma metonímia do povo espanhol. Dom
102
Quixote é a expressão máxima da figura do outro, pois é, com as características de
um herói às avessas, aquele que faz tudo pelo próximo para salvá-lo de uma
suposta perdição, quando quem está perdido no meio de um caos presente e em
solidão em seu mundo é ele mesmo. O personagem encarna o homem falho,
claudicante e sofredor, que se recupera constantemente do fracasso e enfrenta a
vida novamente com os seus dinamismos. Dom Quixote traduz também o espanhol
que está ainda a favor do humano, porque confia, sobretudo, no homem, embora
integre uma sociedade egoísta e cruel, aonde um se superpõe ao seu próximo
sucumbindo a sentimentos nada nobres e ‘guerreando’ por interesses obscuros:
La nobleza de Don Quijote presupone todo lo contrario; él lleva clara e
inequívoca la noción del semejante en el centro de su espíritu; está solo en su
empeño, pero esencialmente acompañado por lo mejor de cada hombre que vive en
él. Es la nobleza esencial del hombre lo que Don Quijote cree y crea, la mutua
confianza y reconocimiento. (ibid., p.23)
Talvez
a
dom
Quixote,
como
também
ao
homem
espanhol,
verdadeiramente, lhe houvesse feito falta organizar o labirinto de seus
consolidados dogmas, a fim de reformar também profundamente a sua forma de
pensar. Mas isto, como pensa María Zambrano, era um avanço intelectual que a
Espanha provavelmente não se teria permitido, ao contrario do que ocorria na
Europa. Por outro prisma, o fracasso não é totalmente negativo, pois com a perda
evolui o homem. Os desastrosos acontecimentos pelos quais passou o povo
espanhol serviram de preparação para o enfrentamento de outros momentos bons e
maus, benditos e infames. No âmbito literário, María Zambrano é um dos
escritores que verifica a situação trágica do homem dentro da modernidade por
meio da ação da palabra que lhe dá um testemunho de valor autêntico.
Nuestro fracaso al no hacer una reforma, la reforma de pensamiento y de
Estado que necesitábamos, hizo replegarse a nuestro más claro entendimiento a la
novela y a nuestro mejor modelo de hombre, quedarse en ente de ficción. De ahí
deriva la situación de cárcel y angustia en que cada vez nos hemos ido encontrando
los españoles, en un espacio que se empequeñecía por momentos y en el que
enloquecían nuestros ímpetus. Los espacios del mundo, en vez de estarnos abiertos,
se convertían en muros, altos muros contra los que rebotaba nuestro deseo, que se
solidificaba en angustia. (ibid., p.24)
103
Zambrano reflete toda a imagem espectral do homem moderno manifestada
desde a polêmica criação literária da geração de 98: a angústia e o fracasso do
sujeito que procura olhar-se a si mesmo, desgostoso dos novos caminhos
percorridos pelas contingências da sua atualidade, como um dom Quixote
resistente ao que não pode aceitar e fiel às suas crenças. Por outro lado, o
sentimento do fracasso suscita a vontade de ser algo mais além da própria
condição. Em fim, o homem trágico espanhol encontra-se diante de uma feroz
encruzilhada: o de seguir adiante com a sabedoria de que tem um inegável passado
e que necessitará conviver com os frutos de tal desastre a fim de refazer as suas
relações humanas e sociais ou simplesmente acabará como um personagem de
livro, como uma sedutora, mas, no final das contas, uma pura imagem de ficção.
De fato, se pensarmos, de outro ponto de vista sobre essa mesma questão,
poderemos deduzir que os seres da ficção e da realidade são os mesmos, na medida
em que são frutos da imaginação. Posso dizer que eu sou o que me imagino, o que
nos leva a perceber que tudo está no parâmetro de como nos percebemos a nós
mesmos. A verdade é a inexistência de verdades; tudo são constructos, ou seja,
formas de organizar os pensamentos. Se compreendermos que toda representação é
uma invenção, é uma operação totalmente intelectualizada, entenderemos também
que, então, uma verdade vale como outra.
Parece-nos que María Zambrano, em 1937, analisando os desabores que a
sociedade espanhola estava enfrentando com o sofrido exílio da inteligência e com
a cruenta revolução, era capaz de compreender que o mundo sempre podia superar
os seus próprios paradigmas, flutuando entre universos distintos de realidade e
ficção, sem que um âmbito pudesse prevalecer valorativamente sobre o outro.
Realismo e idealismo configuram tendências que movem a escritura e o homem
dentro da sua existência no tempo. Recorrer ao passado engloba tanto o desejo de
vislumbrar a realidade como também de contemplar o ideal. Ambos constituem o
presente e revelam ao homem quem ele é a partir do que ignora, teme e aspira. Em
virtude da carência de um sistema filosófico sistemático dentro da cultura
espanhola, o homem espanhol crê que, não por meio de uma razão tão somente
pura, mas, sobretudo, através de uma razão poética, na sua literatura, é possível
compreender de que maneira se estabelecem e se alteram as relações entre o
104
indivíduo e a sociedade da qual faz parte. Os personagens cervantinos e
galdosianos conseguiram transcender a crítica rigorosamente literária para contar a
história de um povo. Em Dom Quixote, Cervantes cria um personagem ambíguo
tragicômico dentro de um mundo repleto de paradoxos e, da mesma forma,
tragicômico. Para a filosofia zambraniana, acreditamos que a figura de dom
Quixote é muito mais trágica do que cômica, já que, ironicamente, utiliza, na
maioria das vezes, a sua suficiência para fazer o que sente vontade e para defender
os seus valores, sendo capaz de abrir um ‘horizonte de liberalismo’ de múltiplas
perspectivas, cujos reflexos recaem principalmente no personagem de seu
escudeiro. Assim como Sancho, dom Quixote, é, inegavelmente, um grande ícone
do individualismo, que, por querer ser alguém diferente, sofre os revesses e os
fracassos das próprias escolhas. Se considerarmos que dom Quixote se confunde
com o seu próprio sonho e vive dentro de um romance o seu ideal, sem ser capaz
de se imaginar dentro do real ou, pelo menos, fora do mundo que criou para ele
mesmo, podemos afirmar que é no embate entre o ser que é e o ser que se atribui o
personagem de Cervantes onde reside a tragédia do homem moderno e também a
tragédia de toda uma vida, que, respeitando uma interpretação possível, pode ser a
espanhola.
No podríamos dudar los españoles de que la figura de don Quijote de la
Mancha sea nuestro más claro mito, lo más cercano a la imagen sagrada. Lo tiene
todo: fortuna literaria, forma plástica, de tan estilizado es casi un signo totémico, ha
nacido en la Mancha, en esa tierra que, entre todas las que integran “la piel de
toro”, presenta más el estigma de lo sagrado. (ZAMBRANO, M., 1994a, p.17)
A evasão de dom Quixote do real ou de uma das suas realidades é uma
maneira de criticar o exclusivismo do racionalismo e a perversidade da história. A
tragédia que o personagem dom Quixote representa é a de, dentro do real
cotidiano, racional e histórico, não possuir outras possibilidades de ser, embora o
sonho esteja sempre presente no plano da vivência diária na forma do herói, do
mito, do ilimitado, do triunfo, da superação do divino e de diversas transgressões
do que é convencional. Ao mesmo tempo em que o sonho liberta dom Quixote,
torna-o prisioneiro da solidão de um mundo que é somente seu, pois o personagem
e o seu sonho são um único, na medida em que a figura literária cervantina traduz
o homem que não consegue existir sem o dilema do seu projeto. Assim é o
espanhol diante da guerra, do drama de ser e da Espanha. Raquel Azún (1987,
105
p.115) declara que esse estado de consciência de dom Quixote quanto às suas
utopias requeria o amparo de acreditar no encantamento do mundo, na sua ilusão.
No entanto, o desejo justificado de se proteger da frustração do não ser cobrava os
seus dividendos através da alienação e do rechazo social. Do ponto de vista de
María Zambrano, a atitude de Cervantes ao transformar a vida do personagem dom
Quixote em romance nos alerta sobre a tragédia que é a fidelidade ao sonho, que
pode nos trair e abandonar como a crença em um Deus, que não se conhece, mas
que se adora e confia dentro de uma poderosa suposição criativa. A relação
existente entre o personagem romanceado do livro e o homem moderno é patente,
deixando transparente a vulnerabilidade do seu trágico viver-ser-existir.
La figura de Don Quijote, portadora del ancestral sueño de la libertad
encadenada, manifiesta el conflicto de ser hombre en la historia, contra ella, a
través de ella y aún más allá de ella. Y aparece revelada por su autor en el momento
en el que la historia de España cae sobre el hombre español, cansado ya de ella, en
que por no reconocerse en ella, se va a retirar un momento después, estigmatizado,
entrando en su derrota para limpiarse y purgar tanta victoria. Es signo y clave de
que, sea cual fuere esta historia, no hemos tenido vocación de vencer. Pero esta
historia no se acaba. (ibidem, p.42)
Segundo María Zambrano, a história não se acaba, pois a esperança nasce
de novo e o homem, refletido na figura de dom Quixote, sempre terá uma
Dulcinéia a quem salvar e proteger, sacrificando a própria vida. Exatamente nessa
perspectiva, o personagem de dom Quixote e o homem moderno conseguem ou
podem lograr a sua salvação. É precisamente nesse ângulo de visão que superam o
individualismo, que tanto os distingue. A vontade de manter a existência do outro
lhes propicia sair do refúgio egocêntrico para obrar de maneira altruística em favor
do próximo. De certo modo, essa atitude ajuda ao personagem cervantino a sair da
solidão do seu próprio trágico mundo romanesco. Embora em grande parte de suas
desventuras coincida com o fracasso, dom Quixote vence o isolamento e a
angústia, pois, para ele, verdadeiramente é quem deseja ser: este é, de fato, o seu
sonho, a sua esperança e a sua tragédia. Raquel Azún profere que “Alonso
Quijano, desamado y solitario, había sido expresión de la decadencia y de la ruina,
de una España real en la que los protagonistas, esos seres anónimos, sólo eran ya
su propia novelería.” (1987, p.116)
106
Se pensarmos que o povo espanhol refugiou-se em um querer ser,
transmutando a sua própria história em romance, em literatura, podemos perceber
que, como dom Quixote, padeceu também o trágico sentimento de não ser capaz
de acreditar em nada que não fosse a sua própria ilusão à margem da realidade.
Tanto um como outro, cativo de seus sonhos, preferiu viver outra(s) história(s)
diferente(s) da(s) que a sociedade apresenta. Dom Quixote reflete, assim, o ser
espanhol, que sobrevive à sua contingência por meio da loucura. O seu egoísmo ou
individualismo não é senão um traço peculiar do romance moderno e da
modernidade, que visa exaltar o caráter subjetivo essencial do ser humano. Na
figura de dom Quixote, está representada a escritura do eu, a vida individual, que
se sobressai, apesar da cultura de massas, do senso comum na publicidade do ser e
do ter e da imposição da necessidade de se assemelhar ao que deseja ser a
coletividade. Para criticar o seu próprio tempo, dom Quixote optou pelo sonho,
pela evasão, pela loucura, pelo delírio salvador ou libertador da insatisfação
presente. Seguindo essa perspectiva, podemos perguntar também se, em dom
Quixote, vemos a crítica ao racionalismo ou ele pode ser contemplado sob outras
perspectivas? O delírio ou o sonho seriam uma forma racional não convencional
de entender o real? O personagem não expressaria a visão subjetiva da pessoa, do
indivíduo e, por isso, precisaria ser respeitado? Dentro de um mundo moderno,
onde nos chocamos contraditoriamente com a intolerância às diferenças, ao
fracasso, à perda e à derrota, dom Quixote não representaria a necessidade de
aceitar e tolerar o diferente? Ora, será que no nosso mundo não deveria existir
também espaço para a derrota ou o fracasso como uma forma de alcançar o
crescimento? O fracasso não constitui parte indissociável da vida? E se realmente
é assim, por que a modernidade ou o homem de todos os tempos têm tanta
dificuldade de assimilá-lo? Efetivamente, o que fazem María Zambrano e outros
autores, como Unamuno e Ortega y Gasset, é ler dom Quixote de uma perspectiva
bastante singular, entendendo o seu fracasso ou o seu sucesso de maneiras
distintas.
A tragédia moderna usufrui do conceito do fracasso e da derrota, o que a
caracteriza em tom peculiar, na medida em que a tragédia clássica constitui-se sob
pilares de superação e vitória diante das adversidades e sofrimentos quotianos.
107
Dom Quixote surge, exatamente, como um ser de ficção, que espelha o real, na
proporção em que vivencia as suas experiências no enfrentamento a uma
contingência histórica não disponível à concretização dos seus anseios no plano da
realidade. Essa é a situação histórica do povo espanhol daquele momento.
Conforme assevera Ana Bundgard, “La «pura voluntad» del personaje cervantino
no encuentra objeto en el mundo que le rodea.” (BUNDGARD, A., 2000, p.310)
Desse modo, observamos que dom Quixote, como um ser que vai forjando a
própria personalidade de acordo com a contraditoriedade e com a violência
decepcionante da realidade vivida, delatava o fracasso das elites governantes
espanholas do século XVII em total discordância com o objeto da vontade do
povo. A única maneira que dom Quixote tinha para poder realizar a sua vontade de
viver uma vida em favor do bem e da justiça comum, totalmente diferente àquela
que se lhe apresentava, era deixar-se dominar pela loucura. O fracasso de dom
Quixote, como personagem de romance, e do povo espanhol, como seres
pertencentes ao real, reside na ideia de que todos os que queriam uma realidade
distinta daquela época, como María Zambrano, estavam em um patamar de
excepcionalidade ou transcendência, tendo em vista que não se conformavam com
o que a história lhes oferecia. Dom Quixote simboliza, por conseguinte, o homem
em sua perfeição plena, com retidão de princípios morais e nobreza espiritual, que,
deveria servir de exemplo para a construção de uma renovada convivência
humana, cujos sustentáculos se situariam na reformulação do estado que pudesse
harmonizar a verdadeira vocação do povo, com o objetivo de superar o fracasso do
personagem cervantino, que, para Ana Bundgard, representavam os espanhóis até
os fins do século XIX. A pesquisadora opina que:
En el marco de la que aquí llamamos teoría de la «convivencia», don Quijote
como personaje de ficción y ente de novela se encuentra situado en el mismo plano
de realidad del pueblo español. En la moral de fraternidad y solidaridad del ente de
ficción cervantino halla Zambrano una alternativa «real» al resentimiento que había
ido aislando y deshumanizando al hombre hasta hacerle perder la «medida de lo
humano», la convivencia entre don Quijote y Sancho era ejemplo de un nuevo
humanismo, por así decirlo. (ibidem, p.311)
O vocábulo ‘reforma’ quer dizer dar algum tipo de resposta ao tempo em
que se vive. Somente dessa forma, se poderá entender a identidade como uma
108
relação de conscientização e criação com o passado que não é de nenhuma maneira
estática, entretanto, se movimenta e se reconstrói pela força da expressão humana
na arte e na vida.
El problema de la identidad se encuentra entonces formulado, en un primer
momento, por la relación que se pueda mantener con el pasado: un pasado olvidado
o una tradición no puestos al día, generadores de un sentimiento de desarraigo, de
estar habitando un desierto ante la falta de perspectivas y horizontes, ahí donde todo
ha callado o se mantiene petrificado. La solución al dilema consistirá entonces en
salir del pasado-pesadilla para encontrar su verdad, haciendo posible que la
tradición reencarne en el presente. Volver a vivir en la historia. (SÁNCHEZ
BENÍTEZ, 2002, p. 95)
Para a autora, o gesto (contra)reformista mais sobressalente que houve na
Espanha foi a obra-ação de Inácio de Loyola pelo método e pelo racionalismo,
embora deixe pouco espaço a outros pensamentos ou ideias divergentes da
convicção religiosa que professou. A sua ‘mecânica da santidade’ é
impressionante, pois defende que a vontade humana, se for orientada de
determinado modo, é capaz de ser forjada e, assim, reformada em certo sentido, a
partir de uma relação de bem-estar com Deus, assegurada pela retidão de
pensamentos e obras, a qual será recompensada com a glória da vida eterna nos
céus. Como a libertação depende do sujeito, a isto se chama salvação por obra do
método e não pela graça divina, de acordo com María Zambrano.
De qualquer maneira, uma reforma que ajude ao homem espanhol a
compreender-se, apresentar as suas queixas e desejos e que favoreça a convivência
com os seus irmãos é imperativa. A imperfeição do método pode ser um mal
positivo, já que se baseia em discutir as debilidades humanas dentro de uma
realidade frequentemente muito diferente para cada um, o que lhe confere, por
outra parte, um significado e uma oportunidade plural de enunciação e recepção. A
autora reconhece haver um afastamento entre a vida, geralmente agitada, confusa e
sistemática, e a verdade, que, ao contrario, independe das doutrinas racionais. A
literatura levanta-se como uma ponte que consegue reunir novamente verdade e
vida, razão e sentimento, onde se vê florescer uma nova ética moderna, que gera
um horizonte de esperanças, no qual o núcleo fundamental é a pessoa, definida
pela consciência, que se identifica como algo sublime, sagrado, supremo. O que se
constrói na literatura somente pode ocorrer na realidade em um estado
democrático, o qual não se configura como uma profusão de homens ou massa
109
global, mas que luta por um desejo maior de humanização da sociedade, onde o
homem possa manter-se como pessoa e possa viver pessoalmente, em toda a sua
idiossincrasia necessária.
“La reforma del entendimiento español” supõe que a vontade é o único
que fica de verdade ante todo tipo de circunstância que apareça de miséria,
destruição, governantes autoritários, políticos não comprometidos com a
população e artimanhas engenhosas para obter ganhos pessoais. O que é essa
vontade? Vontade de mudar, de reformar e construir uma nação nova e de justiça,
respeitando as aspirações do povo espanhol de que o homem confie outra vez em
si mesmo, admitindo a sua fragilidade também racional. A reforma necessitou ser
concretizada no sangue e, se em grande medida, acabou em morte, também criou
vida, vida em um mundo de gente que pensa, quer e realiza como María
Zambrano, vítima de todo o processo de guerra espanhol e uma cidadã espanhola
que, como muitos outros, quis reformar pela pujança da palavra escrita e lida o
pensamento do seu país e do seu povo, não se deixando sucumbir até a sua morte,
como o fascinante personagem romanesco dom Quixote, aos altos e baixos das
circunstâncias. Fracasso? O que é o fracasso? Um mal positivo que serve para
refletir e aprender, antecipação do futuro momento da vitória, o de se ganhar a
vida para si e para o outro. Ao escrever “La reforma del entendimiento español”,
María Zambrano opera um ensaio sobre si mesma e, disto, se compreende que o
sujeito não se basta e deseja alcançar algum tipo de auto-liberação do passado,
com a finalidade de se abrir ao novo e vislumbrar horizontes insuspeitos.
Mais tarde, nos demais textos em que Zambrano voltará a se debruçar
sobre a cultura espanhola e a figura de dom Quixote, como Pensamiento y poesía
en la vida española (1939) e España, sueño y verdad (1965), a autora
malaguenha, conforme a normalidade da evolução do seu pensamento, tratará de
maneira diversa essa temática, que deixará de ser a meditação política sobre o
fracasso do Estado e suas particularidades ideológicas para ceder lugar ao
revestimento poético na abordagem da tradição articulada à uma metafísica do
conhecimento da verdade. Contudo, existe uma assertiva comum inegável de que
tanto o romance de Miguel de Cervantes como a figura de dom Quixote servem
para dar cabida ao fluir do pensamento zambraniano, que, de maneira
110
fragmentada, livre e assistemática, apóia o nascimento de uma metafísica
experimental que se sustenta na experiência autobiográfica de cunho confessional.
Dentro do plano da enunciação autoral proposto por Arenas Cruz, é
sugestivo observar, no texto de María Zambrano, que uma das características
fundamentais do ensaio não está no que o autor fale diretamente sobre os
acontecimentos da sua própria vida o tempo todo, mas se manifesta na exposição
pública das suas opiniões particulares, que é o que lhe vai conferir ao discurso um
matiz relativo com relação à experiencia e concederá ao gênero argumentativo um
lugar especial na atualidade moderna.
Lo verdaderamente innovador no es [...] el hablar de uno mismo, sino el
subrayar que su juicio, sus experiencias son subjetivas, relativas a su ser concreto,
por lo que sólo tienen valor en relación con él y, por tanto, no pretenden reglar a los
otros. Desde este punto de vista, lo destacable no es tanto la dimensión
‘confesional’ o autobiográfica del ensayo, sino la relatividad de la perspectiva de
una personalidad interesante, que tiñe todo el escrito de su mirada subjetiva. Este
rasgo es el responsable de la originalidad y éxito del ensayo como vehículo de
expresión en el mundo contemporáneo. (ARENAS CRUZ, M. E., 1997, pp.66, 67)
Com a percepção da envergadura da primeira pessoa do sujeito no
Renascimento, a prática discursiva do ‘eu’ adquiriu, ao longo do tempo, variadas
formas de expressão dentro da literatura e o ensaio foi um dos mais sobressalentes
veículos de comunicação, em função de suas qualidades reflexivas, solitárias, em
ocasiões, filosóficas, em que o sujeito transcende o seu próprio ser e o seu estar no
mundo pela crítica. O ensaio relaciona-se ao momento histórico vivido por ser um
tipo de relato que se atém ao provisório, mas, como mencionamos antes, usufrui de
uma liberdade temática e interpretativa, que responde ao fluxo peculiar da
consciência emocional. É de suma importância, na constituição teórica do ensaio, a
subjetividade da enunciação autoral, na qual o ‘eu’ apresenta-se a si mesmo como
assunto e motivador de argumento. Ligado a esse propósito, há uma tendência a
buscar explicações e a oferecer supostas respostas às indagações de um ‘tú’
moderno, leitor-interlocutor, que solicita incentivos intelectuais cada vez mais
convincentes.
Ao término de “La reforma del entendimiento español”, María Zambrano
compara o romance de Cervantes com algunas obras de Galdós, que abordará em
outro ensaio publicado no ano seguinte em Hora de España, “Misericordia”, o
qual analisaremos a seguir. A autora espanhola refere-se à figura de Fortunata, que
111
aparece como um símbolo do espírito espanhol. Em Fortunata, adapta María
Zambrano ou realmente detecta nela algumas características do personagem de
Cervantes, explicando, inclusive que Fortunata consegue ultrapassar a Dom
Quixote por conta da superação do fracasso:
Fortunata, la espléndida hija de Madrid, ejemplo claro de una voluntad
coherente, firme y fiel, a la que ningún desastre aparta de sí misma, sobre la que
resbalan todos los fracasos sin producir una huella mayor que la de la lluvia en la
roca. Insobornable, guarda una idea entre sí que es toda su vida. (ZAMBRANO,
M., 1937, p.26)
Zambrano ainda profere que ambos os autores deparam-se com a natureza
espanhola nas classes mais populares.
Desde Cervantes a Galdós, la voluntad española se ha retraído a las capas
populares, a la base misma virginal de nuestro pueblo, firme voluntad que ya no
sueña con asuntos tan altos como los de Don Quijote, sino que confundida con el
instinto es vocación maternal en la divina Fortunata [...] (Ibidem, p.27)
Essa ideia exemplifica a subjetividade com a qual Galdós caracteriza as
suas protagonistas femininas, cuja força para tomar o controle das suas próprias
vidas e criar o seu próprio sonho de futuro é marcante, podendo articular-se com as
peculiaridades da narrativa cervantina quanto à figura ímpar de Dom Quixote.
O que realmente vale registrar é que “La reforma del entendimiento
español” deixou-nos claro que as circunstâncias históricas e políticas dos anos da
guerra civil condicionaram os estudos de María Zambrano sobre Dom Quixote. A
escritora, recriando influências unamunianas e orteguianas, transcende, no nível
estético, as fronteiras entre ficção e realidade e entre história e romance ao
identificar o povo espanhol, que combatia corajosamente na guerra civil, com o
personagem de Cervantes. Na verdade, a visão do real era tão fantasmagórica e
chocante, que, de fato, não é nada difícil pensar que o real era ficção e que a ficção
podia ser real. Na ficção, podia ser encontrado o espaço de realização pessoal e
histórica impossível de se vivenciar dentro da dimensão factual, com um estado
fracassado e um povo relegado à degradação, perplexo diante de uma contingência
adversa.
112
5.2. Galdós
Um dos autores que ganha relevo na obra ensaística zambraniana é Benito
Pérez Galdós (1843-1920). Romancista, dramaturgo e cronista espanhol, Galdós
consagra-se como um dos símbolos do romance realista do século XIX e um dos
escritores máximos da literatura espanhola. Em María Zambrano, podemos
detectar, em consideráveis momentos, remissões a Galdós e a algumas de suas
obras. Além de escrever sobre Galdós em Hora de España, María Zambrano leva
a cabo estudos sobre o escritor canário em La España de Galdós (1960) e em
España, sueño y verdad (1965). Em Hora de España, Zambrano dedica um
ensaio relativamente extenso a “Misericordia” (Valência-Barcelona, n.º XXI,
setembro 1938, pp. 29-52), obra de Galdós, publicada em 1897, que leva o leitor às
camadas sociais mais desprivilegiadas de Madri naquela época, a qual se opõe a
uma população abastada, que se vê diante de dificuldades econômicas. Galdós,
ícone da literatura clássica espanhola, também vai margear a análise do ser
espanhol em uma época de árduos enfrentamentos sociais e políticos para
sobreviver às contigências que lhe foram impostas pela conflitiva sociedade
finissecular, que tem, como peculiaridade inerente, o sentimento de decadência,
tragédia e fracasso desenvolvido por María Zambrano ao longo de suas obras.
Misericordia aparece como testemunho de uma frustração ideológica proveniente
do fracasso das intenções regeneracionistas da classe média em quem confiava o
autor.
En Misericordia me propuse a descender a las capas ínfimas de la sociedad
matritense, describiendo y presentando los tipos más humildes, la suma pobreza, la
mendicidad profesional, la vagancia viciosa, la miseria, dolorosa casi siempre, en
algunos casos picaresca o criminal y merecedora de corrección. (Edición de Nelson,
1913, con Prefacio del propio Galdós, pp.5-9)
Entre os personagens de destaque, encontramos a criada Benina, que
encarna a exaltação do sentimento de caridade; é sobre ela que se baseia todo o
romance. Em Pensamiento y poesía en la vida española (1939), que reúne
conferências ditadas em La Casa de España no México, em 1939, também
observamos um pequeno capítulo sobre o romance galdosiano, além de referências
ao realismo como origem de uma forma de conhecimento. Mas por que também
revisitar Galdós? O que significa para María Zambrano a recuperação da obra de
113
Galdós se a autora se inclui em um grupo de escritores que critica certa
onipotência da tradição e, apesar de considerá-la importante, deseja romper com
seus estigmas representacionais? Outro ponto de sustentação que servirá para
contrabalançar esse estudo está em uma relação à primeira vista completamente
antagônica e impossível, mas que ocorre entre a obra de Galdós e Luis Buñuel
(1900-1983), cineasta espanhol surrealista naturalizado mexicano considerado um
dos mais importantes e originais diretores da história do cinema. Buñuel levou
adiante dois projetos fílmicos baseados na obra de Galdós: Nazarín (1958) e
Tristana (1970). Uma pergunta que nos provoca interesse é qual a viabilidade de
um surrealista como Buñuel ler, com entusiasmo, a um escritor realista como
Galdós, que sofria o que podemos chamar do estigma da língua, na medida em que
por não escrever ou ser escrito em outros idiomas não conseguiu maior
visibilidade? Por que Buñuel, nesse caso, não preferiu filmar a autores também
surrealistas? O próprio Buñuel (2009, p.311) assevera que é a notoriedade de um
país que faz o nome dos grandes escritores. Refere-se à Galdós como um
romancista à altura de Dostoievski, mas, em contrapartida, indaga-se sobre quem
conhece Galdós fora da Espanha.
Para completar o estudo dessa parte, que se centra na figura de Galdós na
obra de María Zambrano e que se sustenta no interesse que suscita esse autor
realista em outros artistas como Buñuel, abordaremos, no próximo capítulo, o
poema “Díptico español” de Luis Cernuda, que, da mesma forma, fala sobre
Galdós. A escolha de Buñuel e Cernuda como reforço e justificativa de que María
Zambrano decide escrever sobre Galdós por considerá-lo importante no espaço
literário espanhol pareceu-nos relevante, pois Zambrano, Buñuel e Cernuda, entre
outros artistas, coincidem no fato de que vivenciaram a situação de espanhóis
exilados no México promovida pelas dificuldades de permanência pacífica e livre
em seu próprio país. Buñuel confessa que:
Tornei-me inclusive cidadão mexicano a partir de 1949. Muitos espanhóis no
fim da guerra civil escolheram o México como terra de exílio, entre os quais alguns
de meus melhores amigos. Esses espanhóis pertenciam a todas as classes sociais.
Havia entre eles operários, mas também escritores e cientistas, que se adaptaram a
seu novo país sem muita dificuldade. (BUÑUEL, L., 2009, p.279)
114
María Zambrano, ao longo de sua trajetória artística, empenhou-se em
escrever uma série de críticas literárias, remetendo-se a autores tanto espanhóis,
como também estrangeiros, assim como já pudemos observar anteriormente com
alguns trabalhos publicados na Revista de Occidente e em Hora de España que
falavam sobre Hoffmann, Descartes, Cervantes e o próprio Galdós. Dessa forma, é
imprescindível novamente afirmar que a literatura espanhola possui uma presença
contínua dentro da obra zambraniana, funcionando como um rico caudal de
conhecimento que visa atender às necessidades filosóficas e às inquietações mais
íntimas da ensaísta malaguenha. Por meio dessas reflexões, Zambrano procurou
um modo singular de contemplar o homem espanhol como um exemplo das
vicissitudes experimentadas pelo homem moderno de violência, inconformada
resignação, ilusão, sonho e fracasso.
O foco nas figuras centrais da literatura espanhola como Cervantes e
Galdós, tomando como fonte de conhecimento tanto o romance como a poesia
pretende lucubrar sobre as características idiossincráticas de uma cultura particular
e, principalmente, sobre a condição humana. Depois de se aceitar a morte dos
deuses, a literatura assumiu, com ainda mais profundidade, a incumbência de
revelar os ganhos e as derrotas do homem, juntamente às suas esperanças de
salvação não em um além da vida, contudo dentro das contingências de sua própria
existência. O diagnóstico e o desenvolvimento de formas de conhecimento que
possam redimir o ser humano de suas faltas no âmbito do viver físico e terreno é
uma peculiaridade essencial dos tempos modernos. Em Galdós, por exemplo, a
referência à “señá Benina” responde ao propósito de construir uma consciência a
partir da noção de caridade manifestada pela personagem. Como Cervantes e
Galdós escrevem romances e alguns dos seus personagens são analisados por
María Zambrano, poderíamos continuar a nos perguntar então que importância
apresenta o romance dentro do mundo ocidental? Que contribuição oferece para a
compreensão dos fundamentos da vida espanhola e do seu povo? Por que os
personagens escolhidos como matéria literária de reflexão possuem como traço
primordial o desacerto, o sofrimento, a solidão, a frustração? Em função disso,
reconhecemos a alterabilidade de um mundo que se reconstrói sob os escombros
da negação dos deuses, que traziam conforto e segurança aos seres humanos. A fé,
115
o idealismo e a racionalidade passam a ser crenças extremamente questionadas e
sobrevivem a diversas críticas e meditações. O regresso ao passado é vital para
compreender a história e conhecer o presente. Na cultura espanhola, a literatura
cumpre esse papel revelador, que expressa uma maneira diferente de ver o mundo:
“la interpretación de nuestra literatura es indispensable. Al no tener pensamiento
filosófico sistemático, el pensar español se ha vertido dispersamente, en la novela,
en la literatura, en la poesía.” (ZAMBRANO, M., 1971, p.293) Como explanamos
antes, diferentemente dos demais países europeus, a cultura espanhola, não
inserida de fato na modernidade, foi desvendando-se distante de qualquer norma
ou sistema dogmático, optando verter seus pensamentos por meio do que María
Zambrano preferirá chamar de “formas sacramentales” (ZAMBRANO, M., 1939,
p.34), ou seja, por meio do romance e da poesia: “Novela y poesía funcionan sin
duda como formas de conocimiento en las que se encuentra el pensamiento
disuelto, disperso, por las que corre el saber sobre los temas esenciales y últimos
sin revestirse de autoridad alguna, sin dogmatizarse, tan libre que puede parecer
extraviado.” (ZAMBRANO, M., 1971, p.272) Em Pensamiento y poesía en la
vida española, lemos também que:
Hemos señalado que la razón, el pensamiento en España, ha funcionado de
bien diferente manera y que por ello España puede ser el tesoro virginal dejado
atrás en la crisis del racionalismo europeo. España no ha gozado con plenitud de ese
poderío, de ese horizonte. Se nos ha echado en cara muchas veces nuestra
pobretería filosófica y así es, si por filosofía se entiende, los grandes sistemas. Mas
de nuestra pobretería saldrá nuestra riqueza. (ZAMBRANO, M., 1939, p.26)
A carência de grandes sistemas filosóficos à semelhança dos demais países
europeus e a decadência da vida espanhola na era moderna diferenciaram a forma
de pensar e a cultura da Espanha, embora o país, na visão de María Zambrano
(1939, pp.27, 28), contraditoriamente à margem da modernidade, tenha preparado
o terreno para a sua chegada na Europa com a criação do primeiro Estado
Moderno, com os Reis Católicos, e a expansão do mundo com a descoberta da
América. Além disso, a autora adverte que, em outras épocas, existiram realmente
outros modos de pensamento filosófico não relacionados a sistemas. A filosofia
espanhola distancia-se de qualquer forma abstrata e concentra-se na lírica, na
mística e no romance, enfim, na literatura. Essa ideia da assistematicidade do
116
pensamento espanhol e sua presença na literatura é uma noção já desenvolvida
anteriormente por Miguel de Unamuno em Del sentimiento trágico de la vida
(1912).
Pues abrigo cada vez más la convicción de que nuestra filosofía, la filosofía
española, está líquida y difusa en nuestra literatura, en nuestra vida, en nuestra
acción, en nuestra mística, sobre todo, y no en sistemas filosóficos. Es concreta. ¿Y
es que acaso no hay en Goethe, verbigracia, tanta o más filosofía que en Hegel? Las
coplas de Jorge Manrique, el Romancero, el Quijote, La vida es sueño, la Subida al
Monte Carmelo, implican una intuición del mundo y un concepto de la vida [...].
(UNAMUNO, M., 2008, p.265)
Em Pensamiento y poesía en la vida española, María Zambrano (1939,
pp.31, 32) esclarece que a resistência do pensamento espanhol ao sistema deve-se
a uma não intervenção da violência como nos demais países europeus. A ensaísta
confessa que a filosofia constitui-se de dois elementos primordiais, que precisam
agir juntos: a admiração e a violência. A admiração explica-se como uma
contemplação estática das aparências das coisas, em que o sujeito permanece
conectado a essa realidade que lhe fascina e domina, sendo que daí não nasce o
pensamento. Para que a pergunta surja e se inicie o pensamento, é necessária a
violência, que se constitui precisamente na coragem do ato de indagar, de se
atrever a descobrir a verdadeira natureza das aparências: “a levantar y rasgar los
velos en que aparecen encubiertas las cosas.” (ibidem, p.32) A partir da última
ação do questionamento é que desponta a filosofia, fruto da violência do abandono
da contemplação estática para, por meio da vontade, ou seja, do querer poder
subjugar o real ao sujeito, alcançar outro plano diferente do real com o objetivo de
desvendar o verdadeiro ser das coisas. Nesse sentido, Gómez Blesa afirma que “la
verdad, por tanto, no se ofrece gratuitamente a aquel que la busca; no es
revelación, sino desvelamiento, el triunfo conquistado por el hombre a través de
una dolorosa y continuada tarea reflexiva” (GÓMEZ BLESA, M., 2008, p.118),
embora oculte a soberba e a vaidade do pensador, desejoso de uma supremacia de
posse da totalidade do que é real. Assim, María Zambrano defende que o
pensamento espanhol carece desta violência que funda a reflexão filosófica.
Entretanto, questionamos que se o pensamento espanhol não empreende o
movimento da violência, somente a admiração, como ele poderia ser nomeado,
117
então, de pensamento? Essa pergunta não é claramente satisfeita pela autora, o que
nos leva a crer que o pensamento espanhol provém de uma origem diversa, que se
caracteriza pela não unidade, sendo livre, disperso.
España no produce sistemas filosóficos; entre nuestras maravillosas
catedrales, ninguna de conceptos; entre tanto formidable castillo de nuestra Castilla,
ninguno de pensamientos. No es genio arquitectónico lo que nos falta, no es poder
de construcción, de congregar materiales y someterlos a la violencia de un orden.
En el terreno del poder también supimos y pudimos–bien que ello entrañe nuestra
más grande tragedia–levantar un estado, que es orden y violencia. Solamente en el
terreno del pensamiento, la violencia y el orden no fueron aplicados; solamente en
el saber renunciamos o no tuvimos nunca este ímpetu de construir grandes
conjuntos sometidos a unidad. Podríamos decir que en cuanto al pensamiento
fuimos anárquicos, si por anárquico se entiende simplemente lo que la palabra
manifiesta: sin poder, sin sometimiento. (ZAMBRANO, M., 1939, p.31)
A falta de um sistema ou método de pensamento europeu tradicional
sinaliza uma maneira diferente do povo espanhol de entender a vida. O romance
realista espanhol, ou melhor, o realismo espanhol consegue esse sentido filosófico
de uma singular forma de pensar, de viver e de se elucidar espanhola longe de
teorias e definições, mas que abarca as mais variadas formas de arte: a literatura, a
pintura, a escultura, nas quais o homem deseja entrar em contato consigo mesmo:
“el realismo, nuestro realismo insobornable, piedra de toque de toda autenticidad
española, no se condensa en ninguna fórmula, no es una teoría.” (ZAMBRANO,
M., 1971, p.277) Na verdade, ele surge a partir de uma concepção genuinamente
vital, que constrói uma peculiar visão de mundo espanhola, que abrange a
totalidade da sua cultura contraposta à uma crítica zambraniana da razão prática do
idealismo filosófico europeu.
[...] podemos sacar la raíz profunda de este realismo y verlo así como un
modo de conocimiento, desligado de la voluntad, desligado de toda violencia más o
menos precursora del apetito de poder. Esto hace que veamos al realismo español
como algo ante todo que no es idealismo, y que no lo es por proceder de otros
íntimos orígenes. Idealismo y practicismo no se oponen como miradas superficiales
han creído, sino el idealismo es el primer supuesto de la razón práctica. El
idealismo en Europa lejos de ser paralizador de la acción, la ha hecho posible en su
más alta escala, le ha dado perspectivas ilimitadas, horizonte. (ZAMBRANO, M.,
1939, p.42)
Para Zambrano, por ser o realismo ““lo otro” que lo llamado teoría, como
lo diferente e irreductible a sistema” (ibidem, p.43), não podemos significá-lo de
uma manera rígida ou sistemática a fim de não sacrificar a independência de sua
118
própria natureza, que mostra a identidade de uma cosmogonia espanhola.
Precisamos levar em consideração que María Zambrano realiza uma interpretação
do realismo diferente da acepção original, que define o termo como nascido na
França e na Inglaterra durante o século XIX, cujo propósito era se referir a uma
corrente literária que atribuía à novela o papel de copiar a realidade tal como se
apresentava. Gómez Blesa (2008, p.122) assevera que mais do que se remeter de
forma precisa à segunda metade do século XIX e ao romance, na Espanha, o
realismo adquiriu uma maior visibilidade, na medida em que passou a caracterizar
o verdadeiro sentido da cultura hispânica, ou seja, a tradição cultural espanhola em
todas as suas manifestações, nas quais se espelham os princípios norteadores tanto
da arte em geral, como também no âmbito concreto do pensamento espanhol. Em
outras palavras, o realismo converteu-se em uma maneira peculiar de vislumbrar a
vida do povo hispânico, o seu estar no mundo e como encara a realidade que
vivencia. Essa crença no realismo como uma forma de ver a vida e o mundo
perseverou, no contexto espanhol, durante muito tempo e condensou as suas
diversas fases culturais, simbolizando, sem dúvida alguma, o espírito de toda a
existência de um povo. O realismo:
Cruza por toda nuestra literatura, hasta por allí donde menos se le creyera
entrometido: por la mística y por la lírica. Imprime su huella en nuestra pintura, y
da su ritmo a las canciones y lo que es todavía más importante, marca con su ritmo
el hablar, el callar de nuestro pueblo en su maravillosa cultura analfabeta, moldea
nuestros pueblos, y marca con una huella tan fuerte como difícil de descifrar, todos
los resortes íntimos del movimiento y la quietud española. (ZAMBRANO, M.,
1939, pp.43, 44)
O espanhol, portanto, como um realista, sente-se extremamente ligado à
realidade e o faz de um modo prazeroso. Nem o conjunto da mística espanhola
afasta-se desse pressuposto de fincar suas raízes no mundo concreto. Como o
conhecimento ofertado pelo realismo não se complica por parâmetros filosóficos,
acadêmicos ou técnicos, sua expressão é simples e acessível a todo homem
espanhol comum por meio de uma forma de conhecimento que é a razão poética
defendida por María Zambrano. É importante compreender que, segundo María
Zambrano, o poeta não é somente aquele que escreve poesia, porém é todo artista
119
que, de alguma maneira, trata com o real e, a partir desse contato, estabelece um
modo de conceber a existência. Gómez Blesa adverte que:
La figura del poeta sería la de aquel hombre que, enamorado de la vida, vive
apegado a la multiplicidad cambiante de lo real, sin pretender reducirla en nada. Su
disposición interior frente a la realidad sería de una absoluta apertura, dejando que
lo exterior le invada hasta hacerse morada de todo cuanto habita a su alrededor.
(GÓMEZ BLESA, M., 2008, p.126)
Para a cultura espanhola, o tempo aparece como um requisito primordial da
existência, peculiaridade que a distingue de uma prevalência abstrata com relação
à dimensão do tempo característica do pensamento racionalista europeu. A fim de
comprovar essa afirmação, podemos tomar exemplos literários enfáticos como
dom Juan Tenório, o pícaro e as angústias do pensamento unamuniano com
relação a esse correr da vida que vai desembocar na morte, na falência física e
concreta de ‘carne y hueso’. Essa forma particular de pensar resultou, de acordo
com María Zambrano (1939, pp.149, 150), no sentimento da melancolia, uma das
especificidades categóricas mais marcantes da vivência espiritual espanhola. A
melancolia surge em virtude do tempo que se foi e não regressará nunca mais, por
esse tempo perdido e irrecuperável. Isso é muito bem explicado por Gómez Blesa,
quando diz que:
Como buen enamorado de la multiplicidad cambiante de lo real, el español
siente nostalgia de todo aquello que el paso del tiempo devora y, por ello, desea la
resurrección en la eternidad de todos esos instantes perdidos. De ahí ese sentimiento
de pérdida y de derrota ante la vida que encontramos, a veces, en algunos de
nuestros literatos por no poder apresar eternamente ese momento fugaz de felicidad
y de belleza. (GÓMEZ BLESA, M., 2008, p.128)
María Zambrano defende que é um traço idiossincrático espanhol estar
seduzido por desejos impossíveis que o transcorrer do tempo não pode
proporcionar, mas que, contraditoriamente, muito se luta por essas metas a fim de
salvá-las da pulverização temporal.
O estudo de algumas obras de Galdós justifica o pensamento zambraniano
de identificar a cultura espanhola com o realismo, o que também a afasta de Ortega
y Gasset, pois o autor madrilenho coloca-se contrário a caracterizar a tradição
espanhola com os pressupostos realistas. Dámaso Alonso (1933, pp.77-102), em
120
uma conferência no Ateneo de Sevilha, em 1927, que tinha como título “Escila y
Caribdis de la literatura española”, da mesma maneira que Ortega y Gasset,
criticou o caráter reducionista com referência à cultura literária espanhola ao se
destacar uma atenção exclusiva às obras realistas em detrimento de outras
produções literárias de inclinação diversa. O que Dámaso Alonso queria expor é
que, dentro da literatura espanhola, havia também um relevante pendor idealista e
espiritualista. Devido ao fato de que Ortega y Gasset e Dámaso Alonso opõem-se à
etiqueta ‘realista’ que alguns autores defendem para caracterizar a tradição cultural
espanhola, podemos deduzir que, nesse aspecto, María Zambrano distancia-se de
Ortega y Gasset por pensar precisamente de forma contrária ao acreditar no cunho
realista da tradição cultural e literária espanhola, no que apresenta mais afinidades
com a geração de 98 do que com o seu grande mestre Ortega y Gasset e com a
própria geração de 27, da qual alguns supõem ser a ensaísta integrante.
Certamente, o sentir realista das coisas, ou, pelo menos, a sua ilusão, aparência ou
impressão serve para manifestar os sofrimentos advindos de um endeusamento do
sujeito moderno. Em Filosofia y poesía (1993, p.86), Zambrano anuncia que, na
época moderna, impera o desejo de ‘querer ser’ do homem proveniente de sua
vontade e ação. Gómez Blesa confirma esse pensamento ao complementar que a
liberdade constitui o objetivo central desse processo iniciado pelo homem desde o
começo da era moderna percorrendo as filosofias existencialistas mais recentes.
El endiosamiento que ha protagonizado el sujeto a lo largo de la
Modernidad, autoimponiéndose como creador de todo lo real y pretendiendo ocupar
el lugar destinado anteriormente a Dios, es la causa de este sentimiento nihilista que
angustia al sujeto. Esta voluntad de ser o «voluntad de poder», entendida como la
pretensión de llevar a término aquello que anhelamos ser, constituye el verdadero
rasgo distintivo del hombre moderno. (GÓMEZ BLESA, M., 2008, p.135)
Em Filosofia y poesía (1993, p.77), María Zambrano escreve sobre o que
nomeia como «Metafísica de la Creación», que orienta os principais conceitos da
modernidade desde as contribuições de Kant com a Razão Prática, seguido por
Fichte e Schelling até chegar a Hegel. De acordo com a autora, a “metafísica da
criação” do sujeito independente e não submetido a qualquer outra lei senão à sua
própria originou o contexto niilista, refém da confiança arrogante nas fronteiras
121
ilimitadas da razão e que, assim, não conseguiu colocar parâmetros divisórios para
o exercício dessa liberdade.
Relembramos que Zambrano estuda alguns desses filósofos e escreve sobre
eles em seus primeiros ensaios na Revista de Occidente. No ensaio intitulado
“Ante la “Introducción a la Teoría de la Ciencia”, de Fichte” (Madri, t. XLVI, nº
137, novembro 1934, pp.216-224), filósofo alemão nascido em 1762, Zambrano
disserta sobre filosofia. A ensaísta explica que também Fitche, tomando uma frase
de Kant originada de uma sabedoria socrática, afirma que não se ensina filosofia,
porém se ensina a filosofar. Revela a consciência da necessidade do homem em
pensar filosoficamente para alcançar a totalidade do ser. Afinal, ser e pensar são
conceitos fundamentais do exercício filosófico. O eu pensante cartesiano,
diferentemente do ser substancial da filosofia tradicional, está ao lado de uma série
de representações, o que faz acreditar que o eu, dentro da filosofia moderna,
descobre-se ‘coisificado’. Essa ideia é criticada por Fitche, que esclarece que o eu
não é coisa, visto que senão o conceito de coisa para ele não teria a mínima
importância, porque não seria um traço distintivo em relação a si próprio.
Nessa desambiguação da concepção do ser para si mesmo, residirá a
oposição do eu de Fitche em comparação ao eu cartesiano, pois, conforme análise
do escritor alemão, o eu antecede a coisa, embora sempre exista relação ou contato
cognoscitivo através do pensamento entre eu e coisa, ou melhor, objeto, ou melhor
ainda, entre mim e realidade, por meio da qual posso acontecer em uma existência
vital. Por esse motivo, declara Zambrano, é que o pensamento de Fitche apóia-se
na afirmação kantiana de que o ““yo pienso” debe acompañar a todas mis
representaciones” (ZAMBRANO, M., 1934, p.221) das coisas. Porém não é
somente isso: o eu não só acompanha a todas as minhas representações das coisas,
mas confere-lhe realidade, ser, fazendo-as deixar a condição de coisas para se
tornarem alvos, objetos de reflexão, do pensamento, que as eleva a um caráter de
unidade, de matéria ou de um pensar filosófico. María Zambrano ratifica que
Fitche parte da consciência de uma filosofia idealista, em que o cristianismo
propiciou uma mudança de cosmovisão no homem: se antes vivia dentro da
natureza, agora vive fora dela, afastando-se de uma essência divina, posto que
percebeu que a natureza não estabelecia com ele uma relação ontológica, era
122
simplesmente o lugar de sua perdição, de sua queda. Se antes suas angústias ou
aflições estavam dirigidas às coisas, à realidade experimentada, agora suas
preocupações lançam-se ao vazio da niilidade, que requer o eu como uma pessoa
moral livre, canal aberto de pensamento, cuja destreza racional aparece como uma
maneira de enfrentar a si mesmo e a um mundo moderno igualmente desafiante,
que dificilmente viveriam sem a razão e é justamente por isso que ela sobrevive ao
tempo e é através da razão que a pessoa existe.
Segundo Zambrano, tal conceito do ser caracteriza o conceito de verdade
para Fitche como convicção, vontade, pensamento e a respectiva adesão total desse
sujeito a esse pensamento, vontade ou convicção. E é aí que está a filosofia
idealista heróica de Fitche. Para a autora espanhola, “el hombre es el sujeto de un
conocimiento fundamentador” (ZAMBRANO, M., 1993, p.77), que inclui a ele
mesmo. A partir dessa consciência, o homem requer a conquista da liberdade por
não depender de qualquer outro ser. Na modernidade, diferentemente de outras
épocas, constatamos que a autonomia da pessoa articula-se com a entronização
solitária do sujeito, que se considera o criador de seu próprio ser, negando a
intervenção divina. María Zambrano afirma-o com estas palavras: “El hombre
quería ser. Ser creador y libre. Y seguidamente: ser único. Son los pasos, sin duda
decisivos de la historia moderna, de eso que propiamente se llama Europa. Y su
angustia y su tragedia.” (ibidem, p.78) Na verdade, quanto maior a liberdade e
independência da consciência humana, maiores são os riscos de endeusamento e
tirania do sujeito, que ocasionam fatalmente a angústia da descrença, em virtude da
perda do homem de sua base de sustentação religiosa original, destruída por seu
próprio orgulho e vaidade, que se convertem em um de seus mais ferozes algozes:
“La libertad absoluta, con la ilusión de disponer enteramente de sí, de crearse a sí
misma, acaba borrándolo todo.” (ibid., p.96) Um pouco antes, sentencia a ensaísta
que “la Metafísica europea es hija de la desconfianza, del recelo y en lugar de
mirar hacia las cosas, en torno de preguntar por el ser de las cosas, se vuelve sobre
sí en un movimiento distanciador que es la duda.” (ibid., p.87)
Nietzsche, em Sobre verdad y mentira en sentido extramoral (1990),
declara que o medo e a insegurança motivam tanto a ciência como a filosofia, as
quais funcionam como formas de pensamento extremamente necessárias à vida, na
123
medida em que procuram conferir maior confiança e segurança ao homem, pois,
como profere a autora espanhola, a angústia resolve-se com a ação, que é, na
realidade, a sua consequência: “La angustia es el principio de la voluntad.”
(ZAMBRANO, M., 1993, p.88) Por sua vez, Kierkegaard já também havia
anunciado que “la nada engendra la angustia” (KIERKEGAARD, S., 2007, p.90) e
esta é “el vértigo de la libertad.” (ibidem, p.94) Conforme escreve Gómez Blesa
(2008, p.143), todas essas conceituações nos conduzem ao maior dilema da
existência humana, já que apesar de nos angustiar a liberdade, não podemos viver
sem ela, apesar de nos afligir a realização como espíritos livres e com a
consciência de sermos sujeitos independentes de qualquer outro ser, não podemos
fugir à responsabilidade de nos realizar precisamente como espíritos com
discernimento. De fato, como sustém Heidegger, nos mantemos com a realidade
do vazio. Para o autor, ex-sistir expressa a ideia de estar vivendo dentro do nada.
(HEIDEGGER, M., 2002, p.47)
Toda essa discussão anterior sobre o realismo e seus temas transversais
teve o intuito de aclimatar o estudo do texto zambraniano sobre Misericordia,
romance realista galdosiano e uma das mais importantes obras da literatura
espanhola, onde a ensaísta malaguenha praticamente inicia suas reflexões sobre o
pensamento de seu autor. Publicada em 1897, período contiguo a geração de 1898,
Misericordia espelha o ser de Espanha, a sua história, em uma época de
dificuldades na vida desse país. Por meio do personagem Benigna, o autor
reconstrói o cotidiano das classes madrilenhas mais humildes do fim do século
XIX, com o objetivo de criticar a sociedade, cuja classe média, a aristocracia e a
Igreja seriam os responsáveis pelo atraso cultural do país frente à Europa.
Na época de Hora de España, é claro que María Zambrano se dá conta de
que a República estava perdendo a guerra. A referência a Cervantes e a Galdós
intenciona mergulhar nessa intrahistória espanhola, portadora de uma essência
primordial ou permanente, que subsidia a ensaísta para dissertar sobre o
sofrimento do povo espanhol.
A autora afirma que, em seu romance realista, Galdós oferece, por meio
dos seus personagens, a vida doméstica do espanhol comum em sua história e vida
real como sujeito verídico de sua contingência com características reacionárias e
124
conservadoras, que o fazem se reservar à existência familiar caseira, procurando
manter a memória nacional espanhola que a guerra dissipou.
Porque así como en el instante más vacío de la vida de una persona está la
huella de todo su ayer, con todos sus instantes, y esta presencia constituye la unidad
de la vida, de toda vida personal, asimismo en los personajes de Galdós, en el
mundo de sus complejas relaciones, está la huella viva, prolija y multiforme, de
nuestro multiforme pasado. El protoplasma hispánico impreso de mil huellas, mas
también hirviendo de nuevos gérmenes, es el sujeto único, en sus innumerables
caras, de la novela galdosiana. El tiempo real y concreto en que lo histórico y lo
innominado se traban reflejándose mutuamente, el tiempo con ritmo imperceptible
en que transcurre lo doméstico agitado todavía por lo histórico, es el tiempo real de
la vida de un pueblo que lo sea en verdad, es el tiempo de la novela de Galdós.
(ZAMBRANO, M., 1938, p.31)
Por outra parte, em Pensamiento y poesía en la vida española, María
Zambrano escreve o seguinte sobre o mundo que nos mostra Galdós:
El mundo que con tanta realidad nos presenta es el mundo de la tradición, de
la queda. En él aparece a través del delirio y el disparate [o que de Galdós
justamente não agradava a Miguel de Unamuno], para nuestro consuelo, la única
continuidad de la vida española, la unidad verdadera de España, y aparece en toda
su obra dispersa, inagotable, pero de modo más concentrado y significativo en dos
gigantescas figuras de mujer que encarnan las dos fuerzas cohesivas y creadoras a
las que nada ha podido abatir: la fecundidad y la misericordia. (ZAMBRANO, M.,
1939, pp.167, 168)
As protagonistas galdosianas Fortunata e Benigna traduzem fortemente
essa continuidade da tradição espanhola: “dos gigantescas figuras de mujer que
encarnan las dos fuerzas cohesivas y creadoras a las que nada ha podido abatir: la
fecundidad y la misericordia.” (ibidem) É interessante o fato de que Zambrano ao
se aprofundar na história espanhola decimônica extremamente machista em
Pensamiento y poesía en la vida española coloque a figura feminina como
sustentáculo da própria família, tão importante e hegemônica nesse período, no
centro dos acontecimentos daquela época.
María Zambrano, vivendo já em Cuba e em Porto Rico e também entrando
em contato com os poetas ligados à revista Orígenes, realizou um discurso, em
1942, chamado Mujeres de Galdós, que foi publicado no mesmo ano em forma de
artigo, onde a ensaísta ressalta a importância da figura feminina na construção do
seu pensamento.
Galdós es el primer escritor español que introduce valientemente a las
mujeres en su mundo. Las mujeres, múltiples y diversas, las mujeres reales y
125
distintas, ‘ontológicamente’ iguales al varón. Y esa es la novedad, esa la
deslumbrante conquista. Existe como el hombre, tiene el mismo género de realidad;
es lo decisivo. Es lo primero que teníamos que ver. (ZAMBRANO, M., 1994, p.130
–texto reeditado–)
Galdós, assim, dispõe grande ou quase toda a ação romanesca em mulheres
como Fortunata y Benigna. Em uma resenha que escreveu María Zambrano
referente à obra Grandeza y servidumbre de la mujer de Gustavo Pittaluga, com
quem tinha uma relação pouco amistosa, a autora atesta que com os adventos do
positivismo e da revolução industrial, a mulher galgou uma posição no plano da
realidade paralela ao do homem. É inegável que a conquista da liberdade supõe um
enfrentamento com o real. Segundo Zambrano (1989, pp.38, 39), o que faz Nina é
viver a vida; a personagem somente consegue ser ao viver a vida. Nesse sentido,
alcança a realidade almejada, criando a própria existência, sem precisar fantasiá-la
ou inventá-la novelescamente, se bem que podemos pensar também que toda
realidade é uma invenção, mas decerto podemos crer que, no caso de Nina, a
realidade do romance aproxima-se da realidade histórica, do homem em sua
circunstância: “Galdós nos presenta la confusión, la avidez, la proliferación de la
vida y su apetencia de corporeidad. A esto se le ha llamado ‘realismo’, como a casi
todo lo que en España alcanza cierta visibilidad. (ibidem, pp.53, 54) Roberta
Johnson (2005, p.120) pronuncia que a vivência chocante da realidade pelo viés
feminino transformou-se em uma experiência singular transformadora e
libertadora comparada com o fato também transformador e libertador para María
Zambrano do choque da realidade do fracasso da República e o posterior exílio da
ensaísta.
Luis Buñuel, de origen burguesa, cuja família tinha certas posses, pensava
constantemente no que ele mesmo denominava de a idade média, referindo-se ao
século XX e às suas dificuldades, misérias e injustiças. Essas circunstâncias foram
recriadas em muitos de seus filmes como Nazarín e Tristana, os quais se
basearam nas obras de mesmo título de Galdós. Embora Buñuel tenha vivenciado
uma rígida formação religiosa, a sua meta artística, como participante do
movimento surrealista, sempre foi lutar pela mudança do pensamento da sociedade
de sua época, fundamentada na religião, na família e em uma ordem préestabelecida, cuja moral e os comportamentos sociais distinguem-se pelo
126
convencionalismo. Ser contra o senso comum por meio da burla, da ironia, do
escândalo e da perplexidade é o que marca a personalidade e a trajetória artística
de Luis Buñuel. O seu livro de memórias, Meu último suspiro (2009), conta
diversas etapas de sua vida em que podemos observar a índole naturalmente
discordante ‘buñuelesca’. Desse livro de memórias, produziu-se um documentário
chamado El útlimo guión, dirigido por Javier Espada y Gaizka Urresti e
protagonizada pelo amigo Jean-Claude Carrière e por Juan Luis Buñuel, seu filho.
Nessas duas obras, podemos acompanhar os lugares pelos quais passou e viveu
Buñuel: Calanda, Zaragoza, Madri, Toledo, Paris, Nova York, Los Angeles e
México, onde mais filmou.
Nazarín, de 1958, é um filme mexicano dirigido por Buñuel e ganhou a
Palma de Ouro do Festival de Cannes de 1959. Como já sinalizamos
anteriormente, está baseada no romance homônimo de Galdós. A trama conta a
história de um sacerdote puritano, o padre Nazario, que se mostra como Jesus
encarnado e que pratica o exercício religioso no México, nos primeiros anos do
século XX durante o governo ditatorial de Porfírio Díaz. A identificação do
personagem com o que os Evangélios atestam o que foi Jesus é notória. Sua
descrição é de um homem livre, responsável, misericordioso e próximo ao povo.
Os seus fiéis são os pobres que vivem pelas cercanias. No entanto, quando tenta
proteger uma prostituta que provocou um incêndio, precisa fugir, pois começa a
ser perseguido pela justiça. Foragido, Nazario questiona a sua própria fé em função
dos acontecimentos que padece. No seu filme, um dos preferidos realizados no
México, relata Buñuel que:
Mantive o essencial do personagem Nazarín tal como está desenvolvido no
romance de Galdós, mas adaptando a nossa época as ideias formuladas cem anos
antes, ou quase isso. No fim do livro, Nazarín sonha que celebra uma missa.
Substituí esse sonho pelo sonho da esmola. Além disso, ao longo de toda a história,
acrescentei novos elementos, a greve por exemplo e, durante a epidemia da peste, a
cena com o moribundo – inspirada no Diálogo entre um padre e um moribundo, de
Sade –, quando a mulher exige seu amante e nega a Deus. (BUÑUEL, L., 2009,
p.302)
Em 1970, Buñuel, retornou a Espanha para filmar Tristana, protagonizada
por Catherine Denueve. Também é um filme baseado em um romance homônimo
de Galdós. A história gira em torno do personagem de Tristana. Quando morrem
127
os seus pais, a menina fica aos cuidados de dom Lope, uma espécie de dom Juan
em decadência, que não consegue se convencer de que os seus tempos de sedução
já acabaram. Tristana apaixona-se por Horacio, um pintor, pelo qual é
correspondida em seus sentimentos. Entretanto, Horacio viaja por um tempo e se
afasta da relação. Nesse período, Tristana é acometida por uma doença e termina
perdendo uma perna. Quando Horacio retorna, perde o interesse por Tristana, a
qual passa a ser amada por dom Lope. Como nas obras de Galdós, evidentemente,
não devemos esquecer de que os nomes dos filmes produzidos por Buñuel também
revelam muito.
Em Tristana, dom Lope, representação da figura masculina de dom Juan,
sentia-se livre e não respeitava nenhuma mulher ao passo que Tristana encontravase presa e sem liberdade. Entretanto, no desfecho da obra, dom Lope é quem está
preso, enquanto Tristana está livre, pois lhe toma o desejo pela independência, a
ânsia de ser apoiada no sentimento do amor: “Se dio a querer ser alguien, y a
querer hacer algo por ello. Mas lo importante era ser, y cuando el ser se aparece de
este modo a alguien, adquiere enseguida calificación, ser es ser independiente.”
(PÉREZ GALDÓS, B., 1969, p.158) Nesse momento da sua vida, quando se
encontra com Horacio consegue descobrir-se no outro e finalmente ser livre: “El
ver del amor es el ver de la revelación.” (ibidem, p.160); “quería liberarse a sí
misma.” (ibid., p.166) María Zambrano, nesse mesmo plano exegético, concebeu o
sentimento estóico como uma peculiaridade de toda crise histórica, pois se o
homem, coloquemos no caso específico das mulheres galdosianas, compreende
que está só e desamparado, repara que, ao lado de uma adversidade heroicamente
combatida, porém não revolucionada, encontra uma força interior e uma riqueza
espiritual notáveis.
No se concibe el estoicismo naciendo como algo primario, como el primer
empuje de una cultura. No será jamás una aurora, sino un ocaso; si bien un ocaso
que no llega a ser decadencia, porque significa eso justamente: un acopio de
entereza para no caer. Un esfuerzo máximo para seguir en pie hasta el último
momento. (ZAMBRANO, M., 1939, pp.110, 111)
Em Pensamiento y poesía en la vida española (1939, p.135), María
Zambrano analisa que existe, na Espanha, um obsesivo pensamento cerceador
128
acerca da morte em parte ocasionado provavelmente pelo seu estoicismo,
relacionado a um pensamento cristão formador da alma espanhola.
Em Galdós, os seus personagens simbolizam a vida do homem espanhol na
sua história. O personagem Nina é um exemplo disso. Nela, podemos observar a
solidão, o encarceramento, a incerteza que clamam pela liberdade. Galdós escreve
uma visão do seu tempo e, para isso, vale-se do personagem de “señá Benina”,
Nina, que se singulariza e se salva na função de protagonista de Misericordia. Por
meio desse personagem, María Zambrano procurará contemplar sentimentos de
esperança de reconciliação do homem com a vida e consigo mesmo diante de um
infernal ambiente espanhol de decadência que Galdós tem a sensibilidade de
surpreender e estetizar. No ensaio Misericordia, Gómez Blesa (2008, p.113)
assegura que María Zambrano procura a forma de vida do povo espanhol anônimo,
que, de alguma maneira, forja o seu desenvolvimento histórico. É o que a autora
chama em Pensamiento y poesía en la vida española de história essencial
(ZAMBRANO, M., 1939, p. 29), fundamental da Espanha, que se encontra à parte
da história oficial compartilhada.
O personagem consegue viver ou sobreviver acima das ilusões e tragédias
alheias, as quais supera pelo sacrifício, pela verdade, pela inocência e pela
esperança que transcende a resignação ou o conformismo. Galdós caracterizava-se
fortemente pelo poder de observação, fundamental ao romancista, enfim, ao
escritor. Não podemos esquecer que em Misericordia, como em outros romances,
Galdós impregna a linguagem de termos populares e até vulgares, chegando a
descrever os seus personagens de maneira ridícula e infantil. O seu humor é
bastante irônico e tem a influência cervantina, na medida em que Galdós foi um
leitor atento do Quixote. Inclusive, fala-se sobre o quixotismo de Nina, o seu
otimismo e a sua resignação diante dos desígnios de Deus, em um simbolismo
religioso presente no romance. García Lorenzo (1991, p.46) sublinha que a mísera
vida de Nina pode ser observada como uma via crucis e que o paralelo entre Nina e
Cristo tem sido alvo de muitos estudos críticos. Gustavo Correa escreve que:
El trayecto recorrido es una ascensión continua, cuya meta final es la
imitación de Jesucristo. El camino de la mendicidad es, para Benina, camino de
santificación y la conduce a un angelismo que sobrenaturaliza su persona y la hace
superior a todos los demás seres de la tierra. (CORREA, G., 1962, p.207)
129
Bleznick e E. Ruiz, por outro lado, deixam claro suas ressalvas em relação
a este paralelo entre Benigna e Cristo, dizendo que há
[...] una diferencia tan básica que cualquier esfuerzo por establecer una
semejanza formal entre ambos personajes queda nulificado: Cristo dio su
misericordia, muriendo, para garantizar la felicidad eterna al hombre cristiano a
través de la muerte; Benina da su misericordia, viviendo, para garantizar la
felicidad temporal a todos los humanos a pesar de la muerte. (BLEZNICK, D. W. e
E. RUIZ, M., 1970-71, p.488)
García Lorenzo (1991, p.47) defende evidentemente que não há o propósito
de se fazer um paralelismo total entre a vida de Cristo e a vida de Benigna, pois a
redenção do personagem de Galdós é humana e assim deve ser entendida. Em
várias obras literárias, vemos muitas criações que se aproximam dos valores
cristãos, como o amor ao próximo, o desejo de justiça, a prática da caridade,
sacrifícios e dores em favor do bem comum.
É interessante observar que essas obras de Galdós chamam a atenção de
Buñuel por questionarem princípios sociais, como a moral, a religião, os costumes,
os preconceitos, colocando em questão a validade de todo tipo de determinismo ou
ordem. Por isso, lhe desperta tanto interesse o personagem de dom Lope: “Embora
esse romance, epistolar, não seja dos melhores de Galdós, eu me sentia atraído há
tempos pelo personagem don Lope.” (BUÑUEL, L., 2009, p.341)
O trabalho, um dos principais valores da sociedade burguesa, é
severamente atacado pelos surrealistas que o tacharam de uma grande mentira ao
exultar que o serviço assalariado era ofensivo. Na filmagem de Tristana por
Buñuel, vemos essa crítica, quando dom Lope fala ao mudo:
Pobres trabalhadores. Cornos e, como se não bastasse, espancados! O
trabalho é uma maldição, Saturno. Abaixo ao trabalho que temos que fazer para
ganhar a vida! Esse trabalho não nos honra, como dizem, serve apenas para encher
a pança dos porcos que nos exploram. Em contrapartida, o trabalho que fazemos
por prazer, por vocação, enobrece o homem. Todos deveriam trabalhar assim. Olhe
para mim: eu não trabalho. Podem me prender, não trabalho. E veja, vivo, vivo mal,
mas vivo sem trabalhar. (ibidem, p.175)
Na verdade, Buñuel recria o julgamento galdosiano, que se sustenta em
uma crítica ao vício da ociosidade de dom Lope. Segundo Buñuel (ibid.), os
130
surrealistas foram os primeiros a notar que o valor do trabalho começava a entrar
em decadência com questionamentos sobre se realmente o homem deveria
trabalhar e com a observação de comunidades ociosas.
Cabe destacar como interesse para Buñuel o fato de que, em Misericordia,
se identificam tanto o plano da realidade como também o plano da fantasia. O
nível da realidade existe em toda a obra e é dentro desse meio que se movimentam
os personagens. Por outro lado, os personagens também se valem de outro tipo de
realidade que provém do sonho, da imaginação ou da fantasia. Na visão de Joaquín
Casalduero, podemos comprovar essa ideia.
En Misericordia nos vemos trasladados sin cesar de la zona de la realidad a
la de la imaginación o al contrario. Si la descripción del autor nos coloca en una
habitación o en una calle, o entre unas mujeres o unos hombres, captando la luz, los
colores, los contornos en toda su expresiva objetividad, en seguida un personaje nos
aleja de ese mundo real y nos transporta a un mundo soñado; si a menudo el diálogo
de los personajes se refiere exclusivamente a la realidad, con frecuencia nos
introduce en un puro mundo de fantasía. (CASALDUERO, J., 1942, p.221)
Embora a miséria e a constante necessidade sejam uma realidade, Benigna
e Doña Paca, personagens galdosianos completamentes opostos, têm ilusões que
conseguem fazê-las esquecer a fome por alguns instantes e sonhar com um mundo
de justiça e felicidade: “A memória é perpetuamente invadida pela imaginação e o
devaneio, e, como existe uma tentação de crer na realidade do imaginário,
acabamos por transformar nossa mentira numa verdade.” (BUÑUEL, L., 2009,
p.15) Em outro momento, declara Buñuel que:
Esse amor descomedido pelo sonho, pelo prazer de sonhar, totalmente
despojado de qualquer tentativa de explicação, foi uma das inclinações profundas
que me aproximaram do surrealismo [...] introduzi sonhos nos meus filmes,
tentando evitar o aspecto racional e explicativo que eles costumam ter. (ibidem,
p.135)
Cremos que o que pode ter provocado também um alto interesse de Buñuel
em relação à Galdós é que entre os meios intelectuais espanhóis daquela época
havia uma série de resistências e críticas ao trabalho literário do escritor canário,
empreendidas sobretudo pela geração de 98 pela forma vulgar-popular com a qual
se expressava. A geração de 98, dentro do aspecto literário, repudiava o realismo,
que, segundo Francisco Ayala (1987, pp.357, 358), representava a teoria estética
131
correspondente às convicções positivistas formadoras da mentalidade burguesa. O
refinamento aristocrático que contrastava com as realidades cotidianas desvia a
atenção desses escritores em relação a uma situação social detestável, o que,
segundo Francisco Ayala também os aproxima do romantismo. Outra via crítica do
realismo é estabelecer uma cruel caricatura da sociedade. Ao contrário de seu
predecessor, o romantismo e do seu sucessor, os modernistas de 98, que se
encontravam contra a sociedade e procuravam afastar-se ao máximo dela, o
realismo disserta sobre o homem dentro de seu ambiente social. Dessa forma,
afirma Francisco Ayala (ibidem, p.359), o romance polemizou e orientou a
consciência do leitor tanto na compreensão da realidade como também na vida
prática, que aparece como uma consequência da crise da idade moderna, que, a
partir do renascimento e da reforma, terminariam destruindo a autoridade da Igreja
e levando a uma laicização da vida social, transformando a religião em um
exercício individual e privado. Luis Buñuel defende essa mesma posição:
Como todos os membros do grupo, eu me sentia atraído por certa ideia de
revolução. Os surrealistas, que não se consideravam terroristas ou ativistas
armados, lutavam contra uma sociedade que eles detestavam utilizando o escândalo
como arma principal. Contra as desigualdades sociais, a exploração do homem pelo
homem, o poder emburrecedor da religião, o militarismo grosseiro e colonialista, o
escândalo pareceu durante muito tempo o revelador todo-poderoso, capaz de trazer
à tona as molas secretas e odiosas do sistema que era preciso derrubar. Alguns não
demoraram a se desviar dessa linha de ação para passar à política propriamente dita
e, sobretudo, ao único movimento que parecia então digno de ser chamado
revolucionário, o movimento comunista. Daí as discussões, as cisões, as polêmicas
incessantes. Entretanto, a verdadeira finalidade do surrealismo não era criar um
novo movimento literário, ou pictórico, ou ainda filosófico, mas fazer a sociedade
explodir, mudar a vida. (BUÑUEL, L., 2009, pp.155, 156)
É interessante o comentário de Francisco Ayala (1987, p.360), quando
defende que esse processo foi de esquema semelhante ao empreendido por
Descartes, sobre o qual escreve María Zambrano na Revista de Occidente, onde o
filósofo com o Discurso del método transforma uma maneira de pensar, alertando
que o conhecimento se constrói a partir da subjetividade. Desse modo, não
podemos dizer que o realismo e um Galdós realista tenham a sua obra
minimalizada à uma objetividade que defende o cânone do gênero. Pelo contrário,
Galdós utiliza, nas suas obras, elementos subjetivos, inovadores, simbólicos e
132
transcendentes, que nos inviabiliza diferenciar a realidade do sonho ou da
invenção. Reforçamos essa ideia com uma citação de Francisco Ayala:
Si en el concepto de un realista tan caracterizado como Galdós la realidad no
se reduce a aquella objetividad que nos garantizan los datos controlados de la
experiencia sensible, o sea, «la realidad de la naturaleza» (o, con tautología, la
realidad de las cosas), sino que acepta también la realidad del alma, la invención, la
fantasía, la máscara grotesca, etc.; en suma, la totalidad de la experiencia humana
sin excluir, ni mucho menos, la de los sueños, sobre la cual vendría luego el
surréalisme a apoyarse, tendremos que llegar a la conclusión de que nos falta base
firme para distinguir entre la realidad y lo que no lo sea, y, por tanto, para marcar
los contornos de un supuesto arte realista. (ibidem, p.390)
As diferenças de perspectivas que oferece Galdós em suas obras
intencionam enriquecer a chamada ilusão da realidade criada sob a égide de sua
particular idiossincrasia que deseja, pela imaginação e pela ambiguidade, abordar e
compreender os diversos problemas de seu tempo. Se tomarmos em consideração
que a objetividade constitui, por assim dizer, uma transcendência dos objetos, é
aceitável pensar também que configura uma visão pessoal do que é objeto, imagem
ou figura da observação e que intenciona ser compreendido pelo homem. Assim
sendo, a objetividade não é uma lógica unívoca, porém está formada por uma
‘logicidade’ diversa. María Zambrano (1939, p. 22) sustenta que há muito tempo o
homem decidiu ser um enigma indescifrável para si mesmo: “esto si es lo propio
de lo español, de la vida española y del hombre que la vive: el imposible, el
imposible como único posible horizonte.” (ibidem, p.65)
Francisco Ayala comenta sobre o interesse de Buñuel, um surrealista, cujos
princípios se apóiam no subconsciente e nos sonhos, com relação às obras
realistas de Galdós, levando-se em conta, como já dissemos antes, a filmagem de
Nazarín y Tristana.
Así, este mismo año (1970), la película de Buñuel basada en Tristana me ha
llevado hacia la novela, y esta lectura reciente ha despertado en mí impresiones y
suscitado reflexiones que no me habían ocurrido antes. (Dicho sea entre paréntesis:
puesto que comencé aludiendo al contraste entre las teorías vanguardistas de mi
juventud y el espíritu «garbancero» que se atribuía a don Benito, ¿no es de veras
curiosa la devoción –pudiera decirse, incluso, la obsesión– del superrealista Buñuel,
el autor de Le chien andalou y L´age d´or, con el realista mundo galdosiano?
(AYALA, F., 1987, p.403)
133
Na verdade, pensamos que Galdós tem a peculiaridade de ser um realista
com uma personalidade extremamente crítica inserido em um contexto que
questiona o realismo. Desse ponto de vista, Galdós apresentaria um realismo
surrealista, com personagens fantasiosos e alucinantes? Pensando sobre a questão,
é possível defender que o realismo de Galdós possui inegavelmente um tipo de
delírio, que denota uma imaginação fantasiosa. Ayala analisa alguns elementos
importantes de Tristana que confirmam essa assertiva.
Tristana, título de la obra, es ya, para empezar, el nombre que a la heroína
impuso la fantasia de su madre, dama «con ciertas puntas y ribetes de literata de
buena ley», que «detestaba las modernas tendencias realistas»: «Su niña debía el
nombre de Tristana a la pasión por aquel arte caballeresco y noble, que creó una
sociedad ideal para servir constantemente de norma y ejemplo a nuestras realidades
groseras y vulgares.» Es, pues, la muchacha, al menos en cuanto a su nombre (pero
en alguna medida también su carácter corresponde al significado de éste) una
creación del delirio quijotesco de su progenitora, quien a través de sus preferencias
literarias se identifica con una sociedad ideal que debiera superponerse a las
realidades del presente, y quiere simbolizarla en la criatura de sus entrañas. Esta,
Tristana, aparece así como proyección de una mente enferma, extraviada por
aquellos libros que volvieron loco a Alonso Quijano. (ibidem, p.404)
Como Buñuel e Ayala, María Zambrano também participa desse resgate da
tradição filosófica espanhola pelo romance e pelos personagens femininos,
escrevendo “Tristana”, um artigo publicado em 1970 em La Pièce, França, que,
porém, se manteve inédito até ser conhecido muito tempo depois. Nesse artigo,
Zambrano defende o estilo de Galdós rebatendo as críticas de Miguel Unamuno e
dos demais autores do princípio do século XX, que criticavam o ‘garbancismo’ do
escritor canário: Tristana “está escrita, más que con cuidado, con esmero.”
(ZAMBRANO, M., 1989b, p.148)
María Zambrano, como algum tempo antes Azorín, interessa-se pelo
realismo decimônico, sobretudo, galdosiano no sentido de que apresenta uma
realidade superior, transcendente ou espiritual à realidade social indignante que lhe
inspira, contribuindo à formação de uma importante consciência nacional
espanhola com suas virtudes e vícios, valendo-se de personagens femininos que
intencionam servir de suporte para investigar a natureza humana, a natureza do ser.
Entendemos que tanto o romance como a poesia, ou seja, a literatura serviu
para María Zambrano como fonte inspiradora para a construção do seu
pensamento filosófico baseado na razão poética. A novelística do realismo
134
decimônico é alvo de diversas análises da ensaísta, sobretudo, no que se refere à
produção galdosiana. O interessante de observar em María Zambrano é o fato de a
escritora destacar, nas obras de Galdós, os personagens femininos, ou melhor, a
subjetividade feminina. Esse resgaste de uma tradição romanesca e filosófica
tradicional por parte de María Zambrano permite-lhe elaborar um conceito
filosófico particular, que, segundo Roberta Johnson (2005, p.106), reúne dados que
se relacionam com os personagens femininos do Quixote e com os romances de
Galdós, entre eles, Fortunata y Jacinta, Misericordia e Tristana. Esses
personagens femininos oferecem o suporte necessário, para que Zambrano consiga
refletir sobre assuntos que constituem a base primordial do seu pensamento.
Luis Buñuel, ao filmar obras de Galdós, demonstra a importância de se
debruçar sobre uma memória espanhola que torna possível a compreensão da
forma de ser do espanhol:
Precisamos começar a perder a memória, ainda que gradativamente, para nos
dar conta de que é essa memória que constitui nossa vida. Uma vida sem memória
não seria vida, assim como uma inteligência sem possibilidade de expressão não
seria inteligência. Nossa memória é nossa coerência, nossa razão, nossa ação, nosso
sentimento. Sem ela, não somos nada. (BUÑUEL, L., 2009, p.14)
José Luis Mora (2004, p.1) afirma que o apelo ao romance ou à poesia
ocorre em momentos em que o pensamento se encontra mais intenso, maduro e
compromissado. As fases de maior densidade produtiva devem-se precisamente às
experiências biográficas. Se não podemos categorizar que a criação artística de um
escritor depende de suas circunstâncias vitais, também não é possível descartar a
inexistência de qualquer tipo de hibridismo entre vida e obra. Em geral, os ensaios
de María Zambrano proclamam seus ideais de liberdade, de preocupação com o
tempo, de conscientização política e social que aproximam um ser humano do
outro e lhes dão a possibilidade de fazer verdades e sonhos constituírem presença
na história. Segundo Roberta Johnson (2005, p.108), essa busca pela liberdade
aparece, em muitos momentos, na obra zambraniana, nos personagens femininos
do romance realista galdosiano. Em contrapartida, María Luisa Maillard sustenta
que isso se justifica no sentido de que o romance denota um moderno apreço pela
individualidade e pela independência espiritual do homem: Zambrano elege o
romance “por ser un género contemporáneo, nacido de la afirmación de la
135
individualidad renacentista y el que responde de forma emblemática a un mundo
despojado de la servidumbre de los dioses y reducido al horizonte de lo humano
(1997, p.111). O romance, apesar de ser um gênero mais moderno, admite uma
leitura do passado. Como escreve José Luis Mora, tanto Zambrano como Galdós
foram sensíveis ao fato de que o romance permite uma revisão crítica do passado,
pois é
el género que sin renuncia a la referencia histórica [...] nos permite una
relectura del pasado, es decir, sacar una lección moral donde había fracaso en el
campo de la acción política. Consigue, pues, la novela, principalmente, que no
perdamos de vista la unidad establecida sobre otros parámetros y nos obliga,
además, a creer en que la salvación es posible. (MORA, J. L., 2004, pp.127, 128)
Roberta Johnson (2005, p.109) defende realmente que María Zambrano se
identificava com as mulheres que selecionava para analisar em seus ensaios com a
finalidade de poder desenvolver uma singular filosofia da liberdade humana.
A reação que despertava Galdós em outros escritores era fortíssima, pois
possuía uma personalidade marcante e uma grande popularidade favorecida por
uma riqueza de experiências notável. Uma das intenções galdosianas era mostrar a
realidade social espanhola, que, naquele momento, tornou-se medíocre em função
da difícil situação da história do país. O sentido humano e piedoso das suas obras
mescladas com certa ironia plasma-se nos destinos malogrados, modestos, porém
alegres do povo espanhol. É dentro desse panorama social espanhol adverso que
Galdós constitui o seu espírito artístico por meio do romance como um
instrumento literário moderno capaz de espelhar a sociedade na qual se vive. Com
as palavras que seguem de Francisco Ayala, podemos comprovar essa afirmação.
Pues lo cierto es que la literatura, y de un modo particular la novela
desempeña en la edad moderna (esto es, a partir del Renacimiento y la Reforma)
una función social muy eminente. Tras la crisis de la Cristiandad y a raíz de la
ruptura de la unidad de la Iglesia, el escritor ha venido a asumir en el mundo
occidental aquella autoridad espiritual que el clero había ejercido durante la Edad
Media. A él compete desde entonces la tarea de ofrecer una visión del mundo, de
proponer las normas de juicio y de conducta que orienten a las gentes en la vida
cotidiana. Y esto es lo que hace Galdós a lo largo de toda su obra novelística.
(AYALA, F., 1987, pp.353, 354)
Zambrano deseja atestar, em Misericordia, que, através dos romances de
Galdós e de seus personagens femininos, podemos vislumbrar os acontecimentos
136
mais importantes da história espanhola e em que medida esses sucessos foram
imperativos para o pensamento do povo espanhol, na medida em que se traduz o
tempo real da vida da nação.
Y de este remolino ensangrentado que es la vida española del siglo XIX, lo
que Galdós nos da en toda su integridad es la vida misma, la sangre misma. La vida
del español anónimo, de obscuro nombre genérico, que va pegada a un pueblo, a
una comarca, a un trozo de tierra, en fin, con sus viñedos y garbanzales, con sus
trigales y roquedas, o a una ciudad plantada en el desierto, rodeada de vertederos y
escombrera, de tétricas estaciones de ferrocarril como Madrid. Vidas que lo son,
tanto como de un ser humano, de un pedazo de suelo, un trozo de vida española; es
decir, de linajes y tradiciones, de vida anónima con sus infinitas raíces en el ayer:
tejido tramado con todos los elementos de nuestro ser de españoles. (ZAMBRANO,
M., 1938, pp.29, 30)
Na verdade, a ensaísta acredita que o passado pervive no presente, embora
não se tenha verdadeira consciência desse processo, ainda que a memória seja
intermitente e vaga para uma Espanha que praticamente não se reconhece em seu
próprio passado e isso é um traço trágico desenvolvido no ensaio zambraniano. No
romance de Galdós, afirma a autora, surge essa Espanha enferma, pobre e louca,
mesquinha e disparatada, de prodígio e de absurdo, como estava vivendo a
Espanha daquele tempo de guerra civil. É a questão da visão do realismo tão
importante para os espanhóis, não somente como gênero artístico, mas na
interpretação da sua existência como povo.
Mas no nos basta, pues la sospecha que tenemos, la única que de
comprobarse encajaría en la función que el tal realismo ha venido desempeñando en
nuestra cultura, es la que induce a creer que el realismo español lleva aneja una
forma de conocimiento, precisamente aquel de que se han nutrido toda nuestra
cultura y saber populares, la cultura analfabeta del pueblo y las más altas, las más
misteriosas obras de nuestra literatura. (ibidem, p.33)
Definido pela autora como um gênero de saber, para entender o realismo,
teríamos que remontar às origens do conhecimento na Grécia. Seria importante
identificar as raízes da atual crise do saber filosófico ou racional que serve de seiva
espiritual ao homem e ao pensamento em toda a sua plenitude. Essa semente do
saber grego já aparece plantada na revista Hora de España e será desenvolvida,
com mais profundidade, em textos posteriores da ensaísta, como os que
trabalharemos: Filosofía y poesía e El hombre y lo divino.
137
Zambrano afirma que a obra de Galdós é humilde, dispersa e
misericordiosa ao colocar à luz para o leitor as questões mais decisivas da história
de seu país. Destaca a tradição literária espanhola nos romances galdosianos sobre
Madri, Fortunata y Jacinta e Misericordia, onde encarnam a realidade de um
povo em que se produzem fecundidade e misericórdia como uma imensa força
vital que sustenta toda uma história e toda uma tradição condensadas em um país
chamado Espanha. Nota-se que a escritora estabelece relações frequentes entre o
passado e o presente, mostrando certa nostalgia e lamentando-se da situação atual.
Zambrano diz que, em Misericordia, se pode adentrar a alma do espanhol em suas
várias divisões sociais, com os seus amores e riquezas e com todos os seus erros,
culpas e esperanças.
En esta corriente viva que llamamos tradición se asientan las raíces de
nuestra cultura verdadera, o sea de aquellas nociones actuantes que rigen nuestros
más secretos y continuos movimientos, que aprisionan nuestra mente, que inspiran
en los instantes decisivos de nuestra existencia sin resolución, porque de ella nos
viene la fuerza capaz de vivir y morir, la fuerza capaz de hacernos creer que
pervivimos cuando ha sonado la hora de la aniquilación, porque ella nos empuja
con la infinita fuerza de cada uno de nuestros linajes y nos inspira con la
embriagadora promesa de nuestra continua resurrección en la temporalidad, más
acá de todo juicio final. (ibid., p.37)
María Zambrano sempre refletiu sobre a inteligência e a revolução e por
que esta se fez de modo tão sangrento. Uma das respostas está no fato de que é
preciso dar-se conta da alterabilidade do mundo. De tempos em tempos, as
doutrinas racionais, corerentes, lógicas e fixas que orientam o mundo se
flexibilizam pelos questionamentos de seus princípios.
O presente é visto pela autora sempre com uma ideia sangrenta, de
amargura. Zambrano diz que desde o começo do século XIX, ou seja, desde os
inícios da criação artística de Galdós até a ‘tragédia atual’, a suposta, mas
inverdadeira unidade do povo e também do Estado espanhol representada por
Cisneros (município espanhol da província de Palência, onde existiu um campo de
deportados, em que estiveram presos militares e civis que se rebelaron contra a II
República no golpe de estado empreendido pelo general José Sanjurjo, em 1932)
sofreu grandes abalos. Zambrano acredita que qualquer romance de Galdós
apresenta uma Espanha em carne viva, em trágica dualidade. A autora defende que
138
parece que a crise da unidade espanhola é originária de um problema da formação
do Estado desde Felipe II, apesar de que, explica Zambrano, não encontramos essa
tese na obra galdosiana. A escritora divulga que a obra de Galdós sugere que essa
dualidade trágica tenha surgido por uma precária assimilação do passado, em
virtude de uma impossibilidade de vivência desse tempo, pois, em Misericordia,
desponta a abundância de elementos raciais, religiosos e culturais diversos, que
premiam ou segregam o povo espanhol. Essa diversidade constitutiva do espanhol
foi motivada pelas próprias peculiaridades da península hispânica, que a definem
como um eixo intermediário entre Oriente e Ocidente, sem contar com as
especificidades culturais e étnicas que provêm do Noroeste e do Sul, que
caracterizam as lutas internas do espanhol, com relação ao seu passado. Assim,
assevera Zambrano, é que a revolução desejada pela Espanha, por parte dos
espanhóis, tenha sido uma revolução com relação ao passado, no sentido de uma
reabsorção ou incorporação do passado a uma existência efetiva dentro de uma
corrente tradicional popular. Muitos espanhóis sentiram a tragédia da unidade
espanhola como a sua própria tragédia.
Zambrano anuncia que o mundo de Misericordia enfrenta-se a uma luta
entre a prodigalidade e o medo ante a vida. Na obra de Galdós, encontramos a
decadência, a ruína e a locura na forma de uma alienação ou desprendimento do
tempo, que lhe salva de um presente insatisfatório; é como uma suspensão pessoal
e voluntária do tempo de alguém que não deseja viver a realidade, o que, segundo
a autora, constitui a própria Espanha, quando atravessa caminhos que não são os
almejados e muito menos aceitos, como o que a autora e os espanhóis vivenciavam
naquele momento. Por meio da leitura de uma tradição, María Zambrano consegue
ler toda uma história da nação espanhola e criticar o seu próprio tempo. Em
Pensamiento y poesía en la vida española, Zambrano destaca a importância do
‘peso do passado’:
En época alguna del mundo, el hombre ha tenido tanto pasado gravitando
sobre sí; en época alguna ha sentido tanto el fardo de esto que se llama ayer,
tradición. Comparada con cualquier otra época vemos la nuestra en este crítico
instante en que es preciso volver la vista atrás, si se quiere seguir adelante. Y en la
vida el seguir adelante es la única forma de sostenerse. El saber acerca del pasado
no es ya una curiosidad lujosa, ni un deporte que pueda permitirse inteligencias en
vacaciones, sino una extremada, urgentísima necesidad. (ZAMBRANO, M., 1939,
p.23)
139
A autora (ibidem) explica que o século XX, o seu tempo é, no entanto, uma
época de revoluções que desejam romper com o passado, mas também adverte que,
ao mesmo tempo, a revolução reclama explicações ao ontem, o que sugere a não
possibilidade de uma ruptura radical com o passado, uma vez que o movimento da
mudança exige uma relação com o que passou e com o que se quer romper e
repensar. Esse retorno à própria tradição espanhola foi empreendido por muitos
autores espanhóis ou durante a guerra civil ou no início do exílio como foi o caso
de Ferrater Mora, Américo Castro, José Gaos, Menéndez Pidal e María Zambrano
por conta da delicada situação pela qual passava a Espanha nesse período. Na
verdade, um ideal revolucionário republicano havia fracassado e era urgente que se
voltasse a reconsiderar o futuro espanhol e compreender os motivos de tantas
perdas e a própria guerra. Dessa maneira, é que, segundo María Zambrano,
podemos nos reconciliar com o passado a fim de que seja possível libertar-se de
sua sombra e poder seguir em frente, vivendo com esperança a história. É a
tradição que precisa ser resgatada no momento presente e verdadeiramente
assimilada e superada no seu fracasso e na sua tragédia.
Em Misericordia, mais uma vez, María Zambrano coloca o exemplo de
dom Quixote como símbolo de uma ‘inibição espanhola’, que alterou a aparência
da realidade, para que a vida pudesse continuar seduzindo-o na prática de sua
justiça, de sua misericórdia e de seu respeito. A autora analisa momentos da obra e
seus personagens, relacionando-os com fatos do seu respectivo tempo. Dom
Quixote sempre se negou a aceitar as contingências, o seu espaço e o seu tempo
por meio de seus delírios da imaginação, pela nostalgia de um passado ido, de um
culto a um pretérito já vazio, que se transformaram para ele em um simulacro de
uma vida ideal, que continha certa razão de ser alimentada, pois, como diz
Zambrano, “Y un grano de verdad basta a veces para sostener una vida.”
(ZAMBRANO, M., 1938, p.43) Segundo a autora, algumas características dos
personagens galdosianos remetem-se a dom Quixote, que lutou sem medo contra o
avanço pernicioso da cultura de massa por meio da leitura apaixonada dos
romances de cavalaria.
140
A autora, em Misericordia, fala sobre Benigma como uma figura atraente
dentro da obra de Galdós por ser extremamente apegada à realidade e de quem
praticamente nada se sabe, mas que sobrevive às suas próprias dores e aparece
como uma solução esperançosa, em relação a um entorno adverso, como a própria
escritora. O personagem representa uma cultura popular pura e sábia. Entre a fome
e a esperança e, às vezes, o pão de cada dia, o personagem consegue vencer a vida
e a morte.
Todo puede suceder, porque nadie sabe nada, porque la realidad rebasa
siempre lo que sabemos de ella; porque ni las cosas ni nuestro saber acerca de ellas
está acabado y concluso, y porque la verdad no es algo que esté ahí, sino al revés:
nuestros sueños, nuestras esperanzas pueden crearla. «Hay verdades que han sido
primero mentiras».
Verdad y mentira, dependen también de la esperanza, porque dependen de la
creación, porque la realidad que hay es solamente parte pequeñísima de la inmensa,
inagotable realidad, que Dios puede hacer salir de su mano. Porque lo que ahora
hay era nada antes de ser pecado, y de la nada de hoy pueden salir nuevos seres. El
mundo pende por completo de la voluntad creadora de Dios, mas también de
nuestra esperanza, de nuestros anhelos. Y esto es la misericordia, que nosotros con
nuestros sueños, con nuestro querer, lleguemos a participar de la creación, podamos
también crear. (ibidem, p.48)
Francisco Ayala (1987, p.388) sustém que a transcendência simbólica dos
personagens é um vigoroso fator distintivo nos romances galdosianos. Diversas
vezes, surpreendemos que a vida singular dos personagens e a história da Espanha
confundem-se. Essa identificação realiza-se, por exemplo, através dos nomes de
seus personagens, que, bem ou mal, funcionam como um anúncio de seu caráter e
revelam uma representação dos acontecimentos de seu país. Roberta Johnson
escreve que, como em La reforma del entendimiento español, em Misericordia,
a quintaessência da forma de ser espanhola e a busca pela liberdade concentram-se
na figura de Benigna:
[...] la pureza popular [...] la tradición verdadera que hace renacer el pasado,
encarnarse en el hoy, convertirse en el mañana [...] Libre como un pájaro, se
sobrepone a todo [...] Crea la libertad [...] El tiempo real y concreto en que lo
histórico y lo innominado se traban reflejándose mutuamente, el tiempo con ritmo
imperceptible en que transcurre lo doméstico agitado todavía por lo histórico, es el
tiempo real de la vida de un pueblo que lo sea en verdad, es el tiempo de la novela
de Galdós. (JOHNSON, R., 2005, p.114)
O tempo galdosiano se relaciona tanto ao passado como ao presente da
mesma forma que a intrahistória abarca também o futuro, onde é viável a
141
liberdade. É necessário que o homem tenha esperanças, que possam transformar a
realidade. Concordamos com Roberta Johnson (ibidem, p.122) quando alerta que a
interpretação de Zambrano dos romances galdosianos simboliza a sua própria
história como uma mulher do século XX, com uma série de restrições impostas
pela sociedade, cujo poder era predominantemente masculino, mas que obtém
êxito como escritora em seu próprio tempo ao sonhar a sua própria história e
granjear a liberdade de existir por si mesma. As dificuldades tornam possível o
pensamento revelador, que consegue unir sabiamente as virtudes da audácia e da
humildade.
Em Misericordia, María Zambrano refere-se ao casal cristão e musulmano
Benigma e Mordejai, pertencentes a religiões distintas e decisivas para a formação
do povo espanhol e que, na história, demonstram que diferentes crenças podem
conviver em paz, compreendendo-se e respeitando-se. O mouro Mordejai
consegue transformar a trágica realidade de Benigma de fome, amarguras,
angústias e tristezas na visão de uma vida melhor. Nina, com a capacidade de
absorver todo o positivo que a cerca, aceita os sonhos do mouro como obras de
Deus, descartando todo o mais que possa lhe causar dano. A personagem encarna a
própria figura da misericórdia redentora, que o povo espanhol necessita para
superar suas dificuldades e viver a sua vida mesmo em meio à guerra civil
espanhola.
O enlace entre os escritos zambranianos da guerra, onde vemos a
abordagem da obra realista galdosiana e a publicação, em 1939, no exílio
mexicano iniciado no mesmo ano, de Pensamiento y poesía en la vida española,
uma recopilação de conferências no próprio México, notabiliza a continuidade de
uma preocupação com o realismo espanhol definido como
[...] un estilo de ver la vida y en consecuencia de vivirla, una manera de estar
plantado en la existencia. [...] El realismo, nuestro realismo insobornable, piedra de
toque de toda autenticidad española, no se condensa en ninguna fórmula, no es una
teoría. Al revés; lo hemos visto surgir como “lo otro” que lo llamado teoría, como
lo diferente e irreductible a sistema. [...] No hay fórmula, no hay sistema que
compendie el realismo, nuestro arisco e indómito realismo [...] (ZAMBRANO, M.,
1939, pp.42, 43)
142
As diferenças de perspectivas que oferece Galdós em suas obras
intencionam precisamente “un estilo de ver la vida y en consecuencia de vivirla–
una manera de estar plantado en la existencia –no es una teoría– irreductible a
sistema [...] una forma de tratar con las cosas, de estar ante el mundo” (ibidem,
pp.42, 43, 48), onde a consciência da iminência constante do fracasso que a vida
nos coloca como ponto central é muito presente: “ Porque toda vida humana es en
su fondo una vida que se encuentra ante el fracaso, sin que el reconocer esto lleve
por el momento ninguna calificación de pesimismo, pues quizá sea la previa
condición para no llegar a él.” (ibid., p.13) Em Pensamiento y poesía en la vida
española, Zambrano começa a desenvolver uma filosofia menos centrada nos
problemas e questões nacionais, além de menos intrahistórica para ceder lugar à
análise da pessoa, da matéria em uma associação entre ser humano (mulher),
mundo físico e romance, na medida em que falar sobre a vida é, igualmente, falar
sobre problemas.
Como já explanamos, dentro do realismo espanhol, podemos notar a
melancolia como um sentimento fundamental que norteia o pensamento do homem
e como uma forma única de sentir a vida. Nos romances galdosianos e em outros
romances espanhóis, que vislumbravam o futuro, percebemos que a tríade
melancolia-resignação-esperança conforma os sustentáculos de uma cultura
particular fundada em uma noção de gênero do fracasso, que, por sua vez, viabiliza
um novo nascimento. Zambrano escreve que:
Es la cultura que anuncia la España del fracaso, la más noble o quizá la única
enteramente noble. Tenía forzosamente que fracasar porque ha ido más allá de su
época, más allá de los tiempos y hay un ritmo inexorable de la historia que condena
al fracaso a todo aquello que se le adelanta. Fracaso en razón de su misma nobleza,
en razón de su insobornable integridad se ha perdido. Fracaso también porque en el
fracaso aparece la máxima medida del hombre, su plenitud en su desnudez, lo que
el hombre tiene tan desprendido de todo mecanismo, de toda fatalidad que nada
puede quitárselo. Lo que en el fracaso queda es algo que ya nada ni nadie puede
arrebatar.
Y este género de fracaso es la garantía justamente de un renacer más amplio
y completo. (ibid., p.79)
A melancolia sugere a ausência, a falta, o que se foi ou o que nunca se
possuiu, o que faz surgir a esperança como um sentimento dignificante e salvador.
Essa característica niilista espanhola define o seu sentimento do trágico da
143
existência e também a sua capacidade sublime de superação, pois a falta preenche
um espaço importante de ambição pelo o que não se desfruta. Ao longo dos
séculos XVII e XVIII, após o sabor de grandes conquistas, a Espanha padeceu uma
série de infortúnios que a fizeram se debilitar até chegar ao século XIX como um
problema para si mesma, como uma Espanha da tragédia, como uma Espanha do
romanesco, segundo María Zambrano.
Así comienza nuestro siglo XIX; es el siglo de lo novelesco, y no por el
motivo de que la novela sea el mejor de los géneros literarios en él cultivado, sino
porque la vida española es novelesca siendo doméstica; porque toda España vive en
novela. Novela que es tragedia, porque no es la novela del individuo ni tampoco de
la sociedad, sino de la sangre, la novela de la vida familiar, de los lazos de
consanguinidad, que son siempre trágicos cuando en ellos se introduce,
encerrándose, la pasión, cuando son ellos el único ámbito, el único campo para que
la pasión galope, cuando son absorbentes y totalitarios. (ibid., pp.161, 162)
Os romances realistas de Galdós demonstram essa assertiva e nos faz ver o
que acontecia por trás dos costumes do homem espanhol do século XIX,
comprovando a importância que María Zambrano atribui a uma releitura crítica do
passado a fim de verificar os equívocos cometidos. O presente é sempre
incompleto e fragmentário, podendo somente ser íntegro com a observação de um
imediato pretérito. De acordo com Zambrano, esse mundo romanesco da vida
trágica espanhola é capturado com maestria por Galdós, que examina o espaço em
crise da tradição por meio de Fortunata, “la divina moza madrileña [...] es la fuerza
inmensa, inagotable de la fecundidad [...] Es la vocación irrefrenable de la
maternidad [...] (ZAMBRANO, M., 1939, p. 168) e Benigna, que “encarna [...] eso
tan maravilloso como la misma fuente de la vida que es la misericordia [...] es la
esperanza, la última, la que jamás se pierde.” (ibidem, p. 169). Os sentimentos de
misericórdia e fecundidade funcionam como redentores dessa Espanha da tragédia.
O realismo, pois, configura-se como uma tradição cultural espanhola
importantíssima. Dentro dessa tradição cultural espanhola que apresenta o realismo
como sua base fundamental, María Zambrano identifica o conhecimento poético
como uma maneira de integrar o homem ao mundo com a intenção de resgatá-lo da
atomização ou da cisão da qual é vítima na contemporaneidade.
144
6. UMA FALA COM A CONTEMPORANEIDADE: Cernuda
A fim de completar uma tríade a respeito da discussão sobre o pensamento
galdosiano empetrado por María Zambrano, pareceu-nos interessante mencionar o
poeta e crítico literário espanhol Luis Cernuda (Sevilla – 1902 / México – 1963),
integrante da Geração de 27, pois possui um poema intitulado “Díptico español”
que trata da nação espanhola, de suas tradições e mitos, entre eles, Benito Pérez
Galdós. Como grande parte dos escritores literários, Cernuda lê as obras clássicas
espanholas, francesas e inglesas e, como María Zambrano, publica seus primeiros
trabalhos na Revista de Occidente, em 1925. Mais tarde, em 1937, também
começa a colaborar com a revista Hora de España. O poeta e crítico T. S. Eliot
lhe desperta interesse especial. Cernuda valoriza a tradição literária universal e a
conjuga à originalidade de sua poesia, que se relaciona à sua experiência de vida.
Como assevera T.S. Eliot:
Os poetas têm outros interesses além da poesia – caso contrário, a sua poesia
seria bastante vazia; eles são poetas porque o seu interesse dominante foi converter
a sua experiência e o seu pensamento (experimentar e pensar é possuir interesses
fora da literatura) – converter a sua experiência e o seu pensamento em poesia.
(Eliot, T. S., 1997, p.143)
Podemos observar outros pontos de contato importantes entre María
Zambrano e Luis Cernuda, como o longo exílio republicano vivenciado por ambos,
onde o México foi um dos países que os recebeu com hospitalidade. María
Zambrano e Luis Cernuda conheceram-se.
“Díptico español” constitui o poemário de Desolación de la Quimera, que
Cernuda começou a redigir em 1956 e conseguiu publicá-lo em 1962. Entre os
onze livros de poemas que publicou, Desolación de la Quimera aparece como o
último livro de Cernuda. Segundo estudos de Octavio Paz, a poesia cernudiana
caracteriza-se
pela
meditação
e
estabelece
quatro
fases
de
produção:
aprendizagem, juventude, maturidade e início da velhice. Desolación de la
Quimera compõe a última etapa do poeta, que privilegia a austeridade e o
conceito na enunciação. Como uma maneira de entender o mundo, o título da obra
remete-se a uma expressão encontrada em um dos versos de Quatro quartetos de
145
T. S. Eliot. É o vigésimo primeiro verso da quinta parte do poema Burn Norton:
“The loud lament of the disconsolate chimera”. (ELIOT, T. S., 2004, p.89)
Segundo entendimento comum, os dípticos são formados por pinturas com
motivos religiosos sobre madeira geralmente organizada por tábuas retangulares
que, por meio de dobradiças, integram-se e simbolizam momentos de um cenário
em tempos distintos que se refletem e comunicam. A pintura, que serve como
imagem ou cenário, pode ser fechada ou aberta sobre um altar. Por isso, ao
pensarmos na transposição dessa técnica de pintura para o texto poético, e, mais
especificamente, para o poema “Díptico español” de Luis Cernuda, inferimos o
conceito de uma Espanha dividida situada em dois momentos de clímax compostos
por “I ES LÁSTIMA QUE FUERA MI TIERRA e II BIEN QUE ESTÁ QUE
FUERA TU TIERRA, primeira e segunda parte do poema, que envolvem
diferentes perspectivas, individual, coletiva e uma hibridez de ambas no momento
presente da enunciação. Como “Díptico español” apresenta um ponto de vista
histórico, Fornerón (2010, pp.116, 117) explica que todo juízo histórico é
precisamente ‘narrado’ através de uma perspectiva triangular, interpretada como
três histórias constituintes de nossa personalidade: uma pessoal, outra coletiva e
outra ainda pessoal e coletiva dentro da sua contemporaneidade. Isso credencia não
somente a maneira dupla, mas a forma tripla ou até múltipla de leitura do texto. Se
a primeira parte dirige-nos a uma compreensão de um diatribe da nação espanhola
presente, a segunda parte enfoca um hino de louvor a um passado de glória. Em
outras palavras, pelo ‘discurso díptico’, por uma parte, vituperam-se as ações
viciosas que desafiam a concretização, na existência concreta, de uma felicidade
onírica possível e, por outra, exaltam-se os atos nobres de um passado que não
deve ser esquecido.
É fato comum compreender que a obra cernudiana oscila antiteticamente
entre o mundo da realidade e o mundo do desejo, dado que o próprio poeta, a partir
de 1936, denomina assim o conjunto de sua produção. Essa oposição nasce, de um
lado, das vicissitudes marginais de sua própria vida, mas, de outro, é o resultado de
uma forte influência de escritores românticos e simbolistas, que se debatiam entre
a vontade com relação à liberdade individual e as imposições morais de uma
sociedade burguesa, o que irá representar um tema bastante recorrente na poética
146
do século XX, sendo possível detectar-se essa peculiaridade em outros autores
espanhóis de sua geração, como Antonio Machado, García Lorca, Rafael Alberti e
a própria María Zambrano. Os motivos que levam Cernuda a antagonizar realidade
e desejo são variados e repetem-se ao longo da sua obra. Vamos mencionar
previamente algumas das razões mais importantes, que servirão de suporte à
análise do poema “Díptico español”. Agruparemos tais fatores em cinco grandes
esferas de interpretação, cuja primeira se refere ao sentimento de solidão e de uma
existência à margem provocada pela sensação da diferença. A segunda inclui o
anseio de descubrir um mundo que respeite a individualidade do homem, com
todas as suas particularidades. Para alcançar esse objetivo, por vezes, o poeta
recorre ao passado, à infância em uma busca pelo paraíso perdido. A terceira
requer o encontro com uma beleza de perfeição, não contaminada pela realidade
ou materialidade. A quarta aborda um dos maiores temas da poesia de Luis
Cernuda: o amor, discutido de distintas maneiras. O amor pode ser aquele não
vivido, mas sentido, canalizado em uma experiência literária. Pode ser aquele
vivenciado, porém frustrado, ferido pela insatisfação, pelo sofrimento, pela
incompreensão e pelo fracasso. Pode ser aquele momento de felicidade breve.
Pode ser aquele juvenil, de desejo e esperança eterna, em que o tempo e o seu
transcorrer detêm-se na jovialidade, que permite a pujança de espírito para
combater o mundo que reprime. Aqui, também encontramos o tema da nostalgia
da infância, cuja inocência, a felicidade e a percepção de ser eterno se harmonizam
com o universo e a natureza, que assinala a quinta esfera de interpretação da obra
do poeta sevilhano. O entendimento dessa esfera não se diferencia muito do que já
discutimos anteriormente. A natureza, entendida como desejo, isto é, um estado
edênico, onde o homem vive em harmonia com o cosmos, funciona de contraponto
ao mundo burguês real e caótico, que o poeta critica duramente, assim como o
fazem outros escritores da Geração de 27. Sendo fiéis aos pilares que sustentam
essa pesquisa, isso realmente leva-nos a pensar que a arte ficcional perpassa de
uma forma analógica e irônica a realidade para assim constatar a existência factual
trágica do homem.
Como pudemos ver, a poética de Luis Cernuda caracteriza-se por uma forte
presença intertextual, que colabora com a criação de uma escritura muito particular
147
e original. Citamos a concepção de leitura e apropriação de Manuel Ulacia, com
respeito à interferência da tradição clássica na obra cernudiana.
Desde el primer libro de Cernuda la reminiscencia, que yo prefiero llamar
presencia, es una constante en la escritura. Esta presencia es precisamente la labor
crítica del poeta que incide en su creación [...] si utilizo el término ‹intertextualidad›
en vez del ya tradicional ‹influencia›, es porque este último término propiamente
dicho implica una actitud pasiva por parte del escritor, en tanto que
‹intertextualidad› implica la actitud opuesta. Es decir, al leer la obra de otro autor,
la transforma, la hace suya. O en otras palabras, se podría decir, que Cernuda
‹cernudiza› sus lecturas. [...] Cernuda metafóricamente ‹canibaliza› la tradición
poética europea en sus diferentes expresiones desde el romanticismo hasta dos
diferentes movimientos de vanguardia. (ULACIA, M., 1986, pp.11, 12)
É evidente que o caráter intertextual não é um privilégio da obra de Luis
Cernuda, mas é também de outros tantos escritores, entre eles, María Zambrano.
Entretanto, é importante afirmar o óbvio devido à sua relevância na abordagem do
poema “Díptico español”, que possui ‘reminiscências’ da obra galdosiana. Para tal,
também é necessário vislumbrar o exílio de Luis Cernuda para melhor
compreender a sua escritura, tendo em vista que a sua extensa permanência fora da
Espanha favoreceu a produção da parte mais significativa da sua obra. Como a sua
poesia contém muito da sua (auto)biografia, a grande quantidade de exílios –
Fornerón chama-no de poliexilado (2010, p.80)– da sua vida, familiar, amoroso,
político, social, artístico propiciou o caráter de toda a sua produção literária. O
exílio é uma forma de resistência e de existência consciente, que demonstra quão
impossível é a vida na terra pátria. A desilusão do homem com a realidade
circundante expressa que o futuro é sempre um anseio utópico que tem por fim o
malogro. O exílio pretende denunciar que é preciso haver uma aceitação das
diferenças individuais; os exilados desejam pontuar a sua existência no mundo por
meio da vontade particular e da inteligência que rompe as fronteiras da própria
nação. O exílio, assim, testemunha os acontecimentos do homem e da sua época e
promove discursos relativizadores fundamentais ao crescimento intelectual do ser
humano com respeito à sua realidade.
A disposição estrutural de “Díptico español” como a de outros poemas
encontrados em Desolación de la Quimera caracteriza-se por ser de grande
extensão –está dividido em duas partes– e por tratar, de certa maneira, de temas
como a morte, a solidão, a memória, a história, a guerra e a infância, que se
148
duplicam em determinadas imagens, vozes e personalidades míticas do passado,
que o poeta precisa reconstruir para sobreviver a uma contingência presente
insatisfatória e procurar explicar a história do povo espanhol por meio de sua
ascendência ocidental literária e cultural.
Na primeira parte do poema “Díptico español” de Cernuda, podemos
observar uma Espanha da qual o poeta não se orgulha e critica severamente,
pontuando o seu desgosto de ser espanhol e de haver nascido dentro das fronteiras
de um país que não respeita as diferenças individuais e os direitos alheios.
I
ES LÁSTIMA QUE FUERA MI TIERRA
Cuando allá dicen unos
Que mis versos nacieron
De la separación y la nostalgia
Por la que fue mi tierra,
¿Sólo la más remota oyen entre mis voces?
Hablan en el poeta voces varias:
Escuchemos su coro concertado,
Adonde la creída dominante
Es tan sólo una voz entre las otras.
Na verdade, a capacidade de se voltar ao passado com admiração e veia
crítica que demonstram Cernuda por meio de um eu poético, Galdós no romance e
María Zambrano no ensaio assinala uma forma de não sucumbir à truculência e à
necedade de uma Espanha moderna contaminada por seus próprios sonhos de
poder e submissão do outro, que, em muito, correspondem a um pensamento
racionalista totalitário e a um sentir do homem trágico no mundo, colocado, por si
mesmo, em segundo plano frente à força de um ‘desenvolvimento’ econômico e
tecnológico. A atitude ética de reconstituir e preservar o passado aparece como
uma resistência à uma não ruptura com a tradição no presente, podendo assim
garantir uma via de saída e de esperança às gerações vindouras.
Lo que el espíritu del hombre
Ganó para el espíritu del hombre
A través de los siglos,
Es patrimonio nuestro y herencia
De los hombres futuros.
Esses primeiros versos do poema já contribuem para que possamos
entender melhor o sentido do título do livro. Se compreendermos que ‘quimera’
149
significa ‘fantasia’, ‘sonho’ ou ‘utopia’, ‘desolación de la quimera’ corresponde,
portanto, a um desejo frustrado. A quimera, a nosso ver, para Cernuda, possuía um
sentido amplificado da aspiração mítica impossível de uma grandeza do ser
humano e da sua civilização, já que tal magnanimidade não se encontra em um
tempo presente, mas em um tempo ido inalcançável. Assimilando-se a seres
irracionais, o homem, padecendo o seu próprio fracasso, intolerância e
desentendimento, aniquila a quimera da existência idealizada e reforça a
imortalidade do mito utópico da felicidade, como se o verdadeiro viver fosse
somente viável na ilusão.
Al tolerar que nos lo nieguen
Y secuestren, el hombre entonces baja,
¿Y cuánto?, en esa escala dura
Que desde el animal llega hasta el hombre.
Nos próximos versos, o poeta repete uma série de vezes o vocábulo
‘muerto’, conferindo-nos novamente por essa ideia e por outras similares a
imagem de destruição e ruína. A referência a um mundo ‘nadificado’, sem
expressão, sem voz, sem esperança patentiza o espírito desolado do poeta, que
insiste no fato de que tomar uma atitude é uma ação totalmente vã e impraticável,
pois tudo ‘nasce e morre morto’.
Así ocurre en su tierra, la tierra de los muertos,
Adonde ahora todo nace muerto,
Vive muerto y muere muerto,
Pertinaz pesadilla: procesión ponderosa
Con restaurados restos y reliquias,
A la que dan escolta hábitos y uniformes,
En medio del silencio: todos mudos,
Desolados del desorden endémico
Que el temor, sin domarlo, así doblega.
García Montero escreveu um ensaio com o sugestivo título de Los dueños
del vacío, onde exprime que, na visão do solitário poeta, a não aceitação do outro
não deveria equivaler à natureza e aos valores fundamentais do ser humano. A
dificuldade do existir humano está no conflito trágico oscilante entre o ser
individual e o ser dialogante dentro do mundo. A expressão linguística, assim,
cumpre a missão de canalizar o fluxo de uma consciência, que erige a identidade
do homem e lhe permite ser em relação ao próximo.
150
Distancia, rechazo, extrañeza, ante unas maneras de vida que no se
corresponden con “el oficio de ser hombre” aprendido duramente por el poeta. La
ética sustituye así a la biología a la hora de sugerir unas señas de identidad, es decir,
se aleja de las expresiones originales para acercarse a la conciencia, entendida como
un oficio de palabras, que se aprende en soledad y por el camino de las dificultades.
La única seña de identidad humana será la conciencia, que es individualidad y
diálogo, oficio y comunidad. La lengua pasa a convertirse en el vínculo estricto que
reconoce el poeta, porque es la única heredad que permite el entendimiento y la
discrepancia. (GARCÍA MONTERO, L., 2006, p.229)
O eu lírico afirma que o que fazemos hoje se reflete nas gerações
posteriores e marca a nossa história. Critica os equívocos cometidos em sua terra
espanhola e compara o viver ali com a barbárie e a pungente festa de toros.
La vida siempre obtiene
Revancha contra quienes la negaron:
La historia de mi tierra fue actuada
Por enemigos enconados de la vida.
El daño no es de ayer, ni tampoco de ahora,
Sino de siempre. Por eso es hoy
La existencia española, llegada al paroxismo,
Estúpida y cruel como su fiesta de los toros.
O povo e a inteligência vilipendiados pela repressão e o encarceramento
não possuem felicidade e não são livres para pensar e exercer os seus direitos de
escolha. A única escapatória para os que resistem é o exílio, que reivindica a sua
possibilidade de ser para si mesmo e para o mundo, usando a voz, a linguagem, a
arte como ferramenta de luta e protesto.
Un pueblo sin razón, adoctrinado desde antiguo
En creer que la razón de soberbia adolece
Y ante el cual se grita impune:
Muera la inteligencia, predestinado estaba
A acabar adorando las cadenas
Y que ese culto obsceno le trajese
Adonde hoy le vemos: en cadenas,
Sin alegría, libertad ni pensamiento.
A língua é um veículo de expressão que oferece possibilidades diversas e
acaba rompendo o pensamento totalitário. No movimento linguístico, o homem
pode obrar a favor de si mesmo e defender a sua natureza independente. O poema
escrito pelo poeta assume a responsabilidade de conscientizar o leitor, que é o
povo e que é o homem naturalmente em seu sentido amplificado, cuja finalidade é
fazer que a morte da inteligência e da livre opinião seja duramente negada e
151
combatida. Esse resistir bravamente é, sem dúvida, uma atitude difícil e, portanto,
heróica, mas que alerta sobre a importância da aceitação da individualidade e do
coletivo dentro de suas prerrogativas fundamentais de existência digna dentro do
seu mundo real: “un poeta, dicen, es un soñador. Quizá... En todo caso no es
soñador quien persigue un sueño, sino quien persigue la realidad.” (CERNUDA,
L., 1975b, p.117) O eu lírico reconhece, com pesar e tristeza, a sua nacionalidade e
língua espanhola e isso não é tão fácil de mudar como pode parecer para alguns,
pois faz parte de nosso ser mais íntimo, de nosso espírito, de tudo que vivemos
geralmente nos primeiros anos de nossa vida.
Si yo soy español, lo soy
A la manera de aquellos que no pueden
Ser otra cosa: y entre todas las cargas
Que, al nacer yo, el destino pusiera
Sobre mí, ha sido ésa la más dura.
No he cambiado de tierra,
Porque no es posible a quien su lengua une,
Hasta la muerte, al menester de poesía.
Tanto Cernuda, como Galdós e Zambrano buscavam uma realidade mais
justa, igualitária e decente às necessidades do homem moderno, que pudessem se
equilibrar com sua evolução técnica e o pensamento racionalista. Tanto em
“Díptico español” como no conjunto da obra poética de Cernuda, constatamos que
o desejo é um sentimento frequentemente frustrado pelas adversidades
contingenciais, porém, é justamente em virtude dessa sensação de fracasso e perda
que o que se deseja incorpora uma força expressiva poética tão avassaladora. A
língua aparece como o meio que pode gerar comportamentos transformadores que
diminuam as distâncias entre realidade e desejo, entre passado e presente, que,
decerto, constrõem o futuro.
La poesía habla en nosotros
La misma lengua con que hablaron antes,
Y mucho antes de nacer nosotros,
Las gentes en que hallara raíz nuestra existencia;
No es el poeta sólo el que ahí habla,
Sino las bocas mudas de los suyos
A quienes él da voz y les libera.
152
É essencial chamar a atenção para o fato de que também em Luis Cernuda
a escritura desenha uma pintura trágica de decadência e fracasso tanto individual,
como também coletivo e cultural de um país. O procedimento discursivo que
pretende recuperar o passado por meio de uma relevante tradição literária denota a
frustração da vivência do presente. Sem dúvida, escrever pressupõe percorrer
tempos e mundos distintos. O exílio torna-se uma experiência fulcral de
reconhecimento do lugar do outro, que nos faz identificar o nosso próprio lugar.
¿Puede cambiarse eso? Poeta alguno
Su tradición escoge, ni su tierra,
Ni tampoco su lengua; él las sirve,
Fielmente si es posible.
Mas la fidelidad más alta
Es para su conciencia; y yo a ésa sirvo
Pues, sirviéndola, así a la poesía
Al mismo tiempo sirvo.
Os próximos versos parecem-nos demasiado contundentes e continuam
demonstrando um poeta extremamente decepcionado com a sua origem, com o
tema da Espanha, apesar de se sentir irremediavelmente unido ao seu país por
fatores linguísticos e culturais. O sentimento crítico de repulsa em relação a
Espanha caracteriza o que o poeta idealiza e deseja e o que vê, com desengano, na
realidade. A visão negativa que o eu lírico possui da Espanha denuncia o seu
esforço de romper os vínculos que o conectam ao seu país, com o qual não se
identifica, e a vontade de permanecer no exílio.
Soy español sin ganas
Que vive como puede bien lejos de su tierra
Sin pesar ni nostalgia. He aprendido
El oficio de hombre duramente,
Por eso en él puse mi fe. Tanto que prefiero
No volver a una tierra cuya fe, si una tiene, dejó de ser la mía,
Cuyas maneras rara vez me fueron propias,
Cuyo recuerdo tan hostil se me ha vuelto
Y de la cual ausencia y tiempo me extrañaron.
O exílio do poeta, como María Zambrano, iniciou-se com a guerra civil
espanhola. O êxodo da terra natal propiciou tanto em um como em outro um
processo mais apurado de idealização da pátria nos primeiros anos sustentada por
uma nostalgia do país e sonhos de revolução que pudessem modificar e melhorar a
153
história da nação. No entanto, esses anseios foram deteriorando-se e cederam
espaço à desilusão.
Al principio de la guerra, mi convicción antigua de que las injusticias
sociales que había conocido en España pedían reparación, y de que ésta estaba
próxima, me hizo ver en el conflicto no tanto sus errores, que aún no conocía, como
las esperanzas que parecía traer para el futuro. Desnudas frente a frente vi, de una
parte, la sempiterna, la inmortal reacción española, viviendo siempre entre
ignorancia, superstición e intolerancia, en una edad media suya propia; y de otra,
[...] las fuerzas de una España joven cuya oportunidad parecía llegada. [...] La
marcha de los sucesos me hizo ver poco a poco que no había allí posibilidad de vida
para aquella España con que me había engañado. (CERNUDA, L., 1991, p.400)
O poeta, através da linguagem, ressoa a voz que precisa falar aos que, com
boa vontade e entendimento, possam ouví-lo e concordem com o direito individual
de ser livre física e intelectualmente, de ir e vir da forma que lhes aprouver, de
fazer da vida o que compreenderem que seja melhor. Essa é, de fato, a grande
herança pela qual é mister lutar e preservar.
No hablo para quienes una burla del destino
Compatriotas míos hiciera, sino que hablo a solas
(Quien habla a solas espera hablar a Dios un día)
O para aquellos pocos que me escuchen
Con bien dispuesto entendimiento.
Aquellos que como yo respeten
El albedrío libre humano
Disponiendo la vida que hoy es nuestra,
Diciendo el pensamiento al que alimenta nuestra vida.
¿Qué herencia sino ésa recibimos?
¿Qué herencia sino ésa dejaremos?
Nesses últimos versos, encerra-se a primeira parte de “Díptico español”. É
pertinente manifestar que, na primeira parte desse poema, encontramos o uso da
primeira pessoa do singular em diversos momentos com a intenção de revelar um
pouco da experiência do poeta em um sinal de texto autobiográfico. A
identificação estabelecida entre o que divulga o poema e a utilização do pronome
de primeira pessoa demonstra uma afinidade entre assunto ‘ficcional’ com
características da realidade vivenciada e poeta: “Soy español sin ganas / Que vive
como puede lejos de su tierra” (versos 67, 68). Em outros momentos da primeira
parte do poema, a primeira pessoa do singular transforma-se em plural, quando o
tema particular torna-se um assunto que envolve a todos de maneira geral:
154
“Escuchemos su coro concertado (verso 7) / La poesía habla en nosotros (verso 52)
/ Y mucho antes de nacer nosotros, / Las gentes en que hallara raíz nuestra
existencia (versos 54, 55). Vale a pena notar ainda que, ao longo dessa primeira
parte, aparecem algumas interrogações retóricas, pelas quais podemos interpretar
afirmações de caráter negativo: “¿Solo la más remota oyen entre mis voces? (verso
5). Evidente que não, existem outros escritores ou pessoas na mesma situação de
exílio por decepção com relação a Espanha. “¿Puede cambiarse eso?” (verso 59).
Claro que não, ninguém pode mudar a sua origem, a sua tradição, a sua terra, a sua
língua. Em outros momentos, lemos o emprego da conjunção adversativa ‘sino’,
que corrige uma negação anterior. A negação e a posterior ratificação são um
fenômeno interessante de polifonia, pois, nesse tipo de construção, temos a
possibilidade de perceber mais de um enunciador: “No es el poeta solo el que ahí
habla, / sino las bocas mudas de los suyos / A quienes él da voz y les libera.”
(versos 56-58) O leitor, como também um enunciador, pode pensar que somente o
poeta tem o dom da palavra, mas quem interpretar dessa maneira está enganado, há
outras vozes enunciativas. Outro exemplo é quando o poeta afirma que não se
dirige aos seus compatriotas também exilados ou desiludidos como ele, mas que,
além de se conscientizar a si mesmo, ‘deseja’ abrir as mentes de todos daqueles
que querem escutar outros pontos de vista e pensar por si mesmos: “No hablo para
quienes una burla del destino / Compatriotas míos hiciera, sino que hablo a solas /
(Quien habla a solas espera hablar a Dios un día) / o para aquellos pocos que me
escuchen / Con bien dispuesto entendimiento.” (versos 76-80). Essas
características estruturais também estarão presentes em alguns momentos da
segunda parte de “Díptico español”. Na primeira parte do poema, o eu lírico
contesta um tipo de discurso comum baseado em um exacerbado patriotismo
espanhol, em contraste com outra voz que se contrapõe a essa enunciação. Esses
enunciadores contrastam visões distintas da Espanha. O poema encerra a sua
primeira parte questionando a herança recebida e a que se vai deixar como legado
no futuro. Na realidade, o espanhol precisa ter a consciência de que possui uma
tradição muito mais nobre do que o presente inóspito que vivencia. “¿Qué herencia
sino ésa recibimos? / ¿Qué herencia sino ésa dejaremos?” (versos 85, 86) Se de
uma parte, o poeta lírico identifica uma Espanha adversa, ignorante e que adora as
155
amarras, de outra parte, o poeta descobre uma Espanha melhor, idealizada, calcada
primordialmente em uma ‘herança’ cultural que inegavelmente determinou o
pensamento subjetivo do povo espanhol, cujo exemplo, nesse poema de Cernuda, é
a contribuição literária de Galdós. Octavio Paz assevera que a poesia cernudiana
prima pelo aparecimento de outras vozes ou perspectivas que se combatem no
sentido de opor o que anseia o poeta e o que o mundo real é capaz de realizar e
oferecer. O poder imaginário da literatura transmuta o desejo em realidade e a
realidade em uma circunstância irreal. Em outras palavras, no nível da arte, as
contingências históricas que compõem a existência factual modificam-se.
Con cierta pereza se tiende a considerar los poemas de Cernuda meras
variaciones de un viejo lugar común: la realidad acaba por destruir al deseo y
nuestra vida es una continua oscilación entre privación y saciedad. A mí me parece
que, además, dice otra cosa, más cierta y terrible: si el deseo es real, la realidad es
irreal; el deseo vuelve real lo imaginario, irreal la realidad. (PAZ, O., 1977, p.153)
A segunda parte de “Díptico español” intitula-se BIEN ESTÁ QUE
FUERA TU TIERRA, onde detectamos diálogos com Galdós, que se encontra em
um tempo mítico, afastado do poeta por um longo período cronológico recuperado
para o presente pelo eu lírico, com o propósito de voltar a participar do mundo
presente e salvá-lo.
Su amigo, ¿desde cuándo lo fuiste?
¿Tenías once, diez años al descubrir sus libros?
Niño era cuando un día
En el estante de los libros paternos
Hallaste aquéllos. Abriste uno
Y las estampas tu atención fijaron;
Las páginas a leer comenzaste
Curioso de la historia así ilustrada.
O mito da tradição literária espanhola representada por Galdós instaura um
momento sagrado da história, do homem e da cultura, que, quando se narra, volta a
acontecer, a se produzir e colabora com um melhor entendimento do homem em
relação ao seu passado. O eu lírico anuncia que a realidade histórica que vivencia o
homem naquele instante, com respeito a qual sente estranheza e quer se
desenraizar, se difere dessa Espanha de Galdós da mesma maneira que o mundo
contingente se choca com o mundo interior do poeta, como Galdós, também
construtor de ficção, de sonhos, desejos e também de realidades de beleza e
harmonia. O poeta anseia ultrapassar o portal mágico do tempo e saborear uma
156
realidade pretérita mais favorável, mais criativa, mais vigorosa representada pela
literatura galdosiana e os inesquecíveis personagens de suas obras que igualmente
descreveram e escreveram a nação espanhola, os quais fizeram parte da infância do
poeta e de tantos outros homens.
Y cruzaste el umbral de un mundo mágico,
La otra realidad que está tras ésta:
Gabriel, Inés, Amaranta,
Soledad, Salvador, Genara,
Con tantos personajes creados para siempre
Por su genio generoso y poderoso,
Que otra España componen,
Entraron en tu vida
Para no salir de ella ya sino contigo.
Ao se utilizar o recurso mítico idealizado, o poeta confere grandeza e
beleza ao que se conta da tradição literária espanhola, colocando-a como um
exemplo a ser seguido pelas novas gerações, o que igualmente faz María
Zambrano. Ao conjugar o agora com o antigo, o passado com o presente, o eu
lírico faz da experiência particular cultural espanhola um paradigma universal,
como, de fato, é uma característica sine qua non do mito. A apropriação, a
reconstrução e a revelação do mito ao mundo em diferentes épocas legitimam o
discurso. Na forma de uma manifestação particular da linguagem, dentro da
literatura, podemos atentar para a construção de uma enunciação polifônica, onde
várias vozes integram o relato e propiciam uma multiplicidade de pontos de vista e
ideologias, sem monologizar a informação única e exclusivamente na figura do
autor.
Más vivos que las otras criaturas
Junto a ti tan pálidas pasando,
Tu amor primero lo despertaron ellos;
Héroes amados en un mundo heroico,
La red de tu vivir entretejieron con la suya,
Aún más con la de aquellos tus hermanos,
Miss Fly, Santorcaz, Tilín, Lord Gray,
Que, insatisfechos siempre, contemplabas
Existir en la busca de un imposible sueño vivo.
Dentro do poema, a crítica social que o processo cernudiano de inversão da
realidade presente pelo resgate do passado efetua afeta os sistemas de valores
dominantes na época –aos quais o mesmo autor é contrário– para expor que a sua
própria visão ideológica, a sua própria realidade, que aspira a ser como os antigos
157
heróis galdosianos, em suas loucuras e em seus períodos de lucidez, com outros
paradigmas de quimeras desoladas, é verdade, mas sempre com fé em um povir
mais venturoso.
El destino del niño ésos lo provocaron
Hasta que deseó ser como ellos,
Vivir igual que ellos
Y, como a Salvador, que le moviera
Idéntica razón, idéntica locura,
El seguir turbulento, devoto a sus propósitos,
En su tierra y afuera de su tierra,
Tantas quimeras desoladas
Con fe que a decepción nunca cedía.
Octavio Paz também sustenta que a poesia cernudiana contém uma série de
críticas aos valores culturais espanhóis e que a contestação pressupõe, assim,
inovação ou criação, na medida em que, por meio de outros pontos de vista, destrói
o que a sociedade considera como crença indiscutível: “La poesía de Cernuda es
una crítica de nuestros valores y creencias; en ella destrucción y creación son
inseparables, pues aquello que afirma implica la disolución de lo que la sociedad
tiene por justo, sagrado o inmutable.” (PAZ, O., 1977, p.139) A reiteração de um
paraíso perdido da Espanha da infância identifica o sujeito com o objeto tratado,
condenando-se o presente à uma progressiva destruição, onde o fracasso é o que se
pode esperar do futuro.
Y tras el mundo de los Episodios
Luego el de las Novelas conociste:
Rosalía, Eloísa, Fortunata
Mauricia, Federico, Viera,
Martín Muriel, Moreno Isla,
Tantos que habrían de revelarte
El escondido drama de un vivir cotidiano:
La plácida existencia real y, bajo ella,
El humano tormento, la paradoja de estar vivo.
Como já sinalizamos, a obra de Luis Cernuda possui uma trajetória vital
rumo ao fracasso e que a busca de um paraíso perdido infantil, inocente, sonhador
ao longo de toda a sua vida atua como uma constatação inegável da frustração e da
morte. Os livros de Galdós permitiram que a desolação da quimera do poeta fosse
compensada com a reconstituição de uma Espanha ideal sedimentada pelos
ensinamentos dos escritores nacionais. O que move o eu lírico é o desejo de
158
encontrar aquilo que deseja, sonha e aprecia dentro de um aspecto ético social
humano e artístico, que consegue renovar a sua existência e as suas quimeras.
Los bien amados libros, releyéndolos
Cuántas veces, de niño, mozo y hombre,
Cada vez más en su secreto te adentrabas
Y los hallabas renovados
Como tu vida iba renovándose;
Con ojos nuevos los veías,
Como ibas viendo el mundo.
Qué pocos libros pueden
Nuevo alimento darnos
A cada estación nueva en nuestra vida.
Cabe comentar o uso de elementos deícticos no transcorrer do poema. Se
na primeira parte, vemos o emprego do pronome de primeira pessoa do singular
como núcleo do pensamento subjetivo do poeta envolto por signos trágicos e
desolados, na segunda parte, identificamos a presença complementar necessária de
um tu que expressa os desejos do poeta em relação a uma realidade com mais amor
e esperança. A primeira pessoa coloca as suas expectativas nesse tu ido
desaparecido e inalcançável, que clama ser revivido e buscado.
En tu tierra y afuera de tu tierra
Siempre traían fielmente
El encanto de España, en ellos no perdido,
Aunque tu tierra misma no lo hallaras.
El nombre allí leído de un lugar, de una calle
(Portillo de Gilimón o Sal si Puedes),
Provocaba en ti la nostalgia
De la patria imposible, que no es de este mundo.
O poeta rememora, com nostalgia, os nomes de lugares conhecidos ou não
da terra espanhola colocados como paisagens da matéria romanesca galdosiana que
suscitavam um profundo sentimento contemplativo de beleza e reforçam que o
antigo é mais prazeroso e digno de se vislumbrar do que o presente agônico
expressado pelo poeta na primeira parte. O desdobramento do poeta em um eu e
em um tu propaga a ideia de que o sujeito possui mais de uma face, servindo tanto
para projetar, na escritura, uma experiência, sem dúvida alguma, autobiográfica,
como também para se comunicar com o leitor, a fim de reivindicar a sua
participação na construção poética.
El nombre de ciudad, de barrio o de pueblo,
Por todo el español espacio soleado
(Puerta de Tierra, Plaza de Santa Cruz, los Arapiles,
159
Cádiz, Toledo, Aranjuez, Gerona),
Dicho por él, siempre traía,
Conocido por ti el lugar o desconocido,
Una doble visión: imaginada y contemplada,
Ambas hermosas, ambas entrañables.
Embora o eu, o tu e o nós sejam pronomes sujeitos gramaticalmente
distintos, todos eles são membros de um conjunto de sensações e vivências do
poeta que muitos compartilham ou compartilharam de alguma maneira. A verdade
é que o poeta pode ser um espanhol sem vontade, pode abdicar e não sentir falta da
sua própria pátria, contudo não lhe é possível abrir mão de uma herança cultural
tão preciosa, visceral e arrebatadora como a literatura e os seus grandes escritores
tradicionais, como Cervantes e Galdós. Esse é o legado magnânimo pleno de
coragem, heroísmo e luta que o poeta deseja e não a idade média dentro da
modernidade que o seu país, naquele tempo, descortinava.
Hoy, cuando a tu tierra ya no necesitas,
Aún en estos libros te es querida y necesaria,
Más real y entresoñada que la otra:
No ésa, mas aquélla es hoy tu tierra,
La que Galdós a conocer te diese,
Como él tolerante de lealtad contraria,
Según la tradición generosa de Cervantes,
Heroica viviendo, heroica luchando
Por el futuro que era el suyo,
No el siniestro pasado donde a la otra han vuelto.
A realidade é o que aspira não somente o poeta, mas também todos nós
leitores espanhóis ou não. O poeta deixa claro que renega essa Espanha injusta,
triste e lamentável do presente, que, para ele, não é a real, pois não exprime a
verdade do seu país, tampouco de sua gente. A Espanha autêntica, pulsante e
admirável é a ficcionalizada pela tradição cultural galdosiana e o deleite dessa
lembrança é capaz de salvar o seu povo da estupidez e da violência.
Lo real para ti no es esa España obscena y deprimente
En la que regentea hoy la canalla,
Sino esta España viva y siempre noble
Que Galdós en sus libros ha creado.
De aquélla nos consuela y cura ésta.
Em “Díptico español”, a referência a Galdós procura em um tempo perdido
do passado a origem cultural que define o modo de pensar espanhol, atacado
160
brutalmente pela intolerância da guerra. Além disso, assume um caráter
extremamente importante dentro da Geração de 27, visto que o romancista não era
o escritor preferido dos autores vanguardistas daquele tempo. Isso demonstra que,
de fato, Cernuda foi um exilado em muitos ângulos da sua vida e tanto a
compreensão e o triunfo pessoal sobre esse exílio causou uma gigantesca sensação
de fracasso e destruição, com respeito a uma Espanha ideal revolucionária, em um
primeiro momento, perfeitamente viável na tentativa de instauração de um poder
republicano legítimo.
Com efeito, não somente María Zambrano, mas também Cernuda e Luis
Buñuel realizam uma leitura da tradição espanhola por meio da figura de Benito
Pérez Galdós. Essa ideia levou-nos a refletir sobre como um grupo de escritores
com características modernas e vanguardistas de ruptura de paradigmas
convencionais pôde interessar-se por um autor que exemplifica toda uma literatura
representacional que se desejava, na modernidade, criticar ou reformular. Nosso
estudo constatou que, na verdade, Galdós foi um autor que questionava o próprio
conceito do realismo por meio de seus romances ficcionais, que contavam com
contribuições de elementos fantásticos e até surrealistas, que nos permitem
vivenciar um mundo de delírio e de alucinação imaginativa diferente ou
complementar do ambiente considerado comumente real. A fim de exemplificar
esse pensamento, María Zambrano analisou, na revista Hora de España, o
romance galdosiano Misericordia e Luis Buñuel filmou as obras Nazarín e
Tristana, ambas também de Galdós. O poema de Cernuda, “Díptico español”,
como acabamos de ver, manifesta uma verdadeira ode ao escritor canário,
atribuindo-lhe toda sorte de privilégios e elogios, que se opõem a uma trágica e
aflitiva situação espanhola presente. No lugar de uma Espanha desprezível do
momento em que se escreve o poema, “En la que regentea hoy la canalla” (verso
168), evoca-se uma Espanha galdosiana, “viva y siempre noble” (verso 169). Por
se acreditar que essa circunstância é transitória, revive-se uma Espanha mítica para
redimir um presente abominável.
Todos esses fatos fizeram-nos dissertar sobre a importância do realismo
para a literatura espanhola e que, deveras, tradicionalmente, interpretamos o
movimento realista de uma maneira parcial, incompleta e pouco elucidativa. É
161
insuficiente, portanto, como apregoa o Miniaurélio virtual, conceber o realismo,
nas artes plásticas e na literatura, como “um enfoque objetivo da realidade em sua
concretude ou no seu conteúdo, que reage aos excessos da imaginação e da
emoção”. Dentro dessa perspectiva, na mesma referência teórica, tampouco é
aceitável a explicação filosófica de que o realismo é “uma doutrina que afirma que
o mundo objetivo tem existência real e que é independente do pensamento”.
Afinal, pelas leituras empreendidas e pelos autores citados, o realismo foi e é um
estilo de época que, em Galdós, põe em juízo o próprio racionalismo exacerbado,
decifrando os seus limites e equívocos. Se pensarmos que o realismo tem como
base fundamental o recurso descritivo, torna-se fácil deduzir que ele não é tão
realista como se pensa, na medida em que a descrição supõe seleção, preferências,
cortes e exclusões, o que declara abertamente a visão pessoal e imaginativa de
quem descreve. Quem descreve, descreve a seu modo, por conseguinte, fantasia,
delira, inventa. O que fazem artistas tão diversos como Galdós, Cernuda, Buñuel e
Zambrano é ler a realidade de uma perspectiva totalmente própria legitimada pela
ação do pacto de leitura. A sua escritura apresenta uma índole exorcista, que
ambiciona purificar o ar contaminado do presente pela natureza saudável do
passado, como se realmente quisessem combater um veneno com o seu antídoto. A
mensagem não somente estético-literária, mas também humana desses escritores
preza por uma leitura amplificada e inteligente do pensamento espanhol, que se
sustenta em uma visão hipostásica, que tem a capacidade de revelar e ser mais
autêntica do que a realidade nos oferece. As suas obras evidenciam um movimento
pendular muito semelhante que oscila entre monólogo, diálogo, história, biografia
e autobiografia alicerçado na releitura de uma série de mitos, talvez pelo profundo
anseio de se tornar, pelo exemplo seguido, um deles, na medida em que, como
uma peculiaridade humana, a vaidade também os enaltece e condena. Por outro
lado, a revisão de relevantes autores do passado para a literatura e a cultura
espanhola estimula a perpetuação dessa memória heróica atualizada pela sã
reflexão individual. Assim, muitos dos aspectos que afastam cronologicamente
esses artistas, também os aproximam pelo motivo de que todos experimentaram a
marginalidade, o inconformismo, o exílio, as guerras, o México, além de
162
realizarem críticas literárias de outros escritores espanhóis e estrangeiros, sendo
uma de suas leituras fundamentais a obra de Cervantes.
163
7. A EXPERIÊNCIA INTELECTO-EMOCIONAL DO
EXÍLIO
Em meio ao fim decadente do século XIX, a emoção da ruína de um
estado espanhol livre atingiu os seus máximos patamares, a partir da conjugação
de vários fatores históricos. A Primeira República, totalmente malograda, existiu
somente durante o ano de 1873 e empossou quatro presidentes, enquanto o
segundo intento republicano de 1931 desfrutou de uma existência efêmera. Em
consonância com esses acontecimentos, o aparecimento dos ideais anarquistas em
resposta contestadora aos claros signos de corrupção e instabilidade política, a
perda de Cuba em 1898 e as ditaduras de Primo de Rivera e Francisco Franco
representaram uma sucessão de inesquecíveis desilusões dentro de uma realidade
concreta espanhola, as quais sustentaram, em María Zambrano, o alinhamento
desse verdadeiro momento de derrota ou ‘fiasco’ nacional com uma visão
metafísica e dubitativa da contingência humana em uma modernidade
contrariamente confiante na evolução científica, no bem-estar e na felicidade.
María Zambrano crê que, no século XIX, a decadência do pensamento
espanhol deveu-se à uma resistência em se aceitar um discurso idealista
extremamente em voga em outros países da Europa. Segundo a autora, o realismo
espanhol destacou-se por estabelecer profundas relações com a realidade, o que o
fez reconstruir todo um saber popular: “Las raíces con el saber popular no han sido
cortadas en España; en ninguna otra parte del mundo, en ninguna otra cultura la
conexión íntima entre el más alto saber y el saber popular, ha sido más estrecha y
sobre todo más coherente.” (ZAMBRANO, M., 1939, p.51) Na verdade, conforme
já explanamos, enquanto a filosofia cultivada na Europa aparta-se do mundo real e
cede lugar ao sonho idealista, o pensar espanhol, que sempre se notabilizou por ser
realista, refugiou-se em formas de expressão assistemáticas e mais distantes dos
cânones tradicionais, nas quais o pensamento flui sem as travas do rigor acadêmico.
María Zambrano continua escrevendo que:
Al no tener pensamiento filosófico sistemático, el pensar español se ha vertido
dispersamente, ametódicamente en la novela, en la literatura, en la poesía. Y los
sucesos de nuestra historia, lo que real y verdaderamente ha pasado entre nosotros, lo
que a todos los españoles nos ha pasado en comunidad de destino, aparece como en
ninguna parte en la voz de la poesía. Poesía es revelación siempre, descubrimiento; y
164
sucede en nuestra cultura española que resulta muy difícil, casi imposible, manifestar
las cosas que más nos importan, de modo directo y a las claras. Es siempre sin
abstracción, es siempre sin fundamentación, sin principios, como nuestra más honda
verdad se revela. No por la pura razón, sino por la razón poética. (ibidem, pp.70,71)
Assim, para compreender o pensamento espanhol, é necessário entender a
sua literatura. No mesmo ano em que María Zambrano publica Pensamiento y
poesía en la vida española, surge Filosofía y poesía, ensaio escrito durante o
exílio da autora no México, em 1939, e reeditado posteriormente em 1971 e 1987,
com o propósito de discutir a conciliação, principalmente no âmbito dos
acontecimentos culturais espanhóis, do pensamento e da poesia, interligados às
questões ou necessidades irrenunciáveis da metafísica, dos valores éticos e da
mística que envolvem o ser do homem ocidental desde Sócrates e Platão. Com a
apresentação de cinco ensaios, essa obra reúne as conferências sobre pensamento
e poesia que proferiu María Zambrano na Universidade de Michoacán, no
México. Embora, em nossa pesquisa, não tenhamos a intenção de discutir
especificamente essas relações, segundo Ana Bundgard (2000, p.229), em
Filosofía y poesía, existe um diálogo crítico com as conferências pronunciadas
por Ortega y Gasset em Madri no ano de 1929 e reunidas também em um livro
chamado ¿Qué es filosofia?
7.1. O desamparo do homem
No texto que abre o livro, que a autora considera servir como um prólogo,
ela vai relatando a sua saída difícil da Espanha em 1936, no qual representa o
desamparo trágico do homem exilado. Ela conta essa passagem da sua vida, a
nosso ver, para nos mostrar que assim como ela nascia para uma nova vida no
exílio, Filosofía y poesía também nascia, afirma a autora, em um momento em
que tudo era adversidade e impossibilidade, ainda mais quando, alguns meses
depois, María Zambrano e seu marido, ao regressarem a Espanha, viram
derrotadas as causas republicanas pelas quais lutaram com a implantação da
ditadura franquista. Isso lhe inspira refletir, por meio da literatura, sobre o fato de
que o pensamento e a poesia afrontam-se continuamente ao longo da cultura
espanhola e constituem duas partes misteriosas e insuficientes do homem, que são
o seu caráter filosófico e poético. Não é possível encontrar inteiramente o homem
165
na filosofia, tampouco na poesia, ele somente pode ser descoberto na conjugação
dessas que seriam suas duas metades em busca de uma união original. Zambrano
diz exatamente isso:
[...] es que hoy poesía y pensamiento se nos aparecen como dos formas
insuficientes; y se nos antojan dos mitades del hombre: el filósofo y el poeta. No se
encuentra el hombre entero en la filosofía; no se encuentra la totalidad de lo
humano en la poesía. En la poesía encontramos directamente al hombre concreto,
individual. En la filosofía al hombre en su historia universal, en su querer ser. La
poesía es encuentro, don, hallazgo por gracia. La filosofía busca, requerimiento
guiado por un método. (ZAMBRANO, M., 1987e, p.13)
Parece-nos interessante a análise de Eduardo Subirats no sentido de que,
ao mencionar a obra de Miguel de Unamuno, uma das grandes influências de
María Zambrano, o autor chama a atenção para o fato de que Unamuno critica a
insubstancialidade, a carência de identidade e de profundidade no histórico
pertencente ao pensamento cartesiano juntamente à era iluminista dos
conhecimentos modernos. Em vista disso, continua Subirats, a obra unamuniana
busca o fazer poético como uma reação a um mito construído na modernidade que
é o da ausência ou da superficialidade no tratamento das coisas e do espírito. Um
pouco mais tarde, Ortega y Gasset recuperará a mesma problemática questionada
por Unamuno, que engendrará uma falta com referência a um passado de
substância, identitário e com densidade histórica e poética. María Zambrano
segue, em outro tempo, o mesmo percurso de seus ídolos escritores.
Y la poesía pura fue a establecer desde el lado opuesto del romanticismo pero
con más profundidad, con más derecho, diríamos, el que la poesía lo es todo. Todo,
entendamos, en relación con la metafísica; todo, en cuanto al conocimiento, todo
en cuanto a la realización esencial del hombre. El poeta se basta con hacer poesía,
para existir; es la forma más pura de realización de la esencia humana. (ibidem,
p.84)
María Zambrano, em Filosofía y poesía, vai contrapor a razão filosófica a
uma necessidade poética urgente dentro dos tempos modernos. Como Unamuno e
Ortega, a ensaísta defenderá a necessidade de superar os excessos do ideário
racionalista, visto que, com ele, estão afetados os intensos valores religiosos, éticos
e mitológicos da cultura tradicional espanhola. A atitude poética atenderá a esse
propósito em María Zambrano que se aliará a um pensamento racional de teor
filosófico, cujo objetivo será não perder de vista uma série de importantes fatores
166
subjetivos e religiosos fundamentais para a formação moral, histórica e espiritual da
pessoa, que é o que Unamuno, Ortega e, em seu tempo, Zambrano insistem em
reivindicar o seu devido lugar, o seu lugar de direito na sociedade moderna. Por
isso, é que esses autores, seguindo um parâmetro de análise filosófico-poético,
discutem os possíveis motivos da ruptura entre toda uma tradição histórica,
sobretudo, espanhola e o advento da modernidade. Conforme afirma Eduardo
Subirats, essa é a grande temática que distingue a cultura do século XX e
contemporânea. A proposta orteguiana de unir razão e vida, como também a de
María Zambrano em sintetizar razão e poesia pretende reconstruir o espaço religioso
no complexo contexto cultural do homem moderno. Tentativa filosófica de extrema
dificuldade, como é o lugar da filosofia nos tempos mais recentes de avassalador
progresso científico-tecnológico, porém, como o intelectual se caracteriza por certa
heroicidade trágica, ele luta mesmo de cara à falência contra um cenário que se lhe
apresenta totalmente adverso. Pois bem, isso nos faz recordar uma das máximas
unamunianas que diz que o importante é lutar, mesmo sem esperança de
vencimento. Essa é a função ética, social e histórica da filosofia e da poesia. Juan
Fernando Ortega Muñoz (1994) profere que ao mesmo tempo em que na poesia
vemos surgir naturalmente o homem concreto ou, como diria Unamuno, de carne e
osso no uso da palavra, na filosofia, a razão dispõe organizadamente a realidade
dentro de uma estrutura, para que a mesma possa ser entendida de maneira mais
lógica e racional. Zambrano coloca que desde Platão, existe esse enfrentamento
entre filosofia e poesia, que resultava em uma vitória da filosofia e uma condenação
da poesia. Desses dois pólos, ainda nasce um terceiro efeito que seria o da
revelação. Em Filosofía y poesía, a autora aborda o livro VII de A República, onde
Platão apresenta o mito da caverna e assenta que a filosofia, neste simulacro,
origina-se da violência, que, ao lado da admiração, constitui uma dualidade
originária de toda a filosofia para Zambrano.
Y ahora ya, sí, admiración y violencia juntas como fuerzas contrarias que no se
destruyen, nos explican ese primer momento filosófico en el que encontramos ya una
dualidad y, tal vez, el conflicto originario de la filosofía: el ser primeramente pasmo
extático ante las cosas y el violentarse en seguida para liberarse de ellas. Diríase que
el pensamiento no toma la cosa que ante sí tiene más que como pretexto y que su
primitivo pasmo se ve en seguida negado y quién sabe si traicionado, por esta prisa
de lanzarse a otras regiones, que le hacen romper su naciente éxtasis. La filosofía es
un éxtasis fracasado por un desgarramiento. (ibid., p.16)
167
Como lemos, a filosofia, pensa María Zambrano, é um êxtase fracassado
por esse ‘desgarramento’ da admiração inicial provocado pela posterior brutalidade da inflexível razão, é como a dor de um nascimento para o novo, basta saber
para o que se está nascendo e por que, aí está o espírito de revelação que a filosofia e a poesia, tensionadas pela força violenta unificante e segregadora, que busca
o descobrimento de uma verdade, suscitam. Todo o interesse de María Zambrano
está em, a partir de uma forma de expressão original, cultivar, na meditação filosófica, reflexões sobre a realidade do homem que a ciência moderna condenou tragicamente à solidão. O caminho a ser percorrido é aquele que o sujeito busca o
que não se possui, mas que precisamos como uma necessidade irrenunciável. O
homem é um ente inacabado e inconcluso, cuja situação de imperfectibilidade desde os primeiros tempos faz com que a poesia encontre uma vasta e rica temática,
provocadora de fascínios e eternas dúvidas. De fato, o lavor poético é impensável
sem a oscilação da presença e da ausência de uma subjetividade que vai organizando-se, perdendo-se e reencontrando-se nos labirintos de uma linguagem simbólica, que anseia ceder voz ao(s) outro(s), como requisito sine qua non para a descoberta de si própria.
7.2. A poesia como uma forma de pensar o trágico
Acreditamos que a problemática discutida por María Zambrano em
Filosofía y poesía serve para simular o sentido geral do trágico em sua vida, como
a saída da Espanha através do exílio que funcionaria como um acontecimento real,
mas também como uma metáfora desse ser que se busca por não saber ao certo
quem é ou que elementos o constituem e que tenta aplacar a angústia de se sentir
um ser perdido no mundo. Isso evidentemente está representado, como dissemos,
dentro de um plano filosófico, mas também dentro de uma realidade concreta, o
que nos parece extremamente interessante dentro da nossa análise. Como agentes
fomentadores desse sentir, é indispensável a referência, que tanto andamos
debatendo, à modernidade, à sensação de melancolia, à derrota de um desejo épico
pelo triunfo de uma república social e libertadora. De maneira muito perspicaz,
Zambrano reflete, por meio de filósofos mestres como Platão e Sócrates, a
condição trágica do homem na modernidade ao declarar que, desde tempos muito
168
remotos, o pensamento, muitas vezes como uma força violenta defensora de uma
verdade, sempre travou rigorosas batalhas com a poesia, com a afirmação das
necessidades preeminentes do sujeito. Na verdade, Platão, por meio de uma série
de metáforas filosóficas, traduzia poeticamente a crise e os questionamentos
intrínsecos da alma humana, que atravessam os tempos. É verdade também que
enquanto a filosofia mostra um caráter de fracasso diante da perplexidade com
respeito a uma realidade imediata, a poesia caracteriza-se como uma forma de
esperança que confere ao sujeito uma autonomia da pessoa. De qualquer maneira,
pensamos que a escritura, como um ato exclusivo do sujeito, é sempre um sinal de
esperança, pois o desejo por mudança é o que motiva o ato de escrever. Sem
esperanças, não se escreveria, não se discutiria, não se lutaria.
De no tener vuelo el poeta, no habría poesía, no habría palabra. Toda
palabra requiere un alejamiento de la realidad a la que se refiere; toda palabra es
también, una liberación de quien la dice. Quien habla aunque sea de las
apariencias, no es del todo esclavo; quien habla, aunque sea de la más abigarrada
multiplicidad, ya ha alcanzado alguna suerte de unidad, pues que embebido en el
puro pasmo, prendido a lo que cambia y fluye, no acertaría a decir nada, aunque
este decir sea un cantar. (ibid., p.21)
Como revelação, a poesia, por certo afastamento da realidade concreta,
desfruta da experiência de ‘desembaçar’ o enigma do mundo, compreendendo que
cada civilização detém uma visão particular do seu próprio tempo. Os
pressupostos definidores do sujeito lírico, como uma entidade fragmentária,
incompleta, cindida apresentam suas raízes na observação funesta de uma história,
cujo sentido se quer dotar por meio do pensar poético. A poesia é, assim, “essa
busca de um agora e de um aqui”, haja vista que a técnica não bastasse usurpar do
homem uma imagem de mundo, não foi capaz de lhe fornecer outra visão
substituta, que apoiasse as suas convicções. Um regresso às antigas mitologias
tampouco seria uma solução plausível a esse problema, em virtude de uma
perspectiva intelectual moderna, difusora de outros valores concordantes com as
novas particularidades de uma atual vivência histórica. O poeta, dessa maneira,
descobriu-se cercado pela imensa solidão de um desterrado tanto no presente
como também no futuro, ocasionada pela dúvida e pela ausência dos nexos que
conectavam o homem a um passado e também a um porvir. A frustração da
169
civilização referente à inexistência de pelo menos um espectro de futuro, no qual
antes se acreditava firmemente, decantou os sonhos relativos às promessas da
modernidade no tocante à imortalidade da história. O que restou foi a
instantaneidade de um presente fugidio que se distingue pelo movimento e pela
passagem, o qual, face à sua efemeridade, não permite ao homem uma
identificação e um reconhecimento pleno de si. Ao poeta e ao homem, falta-lhes
unidade e, para Zambrano, a unidade que pensa conseguir o poeta na poesia é
sempre incompleta, na medida em que há sempre o desejo de saber, como muito
bem decretou Aristóteles e, nesse sentido, a poesia e a filosofia, como
representantes do ato de escrever, são um tempero especial que diferenciam a
compreensão do mundo, que intencionam rejeitar todos esses valores impostos
pela cultura da modernidade, que valorizam o forte, o grandioso, o vencedor,
quando, na verdade, vivemos situações em que predominam valores ou
sentimentos extremamente contrários a esses.
A pesar de que en algunos mortales afortunados, poesía y pensamiento hayan
podido darse al mismo tiempo y paralelamente, a pesar de que en otros más
afortunados todavía, poesía y pensamiento hayan podido trabarse en una sola
forma expresiva, la verdad es que poesía y pensamiento se enfrentan con toda
gravedad a lo largo de nuestra cultura. Cada una de ellas quiere para sí el alma
donde anida. Y su doble tirón puede ser la causa de algunas vocaciones malogradas
y de mucha angustia sin término anegada en esterilidad. (ibid., p.13)
A obra de María Zambrano procura reconciliar a filosofia e a poesia como
duas formas de pensar e dizer-escrever o mundo. Parece-nos claro que María
Zambrano contempla a realidade de uma maneira filosófico-poética ou através de
uma razão poética, que se torna um método outro para apreender a realidade e
tentar amenizar harmonicamente um conflito íntimo entre um sentir, um querer ser
poeta e um precisar ser filósofa: “[...] Zambrano pretende hacer filosofía desde la
perspectiva y posición discursiva del «poeta», una filosofía nueva, cuyo logos
habría de traspasar los límites de lo racional.” (BUNDGARD, A., 2000, p.217) A
ensaísta espanhola nunca ocultou as suas reservas quanto à filosofia clássica no
que respeita ao lógos da razão e ao pensamento sistemático para expor conceitos,
no geral, ontológicos dentro da escritura moderna. Desse modo, María Zambrano
insiste muito na crítica da filosofia da modernidade e, a partir dela, realiza uma
análise que contesta a filosofia como um todo. Para a autora, era necessária uma
170
filosofia diferente, mais poética, em contraste com a própria história e tradição do
pensamento ocidental, para que fosse possível criar um tipo de laço adâmico entre
o ato filosófico e o ato poético. Nesse discurso, há uma influência romântica que
apregoa uma característica divina ao poeta e um poder redentor à poesia no intuito
de exceder uma modernidade racionalista por meio do que a autora chama, como
já vimos, de uma metafísica da criação. Nesse sentido, existe uma valorização do
indivíduo e o seu poder de criação na arte, que, consequentemente, passa para a
história como uma manifestação humana. O homem diviniza-se na medida em que
é capaz de criar na arte e na história, na medida em que pode construir a realidade.
Se pudermos assimilar que o homem, mediante o ato de criar, consegue
(re)incorporar o divino em seu interior, poderemos também depreender que essa
heterogeneidade primigênia do seu ser lhe possibilita a transcendência, o que
peculiariza o pensamento zambraniano como o de um idealismo em busca do
sublime à semelhança do de São Agostinho e de Platão.
Vale notar que, em Filosofía y poesía, María Zambrano não diferencia ou
conceitualiza rigidamente pensamento, filosofia, poesia ou conhecimento. Nos
textos, tais termos aparecem de forma alternada, sem claras distinções. De acordo
com a ensaísta, a filosofia é “un éxtasis fracasado por un desgarramiento”
(ZAMBRANO, M., 1987e, p.16), como um método de conhecimento que visa
alcançar uma verdade transcendente ao próprio sujeito e esperançosa, que lhe
conduza ao (re)encontro com o divino em um voltar-se cristão para a
interioridade: “Zambrano niega, apenas sin matizar o diferenciar, que un
conocimiento sistemático y abstracto como en su opinión era la filosofía, pueda
nunca captar y aprehender lo radical de la vida, el claroscuro y la zona de
penumbra de lo irracional humano.” (BUNDGARD, A., 2000, p.233) Na
realidade, seguindo concepções unamunianas, María Zambrano vê a filosofia
como uma maneira de pensar nascida do fracasso e a ele também destinada por se
tratar de uma reflexão abstrata e ideal que sacrifica e arruína a vida. Em virtude
desse conceito, a autora vislumbra o pensamento filosófico como uma modalidade
de discurso que se notabiliza pelo saber incontestável da experiência. A poesia e o
poeta estão envolvidos por um misticismo de uma vivência subjetiva, que se
expressa por meio de uma escritura ficcional narrativa de representação. A
171
oposição entre filosofia e poesia está no fato de que existe uma espécie de traição
originária de um fracasso. Explicando melhor essa questão, para María Zambrano,
a filosofia nasce de uma traição do pensamento distanciado da admiração e dela
‘desgarrado’ pela violência do conhecimento. Vale a pena repetir a citação:
Diríase que el pensamiento no toma la cosa que ante sí tiene más que como
pretexto y que su primitivo pasmo se ve enseguida negado y quién sabe si
traicionado, por esta prisa de lanzarse a otras regiones, que le hacen romper su
naciente éxtasis. La filosofía es un éxtasis fracasado por un desgarramiento. ¿Qué
fuerza es esa que la desgarra? ¿Por qué la violencia, la prisa, el ímpetu del
desprendimiento? (ZAMBRANO, M., 1987e, p.16)
Insistimos em que Filosofía y poesía aborda, de maneira reiterativa, a
violência da filosofia e a crítica do valor sistemático e abstrato dessa forma de
pensamento, que simboliza, na concepção zambraniana, o ‘poder’, a ‘soberba’, o
‘saber ambicioso’ e o ‘império da razão’. A poesia, em meio a essa crença,
aparece como a vivacidade única do espírito, a partir de uma ampla sucessão de
dicotomias de efeito enunciativo apresentada pela escritora espanhola.
Frente a la «soberbia de la filosofía» se alza en el discurso zambraniano el
principio receptor, pasivo y apasionado de la poesía, «gracia y verdad», mas no
«verdad excluyente», sino «generosa presencia», «heterogeneidad», «multiplicidad
desdeñada», «esperanza», «poder dulce e inquieto que calma y no basta»,
«posesión de un todo recibido», «mundo abierto», «fidelidad de las cosas»,
«admiración ante la vida», «don, hallazgo por gracia». (BUNDGARD, A., 2000,
p.234)
Desse modo, conforme assevera Zambrano, conhecimento e poesia,
sobretudo na modernidade, tornaram-se saberes rivais. A única forma de
congraçá-los novamente será por meio da mediação de um lógos redentor
concebido pela escritora como método da razão poética, que, embora não
totalmente elaborado no ano de 1939, já estava em processo de formação. Esse
princípio de inteligibilidade define-se por um caráter essencialmente místico e
religioso, visto que a ‘verdade’ alcançada por este método é concedida por uma
‘graça’. Por causa de sua inefabilidade, essa ‘verdade’ revelada pela razão poética
à autora não pode ser compreendida totalmente pelo pensamento.
La verdad se reconoce ya como parcial y la misma razón descubridora del ser,
reconoce la diferencia injusta entre lo que es, y lo que hay. Al hacerlo así, se acerca
al terreno de la poesía. Y la poesía al sufrir el martirio de la lucidez, se aproxima a
172
la razón. Mas no pensemos todavía en que se verifique su reintegración, tantas
veces soñada por quienes no pueden decidirse entre una y otro. Quien está tocado
de la poesía, no puede decidirse y quien se decidió por la filosofía no puede volver
atrás. Sólo el tiempo, la historia, cuando al fin, haga que se sitúe la razón, agotado
el tema del ser y de la creación, más allá. Allí donde, desde hace largos tiempos,
espera la verdad revelada e indescifrable, la verdad donde, realmente, la «caridad
está hechizada». Caridad y comunión que no han trascendido al pensamiento,
porque nadie ha podido todavía pensar este «logos lleno de gracia y verdad».
(ZAMBRANO, M., 1987e, p.116)
María Zambrano afasta-se do conhecimento filosófico clássico e da
metafísica moderna para, posteriormente, vaticinar a ideia de conciliação entre
filosofia e poesia em um lógos que assimile uma verdade descoberta e
indescifrável aos olhos puramente racionais, que se aloja em um terreno além do
ser, da criação ou da lógica tradicional. Como esse lógos ultrapassa a razão,
ninguém realmente ainda pôde pensá-lo.
Cabe perceber, nas interpretações que María Zambrano realiza sobre a
Divina Comédia, as relações fluidas que antes vigoravam entre religião, poesia e
filosofia: a obra de Dante “realiza ese momento feliz, tal vez no repetido, de unión
sin vagas y nebulosas identificaciones, entre poesía, religión y filosofía.” (ibidem,
p.75) Segundo a escritora, a filosofia e a religião encarnavam a esperança de ser
para o homem e a poesia, por sua vez, tratava de materializar miticamente esse
sentimento salvífico. Parece-nos que a razão poética tem o intuito de restaurar a
identificação venturosa entre filosofia, religião e poesia, conforme o elo
apresentado na Divina Comédia e na própria poesia mística.
Otro momento de unidad profunda entre las tres cosas se verifica, según se nos
ha aparecido, por el camino de la mística. Pero esto es preciso al menos dejarlo
ahora señalado, comporta un problema aparte: la cuestión un tanto grave, de que
toda poesía sea en último término, mística o la mística sea en su raíz poesía; una
forma de religión poética o religión de la poesía. (ibid.)
Na visão de María Zambrano, na época da modernidade, o homem
reempreende, por meio de uma ‘metafísica da criação’, a abertura de outros
horizontes de esperança, que consistem em atrair para o nosso mundo o que, em
tempos passados, aceitava-se como uma bênção do além-túmulo: “La nueva
esperanza no se encierra dentro del asceticismo; lo quiere todo, sin tener que
renunciar por el pronto a nada.” (ibid., p.76) Se antes somente a deidade tinha o
173
poder de se autodeterminar, nos novos tempos, o homem possui a faculdade de se
conceber a si próprio como um ente livre, autônomo e fecundo.
Éste era, al parecer, el programa del pensamiento; programa francamente
religioso. La razón caminaba por el cauce de una desmedida ambición religiosa. El
hombre quería ser. Ser creador y libre. Y seguidamente: ser único. Son los pasos
decisivos sin duda de la historia moderna, de eso que propiamente se llama Europa.
Y su angustia y su tragedia. (ibid., pp.77, 78)
Sem lugar a dúvidas, María Zambrano destaca a realidade da pessoa como
um assunto de foro íntimo e reconhece que todo ser é heterogêneo em relação ao
mundo que povoa, posto que em vez de se pensar a partir das coisas ou dos
objetos, se reflete a partir do sujeito.
174
8. A CONFISSÃO AUTOBIOGRÁFICA NO ENSAIO
La confesión no consiste en revivir ni en rehacer;
consiste en manifestar lo que nunca se deshizo en el
pasado, lo que nunca dejó de vivir por ser consustancial
con la vida del que confiesa.
Rosa Chacel: La confesión. (1980, p.19)
A relação profícua que podemos vislumbrar entre o ensaio como uma
forma de manifestação estética autobiográfica e confessional justifica a nossa
intenção de abordagem da obra zambraniana nesse capítulo, que denotará uma
continuidade das reflexões empreendidas na Dissertação de Mestrado, por nós
realizada, sobre A construção do sujeito no discurso autobiográfico de Miguel
de Unamuno3, a qual defendemos no ano de 1998. Estamos interessados em
alguns conceitos expostos por María Zambrano no ensaio La confesión: género
literario y método, publicado em 1943, na revista Luminar, no México.
Georges Gusdorf (1991, p.12) assegura que o autor de uma autobiografia
atribui a si mesmo a tarefa de contar a sua própria história, procurando conciliar os
elementos dispersos de sua vida pessoal e agrupando-os em um esquema de
conjunto. O autobiógrafo pretende refazer certos caminhos da sua existência a
partir da criação de um tipo de filme, conduzido por um roteiro pré-determinado
que, sem dúvida alguma, altera os acontecimentos já pela seleção que realiza das
peripécias da sua vida no relato que deseja registrar por escrito. No esteio de uma
verdade pessoal relativa, onde devemos contar com fatores psicológicos, como
recordações e esquecimentos voluntários ou inconscientes, nos deparamos com
uma inevitável representação volátil de si mesmo, já que cada indivíduo possui a
3
O capítulo da Dissertação de Mestrado que, nessa tese, estamos reconstruindo intitula-se “Diario
íntimo e a autobiografia”. No trabalho para o mestrado em que analisamos a obra unamuniana
Diario íntimo, composta por cinco cadernos recopilados, com uma primeira publicação póstuma em
1970, vislumbramos a forma do diário, utilizada pelo autor, também como outro recurso
autobiográfico, no qual a ficcionalidade é o principal ingrediente. Embora se considere o diário uma
forma mais natural, espontânea e próxima temporalmente do sujeito que o escreve, também o diário
chama a atenção pela insinceridade tal qual a autobiografia. Igualmente, desenvolvemos a tese do
diário como confissão, distinguindo diário e autobiografia, apesar de que, reforçamos, tenhamos
chegado à conclusão de que o diário pode ser utilizado literariamente para escrever autobiografias.
Além disso, abordamos, outrossim, como Unamuno disserta sobre a criação da imagem do escritor
perante o público leitor, valendo-se da intertextualidade realizada pela abundância de citações
bíblicas contida na obra.
175
sua própria história e a sua própria fé em seus princípios e valores íntimos, que
também se transmutam ao longo do tempo por novas experiências e, em
consequência, pelas mudanças de perspectivas. Na autobiografia, o caráter seletivo
da memória filtra, modifica e concede graus de relevância diferentes às lembranças.
Wander Melo Miranda (1992, p.34) sustém que a escritura autobiográfica permite
que o retrocesso vivencial possa reorganizar o caos e a acumulação de experiências
pela reflexão crítica, cuja meta é, a partir de uma nova ordenação do passado,
atribuir-lhe um (outro) sentido. A autobiografia, como um instrumento de confissão
do que se foi e do que se fez, é utilizada para o conhecimento de si e do mundo que,
por diversos fatores, influiu nas ações e decisões do sujeito. A autobiografia
confessional exige que o homem esteja situado a certa distância de si mesmo, a fim
de que possa restaurar-se em sua unidade e em sua identidade através do tempo. A
confissão autobiográfica cobiça uma maneira de realização narcísica, que concede
um status especial ao autor dentro da instituição literária, definindo-se como um
discurso que reinventa a própria existência daquele que se confessa, na medida em
que relata somente o que lhe parece importante e digno de revelação ao outro. A
autobiografia e a confissão definem-se pela abrangência seletiva de toda uma
importante existência, posto que o homem, ao escrevê-las, tem a consciência de que
o seu empreendimento merece ser realizado. Antes de abordar integralmente a vida
de um ser humano, é mais interessante eternizar e transformar segmentos dela tidos
como relevantes pelo autor.
8.1. A escritura como simulacro
A crise histórica e de valores que vivencia María Zambrano em sua época
dirige-se ao plano artístico filosoficamente por meio do ensaio, que viabiliza
falarmos sobre uma reversibilidade das correspondências entre a confissão
autobiográfica e a ficção, onde podemos detectar a presença de elementos
autobiográficos nos textos literários zambranianos, que creditam a necessária
confiança na realização do pacto entre autora, obra e leitor. A confissão e a
autobiografia discutem esse problema da identificação entre o modelo e a sua
representação literária, entre, por exemplo, o sujeito empírico María Zambrano e
a escritora, a ensaísta, a intelectual María Zambrano, contemplada em suas obras.
176
O movimento de revisão da experiência do escritor transcorre através de um eu
sempre suscetível de ser interpretado, carente de um parâmetro único, com o qual
possa determinar a sua suposta verdadeira autenticidade; em definitivo, o texto
autobiográfico-confessional não pode permancer incólume em referência a tal
desconstrução.
María Zambrano anuncia que a confissão tem como origem o mesmo
tempo real da vida, partindo da confusão e do imediato temporal. A confissão
destina-se à procura de outro tempo distinto do factualmente vivido. Zambrano
ainda explica que aquele que escreve uma confissão está, na verdade, em busca
de um tempo não fantasioso ou imaginário, porém quer descobrir um tempo real
como o seu por não se conformar com o tempo virtual do artista.
La Confesión es el lenguaje de alguien que no ha borrado su condición de
sujeto; es el lenguaje del sujeto en cuanto tal. No son sus sentimientos, ni sus
anhelos siquiera, ni aun sus esperanzas; son sencillamente sus conatos de ser. Es
un acto en el que el sujeto se revela a sí mismo, por horror de su ser a medias y en
confusión. [...]
La confesión parte del tiempo que se tiene y, mientras dura, habla desde él
y, sin embargo, va en busca de otro. La confesión parece ser una acción que se
ejecuta no ya en el tiempo, sino con el tiempo; es una acción sobre el tiempo, mas
no virtualmente, sino en la realidad. (ZAMBRANO, M., 1995, pp.29, 30)
A confissão anseia encontrar uma relação entre a vida e a verdade. É
certamente por essa razão que o confessor procura não anular a sua condição de
sujeito dentro de uma realidade concreta, embora, por se originar de um ato
desesperado, a confissão sempre começa com uma fuga de si mesmo. Essa saída
de si motiva a aflição em referência ao que se é e a esperança de que o que ainda
não se conhece apareça. A aflição extrema deve ser compreendida como uma
queixa, antes que a contemplemos como uma confissão, na qual há uma fuga de si
e a expressão de alguma culpa, de um eu que não se aceita. Explica Zambrano
que, primeiramente, há uma queixa e não uma confissão, porque o desespero e a
esperança são imediatos. Através do desespero, não se pode descobrir a
interioridade como na confissão, pois a dor sentida é provocada por problemas
externos, que estimulam a perguntar e a pedir razões. A confissão, como um
processo autobiográfico, é o resultado da revisão organizadora de uma
177
experiência, enquanto a queixa do desespero demonstra tão somente a
insatisfação e o medo.
A confissão, na maioria dos casos, pretende chegar ao veridito de que
vários sucessos poderiam ter sido diferentes se as atitudes também tivessem sido
outras. Na realidade, o sujeito que vivenciou uma existência real assume os
desabores da sua vida. A realização de desejos e planos não vingou, visto que
dependia de suas escolhas. Na confissão, o sujeito sente-se responsável por
fracassar ao passo que, no desespero, o indivíduo sente-se anulado e
completamente dependente do divino, não confiando em seu ser. No desespero, o
sujeito não pode descobrir a sua interioridade, pois a sua existência desagua-se na
dor, no conflito e na injustiça. A ação do indivíduo, nesse estado, é queixar-se e
implorar salvação à divindade.
É necessário salientar, contudo, que a confissão acaba vencendo o
desespero e a queixa. De uma forma ou de outra, o desespero e a queixa
convertem-se em um ato confessional, que põe de manifesto a tragicidade da
existência humana. Além disso, como já discutimos, a confissão é uma saída de si
mesmo em fuga por não aceitar o sujeito a sua própria condição de ser e a vida tal
qual se configura diante dos seus olhos. María Zambrano (ibidem, p.37) assegura
que a confissão expressa o caráter fragmentário de toda a vida, na qual o homem
sente-se como um pedaço incompleto, um esboço de nada, uma partícula de si
mesmo. Nos ensaios zambranianos, atendendo às prerrogativas da modernidade e
do sujeito em crise, observamos que a vida não está contemplada de forma
harmônica e perfeita, mas sim como um dom incompleto e carente de unidade.
Essa constatação do caráter fragmentário de toda a vida evidentemente interfere
na compreensão que tem de si o próprio homem. É em virtude de uma existência
que não se transcende na eternidade que o ser humano se descobre infeliz e
dilacerado dentro de sua contingência histórica. A prolongação da escritura
ensaística em direção à autobiografia e a confissão denunciam que a criação realficcional trágica perpassa e se perpetua nas obras de María Zambrano. Em seus
escritos, encontramos irrefutavelmente a expressão de um sentimento de falta e de
preocupação com o homem e com a vida estampados na arte.
178
María Zambrano estima que o desespero de si mesmo e a fuga de si na
esperança de se encontrar são os traços que definem a confissão. As palavras
‘desespero’ e ‘esperança’ são vitais, quando nos referimos à confissão, porque
como explica María Zambrano:
Desesperación por sentirse obscuro e incompleto y afán de encontrar la
unidad. Esperanza de encontrar esa unidad que hace salir de sí buscando algo que
lo recoja, algo donde reconocerse, donde encontrarse. Por eso la Confesión supone
una esperanza: la de algo más allá de la vida individual, algo así como la creencia,
en unos clara, en otros confusa, de que la verdad está más allá de la vida. (ibid.,
pp.37, 38)
A teórica novamente ensina-nos que a confissão somente nasce com a
esperança de uma revelação interior e pessoal. Por essa razão, apresenta a
condição da vida humana tão imersa em contradições e paradoxos. María
Zambrano patentiza que a figura de autora que constrói e reafirma em seus
ensaios demonstra que a vida carece de unidade, embora a necessite
fervorosamente. A ensaísta espanhola, em suas obras, ao mesmo tempo em que
reflete o esfacelamento do eu em uma existência real-ficcional e a crise de valores
do mundo moderno ocidental, anseia, através da repetição da característica
agônica e trágica do sujeito, adquirir a desejada unidade de que se ressente a vida.
O desdobramento e a atomização da personalidade e do tempo cronológico
pretendem evidenciar a possibilidade da busca de alguma outra dimensão
desprovida da angústia e do sofrimento do momento presente. É interessantíssima
a ideia suscitada por María Zambrano (ibid., p.38) de que a confissão é uma
espécie de realidade virtual compensatória e que a vida se expressa com vistas a
conquistar a transformação. Para a autora, a confissão não é senão um método, a
fim de que a vida se livre de seus paradoxos e consiga coincidir consigo mesma
na procura de um dificílimo equilíbrio.
A confissão, como gênero literário, não obteve sucesso em todos os
tempos. A confissão é própria e exclusiva de nossa cultura ocidental e aparece,
dentro desse espaço, em momentos determinantes, decisivos, em que parece estar
em dissolução a cultura e o homem sente-se sem apoio e solitário. São esses
momentos de crise em que o homem concreto tira a capa protetora do seu
179
desenvolvimento material que propiciam a confissão, espelho inconteste da
revelação do seu fracasso, tema esse que estamos discutindo ao longo dessa tese.
Dentro do núcleo temático da pesquisa, é relevante ainda advertir que
María Zambrano articula a confissão, como gênero literário, com o fracasso de
nossa sociedade ocidental e da cultura aí implicada. A escritora assinala que
quando a cultura encontra-se amadurecida e não se percebe em crise, o que quase
sempre é muito pouco provável, as problemáticas da existência humana
permanecem latentes. Atentemos para a seguinte citação, em que a teórica referese aos diversos tipos de confissões, por exemplo, a de São Agostinho e a de Job,
outros intertextos dos seus ensaios, como também uma forma de interpretar,
através da arte, os mais profundos desejos humanos.
Y así estas Confesiones manifestarán los géneros de fracaso que nuestra
cultura ha soportado y algo tal vez más importante: los distintos anhelos, los
profundos anhelos encubiertos por el arte, objetivados por la Filosofía, desteñidos
en las épocas de indecisión y ocultos en la plenitud de los tiempos maduros. Pues
cuando el hombre vive en una cultura madura, cuando ha hallado al fin una
objetividad bajo la que habitar, la existencia humana en su desnudez se oculta.
(ibid., p.39)
A fim de reforçar os nossos suportes teóricos, é importante referir-nos à
relação entre cultura e crise social na visão nietzscheana de Roland Barthes
(1986, pp.88-91), mais precisamente sob a interpenetração dos conceitos de cultura e tragédia. Barthes defende, com grande acerto e com base em Nietzsche, que
as épocas de questionamentos, ardentes são épocas trágicas, de reflexão cultural.
A tragédia não seria senão um esforço caloroso de se despojar o sofrimento humano causado por uma cultura em discussão. O sentimento trágico da vida deve a
sua razão de existir e proliferar em determinados momentos da vida humana à tragédia, que afeta todos os âmbitos da existência, caracterizando-se como um espírito de época, em que se desnudam todos os conflitos sufocados por uma cultura
aparentemente aceita pelo homem. Os receios manifestados na obra de arte são o
resultado de uma crise cultural vivenciada em um momento histórico especial.
Retomando a ideia de que a obra ensaística de María Zambrano é uma reação ao racionalismo e ao tecnicismo exagerados da modernidade, que capitaliza
o sentimento do divino para combater a mecanização do homem, voltamos a afir-
180
mar que a própria arte mostra-se, para a autora, como uma religião pessoal e uma
ferramenta para exercitar a fé na concretização dos anseios humanos. Temos ciência de que o sentimento de espiritualidade está muito vivo em toda a obra de María Zambrano, especialmente, em seus textos mais maduros, cujo ápice é representado por El hombre y lo divino, que estudaremos mais tarde.
O que podemos dizer é que, na verdade, a insatisfação estimularia, no
nível humano, o sentimento trágico, no nível social, a crise da cultura e, no nível
literário, a confissão autobiográfica ou o desabafo, usando como instrumento o
gênero moderno por excelência: o ensaio. A confissão surge de um sentimento de
vazio e de inimizade com relação à realidade. Todos os que escreveram o relato
de sua vida em tom de confissão partem de um momento, em que viviam de
costas para o real, distantes dele, embora o ato da escritura ou de escrever declare
abertamente a importância dos fatos pretéritos na trajetória existencial do
confessor.
Levando-se em consideração as influências filosóficas de Miguel de
Unamuno, para a ensaísta espanhola, todo o projeto humano, que seja levado a
cabo sem a presença do divino, estará destinado às ruínas, posto que o culto
exclusivo e egoísta ao eu termina por se identificar com o nada e, assim, torna-se
sinônimo de niilismo, onde se delata a inegável relação do nada com o espírito
crítico da modernidade. Chegar a essa conclusão é de extrema relevância para
compreender a identificação da obra ensaística zambraniana com o religioso ou o
divino. A autora necessita da utopia da esperança religiosa ou divina para se
escrever e ressaltar ao leitor a condição trágica humana constituída pelo desgosto
e pelo sofrimento. Esse alicerce extramundo e extrahumano é fundamental para a
criação de uma existência zambraniana ficcional notabilizada a partir de uma
existência subjetiva heróico-trágica particular.
8.2. A confissão e o leitor
María Zambrano sustenta que a confissão opera a função primordial de
fazer com que o leitor revise a sua consciência tal como o empreende o confessor.
[...] la confesión, al ser leída, obliga al lector a verificarla, le obliga a leer
dentro de sí mismo, cosa que el lector curioso no quiere por nada, pues él iba para
181
mirar por una puerta entreabierta, para sorprender secretos ajenos, por una falta de
precaución, y se encuentra con algo que le lleva a mirar su propia conciencia. La
confesión literariamente tiene muy pocas exigencias, pero sí tiene ésta de la que no
sabríamos encontrar su receta y es: ser ejecutiva, llevarnos a hacer de la misma
acción que ha hecho el que se confiesa: ponernos como a él a la luz. (ibid., p.45)
María Zambrano assinala que o fundamental na confissão não é ser visto,
porém deixar-se ver com o objetivo de que nos sintamos unificados, identificados
pelo mesmo olhar, pois todos os que fazem uma confissão expressam igual intuito
de recobrar um paraíso perdido. María Zambrano, em seus ensaios, tem o intuito
de problematizar certas questões de seu tempo e conquistar uma harmonia
existencial impossível no presente. A confissão, como gênero literário presente
nos ensaios da autora, é mais um reflexo das preocupações da escritora enquanto
intelectual, visto que o seu papel na sociedade ultrapassa os limites da realidade,
refluindo para o espaço de suas produções literárias, que se constituem a partir da
articulação entre crítica e criação; a experiência humana inevitavelmente
contamina a experiência literária, pois é muito enriquecedor que a experiência de
um indivíduo, neste caso o autor, seja aproveitada pela experiência do outro, pela
experiência de outros escritores literários e personagens emblemáticos que
marcaram indelevelmente a tradição cultural do Ocidente e universal. É, dessa
maneira, que a escritora adquire uma determinada identidade e fama dentro da
história de seu tempo, é dessa forma que se revela e se destaca perante os demais.
Na representação autobiográfica, o fazer do texto é concomitante a um
(des)fazer do sujeito que o cria, instaurando assim, uma trajetória dupla de autoreflexão artística. A autobiografia confessional procura a coerência e a unidade,
entretanto, esse objetivo é muito difícil de alcançar, na medida em que, desde o
início, o autor contempla-se desdobrado entre sujeito e objeto do seu discurso; é
duplamente personagem enquanto escritor e matéria da escritura. Escrever é
indiscutivelmente obliterar o passado por meio de uma memória voluntariamente
falha ou não. Esse conhecimento lacunar, fragmentário e incompleto,
proporcionado pela memória é que articula escrita e leitura e é intermediando
uma e outra que surge a imaginação. A confissão autobiográfica concentra-se na
rememoração de fatos passados.
Escrever, segundo Roland Barthes e Rafael Argullol (1990), supõe uma
renúncia de si mesmo levada a cabo pelo próprio autor. Essa desapropriação do
182
sujeito com a finalidade de construir um outro supedita a autobiografia
confessional. Como Argullol e Barthes, também Paul De Man (1991, p.6) divulga
que a negação da propriedade do eu, na medida em que exprime que o
desdobramento do sujeito em eu narrador e em eu narrado, além da multiplicação
do eu narrado observada no seu contar e até recontar, denota que o texto
confessional autobiográfico é um artefato teórico e que o artifício da literatura,
distante de reproduzir ou criar uma vida, antes de qualquer coisa, efetua a sua
desapropriação. Michael Sprinker (1991) dedica-se ao estudo do texto para
defender o pensamento de que, na autobiografia, de maneira similar ao processo
confessional, o sujeito, muito longe de controlar o texto, encontra-se constituído
por um discurso que nunca domina, produzido por uma inconsciência
inapreensível, constantemente em mudança. Paul De Man, inclusive, chega a
admitir que talvez devéssemos pensar que o projeto autobiográfico produz e
determina a vida.
Em suas últimas obras, Paul De Man procura inserir-se profundamente na
estrutura retórica dos textos autobiográficos para demonstrar de que maneira a
estrutura da mimesis engendra a ilusão de referencialidade na autobiografia.
Sendo assim, a autobiografia não se destaca por nos fazer conhecer um sujeito,
que realiza a empresa de contar a sua vida por escrito, mas oferece-nos outro tipo
de conhecimento, que é o de que, através de uma estrutura artística bastante
especial, dois ou mais sujeitos se olham reciprocamente, reconstituindo-se e
repensando-se igualmente. A necessidade que revela a autobiografia de uma
dupla construção do eu reflete curiosamente, segundo Ángel G. Loureiro (1991),
a mesma estrutura tropológica da de todo conhecimento, a qual conta
evidentemente com o conhecimento do próprio sujeito. A denominação ‘tropo’
para Paul De Man e a de ‘pacto autobiográfico’ de Philippe Lejeune (1991)
consistem justamente em compreender a autobiografia como essa linguagem
figurada, alegórica, ilusória em que o eu narrado cambiante preenche e determina
o eu incompleto que se desnuda em confissão e vice-versa. Esse refluxo de
estrutura tropológica verificado no processo da escritura autobiográfica e no cerne
de toda a captação de conhecimento também se observa na leitura. Dessa
maneira, podemos inferir com Paul De Man que a autobiografia apresenta-se
183
como uma forma de textualidade, que possui a estrutura reflexa, ou seja,
recíproca de influência do conhecimento e da leitura, a qual afeta o autor, o leitor
e a própria escritura.
Paul De Man ensina-nos que o tropo principal na autobiografia é a
prosopopéia, que consiste em colocar o escritor palavras ou discursos na boca de
pessoas verdadeiras ou fingidas; na verdade, a prosopopéia dá rosto e voz aos
vivos, aos ausentes e aos mortos, conferindo-lhes o status de criação literária, em
última instância, de personagens. Completando o pensamento de Paul De Man,
Ángel G. Loureiro sustenta que apesar de os dois sujeitos presentes na
autobiografia determinarem-se reflexivamente por meio desse tropo, a figura que
reside no centro dessa determinação desfigura-os simultaneamente, visto que a
linguagem dos tropos é sempre despojadora. Essa linguagem alienante
caracterizadora da escritura autobiográfica torna possível ao escritor construir
deliberadamente um sujeito ficcional que encubra o seu próprio eu, desfigurandoo perante o leitor em virtude do vigor e da presença literária que adquire o
personagem do eu autor dentro da obra de arte.
Dessa maneira, portanto, é instigante observar como o ensaio zambraniano
tendo reflexos autobiográficos e confessionais, coloca o sujeito como um
palimpsesto, no qual a exatidão e a veracidade do passado, do presente e do futuro
são completamente duvidosas e ambíguas. Esse fato reitera a opinião de Paul De
Man sobre a autobiografia como desfiguração, conforme podemos ler na citação
seguinte:
En cuanto entendemos que la función retórica de la prosopopeya consiste en
dar voz o rostro por medio del lenguaje comprendemos también que de lo que
estamos privados no es de vida sino de la forma y el sentido de un mundo que sólo
nos es accesible a través de la vía despojadora del entendimiento. La muerte es un
nombre que damos a un apuro lingüístico y la restauración de la vida mortal por
medio de la autobiografía (la prosopopeya del nombre y de la voz) desposee y
desfigura en la misma medida en que restaura. La autobiografía vela una
desfiguración de la mente por ella misma causada. (DE MAN, P.,1991, p.6)
Ángel G. Loureiro adverte que a linguagem despojadora e a natureza
tropológica da linguagem autobiográfica afastam-se, em grande medida, das
teorias de Starobinski (1970), que defende a verdade auto-referencial do estilo
como descobridor e não como encobridor da interioridade do escritor
autobiográfico. Para um teórico como Starobinski, a autobiografia apresenta-se
184
como um contrato assinado com a verdade do sujeito descrito na obra de arte, no
sentido de que esta nos conduziria à revelação do interior do autobiógrafoconfessor. Paul De Man, por sua parte, insistimos, propugna a autobiografia como
a desfiguração prosopopéica da verdade do escritor no tocante ao rosto e à voz. A
personalidade desfigurada ou restaurada, segundo Paul De Man, pode desdobrarse incessantemente na escrita de outras personalidades diversas ou semelhantes,
pois, embora muito presente, já não se encontra, em primeiro plano, a marca
pessoal que as identifica e individualiza.
Derrida (1982), em L’oreille de l’autre, por meio do estudo de Ecce
Homo (1888), obra autobiográfica de Nietzsche, esclarece que não é possível
distinguir radicalmente vida e obra, contudo também não podemos pretender
explicar uma pela outra como teoriza Starobinski. Necessitamos refletir sobre o
autobiográfico a partir de uma premissa que pressuponha paradoxalmente a
união, a separação e o refluxo simultâneos entre vida e obra. Quando tomamos
em consideração essa concomitante miscelânea e separação entre a essencialidade
de uma obra e a vida empírica de um autor, sobrevêm-nos novos horizontes na
interpretação do sentido do ensaio, da autobiografia e da confissão. A identidade
do escritor recebe novas configurações, as quais dependem de uma revisão da
criação autobiográfica no referente ao nome do personagem ficcional, autor
inspirador do texto, e à assinatura do nome do escritor. Derrida esclarece, ainda,
que o texto autobiográfico não é assinado por um autor que se compromete com
uma identidade comum histórica em relação ao personagem sobre o qual escreve,
mas que a estrutura da assinatura faz com que quem firme, na realidade, seja o
destinatário do texto autobiográfico. A assinatura, em outras palavras, não se
concretiza no momento da escritura, porém no momento em que o outro lê ou
escuta o escritor. Em definitivo, o destinatário da autobiografia escreve no lugar
do autobiografado. A ‘orelha do outro’ assina pelo escritor e, enfim, constitui o
seu eu autobiográfico. Na proporção em que temos conhecimento de que o eu
passa sempre pelo outro, torna-se claro que o empreendimento autobiográfico,
paradoxalmente longe de ser auto-suficiente, percebe-se comprometido com o
aval e a legitimação realizados pelo leitor do nome e da assinatura do escritor.
Conforme faz-nos compreender Derrida, essa passagem da assinatura e a escritura
185
do eu através da orelha do outro converte, na verdade, o autobiográfico em
heteroautobiográfico.
Junto à modernidade, a época contemporânea despontou também
impiedosamente com avanços materiais e preços altos a pagar, como se o
tormento dos antigos povos em relação à premonição trágica do futuro estivesse
sendo atualizado em um momento presente. Como já abordamos, María
Zambrano, com o propósito de compreender e se liberar da perseguição trágica do
seu tempo em crise, resolve ensaiar a sua vida, o seu país, o seu povo e a sua
filosofia, que simbolizam e representam as suas atribulações.
É vital não deixar no esquecimento que a modernidade criou, por meios
dos adiantamentos científicos, uma imagem arquetípica de herói e, ao fazê-lo, obteve enorme atenção e adeptos. María Zambrano, por sua vez, ao revisitar o passado, demonstra que, na literatura, possuímos exemplares heróicos mais fortes,
justos e humanos do que a ideia de herói promovida pela indústria, pela mecanização e pelo capital moderno, notabilizado pela pujança econômica e pelo interesse exclusivamente individual.
As relações que se identificam entre María Zambrano e a autobiografia
são facilmente percebidas em suas obras ensaísticas, cujo principal tema é abordar as possibilidades de uma filosofia da existência em contraposição a uma época racionalista e positivista. A autobiografia, como uma forma de confissão, aparece como um método de mediação, a fim de decifrar os enigmas da vida. O ensaio a serviço do romance, da poesia, da autobiografia e da confissão demonstra
que as manifestações literárias são formas complementares e transformadoras do
conhecimento do homem e de suas contingências. Dada essa importância que María Zambrano concede à autobiografia como expressão confessional, é que a autora publica, em 1943 (reedições em 1988 e 1995 e também em 1989 na obra Notas
de un método), La confesión: género literario y método, que trata da necessidade do homem de viajar para dentro de um saber da alma, quando a cultura passa por momentos de questionamento e reforma e o ser humano, mergulhando nas
profundezas infernais de si, busca uma saída por se sentir órfão de sustentação espiritual. De acordo com María Zambrano, a confissão, manifesta pela palavra geralmente em 1ª pessoa, pode salvar o homem da grande distância surgida na civi-
186
lização ocidental entre vida e pensamento: “El género literario que en nuestros tiempos se ha atrevido a llenar el hueco, el abismo ya terrible abierto por la enemistad entre razón y vida.” (ZAMBRANO, M., 1995, p.13) O interesse da autora
espanhola por esse gênero literário abre os nossos horizontes para o posterior estudo de El hombre y lo divino, pois, ao procurar descobrir as principais características da confissão voltando às suas origens, a resitua como elemento subsidiário de análise para compreender um mundo dominado pela crença racional positivista. Essa conduta propicia, ainda, acompanhar a evolução do homem ocidental,
segundo as concepções filosóficas modernas vigentes naquele período.
No ensaio intitulado “Hacia un saber sobre el alma” (ano XII, nº
CXXXVIII, dezembro 1934) publicado novamente, em 1950, em uma obra com o
mesmo título, Zambrano propõe que se aceite a história dentro de uma visão
poética, na qual o sujeito literário testemunha, à sua maneira, as experiências que
tem com o mundo tomando uma postura, que leva em consideração o confessional
estimulado pela expressão única dos sentimentos anímicos pessoais. Nesse texto,
a escritora espanhola expõe suas ideias sobre a razão poética, ‘razón de amor
reintegradora de la rica sustancia del mundo’, onde poesia e povo possuem laços
íntimos. Em seu ensaio, María Zambrano recupera a tão conhecida frase de Pascal
tantas vezes repetida até os dias de hoje: “hay razones del corazón que la razón no
conoce” (ZAMBRANO, M., 1934, p.264) para deixar claro que é necessário um
saber da alma, que permita a descoberta e a revelação de uma maneira de
organizar o interior do sujeito. Excetuando-se as críticas que se possam
estabelecer a respeito, o homem vem buscando esse ‘conhecimento da verdade’
ou esse ‘conhecimento verdadeiro’ ao longo do tempo a partir das diversas formas
de manifestação que criou e que lhe possibilitaram ver mais longe do que
imaginava. Entre essas manifestações, está evidentemente a literatura. A ensaísta
ainda menciona vários outros intelectuais como Max Scheler, Espinosa e
Nietzsche que abordam o ser humano em uma esfera não somente da lógica do
pensamento, mas também da alogicidade do emocional, na qual reside
historicamente, desde os princípios do cristianismo, a salvação da alma pelo amor
ao próximo e a si mesmo. Empreender esforços para conseguir esclarecer a
verdade, encarando o pensamento como fragmento de outros pensamentos é o
187
passo fundamental para que esta verdade se revele diante de seu interlocutor e
faça com que o homem se descortine frente à sua vida. Esse é um dos propósitos
pilares da Filosofia, a qual apregoa que ao tentar revelar, o homem acaba
revelando-se a si mesmo em suas lucubrações. Zambrano cita Platão e diz que “es
la Filosofia, [...] camino de vida” (ibidem, p.262), pois na busca da verdade
comum e particular o ser humano sente-se reconfortado para lidar com a angústia
do correr do tempo que vive e com o seu próprio esgotamento na passagem de
tudo, no esvair da vida. Em lugar do sofrimento da paulatina anulação, o homem
regozija-se no prazer da caminhada do mesmo modo que o rio não é igual sem o
seu leito. Tal atitude simboliza renovação e novas oportunidades de fazer
diferente o percurso pessoal no tempo cósmico ilimitado da existência para vencer
os desafios ou obstáculos que vão aparecendo. A filosofia surge, assim, como esse
caminho de vida que ordena o entorno e admite deslocar-se a inusitados rumos,
consentindo, dessa maneira, à razão novas possibilidades. Ante a necessidade de
revisar a condição de ser do homem, María Zambrano anuncia que:
La cultura moderna fue arrojando de sí al ser total del hombre, cuidándose
sólo de su pensamiento. […] En realidad, quedaba el alma como un residuo. Por
una parte, la Razón del hombre alumbraba la naturaleza; por otra, la razón fundaba
el carácter transcendente del hombre, su ser y su libertad. Pero entre la naturaleza
y el yo del idealismo, quedaba ese trozo del cosmos en el hombre que se ha
llamado alma. (ibid., pp.265, 266)
A pensadora espanhola comenta, em seu texto, sobre a existência de um
duplo saber do homem, que aparece como revelação de sua essência dual e
conflitiva: o da razão que ele pensa dominar e o do poético, do cosmo e da
natureza, que compõem um universo do não dominado. É interessante a análise de
María Zambrano acerca do século XIX, onde lhe desperta a curiosidade o
paradoxo do avanço ou do domínio do homem sobre a natureza e da vivência
romântica consciente do homem em relação à atração irresistível pela natureza.
La naturaleza para el romántico es inmensa, inabarcable, infinita, y la ve en
sus máximos momentos de furia esplendorosa: en la tempestad, en el rayo, en
«montaña abrupta», en «el mar insondable», en «los abismos sin fin», en «las
profundas simas de la tierra y el cielo». (ibid., p.266)
188
A ensaísta espanhola explica que ao mesmo tempo em que o homem
romântico do século XIX submete as forças da natureza pelo pensamento
racional, disserta poeticamente sobre essa natureza com terror e espanto ou
admiração divina, onde ele vislumbrava refletida a sua alma, a sua verdadeira
essência, repleta de tempestades, abismos e simas, dificilmente visível na esfera
racional e por ela, nesse momento, abandonada por completo. A natureza como a
poesia eram o lugar onde o homem buscava a sua alma ou onde a alma do homem
se buscava a si mesma. Na verdade, na arte romântica conjugaram-se natureza e
alma. O homem não está constituído simplesmente de razão, tampouco de alma; a
vida oscila entre paixões e pensamentos, intermediados por silêncios que esperam
outras respostas. Na medida em que ninguém ousa afirmar um saber radical, o
conhecimento proveniente das paixões era interpretado como confissão ou
confidência. O enlace entre a natureza e a alma traduz um saber originário que
buscava o autoconhecimento presente, conforme assevera Zambrano, nos ritos
órficos e no culto a Dionísio. Entretanto, o processo opera-se de modo distinto do
processo levado a cabo pelo romantismo no século XIX. Ao passo que o
romântico humaniza a natureza e nela empreende a busca pelo plástico e pela
figura, no culto a Dionísio, a alma procura na natureza o que ela tem de musical,
em uma reconciliação cósmica da alma com a vida, a fim de enfrentar suas
incomodidades internas.
Porque toda soledad ha sido sentida en un principio como un pecado, como
algo de lo que se siente remordimientos. Cada distancia que el hombre conquista
con respecto al resto del universo, le crea una soledad que al principio le da terror
y remordimientos. Y de la soledad recién conquistada, retrocede a abrazarse con lo
que acaba de dejar. (ibid., p.273)
Diferentemente da história moderna, nas culturas originárias como a
helênica a normalidade estava na harmonia entre alma e cosmos, como uma forma
de escapar às dores da solidão e da dúvida sobre si mesmo, para que se pudesse
seguir adiante a partir das descobertas de si, em uma antecipação da famosa frase
‘conhece-te a ti mesmo’ socrática. De fato, no decorrer de toda a história, a alma
vem buscando-se a si mesma por meio da natureza tanto nas religiões gregas,
como também na arte romântica, como uma maneira de tentar organizar a
189
realidade a partir da ação de perguntar do homem, que tem a intenção de se livrar
do desconhecimento, que surpreende em si mesmo. Somente assim, o homem
pode ter uma consciência mais clara do que é e do que não é, revelação
importante para o seu autodescobrimento em uma dimensão concreta ou real. É
fato que a razão pós-cartesiana mostra a importância de abordar o humano no que
possui de intransferível, irracional, situacional e subjetivo. Para María José Clavo
Sebastián,
El hombre comienza a ordenar su mundo cuando puede inventar dioses, es
decir, a conferir algún tipo de entidad a aquello por lo que se siente mirado y
perseguido. De modo que cuando en el universo del ser humano aparecen los
dioses con figura y nombre aparecen también, las cosas y los seres. Este
discernimiento es anterior y preparatorio al discernimiento lógico en el que se da
ya una clasificación de los seres. En todo caso, desaparece el caos y el homre
conquista alguna orientación en su vida, termina el sentimiento de persecución y,
por consiguiente, el continuo temor porque ahora ya tiene localizado quién le ve y
ello le permite entrar en contacto con él. La función de los dioses es la de hacer
posible el trato con la realidad. (CLAVO SEBASTIÁN, M. J., 1992, p.132)
Na verdade, a existência do sagrado autoriza a existência heterogênea da
‘realidade real ou concreta’, que efetua uma ruptura emocional do homem em
relação ao saber, direcionando-o ao desenvolvimento da consciência e ao contato
com os seus próprios limites nos momentos de sua integração ao universo, pois a
vida humana engendra a presença divina da alteridade, do outro, do desigual, do
não idêntico. Para María José Clavo Sebastián, a vontade de indagar surge do
estranhamento do homem consigo mesmo e, segundo a autora, essa é a garantia
de sustentabilidade de toda a filosofia, que busca trilhar os caminhos da revelação
da consciência, a qual revoluciona o interior do homem, causando-lhe rupturas de
paradigmas e reformulações do pensamento.
Ao longo de “Hacia un saber sobre el alma”, María Zambrano explora a
questão do eu e da sua alma, como uma extensão dos temas Deus e a Natureza, o
Homem e a Razão. Na visão antropológica zambraniana, vivemos em um sistema
planetário, no qual Deus, Natureza e Homem formam um drama, no qual, em
certos momentos da história, uma dessas órbitas pode eclipsar a outra e viceversa. O desafio está em descobrir, nos momentos distantes da existência comum
do abandono e da solidão, que função ou que papel possui a alma do homem
190
dentro do cíclico drama da vida, o qual ora se desvela ora se torna misterioso.
Esse homem vislumbrado como o Dasein heideggeriano ou como realidade
cindida proveniente de um estado de consciência caracteriza-se pelo conflito entre
o pensar e o sentir, entre a individualidade e o ser humano em totalidade, entre o
conhecimento pessoal e a vida, onde, de fato, o homem define-se em atos de
tensão com relação ao seu próprio futuro no que tange a suas infinitas
possibilidades. Assim, María Zambrano vai colocando em prática o método
filosófico da pergunta sem respostas precisas, que visam despertar alguma
revelação no leitor-aprendiz-criador também do texto.
A prática literária e a filosófica, cujas delimitações são nebulosas, se
conciliam na tentativa de uma compreensão do mundo em toda sua complexidade
oscilando entre a explicação elucidativa ou perquiritória ocasionada pela
percepção da ausência ou da falta e a beleza plástica e o gozo estético, que
buscam completar o ser pela aquisição do conhecimento. Essa crença suscita certa
fé na literatura como uma prática espiritual que reatualiza as esperanças de uma
coletividade geracional e as reescreve historicamente em um processo filosófico
de autocriação do ‘eu-já (yo-ya)’ em toda sua diversidade, como descoberta de
uma individualidade perdida e, por conseguinte, da consciência da solidão do
homem, exigida pelas necessidades contemporâneas em ordenar a realidade
destruída continuamente pelo desmascaramento dos mitos do racionalismo e da
revolução tecnológica-industrial.
191
As muitas correspondências que escreve María Zambrano a tantos
conhecidos, amigos e escritores robustecem a contribuição da autora malaguenha
ao gênero intimista da confissão autobiográfica, que se baseia na ideia de que o
homem e a vida passam por incessantes mutações na ordem do tempo, sendo esse
conceito justificado a partir do estudo que empreende a ensaísta de uma extensa
tradição cultural e a partir da evolução de seu próprio pensamento, conforme
estamos tentando fazer ver nessa pesquisa. A sua vida somente pode ser
compreendida sob a perspectiva da multiplicidade dos tempos que constitui a
nossa história. Não podemos possuir um entendimento mais global de nosso
tempo se não formos capazes de compará-lo e diferenciá-lo de outras épocas.
192
A autobiografia, em seu sentido confessional, responde muito bem a esse
preceito indispensável de autoconhecimento, que inclui, portanto, o sujeito, o
outro e os diversos tempos vivenciados. As alusões confessionais e
autobiográficas são muitas nos escritos filosóficos de María Zambrano, sobretudo,
como já proferimos, em sua considerável produção epistolar e também na sua
produção bastante diversa de prólogos. Em grande parte dos seus textos,
encontramos movimentos semelhantes de não somente demonstrar suas
preocupações ou meditações filosóficas, mas também de ambientar os seus
escritos segundo a sua experiência pessoal, pois, evidentemente, sem ela, a sua
produção filosófico-literária não seria possível. J. L. L. Aranguren assegura que
prefere “la genuina María Zambrano, la resituada, aquella para quien su obra
entera es confesión y autobiografía.” (1983, p.107) É notória a assertiva de que,
nas escrituras do eu, as reflexões sobre o próprio sujeito foram constantes no
âmbito filosófico da civilização ocidental. Já no estudo das Confissões de São
Agostinho, escritas entre os anos 397-398, José Luis Aranguren (1984, p.21) crê
que além de configurar uma obra que enceta verdadeiramente o gênero
autobiográfico, as confissões agostinianas antecipam as problemáticas modernas
no seio de seus questionamentos filosóficos. Embora haja muitas controvérsias no
sentido de se aceitar a modernidade da confissão como gênero literário, autores
como Philippe Lejeune (1975, p.14) e Georges May (1979, p.25) sustentam que a
modernidade da confissão localiza-se no conceito de progresso do homem
ocidental, que reformularia as suas concepções de existência em relação ao
mundo antigo a partir sobretudo do século XVIII. Esses teóricos declaram que a
formação do homem europeu amparou-se fundamentalmente no rompimento
epistemológico com relação ao homem antigo conectado a uma forte tradição
cristã. A passagem a uma consciência mais individualista surgiu, desse modo, do
paulatino desarraigo do sentimento divino começado no Renascimento e, em
seguida, mais contundentemente no período romântico. Na realidade, a superação
do poder eclesiástico das sociedades ocidentais em favor de uma existência mais
voltada para o laicismo estimulou, em conformidade a um pensamento
racionalista e secularizado, uma escritura do eu. María Zambrano endossa esse
preceito de que a tradição cristã funcionou como um meio peremptório na
193
formação do homem ocidental, bem como os seus estágios de evolução ao longo
da modernidade. O homem moderno otimizou os ensinamentos do cristianismo
para construir outros horizontes de realização pessoal e, carente de sustentação
espiritual, ocasionou a crise racionalista européia. A impossibilidade humana de
conceber um eu completo guarnecido pelo racional e pela interioridade incentivou
o homem a buscar a salvação pela transcendência. Do ponto de vista da ensaísta
espanhola, as Confissões de São Agostinho determinam os pressupostos do
gênero e servem de base para examinar as autobiografias mais modernas como as
de Rousseau e ainda outras que deixam patente a crise do homem moderno
transposta à escrita do eu. A obra agostiniana deseja encontrar o âmago do ser
humano, porque se consolida na teoria de que somente na descoberta de si
mesmo, o homem poderá dialogar com a verdade. Por isso, é lógico entender que
a confissão sofreu mudanças no decorrer do tempo. Nas palavras de María Luisa
Maillard, esses pensamentos tornam-se ainda mais claros.
El hombre no es un ser formado enteramente desde el principio, nos dice
Zambrano, sino que va revelándose en la historia, lo que no quiere decir que los
nuevos sentimientos destruyan a los antiguos, sino que todos llegan a convivir en
un momento dado, aunque según el predominio de la mentalidad dominante en
cada época, algunos de ellos puedan sufrir eclipses de larga duración. No hay
ruptura entre el hombre antiguo y el moderno, sino una solución de continuidad
creadora. (MAILLARD, M. L., 1997, p.166)
A confissão seria, por conseguinte, a manifestação de um gênero literário
capaz de traduzir as crises da nossa cultura ocidental e de que maneira o homem e
o mundo conseguiram transformar-se diante das instabilidades vivenciadas.
Sabemos que há inúmeros pontos de vista e discordâncias, todos eles válidos no
campo de sua própria escritura e elucidação, no que se refere às problemáticas
conceituais, envolvendo as tentativas de classificação sistemática da confissão e
da autobiografia como gênero(s) literário(s), mas o que nos interessa, de fato,
nesse trabalho é ver que todas essas discussões encontram uma suspensão
temporária da adversidade teórica no sentido de que se confluem no conceito de
que tanto a confissão como a autobiografia encarnam uma contingência real do
homem moderno, cujos valores, nos últimos decênios, oscilaram entre a suspeita
da existência de um eu que dirige a vida, criticado bravamente por diversos
194
campos do conhecimento como a psicanálise e a semiótica, e a progressiva
literaturização da vida, tema basilar que rege todos esses estudos.
La autobiografía sería ficción en cuanto intento de reproducir un yo, pues su
labor es crearlo o inventarlo, pero es realidad en el sentido de una lectura
intencionalmente realista del lector, lo que quiere decir no plantearse en absoluto
el vínculo del texto con la realidad, sino analizar cómo los lectores se sirven de los
textos para hacer intencionalmente enunciados sobre su propia realidad. (ibidem,
p.178)
María Zambrano estima que o desespero de si mesmo e a fuga de si na
esperança de se encontrar são os traços que definem a confissão. As palavras
‘desespero’ e ‘esperança’ são vitais, quando nos referimos à confissão, porque
como esclarece a ensaísta:
Desesperación por sentirse obscuro e incompleto y afán de encontrar la
unidad. Esperanza de encontrar esa unidad que hace salir de sí buscando algo que
lo recoja, algo donde reconocerse, donde encontrarse. Por eso la Confesión supone
una esperanza: la de algo más allá de la vida individual, algo así como la creencia,
en unos clara, en otros confusa, de que la verdad está más allá de la vida.
(ZAMBRANO, M., 1995, pp.37, 38)
A teórica novamente ensina-nos que a confissão somente verifica-se com a
esperança de uma revelação interior e pessoal. Por essa razão, apresenta a
condição da vida humana tão imersa em contradições e paradoxos.
A autobiografia apresenta realmente uma relação muito forte com a
confissão; não deixa de funcionar como uma confissão, pois tanto uma como
outra partem de uma necessidade de rever uma trajetória de vida, de rever certos
valores, de rever a história. María Zambrano escreve que a confissão emerge em
momentos decisivos, nos quais a cultura parece estar em julgamento e o homem
encontra-se desprotegido e sozinho. A confissão como a autobiografia aparece em
momentos de crise pessoal, ocasionada, principalmente, por transformações
históricas, onde o homem concreto constata o seu fracasso.
La confesión surge de ciertas situaciones. Porque hay situaciones en que la
vida ha llegado al extemo de confusión y de dispersión. Cosa que puede suceder
por obra de circunstancias individuales, pero más todavía, históricas. Precisamente
cuando el hombre ha sido demasiado humillado, cuando se ha cerrado en el rencor,
cuando sólo siente sobre sí “el peso de la existencia”, necesita entonces que su
propia vida se le revele. Y para logralo, ejecuta el doble movimiento propio de la
195
confesión: el de la huida de sí, y el de buscar algo que le sostenga y aclare.
(ibidem, p.32)
Não cabe dúvida de que a confissão é uma forma especial de relato
autobiográfico e que María Zambrano acredita na sua função cognoscitiva. De
acordo com a autora, a confissão tem como premissa básica a formação de um eu
no processo de construção do texto, tendo em vista que o receptor, ao ler o escrito
e ser capaz também de vivenciá-lo de maneira solidária e complementar, executa
o mesmo movimento que o confessor. O gênero confessional é uma forma de
conhecimento do homem e, sendo assim, cumpre a função de abrir horizontes ao
pensamento filosófico. O conceito zambraniano de que a confissão surge da
necessidade de expressão da vida por meio do sujeito reage aos infortúnios das
circunstâncias que a originam. Com isso, torna-se clara a ideia de que a confissão
não existe sem o âmbito histórico e cultural que a incentiva. Esse contexto
estimulante terá como característica indispensável o fracasso e a dissolução, para
que seja empreendido o projeto de recriação da história e da herança cultural com
o intuito de encontrar novas perspectivas. Os ensaios que vinhemos estudando até
o momento na Revista de Occidente, na revista Hora de España, em Filosofia y
poesía e, ainda, os que estão por vir em El hombre y lo divino, desfrutam desse
mesmo leitmotiv que guia de maneira basilar os princípios norteadores e os
pilares de sustentação da nossa pesquisa. Para María Zambrano, o espírito trágico
aparece justamente nessas ocasiões de turbulência, indignação e silêncio, que, no
mundo antigo, marcou a sua presença na taciturnidade dos deuses e, com isso,
propiciou o surgimento da filosofia dentro do território cultural ocidental e da
noção de individualidade, com a intenção primordial de expressar o espaço
interior. Se a confissão é também encarada como uma forma textual
autobiográfica que coloca o sujeito como prioridade, está confirmada a assertiva
de que representa uma manifestação do humano que tem como finalidade o
objetivo de que o indivíduo conheça a si mesmo. Contemplada a questão de outro
ponto de vista, María Luisa Maillard (1997, p.183) defende que a necessidade que
motiva a confissão se relaciona com a indigência ontológica do homem. Segundo
a crítica (ibidem), esse modo de ver engendra certos parâmetros com a filosofia de
Ortega y Gasset que compreende a existência humana como um processo
196
individual e histórico, posto que o homem não nasce pronto, mas vai construindose e enfrentando-se ao que denomina os três horrores da existência: o nascimento,
a morte e a injustiça, assimilada como a imprevisibilidade do destino, seja ele
cordial ou inóspito. Entendemos que o discurso ensaístico de María Zambrano
assume essa responsabilidade moral, ética, filosófica, humana, política e histórica
de desafiar a loucura cativante do existir, pois, na destruição, sempre resta alguma
coisa e é com essas ruínas íntimas e circunstanciais que reconstruímos e nos
refazemos. María Luisa Maillard opina que
La Confesión, más que ninguna otra manifestación literaria, afronta este
doble proceso del vivir y lo hace de forma modélica al producirse en los momentos
de crisis de una civilización, cuando el hombre se enfrenta a su indigencia
desnuda, porque tambalea el suelo de creencias en el que se afianzaba y aún no
han aparecido otros valores en los que pueda apoyarse. (ibid., p.184)
É conveniente retomar aproximadamente a questão já abordada de como
um cineasta surrealista como Luis Buñuel se interessa pela obra galdosiana para
comentar que María Zambrano julga que este movimento artístico é um dos que
mais se acerca a uma confissão dentro do mundo contemporâneo, pois não abjura
a busca da identidade mais íntima do homem, afronta constantemente as normas
estabelecidas que norteiam um mundo regido pelo racionalismo e acredita que o
ato de conhecer exige um movimento de transformação. Essas ideias de
revelação, da vida como morte e renascimento sucessivo e de um tempo múltiplo
distinto do da consciência tangenciam plenamente o pensamento desenvolvido
por María Zambrano em seus ensaios. O grande esforço intelectual e espiritual
que o homem leva a cabo para reconstruir a sua vida na obra de arte, lançando
mão da memória, explica a sua necessidade de se vislumbrar mais profundamente.
A confissão é uma forma de escritura autobiográfica, onde se empreende a
criação de um eu. Essa intencionalidade lhe concede um caráter prévio ao ato de
escrever, pois o sujeito começa a ser construído antes da redação do texto e o seu
término inexiste. A solidão, um dos maiores dramas do mundo atual, impede o
homem de ver o outro e também lhe dificulta ser visto. A imprescindível reflexão
que realiza sobre a sua vida, a seu ver, confusa, quer buscar uma saída com a
atitude de se colocar ao olhar alheio, já que percebe que sozinho não há
197
metamorfose de si mesmo, tampouco do outro e menos ainda das circunstâncias.
Na confissão, o relato da experiência de uma vida une passado e presente para
criar um projeto compromissado eticamente com o futuro. Retomamos o que em
“A modo de autobiografia” declara Zambrano:
Yo no soy nadie, yo no soy ninguno y cómo si no soy ninguno puedo tener
una autobiografía; mas se me ha descubierto y desde niña, que en este yo se
deposita también eso que se llama la responsabilidad moral. Y yo a esa
responsabilidad moral tampoco puedo renunciar y tampoco he podido renunciar a
una especie de sentir radical, de que aquello que he hecho ha nacido dentro de mí
y no puedo rechazarlo. Así que cuando lo mido [mi yo], siento que es mío, que
podría ir más allá, pero que este más acá a donde he ido a parar, ahí soy yo, ahí no
tengo más remedio que aceptar responsabilidad, porque es el punto de la moral y
es un punto también de revelación. (ZAMBRANO, M., 1987b, p.70)
Sendo o eu efetivamente uma narração, quem escreve uma confissão
aspira a uma revelação vital, pois ambiciona responder ao questionamento maior
de quem é de fato, oferecendo-se ao olhar do outro. Como observamos nos
capítulos anteriores, sobretudo no referente a dom Quixote, existe uma
característica importante comum ao de um confessor que é a necessidade de que
se aceite e se reconheça inicialmente o fracasso do eu e da vida que origina esse
sujeito para poder seguir em busca de algum outro argumento que consiga atribuir
sentido à existência. Admitir o fracasso é imprescindível para tentar escapar do
desespero e da confusão; é o caminho pessoal a trilhar para cada vez mais deixar
de ser um homem ‘a medias’. Tomando em consideração esse conhecimento de
vislumbrar o fracasso como um passo essencial para o crescimento, María
Zambrano opera, ao longo da publicação de suas obras, uma evolução
epistemológica fundamental do seu pensamento, que incialmente orbita
filosoficamente o compromisso social e político fraguado pela guerra civil e pelo
regime ditatorial para depois alcançar a preocupação pela salvaguarda da
individualidade do sujeito contemporâneo frente ao monopólio do fascínio
racionalista positivista massificante da modernidade até culminar em uma vontade
visceral de transcedência pelo retorno às crenças clássicas de uma relação
simbiôntica primária inquebrantável entre o homem e o divino na busca de um
tempo totalmente idiossincrático.
198
9. A TRANSCENDÊNCIA
É interessante discernir sobre a ideia de que, no desenvolvimento da
maneira de pensar ocidental, ao passo que o homem determinou a morte de Deus
também condenou a si mesmo à aniquilação trágica de ser. Dessa maneira e
valendo-se de uma sabedoria necessária para lidar com o fracasso do morrer, é
clara a hipótese de que o homem caracteriza-se pela indigência e sua missão é
lutar para deixar de ser inopioso. Esse anseio, contudo, realiza-se pela senda da
esperança que visa a transcendência individual, ou seja, o vencimento das próprias
limitações. Em função disso, María Zambrano considera o homem como “el ser
que padece su propia trascendencia, que trasciende su sueño inicial,”
(ZAMBRANO, M., 1971, p.27) assim como existir será “resistir, ser frente a,
enfrentarse.” (ZAMBRANO, M., 1993, p.23), pois, no passado, o homem sempre
existiu oferecendo resistência aos seus deuses. Para a ensaísta, o homem possui
um grande desejo de suficiência e assunção, de reconstruir esse “arraigo en sus
entrañas”. Como o seu pensamento filosófico parte da crença de que o homem
renunciou à sua ilimitação e passou a contemplar-se como uma realidade
psicológica e orgânica, uma de suas mais graves preocupações é reaver a alma
originária desse homem a fim de que ele mesmo possa voltar a se reconhecer
diante do cosmos. Nesse sentido, podemos comprovar como as concepções
existenciais zambranianas afastam-se do historicismo e da razão vital de Ortega y
Gasset, sustentando-se, como já afirmamos, na noção de falta e em seu afã de
saciá-la pela transcendência da consciência e do tempo cronológico. Tal conceito
nos torna possível explicar que, para a autora, há uma diferença entre o eu e a
pessoa que configuram uma espécie de dois lados antagônicos do sujeito, que se
veem obrigados à convivência. Enquanto o eu representa o desconhecido futuro
almejado, a pessoa refere-se a um estado primordial pretérito de liberdade e
criação intermediado por uma multiplicidade temporal, que contém a ambiguidade
do psíquico e o querer intencional da consciência. Assim,
No es el tradicional Sujeto racional el Sujeto de Zambrano, sino un Sujeto
capaz de negarse a sí mismo -a su conciencia- en la consecución de un ser que no
se le da al nacer y que lleva aparejado una apertura del tiempo sucesivo, aunque sin
199
por ello hacer dejación de su responsabilidad en el mundo. (MAILLARD, M. L.,
1997, p.188)
El hombre y lo divino, seguindo o conceito de uma presença do trágico na
obra zambraniana, aprofunda-se nas questões relacionadas ao sentimento do
sagrado e do divino. A obra teve a sua primeira publicação no ano de 1955. Na
segunda edição, em 1973, incorporaram-se mais dois capítulos, que versam sobre
os templos e sobre a morte na Grécia Antiga, além de um capítulo intitulado “El
libro de Job y el pájaro”. Como a autora parte de um contexto cultural de crise, a
sua escritura desenvolve-se evidentemente mediante uma filosofia da crise. Esta
filosofia da crise aborda a cisão entre a razão científica e histórica e os elementos
subjetivos do sujeito, em que estão inseridos os valores culturais religiosos e
éticos de toda uma civilização ocidental. Para conseguir a sua meta, Zambrano
recorrerá a Grécia e ao racionalismo cartesiano, como símbolos incontestes do
pensamento filosófico ocidental, onde observamos uma ruptura violenta entre o
sagrado e a lógica, que somente uma visão interior do sujeito é capaz de
reconstituir a sua unidade transcendental. Dentro de uma perspectiva do lógos
filosófico, a separação do que María Zambrano definiu como as duas metades do
homem, a filosofia e a poesia, resultou tanto de um como de outro lado em uma
trágica condição moderna. Da mesma maneira que o sujeito, dentro da reflexão
poética, se sente simplificado a um não ser, ao nada e ao vazio existencial no
tempo, no racionalismo, o indivíduo também reclama a incompletude do ser e,
apesar da modernidade elaborar várias formas para evitar a angústia e o tédio, o
homem se surpreende com o sentimento de falta e com a solidão à sua volta. Aí,
temos, mais uma vez, a assertiva zambraniana da crítica situação histórica do
homem moderno e do racionalismo pós-cartesiano. Afirma a autora:
Y así la situación del hombre moderno, post-cartesiano y más aún posthegeliano, se nos hace ya un poco más clara: creyente en la razón como único
medio de relacionarse con la realidad –razón discursiva o intuición intelectual– se
ve en la vida real rodeado de cualidades, de semiseres –la cualidad es un semiser
ya que no puede estar suelta– irreductibles a razones; se ve acechado por cosas que
no lo son y que aparecen inconexas; en suma, por ese mundo de lo monstruoso que
el arte lograba de algún modo apresar. (ZAMBRANO, M., 1993, p.196)
200
Com esses dizeres, María Zambrano atesta que a falta de ser e o
sentimento de niilidade caracterizam a condição histórica do homem moderno.
Segundo Eduardo Subirats, entretanto, essa conclusão zambraniana não tem um
sentido ontológico, mas sim, um cunho crítico negativo, pois o nada encobre uma
vida pautada pela dominação de um lógos que submete o homem a uma renúncia,
a uma atitude sacrificial em favor de uma cultura moderna, que apartou o ser
humano do divino ou, como na Grécia antiga, dos deuses.
9.1. O binômio originário homem-sagrado
Na introdução de El hombre y lo divino, podemos ler: “Hace muy poco
tiempo que el hombre cuenta su historia, examina su presente y proyecta su futuro
sin contar con los dioses, con Dios, con alguna forma de manifestación de lo
divino.” (ibidem, p.13) A máscara do lógos que o homem moderno usaria seria
uma forma de renúncia ao próprio ser, uma auto-aniquilação que visa alcançar um
projeto de transcendência do ser dentro da dimensão histórica. Assim, o eu,
reduzido dentro de uma perspectiva racionalista, vê na história moderna do
progresso a possibilidade de sua própria projeção condicionada a transformações
políticas, sociais e econômicas. A autora detecta que Hegel descobriu que a
história é um mal necessário, é uma necessidade para o desenvolvimento do
espírito humano, que, ali, se revela, se nega e amadurece. A própria realidade
moderna proveria desse espírito humano criador, que, mal ou bem, consciente ou
inconscientemente, aceitou pagar tributos como consequência do seu pensar
existindo. Assim como a filosofia cristã transferiu o encargo da realização do
sujeito para um mais além da vida terrena com um aceitar do sofrimento imposto
por Deus, o homem moderno, de certa maneira, plagiou esse processo,
dissimulando as idiossincrasias naturais do sujeito na forma de um ator à mercê
dos fatos históricos, responsáveis por nossa futura felicidade. No entanto,
diferentemente do cristianismo, na terra, a história seria, como diz Zambrano em
El hombre y lo divino, a grande depositária de todo o sentido da vida. Essa
atitude, todavia, configura-se como a manifestação mais taxativa da tragédia
humana, pois o homem não é capaz de viver sem o divino, entendido este como
uma realidade superior. Até pudemos nos tornar meio que independentes do
201
divino, mas também acabamos tomando-o como um tipo de herança substituta
para a história. Como para María Zambrano a única coisa que não abandona o
homem é o tempo e, como o tempo é movimento e, com ele, o ser humano
também se move, é necessário respeitar essa rotação e fazer alguma coisa, criar
uma verdade, mesmo que seja através da escritura.
A superação da falta espiritual do indivíduo estaria em um processo de
divinização da história, que, já para Hegel, ocupava o lugar do divino. De fato, a
história seria o tempo em si, no qual sempre poderemos nos apoiar e conseguir
transformá-lo em uma realidade palpável, mensurável que logramos, vez por
outra, compreender e dominar por esquemas racionais. O homem passou a ser não
ele mesmo, mas uma criatura ou uma criação inventada pelo lógos do progresso;
fomos reduzidos a certas fronteiras ou a certos horizontes; sofremos a violência do
entendimento racional do que antes sempre foi incompreensível. O indivíduo só é
alguma coisa, porque está dentro da história e a história é simplesmente tudo.
Enquanto o ser humano é neutralizado, a história ocupa o lugar do reino dos céus,
diviniza-se, enfim, torna-se absoluta e desconhece os limites antes apregoados
pelos gregos e cristãos.
La vida europea no admitía límites y se creía –el propio Hegel más que nadie–
haber llegado a la madurez de los tiempos, al momento en que todos los enigmas
han sido descifrados y el camino aparece libre; sólo falta recorrerlo y, por ello, la
acción necesaria –la única– será mostrarlo y descubrirlo. La filosofía volvía a ser
arquitectura. Y para los no creyentes en la filosofía, el camino estaría señalado por
la ciencia con un simple gesto indicador. Era el camino del progreso indefinido, ya
que el hombre había vencido definitivamente los viejos obstáculos. Y estos “viejos
obstáculos” no eran otros, no podían ser otros, que los levantados por la creencia
en la divinidad. El hombre se había emancipado. (ibid., pp.15, 16)
De acordo com Eduardo Subirats, a história como Ser absoluto marca uma
época final da consciência contemporânea, que se observa chegar ao limite
máximo do pensamento lógico de toda a nossa civilização ocidental. Esse seria o
discurso último do lógos da razão, que reduz a existência humana a um patamar
racional, alienado e negativo, a favor de uma realização do ser na história através
de um futuro virtual. Vejamos: a situação grega e cristã da felicidade no plano
espiritual ou além da realidade concreta não mudou, somente criou outros ídolos.
A nossa consciência moderna é trágica, porque sabemos que acreditar que a
202
história é a esperança da realização do ser é indefinidamente utópico e frustrante,
na medida em que a própria história se define pela insaciabilidade do
conhecimento e do sujeito. Cada vez mais, queremos ser melhores, ter produtos
mais eficientes, uma vida mais feliz, que se contrapõem à decepção destrutiva de
nossos sonhos de que sempre falta algo mais, pois nos enfrentamos
constantemente com a situação do incompleto, do infeliz, assim como vivia o
homem há milênios atrás. Se antes desfrutávamos de um sentimento de realização
ou satisfação pela crença no divino, na modernidade, vivemos a era da
negatividade da existência concebida como uma eterna promessa de realização do
ser, que não se concretiza no ser absoluto ou divino da história. O homem
moderno como o homem religioso voltou para dentro de si com uma diferença:
enquanto o homem religioso volta para dentro de si como um conforto e uma
segurança na salvação da alma e na conquista da plenitude, o homem moderno
volta para dentro de si e não encontra nada a não ser o desespero do vazio e a falta
de crenças em que se sustentar, percebendo que ele, como a história, não eram e
não podiam ser divinos. Assim como o homem grego e cristão queria a salvação
concedida pelos deuses ou por Deus, o homem moderno pretendeu salvar-se no
histórico e, acreditando na divindade da história, sacrificou os seus elementos
espirituais e éticos mais originários. O seu sacrifício, contudo, mostrou-lhe, na
meditação sobre o seu caminho histórico e racional, a sua limitação humana em
não poder ser Deus, o que lhe conduz a experimentar um sentimento dual de
fascínio e fracasso com relação à história, que o leva à uma busca incessante,
recriadora e destruidora de sua própria essência.
Era la revelación del hombre. Y al verificarse esta revelación del hombre en el
horizonte de la divinidad, el hombre que había absorbido lo divino se creía –aun no
queriéndolo– divino. Se deificaba. Mas, al deificarse, perdía de vista su condición
de individuo. No era cada uno, ese “cada uno” que el cristianismo había revelado
como sede de la verdad, sino el hombre en su historia, y aún más que el hombre, lo
humano. Y así, vino a surgir esta divinidad extraña, humana y divina a la vez: la
historia divina, mas hecha, al fin, por el hombre con sus acciones y padecimientos.
La interioridad se había transferido a la historia y el hombre individuo se había
hecho exterior a sí mismo. Su mismidad ahora transferida a esa semideidad: la
historia. Deidad entera como depositaria del espíritu absoluto, deidad a medias
porque, como los dioses paganos, estaba creada, configurada por el hombre. (ibid.,
p.17)
203
9.2. O homem moderno e suas relações com o divino
Em María Zambrano, as relações entre o homem e o divino na
modernidade
assemelham-se
à
conexão
vivenciada
no
mundo
antigo,
distinguindo-se somente no estabelecimento dos binônimos de ligação. Se no
mundo antigo, temos o binômio homem-Deus, no mundo moderno, encontramos o
binômino homem-história. De acordo com Eduardo Subirats, a história, ao
alcançar o seu máximo grau como Ser absoluto, aponta tragicamente o fim da
idade histórica ou o término da historicidade. Na modernidade, ironicamente,
levamos a efeito o projeto autodestrutivo da supremacia técnico-científica, que
nos atirou a um futuro abismático, decadente e niilista com respeito à ambição do
homem de ser mais do que objeto, instrumento ou matéria.
No vivimos en la prehistoria de un mundo mejor, sino que somos los
testimonios de la post-historia, portadores del estigma de una edad final. Por eso
somos “seguir siendo todavía”, un «Gerade-noch sein», un ser suspendido,
enfrentado a su no-ser, a su desaparición, a la nada; el hombre post-histórico es el
que contempla la historia, el futuro, como reino de la decadencia, o más aún, como
proyecto de autoanihilación. (SUBIRATS, E., 1987, p.97)
Definitivamente, María Zambrano leva-nos a pensar que, na verdade, o
homem nunca abandonou de todo o sentimento do divino, mas, com a
modernidade, criou outra religião sem Deus, não transcendente à figura do
homem. Criou, na realidade, a religião do humano, que ocupou o espaço vazio de
Deus, onde o nascimento do divino executa-se a partir da própria pessoa concreta.
Essas ideias provêm de toda uma filosofia trágica nietszcheana com a criação do
super-homem, a fim de preencher as lacunas de um outro mundo, de uma
sobrevida ou vida divina, da qual o homem pensava haver se libertado. A outra
vida ou a vida divina da qual o homem afirmava haver se emancipado foi refeita
na esfera do futuro e da história. O divino, de qualquer maneira, continua sendo a
porta do segmento metafísico irredutível do ser humano. A nossa realidade existe
em função da criação e, originalmente, toda criação é divina. Ocorre que, na
modernidade, aparece a consciência da criação. O que Zambrano deixa claro
também em El hombre y lo divino é que apesar da modernidade estabelecer o
trágico propósito de elevar o lógos racional em detrimento da anulação da figura
humana, esta continuou existindo e resistindo frente à sua própria tentativa de
esmagamento, assim como sempre foi também capaz de existir diante dos deuses
204
gregos e do Deus cristão, na medida em que lutou constantemente para escrever
uma memória repleta de confissões, de sentimentos contraditórios e de esperanças,
que a transportam a uma liberdade de pensamento e à aquisição de uma
consciência autônoma.
Como pudemos notar, o tema da religião é nuclear nas obras
zambranianas. Desde uma tradição clássica da antiguidade grega, o elemento
deífico integra uma senda vital do homem nos distintos âmbitos. Já escrevemos
que, em 1973, no prólogo à segunda edição de El hombre y lo divino, María
Zambrano (1993, p.9) comentou que o título dessa obra poderia ser o binômio
representante da totalidade da sua criação literária. No entanto, é evidente que El
hombre y lo divino adota um tom diferente ao abordar as peculiaridades
linguísticas e discursivas da enunciação zambraniana. Nesse texto, culmina um
gradual deslocamento das questões centrais desenvolvidas por María Zambrano ao
longo de sua obra ensaística. Se no início de sua criação artística, os seus
primeiros ensaios presentes na Revista de Occidente e em Hora de España
expressam uma intensa inquietação no que se refere a assuntos políticos e são
republicanamente apaixonados, a partir, sobretudo, de Filosofía y poesía,
percebemos que a preocupação com a política desvia-se a uma esfera secundária
não menos importante, porém, cede um espaço de destaque a reflexões de caráter
eminentemente filosófico, poético e metafísico. Enquanto a sua construção
enunciativa nas revistas é revestida por uma série de leituras da tradição filosófica
ocidental e saberes orientais, que reconhecem a importância cultural da literatura
espanhola para desvendar o ser espanhol e o ser da Espanha, em Filosofía y
poesía, em La confesión: género literario y método e em El hombre y lo
divino, vamos observando giros significativos da sua palavra que se impregna de
um maior subjetivismo autocriador da pessoa, independente, amorosa e livre,
aliado a uma irrefutável tendência místico-poética, sequiosa por conseguir uma
completude intrínseca impossível dentro de uma existência puramente racional.
Todas as obras de María Zambrano não ocultam as influências que
inspiraram as suas reflexões e a construção da sua maneira particular de pensar.
Entre essas relevantes fontes de conhecimento que contribuíram para a escritura
dos seus ensaios estão Hegel, Scheller, Bergson, Heidegger e, segundo
205
comentamos anteriormente, Ortega y Gasset. O nome de Hegel, inclusive, pode
ser lido nas páginas iniciais e o conjunto de perguntas “¿qué es lo histórico?, ¿qué
es lo que a través de la historia se hace y se deshace, se despierta y se aduerme,
aparece para desaparecer? e ¿es algo siempre otro o algo siempre lo mismo bajo
todo acontecimiento?” (ibidem, p.14) norteiam o desenvolvimento de El hombre
y lo divino. Profundamente adentrada nas esferas de uma filosofia racio-poética,
El hombre y lo divino, ao procurar respostas e revelações, coloca-nos diante de
problemáticas altamente modernas como a metafísica da identidade e do plural, do
que é único e múltiplo, do que é idiossincrático ou o ultrapassa, denunciando uma
alteridade. Para María Zambrano, o sagrado apresenta conexões muito estreitas
com a realidade. Na qualidade de uma instância metafísica última ou maior, o
sagrado favorece o ceticismo filosófico e o sentimento religioso. Segundo
palavras de Nieves Herrero, “lo sagrado se define por absoluta heterogeneidad y
discontinuidad respecto de lo humano, es «lo otro» por antonomasia, la alteridad
máxima.” (HERRERO, N., 1987, I) Em razão de que o sagrado se relaciona com a
noção de origem, somos levados a pensamentos de confusão, caos, trevas,
diversidade e abismo. No homem interior, a correlação metafórica do sagrado
refere-se às ‘entranhas’, ao ‘inconsciente’, em que María Zambrano escreve
aparecer “el sentir de la nada, la nada que no puede ser idea pues es lo que devora,
lo otro que amenaza a lo que el hombre tiene de ser, pura palpitación.” De acordo
com Nieves Herrero (ibidem), a construção da consciência, do pensamento, do
indivíduo estabelece parâmetros íntimos com o sagrado, na medida em que o ser
humano está constantemente sendo constituído por esse princípio da alteridade.
Segundo Nieves Herrero (ibid.), este é o ‘fundamento antropológico da sua
filosofia’, cuja inspiração está na razão vital de Ortega y Gasset.
Os ensaios zambranianos evidenciam a existência de um homem
incompleto, que necessita criar a sua vida e o seu lugar no mundo. Essa busca da
identidade dificilmente é alcançada, pois o homem está mediatizado pelo outro
sob a couraça de inúmeras formas ou máscaras. Configurar a Deus, dar forma ao
sagrado e convertê-lo em divino é uma missão do ser humano para María
Zambrano, em que a essência do objeto se articula ou se submete a uma intenção
do sujeito. No entanto, o sagrado notabiliza-se como o elemento mais primordial
206
se comparado a todas às figuras divinas. María Zambrano defende a essencial
transcendência e heterogeneidade do sagrado por ser uma realidade sempre
diversa que não se esgota na divindade ou a somente um dos seus símbolos. O
divino caracteriza-se pelo instantâneo e pela descontinuidade. Embora o sagrado
passe por sombras dentro da história, reaparece mesmo diante de todas as
resistências ao seu poder e à sua importância. Por meio do lógos da palavra e do
ser, é possível conseguir uma pretendida unidade na identidade. Conforme
assinala Nieves Herrero (ibid., II), o Ocidente particulariza-se pela tentativa de
incorporar o sagrado à história, a fim de divinizá-la pela negação do outro, que
acaba se identificando com a realidade, com o ser e com o pensar dentro do
âmbito de uma consciência racional. Em virtude desse processo para historiar o
sagrado, Nietzsche também proclama a morte de deus com a finalidade de imputar
uma sentença de morte à modernidade e seus projetos de emancipação da vida e
do homem. Na verdade, a transformação do sagrado em divino e, seguidamente,
em história resulta em uma destruição da esfera espiritual humana, posto que,
assim, a própria modernidade diviniza-se no intento de resgate do sagrado, desse
outro, da confusão ou do caos primeiro e da vida não sujeita à metamorfose que a
ideia de um deus da razão havia subjugado.
É interessante o asserto de Nieves Herrero (ibid.) de que é justamente
dentro desse ambiente que se manifestam as filosofias da alteridade, como o
marxismo, o freudismo e as filosofias de vida existencialistas em geral como um
modo de derribar a razão consciente. Como uma fenomenologia do espírito, a
ideia do divino instiga indubitavelmente uma noção do sagrado, o qual pode fazer
brilhar a luz, talvez santa e maldita, do conhecimento primordial, que, por sua vez,
figura o pressuposto fundamental da busca filosófica. O afã de desvelar a essência
sagrada traduz-se de diferentes modos e sob aspectos também diversos, como nos
deuses, no tempo e na história. Se antes o homem encontrava-se envolvido em um
universo sagrado incógnito, o despertar da consciência favoreceu ao indivíduo
assumir a história como um meio de construir a pessoa. Assim, o homem começou
a reorganizar a realidade e recebeu o desafio de responder as perguntas que, nos
momentos de instabilidade, os deuses já não ofereciam a solução mais
convincente e esperada. Essa autopercepção histórica é descrita por Zambrano
207
como a passagem de uma atitude poética a uma atitude filosófica, já que a poesia
aparece como uma possibilidade de resposta enquanto que a filosofia caracterizase pela pergunta. A polêmica provém do caos, de um vazio, de uma desesperança,
no momento em que a sabedoria consagrada já não ocasiona a satisfação da
dúvida. A inquietação filosófica tem o propósito de reestruturar o mundo e o
próprio homem. Tal ofício meditativo, incentivado pela análise crítica do discurso,
brinda, na opinião de Ruth Wodak e Michael Meyer (2003, pp.19, 20), o fundo
histórico indispensável à imagem de conjunto que antecipa o surgimento do
ensaio e da própria filosofia.
Em El hombre y lo divino, María Zambrano tem o objetivo de se afastar
de um negativismo moderno essencial com relação ao homem e à vida, a fim de se
voltar, esperançosamente, a um deus criador proveniente originalmente de uma
cultura grega clássica, que se renova na tradição judaico-cristã e se peculiariza
pela propagação do amor, da compaixão, da solidariedade e, sobretudo, do amor.
Na proporção em que esse Deus amoroso encarna a figura do sagrado, da
alteridade, notamos a abertura de um frutífero caminho em direção ao desejo de
transcendência plena do ser humano por meio da qual o homem pode encontrar-se
com uma perspectiva de infinito que sustente a construção da sua identidade na
‘intersubjetividade’ e o faça vencer a solidão moderna em que seu ser cindido e
niilista habita. Nessa obra, detectamos, em María Zambrano, uma atitude otimista
primordial, cujo sentimento afirmativo desconhece o racionalismo e defende a
criação da consciência: “[...] en los momentos de soledad, de esa soledad total que
adviene tras la experiencia del desengaño de las cosas y de su vacío, se hace sentir
la realidad –o su ausencia– como proveniente de un foco primario, viviente, sólo
él puede restituir la confianza y la vida.” (ZAMBRANO, M., 1993, p.301) Como
o amor dispõe de um lugar privilegiado na filosofia zambraniana, as
consequências do seu poder na vida do homem abarcam a necessidade da
existência ou a presença originária do divino, que se dá através de um deus de
criação sem o qual ou sem esse outro seria inviável chegar a ser em uma
identidade peremptoriamente dialógica e especular. Da mesma maneira que o
amor precisa ser nutrido ou construído por uma série de relações entre os homens
e com o mundo, a realidade, por esta ação, também é modificada por essa
208
aspiração única humana de criação e de crescimento, que facilita igualmente, por
sua vez, fundar a identidade. De acordo com a filosofia de María Zambrano, essa
edificação antropológica da identidade baseia-se na nostalgia e na esperança como
dois sentimentos fundamentais característicos da alma humana, que sugerem a
possibilidade de liberdade, porém, outrossim, reivindicam a noção de
responsabilidade que implica o ato consciente de ser e existir. A nostalgia referese ao passado paraíso perdido e a esperança alberga o conjunto de utopias que, ao
transformar a realidade, modificam, do mesmo modo, o sujeito e as suas
circunstâncias. El hombre y lo divino possui realmente como temática discursiva
principal o amor em que se articula o divino com o humano e o humano com o
divino com foco nevrálgico situado originalmente no conceito do sagrado como
contingência ambígua inerente, que reflete a realidade e o próprio homem
constituído, na sua essência, de contrapostos como destruição e criação, negação e
afirmação, abertura e hermetismo. Isoladamente, esses elementos são ineficazes e
remetem à pulverização da personalidade tão característica e vivenciada pelo
Ocidente. Somente na aceitação do real como um espaço de criação divino e
ambíguo, assim como pudemos discutir na herança de dom Quixote à cultura
espanhola e universal, é que existe a possibilidade de realização mais plena do
homem. Esse objetivo superior é o que persegue María Zambrano pela palavra
transformadora dentro do auge de sua obra representada, nesse trabalho, por El
hombre y lo divino.
O homem, portanto, não é simplesmente um ser histórico, incluído dentro
de um tempo que transcorre de maneira sucessiva com relação aos
acontecimentos; é, antes de tudo, um predestinado ao divino na transcendência,
cuja finalidade é alcançar ir mais além de si mesmo, em um constante estado de
trânsito rumo à continuidade da existência. A crença de que o homem é o
simulacro de um ser em condição de divinização na transcendência significa que
não terminou de se construir e, por conseguinte, irá prosseguir nessa missão de
autocriação a medida que existe. Se a ação de nascer sugere emergir de um sonho
divino, o ato de viver será, pouco a pouco, repensar outros sonhos pela força de
consecutivos despertares. A elaboração do indivíduo se sustenta na estrutura do
tempo circunstancial, no qual estão englobadas as conjunturas da subjetividade ou
209
da mesma atemporalidade psíquica. Com base no pensamento de que o sujeito não
está propriamente sob, mas sobre o tempo sucessivo, María Zambrano argumenta
que essa atemporalidade divina tornou viável uma revelação particular ou,
segundo a escritora, a ‘criação da pessoa’. Esses momentos de lucidez, obtidos
pela elevação transcendente do tempo da consciência, estabelece vínculos com o
divino, com a história, com a fenomenologia dos sonhos e com a razão poética,
que aparece, reforçamos, como um método discursivo filosófico da crise da
cultura moderna.
A razão poética, estilo utilizado por María Zambrano, revela-se como um
elemento fundamental para o resgate de uma consciência nos tempos modernos do
sentido capital que teve o divino na história da civilização. A constatação ou a
esperança do divino ao mesmo tempo em que causou ao homem terror e a
sensação de pequenez, o conduziu a vencer as suas próprias limitações e a crescer
com a busca de mais sabedoria e liberdade. Ao despertar da consciência, o homem
gera maneiras diferentes de visibilidade, que instituem uma ação ética por
excelência diante de sua contingência vivencial. Esse discernimento adquire
relevo em um momento em que a severa confiança no racionalismo fragiliza o
espírito humano e lhe oculta outras dimensões vitais. O pensador é, como profere
Silvio de Lima (1944, pp.17, 18), um inquisidor de verdades, que se atreve a ser
alguém que se expressa com um tom pessoal e não somente como um eco, o que
constitui, sem dúvida, uma revolução de si mesmo e de tudo o que lhe rodeia.
A situação histórica do homem na cultura moderna, afirma Eduardo
Subirats, “es la falta de ser, la nada”, instaurada por um efeito redutor puramente
racionalista (SUBIRATS, E., 1987, pp.95, 96). O eu, carente de dimensões
íntimas, realiza uma projeção da sua interioridade à história, ato que transpõe a
sua ‘mismidad’ ao exterior do sujeito. O conceito de semideidade com referência
à história compreende que a vida e a consciência humana estão lançadas ao futuro
(ZAMBRANO, 1993, p.21), onde o homem tem a incumbência de dotar de
sentido a sua existência. A luta que enfrenta o indivíduo, de acordo com Leonardo
Cammarano, não alcança as coisas, mas aos problemas que surgem, quando as
meditamos: “El hombre se hace independiente de los dioses; y se crea su propia
soledad. La vida, otro tiempo colmada de dioses, tiende a hacerse nuevamente
210
vacía. Se intenta colmar este vacío emergente con el “proyecto de ser hombres””.
(CAMMARANO, L., 1987, p.102)
O fato de o homem haver se liberado dos deuses colocou-o, em
contrapartida, diante de um deus desconhecido, que se manifesta ciclicamente,
proveniente de uma situação primeira.
Desde los dioses primeros hasta el ser filosófico, ya ex-puesto, ya im-puesto,
transcendente, inmenso o inmanente lo divino ha peregrinado a través de las
ondulaciones de la historia revistiendo formas diversas, y alternando sus furtivas
apariciones con períodos de total oscuridad. En aquellos momentos, desde una luz
que se pretendía absoluta, el hombre creía apoderarse de la oscuridad, acotándola
en sus nombres, dándole fomas que quería definitivas. La caída de los ídolos sume
siempre en una terrible angustia, la misma que impele a dar sentido, y promulga
una nueva curva de la historia, un nuevo título de soberanía, nuevas leyes de
vasallaje. (MAILLARD, C., 1987, p.124)
Em meio às novidades da época moderna, o divino assenta as suas raízes e
se atualiza no futuro. A razão poética zambraniana desponta como uma veia
questionadora
em
um
ambiente
regido
pelo
cientificismo,
pois,
incontestavelmente, a modernidade laica não corresponde a uma especificidade
cultural e literária espanhola.
A razão poética, como discurso filosófico, procura recuperar uma
perspectiva pessoal interior, que esquadrinha uma luz auroral, inusitada e
surpreendente, como um claro no bosque, que representa o alvorecer da
conscientização. Dita visão poética amalgama razão e coração, a fim de que o
sujeito esteja presente na vida com toda a plenitude possível.
As reflexões filosóficas empreendidas pela escritora espanhola por meio
da razão poética estimulam a identificação de traços metafísicos na natureza,
defendem a ideia de uma realidade divina na alma e apregoam uma atitude ética,
que trata de perseguir o autoconhecimento humano. É transparente a intenção de
lograr, a partir da comunhão da filosofia com a literatura, a evolução interior e
experiencial do sujeito, que se contempla, em certas ocasiões, desestabilizado em
meio às suas circunstâncias, das quais é inegavelmente testemunha. Como uma
história de diversos testemunhos, a filosofia ocidental cumpre o papel da
indagação e da celebração da dúvida herdada dos gregos e María Zambrano não se
distanciará desse legado.
211
O sentimento do divino esteve assiduamente, de uma forma ou de outra,
incorporado à modernidade vivida na Espanha e irá apresentar fortes imbricações
com o ensaio, atividade à qual se ocupou tão densamente María Zambrano, com a
intenção de refletir sobre assuntos filosóficos, artísticos e históricos. A
fenomenologia do divino encontra uma possível definição em Chantal Maillard
(1987, p.124) como uma persistente e confusa busca do ser, que pretende vencer a
cisão do paraíso perdido e recompletar-se em uma (re)união sagrada, que
pertencia ao homem antes da queda adâmica e, portanto, anterior à consciência de
si.
A religião, inegavelmente, não foi indiferente a esses desassossegos
relacionados a uma dimensão constantemente ausente da alma humana, originária
de uma sensação de incerteza, cujos parâmetros se mostram inerentes às
circunstâncias do homem moderno. Deus, em amplo sentido, segundo Miguel de
Unamuno, não é uma necessidade racional, porém uma condição urgente e
imprescindível do ser humano. O sentimento do divino pode eclipsar-se ou moverse a outras ideias em alguns momentos, contudo, é indissociável da vida, visto
que, como uma das bases primordiais da existência, simboliza, conforme
preconiza Georges Bataille (1980, p.16), o trâmite da descontinuidade em direção
à continuidade, da vida rumo à morte, em um rito que anseia uma elevação ao
sublime.
212
10. CONCLUSÕES
Por meio de uma perspectiva diacrônica, que intencionou dar conta de
uma trajetória de pensamento, analisamos alguns dos ensaios de María Zambrano,
articulando o referido gênero ensaístico com o ideário da modernidade e o
sentimento do trágico renascido e reatualizado em virtude de uma nova visão de
mundo. Na pesquisa, esse alinhamento de bases teóricas – ensaio, modernidade e
trágico – tornou possível comprovar que o pensamento filo-poético de María
Zambrano relaciona-se à uma releitura crítica da história e da tradição literária
espanhola no século XX. Ao longo do trabalho, pudemos observar que os ensaios
filosóficos zambranianos foram adquirindo novos contornos, passando de
preocupações filosóficas associadas a um compromisso político com a República
espanhola, verificadas no estudo dos textos que realizamos na Revista de
Occidente e em Hora de España, a meditações filosóficas, poéticas e metafísicas
em torno do homem e do seu estar no mundo. Essas transformações na sua forma
de pensar ocorreram, sobretudo, em função dos muitos anos de exílio vivenciados
pela escritora, nos quais teve a oportunidade de criar obras de relevo como
Filosofía y poesía, La confesión: género literario y método e El hombre y lo
divino. A ideia do trágico nos ensaios de María Zambrano, além de responder a
uma condição do homem dentro do contexto da modernidade, refere-se
igualmente a uma experiência desastrosa ou mesmo trágica da autora no seu
tempo. Os diversos sucessos funestos que abalaram a Espanha nas primeiras
décadas do século XX fizeram com que a ensaísta se sentisse tanto perdida DO
mundo moderno em que vivia, como também perdida NO mundo, isto é, distante
do seu país de origem, tendo em vista a sua partida voluntária da Espanha e a sua
passagem por várias cidades da Europa e da América. Para essas reflexões
teóricas sobre o discurso ensaístico, a problemática da modernidade e o
sentimento do trágico moderno, escrevemos o segundo e o terceiro capítulo dessa
tese, a recordar: “O ensaio como uma escritura do século XX” e “Um conceito
diferente do trágico”, respectivamente. No quarto capítulo, “María Zambrano na
República e na guerra civil”, pareceu-nos conveniente fazer um resumo do
conflito espanhol mais traumático antes do segundo enfrentamento mundial e seus
antecedentes históricos, a fim de ilustrar as circunstâncias temporais que
envolviam
a
autora
malaguenha
e
a
sua
escritura,
213
influenciando-as
profundamente. Dentro desse quarto capítulo, ainda, dissertamos sobre a
importância das revistas literárias espanholas do início do século XX, cuja índole
vanguardista favoreceu a distintos escritores, inclusive, a María Zambrano,
desenvolver um pensamento artístico inovador.
Na Revista de Occidente, estudamos o ensaio “Por qué se escribe” (1934)
com o intuito de apresentar o primeiro texto filosófico zambraniano, que localiza
a autora antes de 1936. Através desse ensaio, deduzimos que a solidão é um
requisito indispensável do artista, para que possa refletir e dar vazão à
irrenunciável vontade/necessidade de escrever e, assim, comunicar os seus
pensamentos, as suas emoções e os seus desejos, enfim, revelar ao outro o milagre
do seu segredo de ser e de existir. A fim de preparar o leitor para a análise de “Por
qué se escribe”, nos remetemos a dois outros ensaios anteriores escritos por María
Zambrano também na Revista de Occidente: “Hoffmann: «Descartes»” (1933) e
“Robert Aron y Arnaud Dandieu. «La Révolution Nécessaire»” (1934), pois
julgamos que esses ensaios delineavam relevantes conceitos relacionados ao
pensamento estético zambraniano, antecipando a construção de “Por qué se
escribe”.
No quinto capítulo, “Diálogos com a tradição espanhola”, discutimos a
escritura de ensaios para a revista Hora de España, que exprimem um ponto de
vista filosófico-crítico sobre a história e se sustentam na herança cultural literária
da pátria da ensaísta. Selecionamos os ensaios “La reforma del entendimiento
español” (1937) e “Misericordia” (1938), onde María Zambrano tratará, por meio
de dom Quixote, a obra de Miguel de Cervantes e, através das personagens
Fortunata e Benigna, a obra de Benito Pérez Galdós. Averiguamos também a
relação existente entre Benito Pérez Galdós e Luis Buñuel, figuras com
concepções artísticas aparentemente tão diferentes, mas, ao mesmo tempo, com
várias linhas convergentes, visto que o cineasta espanhol produziu Nazarín
(1958) e Tristana (1970), filmes baseados em duas obras importantes do escritor
canário com o mesmo nome. Buñuel interessava-se pelas obras galdosianas por
considerá-las a expressão de um realismo capaz de questionar a própria ordem do
real.
214
Para essa pesquisa, surgiu-nos a ideia de pensar um sexto capítulo com a
denominação de “Uma fala com a contemporaneidade” para fazer referência ao
poema “Díptico español” do poeta sevilhano Luis Cernuda, que compõe a obra
Desolación de la Quimera, publicada em 1962. Essa análise serviu como outra
perspectiva sobre a figura de Galdós, que além da Espanha, de suas tradições e
crenças, aparece, no texto, como um exemplo de um passado glorioso espanhol.
O sétimo capítulo, “A experiência intelecto-emocional do exílio”, abordou
Filosofía y poesía (1939), obra lançada durante o desterro voluntário da ensaísta
iniciado precisamente nessa data. Apesar da distância em sua estada por diversos
países da América e da Europa, como México, Porto Rico, Cuba, Roma e Suíça,
María Zambrano sempre revelou interesse e preocupação pela Espanha e seu
povo, jamais abandonando as suas meditações que, nessa obra, metaforizam tais
angústias, por meio de lucubrações sobre a ética, a mística, a metafísica e a poesia
na história ocidental da filosofia, polemizada esta, em suas origens, por Sócrates,
Platão, Kierkegaard e outros pensadores originários. Daí o fato de havermos
defendido com María Zambrano que o pensamento, a filosofia e a poesia
necessitam unir-se por estabelecerem diálogos que constituem paradoxalmente a
realidade em toda a sua riqueza, amplitude, abstração e concreção, posto que
complementam, de maneira holística, o estar agônico do homem no mundo e em
si mesmo.
No oitavo capítulo, de nome “A confissão autobiográfica no ensaio”, por
meio da obra La confesión: género literario y método (1943), tivemos o
objetivo de verificar como María Zambrano articula o ensaio e a autobiografia
confessional para representar a crise entre a existência e o racionalismo da
modernidade. Nesse capítulo, reiteramos que as relações entre a vida e a criação
literária de María Zambrano são muito claras e como a sua história foi construída
a partir de conflitos e crises, La confesión: género literario y método aparece
focada no conhecimento espiritual e no saber da alma, alicerçados,
principalmente, nas confissões de São Agostinho e de Job, com a intenção de
procurar compreender o sentimento angustiante de estar perdido tanto no mundo,
como também do mundo. O estudo dessa obra pareceu-nos relevante no sentido
de que anuncia o encaminhamento filo-poético do pensamento zambraniano em
215
direção ao desejo de transcendência, tema do nono capítulo do nosso trabalho.
Assim, como última etapa do corpus dessa pesquisa, nos dedicamos ao estudo de
um dos livros mais insignes de María Zambrano, El hombre y lo divino (1955).
Essa obra, conforme o título, trata do binômio original homem-divino brutalmente
separado pelas diversas contingências do tempo e da existência. María Zambrano
conduziu as nossas reflexões no sentido de que, na vida humana, é uma
necessidade pensar sobre a presença do divino, visto que a percepção de
elementos anteriores ao homem ou o seu mistério invade o imaginário coletivo
desde tempos muito distantes.
María Zambrano faz parte de uma geração de escritores que vivenciou
momentos importantes da vida espanhola. A autora assistiu ao governo totalitário
de Primo de Rivera, participou dos sonhos por concretização da República,
presenciou os anos da Guerra Civil Espanhola e viu subir ao poder o governo
franquista. Assim, nos anos 20 e 30 do século passado, a história espanhola passou
por uma série de avatares que marcou um sentimento de tragicidade correspondente
a uma situação moderna que María Zambrano recriou em suas obras. O nosso
propósito foi estudar o conjunto da obra ensaística da autora malaguenha por etapas
de nenhuma maneira rígidas, pois foram condicionadas por diversos fatos
contundentes da história da Espanha, que edificaram o percurso progressivo de um
pensamento. Como uma escritora comprometida com o seu tempo, María Zambrano
colocou o sentimento do trágico em suas obras, tomando diferentes prismas de
contemplação: a filosofia, a decepção política com o fracasso republicano, a
escritura poética no exílio e a busca por reconstruir uma transcendência perdida
com o rompimento da antiga concepção do divino.
Esse sentimento trágico característico da modernidade manifestou-se em
escritores espanhóis predecessores estudados pela autora como Miguel de
Cervantes e Benito Pérez Galdós. Concluímos também que esse sentimento do
trágico configurou-se como uma característica peculiar da literatura espanhola no
século XX. Por isso, nos valemos de uma perspectiva diacrônica dos ensaios de
María Zambrano que pudesse comprovar essa assertiva. Ainda dentro do conceito
do trágico, gostaríamos de observar que María Zambrano, como Miguel de
Unamuno, acabou construindo uma figura de herói trágico, que luta sem
216
esmorecer diante dos revesses da existência. Sabemos que, sobretudo, a partir do
século XIX, o mito do intelectual tornou-se uma figura assaz importante dentro da
literatura ocidental e imprimiu uma responsabilidade do escritor com a sua época,
que outorgou as características de um herói épico invencível no âmbito da ficção
e, por que não dizer, da vida.
O ensaio, como gênero, serviu a María Zambrano como um instrumento
literário reagente a uma situação totalitária que contrasta, mas, ao mesmo tempo,
combina com sucessos curiosamente acontecidos na modernidade, como os
governos ditatoriais, a violência, as guerras e segregações de todo tipo, social,
política, étnica. Em um momento em que deveria predominar uma consciente
ilustração, a modernidade tornou-se alvo de ataque de suas próprias propagandas
alienantes e passou a questionar e contradizer os seus próprios supostos de
fundação. Na contramão da objetividade desejada pelo pensamento moderno,
María Zambrano ambicionou construir uma imagem subjetiva e extremamente
singular de escritora ao utilizar o ensaio como um recurso que prima pelo realce
da figura do sujeito cindido e quase sem fé que transparece, a todo o momento, a
certeza de uma flexibilidade do conhecimento. Isso pode explicar certo tom
trágico de melancolia, derrota e fracasso que assistimos na leitura da sua obra,
principalmente se tivermos em conta que, como o ser humano, todas as questões
que o rodeiam quase sempre se diferenciarão pelo inacabamento e pela decepção
diante da busca de uma completude ou de uma felicidade plena impossíveis ainda
mais nos dias conturbados de hoje, onde nada é certo ou errado o suficiente e a
presença do outro no mundo, na forma de um escritor, crítico ou intelectual,
funciona como a contracara de todo e qualquer conceito antes defendido. Essa
atitude é própria da dialética ou da ‘multilética’ do discurso empreendido por um
sujeito em crise e Zambrano, na sua obra, perseverou no pressuposto de que a
modernidade, mais que nunca, precisava admitir e aceitar seus aspectos falíveis,
atendendo ao exercício saudável da renovação perene do dizer-escrever. O desafio
da autora esteve justamente em compatibilizar eu histórico, eu ficcional, texto
filosófico-literário e o mundo circundante que habitava relacionados a um vasto e
erudito conhecimento da Cultura do seu tempo.
217
Grande parte dos ensaístas literários pertencentes ao século XX
estabeleceu íntimas relações entre quatro características fundamentais para a
lapidação do seu texto, a saber: confessar-se publicamente, persuadir, informar e
criar arte. O tom pessoal, conversacional, persuasivo e estético do ensaio
viabilizou radiografar culturas dos mais diversos países e regiões. O discurso
ensaístico apresenta-se como uma literatura possuidora de uma funcionalidade
sócio-histórica definida mais pelo conteúdo do que por uma forma artística
precisa. Seguindo essa perspectiva, esse conteúdo evidentemente implica o
compromisso com uma interpretação de alguma realidade em especial. Como
qualquer contexto, o contexto espanhol apresenta um quadro bastante peculiar, no
qual o ensaio aparece como um campo de investigação amplo e multifacetado,
que pode abordá-lo a partir de conceitos, temáticas e modos variados.
Se a literatura representa uma forma de pensar o mundo a partir da
indagação contestadora, que a circunscreve dentro de um panorama de crise da
modernidade, onde se manifestam a melancolia e o fracasso trágico em torno do
sujeito, das suas circunstâncias, da transcendência e da palavra, a qual tangencia
incansavelmente a descoberta e gravita ao redor do conhecimento, o ensaio e a
filosofia irão assumir esse discurso da constatação de uma impotência e de uma
insatisfação em relação à uma situação histórica de sucesso e de ruína que se quer
observar e problematizar. O progresso e a ciência brindaram ao homem uma
paradoxal condição desde a perspectiva do seu presente: ao mesmo tempo em que
a potência criadora da revolução industrial obsequiou um sem número de avanços
tecnológicos, não foi capaz de solucionar os mais íntimos conflitos humanos da
existência. As conquistas materiais não tornaram o homem pleno, tampouco lhe
trouxeram o sentimento de felicidade dentro da sua própria existência. A
prosperidade ocorreu em certos setores da sociedade, porém não afetou o ser
humano em sua essência espiritual original. O grande impasse da humanidade
encontra-se no anseio de responder as suas aflições mais primordiais. Esses
dilemas aterrorizam a existência, em virtude do fato de que o homem não evoluiu
mental e moralmente o bastante para realmente compreender as raízes do seu mal
estar na civilização. O conhecimento na modernidade cresce a uma velocidade tão
espantosa que temos a impressão de que somos cada vez mais ignorantes, mais
218
insuficientes, mais pouco desenvolvidos. Entretanto, a simples identificação de
suas angústias não ajudará a que o homem se salve; é ainda indispensável que
consiga reunir forças e coragem para fazer o que precisa, a fim de se sentir mais
venturoso e não repetir os mesmos equívocos. Tais reflexões filosóficas frutificam
no discurso ensaístico, o qual se peculiariza pela dúvida, pela polêmica e pelo
espírito crítico, onde o eu do autor procura conhecer-se a si mesmo por meio de
um método intelectual estético de auto-experimentação e auto-exercício, que
almeja divulgar e persuadir o outro com a sua opinião pessoal, com um ponto de
vista subjetivo.
Em María Zambrano, questões como a decadência da cultura moderna
ocidental, calcada simultaneamente no fascínio e na decepção trágica, exercidos
pelos logros científicos, e a ausência de valores individuais e espirituais na
civilização mostraram-se extremamente presentes por meio de uma proveitosa
conjugação entre o ensaio, a filosofia e a poesia. O papel do escritor, sem dúvida
alguma, adquire uma significação ímpar e comprometida dentro do discurso
ensaístico, na função de um intelectual que intenciona contemplar criticamente a
sua sociedade.
A relação do homem com o ‘divino’, como um meio de fazer resplandecer
as luzes de uma verdade pessoal possível, é, de fato, uma constante no ensaio
literário de María Zambrano, além de figurar uma idiossincrasia da própria cultura
espanhola. A busca filosófica por uma espiritualidade primordial, presente na
escritura zambraniana, atende a um descontentamento, com respeito a um
momento histórico, onde o trágico sentimento da falta, apesar das conquistas
materiais e científicas, manifesta o anseio de desvelar uma essência sagrada
humana, que se traduz de múltiplas maneiras, sob aspectos que podemos
denominar como o ‘divino’, o ‘tempo’ ou a ‘História’. A ensaísta, ao procurar
decifrar a própria face, a própria personalidade através da ação escritural,
reconhece que o gênero ensaístico, por sua liberdade investigativa, temática e
estética, revela-se como um caminho favorável para, a partir da experiência
individual, explorar, assim, as particulares situações da condição humana. O
ensaio, ao propiciar um questionamento e uma reflexão sobre temas filosóficos,
existenciais, religiosos, artísticos e históricos, descobre, nas mazelas da
219
modernidade, um rico pretexto para instituir identificações. É sabido que a
religião não foi indiferente à dúvida, a qual é inerente ao homem moderno e a
tudo o que o cerca. A crença na religião não é uma necessidade racional, mas sim
um requisito em alto grau urgente e imprescindível do homem, da alma humana,
pois é inseparável da vida comum; é a base da existência e representa uma
tradição como um canal de passagem da vida para a morte, em um ato de elevação
ao sublime. O ensaio, enfim, como um vetor para a construção de uma
subjetividade moderna em crise, favorece a discussão das vantagens e dos
infortúnios impostos pela revolução industrial na modernidade, que vêm
acometendo o homem nos dois últimos séculos, por meio de um apelo a uma
instância religiosa que o salve, pelo menos esteticamente, de seu destino último e
inexorável.
Ao desempenhar um papel de leitora de obras e autores espanhóis, entre
outros, María Zambrano transformou a sua própria leitura em literatura, por meio
da escritura de ensaios. Com todas as teorias sobre a construção do texto, a veia
ensaística é grandemente utilizada pelos pensadores na modernidade. Entre
autores renomados dentro da literatura espanhola, podemos citar Miguel de
Unamuno, Américo Castro, Francisco Ayala e o próprio Ortega y Gasset, os quais
provaram que a literatura e a filosofia se associam de maneira fecunda no ensaio.
María Zambrano, alinhando-se à essa via capital de expressão em constante
atualização, que também influenciou o ideário espanhol, não se distanciou dessa
tendência ensaística da modernidade. A autora, por meio do discurso ensaístico,
argumentou sobre temas extremamente prósperos dentro da literatura espanhola,
como a subjetividade trágica moderna e a sua construção artística, conectados a
um intento de compreensão do homem espanhol e de suas características mais
profundas. É sobressalente, outrossim, a abordagem zambraniana da noção do
divino, da experiência religiosa perpassando a prática estética e da crença de que
o homem não é explicável, tampouco inteligível excluído de sua contingência
histórica, bem como a observância de uma vocação espanhola, sobretudo após o
século XVIII e a crise do sistema, de desenvolver o ensaio filosófico-literário.
A obra ensaística de María Zambrano almejou promover, dentro de uma
sociedade moderna decadente em seus valores individuais e espirituais, um
220
encontro com a conscientização ao propor a dúvida e o questionamento, traços
distintivos cruciais para a construção do discurso que a autora levou a cabo.
Enquanto o desconhecimento faz com que ‘Deus’ ou o ‘destino’ conduzam a
existência, o despertar da consciência mostra ao homem o dever de assumir a
responsabilidade sobre si mesmo como sujeito de sua própria história. O falar do
ensaísta, com o motivo de estar dotado de uma inflexão pessoal, apresenta a
imagem de um sujeito artístico único e tremendamente cambiante, o que lhe
garante registrar uma marca de escritor inconteste no mundo, que ultrapasse as
fronteiras do tempo, repercutindo, assim, no viver alheio ao legar ao outro a sua
herança. Essa relatividade com referência a uma personalidade diferenciada e com
atributos muito particulares é que permeia uma apreciação subjetiva à escritura
ensaística, conferindo-lhe um caráter inédito e original, o qual lhe imprime um
posicionamento
relevante
como
um
modo
de
enunciação
no
mundo
contemporâneo.
O problema fundamental que preocupou María Zambrano trata-se de
humanizar a história, fazendo com que a razão se converta em um veículo
adequado para o conhecimento de uma realidade preeminente que para o homem
é ele mesmo. Como contemplador de sua imagem, o homem gera os seus
problemas e surpreende-se com a sua confusão e com a sua diversidade interior,
destinando-se a uma autognose e a ser o seu próprio objeto de estudo. Embora o
homem, como matéria-prima de si mesmo, não consiga escapar de um
entrelaçamento com o tema da vida e, portanto, com o tema do mundo e da
história, a visão desse contexto é, indubitavelmente, uma construção estética do
ensaísta. No que toca ao ensaio zambraniano, o homem, para libertar-se do pavor
aniquilatório existencial, deslocou, na modernidade, suas esperanças a um ‘deus
desconhecido’ chamado ‘futuro’, ambicionando responder ao racionalmente
incompreensível e reconciliar-se, esteticamente desde uma perspectiva filosófica e
trágica, com o irreconciliável, com o divino.
Como profunda pensadora da existência, María Zambrano, dentro do rol
dos grandes ensaístas espanhóis, contribuiu significativamente para a ideia de que,
no homem, o apetite de se ‘decifrar’ e de se ‘sacralizar’ parece ser um fenômeno
natural e progressivo dentro da história, já que realmente existe uma irresistível
221
inclinação humana em incorporar o divino à vida. Frente ao incognoscível futuro,
a autora chegou à conclusão de que o desígnio do homem, na atualidade, é o
‘projeto de projetar’ a própria individualidade metafísica, como uma forma de
vencer o tempo e imprimir uma singularidade à sua existência histórica.
María Zambrano, ao se referir a nomes e obras cruciais da literatura
espanhola, por meio do recurso da citação direta ou implícita, conseguiu uma
credibilidade para os seus argumentos pela palavra pretérita alheia. O passado,
como tudo o que o constitui, inclusive a literatura, pode ser lido de maneira
diversa de acordo com o tempo, mas sempre um ou outro dirá que, em uma
interpretação ou outra, haverá certo efeito de realidade. A verdade não existe sem
a mentira, se entendermos que a aprovação de uma tese refuta imediatamente as
demais, cujas esferas são também aceitáveis e socializam uma verossimilhança
histórica e ficcional provável. Com a permissão de duas citações importantes nas
conclusões, fora o desejo, em geral, de estandarização, a cultura, conforme
salienta Clifford Geertz (GEERTZ, 1988, p.89), compõe modos de linguagem
transcendente de utilização compartilhada, provistos de significados variados
manifestados por simbologias ou concepções tradicionais vindas de muito antes
por onde o homem se comunica, reforça e constrói o saber. A leitura zambraniana,
que se transformou em escritura ensaística, funcionou como um canal de
comunicação histórico, crítico, cultural e filosófico entre o que aconteceu, o que
acontece e o que acontecerá. Naquela época, a inexistência efetiva de uma
reforma do pensamento e do Estado teve como sequela o fato de que o
entendimento da sociedade espanhola tenha encontrado abrigo no romance e que
o modelo de homem perfeito tenha se assentado na ficção quixotesca. O romance
espanhol, segundo estas noções, foi fundamental para registrar e salvaguardar a
própria história da Espanha. O romance, julga Roberto Sánchez Benítez (2002,
p.98), surge como um ato revolucionário que quer apressar o passado e tornou
possível a María Zambrano esquadrinhar as razões e as ‘desrazões’ do seu tempo.
Dentro dos caudalosos estudos literários sobre autores espanhóis, a obra
ensaística de María Zambrano carece de um olhar crítico que conjugue a sua criação artística com os alicerces da construção de uma subjetividade trágica na modernidade e com o desenvolvimento de um pensamento filosófico peculiar, que a
222
coloque em um patamar de originalidade e distinção reflexiva. As publicações levadas a termo até o presente momento tratam os pilares dessa Pesquisa isoladamente. Existem excelentes trabalhos monográficos sobre a escritora espanhola,
que refletem sobre a relação entre filosofia e poesia, sobre o ‘sagrado’ e o
‘divino’, sobre a fenomenologia do sonho vinculado à criação, sobre a literatura
como conhecimento e revelação. A relevância do ensaio zambraniano, contudo,
como uma representação significativa na modernidade de determinadas linhas
mestras que integram e atualizam uma tradição nacional do pensamento literário e
da cultura espanhola ainda não foi suficientemente vislumbrada pela crítica. Por
meio de seus ensaios, María Zambrano apreciou, de maneira indagadora e dubitativa, pelo recurso da contestação, as nuances da realidade espanhola desde um
ponto de vista histórico e cultural, o qual permitiu delinear certas ideias primordiais referentes a uma mentalidade desse povo peninsular, com respeito a uma compreensão do existir trágico do homem moderno como sujeito, juntamente a uma
observação filosófica de todos os fatores que, pertinentemente, colaboraram com
o êxito desse entendimento.
A criação ensaística da autora espanhola instaura reflexões sobre história,
filosofia, subjetividade e literatura, lançando um olhar crítico às obras de um
número notável de autores. Zambrano conseguiu vislumbrar as produções
artísticas de diversos escritores como uma representação de uma série de mitos
espanhóis. María Zambrano abordou com aguçado olhar crítico a literatura
espanhola, buscando salientar alguns de seus temas ícones e evidenciou o desejo
do homem não somente espanhol, mas também europeu pela criação de uma
subjetividade, que leve em consideração a razão e o coração, o homem e o divino.
Por meio da articulação entre o céu e o inferno anímico torna-se possível alcançar
a transcendência existencial, meta inconteste do homem frente às limitações de
sua contingência histórica.
Nas obras da escritora, pois, a razão vital indubitavelmente está submetida
à razão poética, a qual se apresenta como método de escritura e de reflexão a
partir dos pressupostos orteguianos da crítica do racionalismo, do entendimento
do pensar da civilização como uma realidade que se impõe e do perspectivismo. A
razão vital de Ortega y Gasset quis superar tal descompasso ao unir o
223
racionalismo e o vitalismo. A partir da evidência de que o homem não podia
considerar-se independente de suas circunstâncias e de que a vida concretamente
é uma realidade única e radical na sua tragicidade, o homem possui a missão de
dotar de sentido a sua existência. A razão, por conseguinte, não pode fundar suas
bases em um constructo abstrato, porém deve apregoar um modo de ser do
homem na sua vida, na sua história, em que o fenômeno estético da imaginação
possa sobrepor-se a essa pirâmide e também encontrar um terreno fértil para o seu
desenvolvimento. A razão poética foi uma maneira de pôr em prática a razão vital
em um discurso aberto, inquieto e primordial em um mundo regido por uma
racionalidade científica, que escamoteia outras dimensões da existência sob falsas
assertivas.
María Zambrano conduziu-nos a contemplar o sujeito, a partir de uma
trajetória histórica de sua construção, com seus questionamentos e reformulações
conceituais. Urge a importância e a necessidade de se estudar a formação da
subjetividade
moderna
em
base
às
suas
determinações
históricas.
Indissociavelmente ao tema do sujeito na modernidade, deparamo-nos com a
problematização da verdade. De modo diferente de outros autores, em María
Zambrano, as incertezas não são retóricas, mas revelam questões verdadeiramente
modernas, cujas respostas absolutas ou seguras inexistem. Na escritora espanhola,
não observamos o simulacro da dúvida, porém a genuína angústia do
desconhecimento.
O ensaio filosófico zambraniano é uma tentativa do homem no sentido de
se relacionar com a ‘verdade’, entendida como coerência, adequação, descoberta,
veracidade ou confiança. Quando se considera a ‘verdade’ como algo já
conhecido no passado ou alcançado no presente, a tarefa que incumbe ao filósofo
é a de comunicar essa pretensa certeza revelada. María Zambrano empenhou-se
em uma constante luta para saciar as dúvidas existenciais e para descobrir
‘verdades’ através de suas obras ao refletir sobre a vida por meio de uma visão
poética, a qual nos conduz às suas ideias sobre a alteridade em nossa própria
época. A ficção e a literatura provêm da vida, do homem e é por esse motivo que
nos identificamos com a arte de maneira geral. O exercício ensaístico e filosófico
zambraniano aparece como um extraordinário esforço humano indispensável em
224
articulação com uma revelação íntima e divina, que aspira a fazer com que o
indivíduo reconheça em si mesmo a magnitude da existência e os mistérios da
alma que a envolvem, compreendendo, em definitiva, que é irremediavelmente
fruto importantíssimo de suas contradições, de sua inescapável tragicidade, de
suas inseguranças, de sua cultura e da sedução e influência criadora que a história
mais do que nunca provoca na produção literária moderna.
225
La palabra es por encima de todo el
lugar donde el hombre busca la transparencia de
su vida.
MAILLARD, M. L., 1997, p.196
226
11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABELLÁN, José Luis. Historia crítica del pensamiento español. Madrid:
Espasa-Calpe, 1979-1991. 7 v.
______. María Zambrano: una pensadora de nuestro tiempo. Barcelona:
Anthropos, 2006. 130 p.
______. María Zambrano y el exilio. In: MORA GARCÍA, José Luis; MORENO
YUSTE, Juan Manuel. Pensamiento y palabra en recuerdo de María
Zambrano (1904-1991). Contribución de Segovia a su empresa intelectual.
Valladolid: Junta de Castilla y León, Consejería de Cultura y Turismo, 2005,
pp.51-61.
ADORNO, Theodor W. Notas de Literatura I. Tradução e apresentação Jorge de
Almeida. São Paulo: Duas Cidades, 2003. 173 p.
AGUILERA PORTALES, Rafael Enrique. La crítica literaria como crítica
filosófica y cultural. KONVERGENCIAS Filosofía y Culturas en Diálogo, Año
V,
Nº
16
Tercer
Cuatrimestre
2007.
Disponível
em:
<http://www.konvergencias.net/aguileraportales152.pdf>. Acesso em: 18 nov.
2009, 14:57:12.
ALBERCA, Manuel. En las fronteras de la autobiografía. Universidad de
Málaga, 1999. Diponível em:
<http://www.uhb.fr/alc/cellam/soidisant/01Question/Analyse2/FRONTERA.htm>
Acesso em: 15 nov. 2007, 15:42:07.
ALBORNOZ, Suzana Guerra. A felicidade prometida – segundo Ernst Bloch.
Disponível em:
<http://www.celpcyro.org.br/v4/Escritores_Gauchos/AFELICIDADEPROMETI
DA.htm - 25k>. Acesso em: 13 jun. 2008, 21:13:10.
______. O enigma da esperança: Ernst Bloch e as margens da história do
espírito. Petrópolis: Vozes, 1999. 96 p.
ALVAR, Manuel. Historia de la palabra ensayo. In: ALVAR, Manuel et al.
Ensayo. Málaga: Diputación Provincial de Málaga, 1977, pp.13-43.
AMARILLA, Lidia N. G. de. El ensayo literario contemporáneo. Argentina:
Ministerio de Educación, Universidad Nacional de la Plata, 1951. 93 p.
ANDERSON IMBERT, Enrique. Defensa del ensayo. In: _____. Los domingos
del profesor. Buenos Aires: Ediciones Gure, 1972, pp.53-53.
ANTHROPOS. La autobiografía en la España contemporánea. Teoría y análisis
textual. Barcelona, número 125, oct. 1991. 96 p.
227
______. María Zambrano. Pensadora de la Aurora. Barcelona, número 70/71,
febrero/abril 1987. 144 p.
______. MARÍA ZAMBRANO. Antología, selección de textos. Barcelona,
número 2, Antologías Temáticas, marzo/abril 1987. Suplementos. 129 p.
ARANGUREN, José Luis L. Distanciación y encuentro de María Zambrano.
Litoral: revista de la poesía y el pensamiento, N.º 124-126, 1983, pp. 105-107.
(Ejemplar dedicado a María Zambrano. Tomo II. Papeles para una poética del ser.
Homenaje)
______. Introducción a S. Agustín. In: Agustín, Aurelio, Santo, Ob, 354-430.
Confesiones. V-XVIII. Barcelona: Bruguera, 1984. 423 p.
______. Los sueños de María Zambrano. María Zambrano. Premio Miguel de
Cervantes, 1988. Ministerio de Cultura, 1989, pp.13-15.
ARENAS CRUZ, María Elena. Hacia una teoría general del ensayo:
construcción del texto ensayístico. Cuenca: Ediciones de la Universidad de
Castilla-La Mancha, 1997. 480 p.
ARGULLOL, Rafael. El Héroe y el Único. Barcelona: Destinolibro (307), 1990.
463 p.
______. La atracción del abismo. Barcelona: Destino, 2000. 144 p.
______. Sabiduría de la ilusión. Madrid: Taurus, 1994. 207 p.
ARON, Robert et DANDIEU, Arnaud. La Révolution Nécessaire. Paris: Bernard
Grasset, 1933. 296 p.
ARRIGONI DE ALLAMAND, L. M. Jovellanos y la configuración del ensayo
español. Revista de Literaturas Modernas, 15, 1982, pp.151-160.
ASENSI PÉREZ, Manuel. Literatura y Filosofía. Madrid: Síntesis, 1995. 288 p.
AULLÓN DE HARO, Pedro. El ensayo de los siglos XIX y XX. Madrid:
Editorial Playor, 1984. 148 p.
______. Los géneros ensayísticos en el siglo XX. Madrid: Taurus, 1987.
______. Teoría del ensayo. Madrid: Verbum, 1992. 144 p.
AYALA, Francisco. Galdós. In: ______. Las plumas del fénix. Madrid: Alianza,
1989, pp.339-415.
228
AZÚN, Raquel. La literatura como conocimiento: Nina quiere a Alonso Quijano.
Anthropos. María Zambrano: Pensadora de la aurora. Barcelona, número 70/71,
pp.113-116, marzo-abril 1987.
BAKUNIN, Mikhail. A ciência e a questão vital da revolução. São Paulo:
Imaginário, 2009. 96 p.
______. Escrito contra Marx: conflitos na Internacional. São Paulo: Novos
tempos, 1989. 145 p.
______. Socialismo e liberdade. São Paulo: Luta libertária, 2001. 107 p.
BARTHES, Roland. Cultura e Tragédia. Folha de São Paulo Ilustrada, São
Paulo, 13 abr. 1986, pp.88-91.
______. A morte do autor. In: ______. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988, pp.65-70.
BLEZNICK, Donald W. El ensayo español del siglo XVI al XX. México:
Ediciones De Andrea, 1964.
BLEZNICK, Donald W. & E. RUIZ, Mario. La Benina misericordiosa:
Conciliación entre la filosofía y la fe. Cuadernos Hispanoamericanos, Madrid,
núms. 250-252, 1970-71, pp. 472-489.
BLOCH, Ernst. Prefácio. In: ______. O princípio esperança. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2005, pp. 14-28.
BOIA, Mônica da Silva. A construção do sujeito no discurso autobiográfico de
Miguel de Unamuno. Rio de Janeiro, UFRJ, Fac. de Letras, 1998. Dissertação de
Mestrado em Literatura Espanhola.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. 6. ed. São Paulo: Companhia das Letras,
2000. 275 p.
BRAVO, Victor. El neobarroco como escritura analógica. María Zambrano.
Premio Miguel de Cervantes, 1988. Ministerio de Cultura, 1989, pp.31, 32.
BRUSS, Elizabeth. Actos literarios. Anthropos, La autobiografía y sus problemas
teóricos. Estudios e investigación documental, Barcelona, n.29, Monografías
temáticas, pp.62-79, dic. 1991. Suplementos.
BUADES, Josep M. Os espanhóis. São Paulo: Contexto, 2006. 381 p.
BUENO MARTÍNEZ, G. Sobre el concepto de ensayo. In: ______. El Padre
Feijóo y su siglo. Oviedo: Universidad de Oviedo, 1966, pp.89-112.
229
BUNDGARD, Ana. Un compromiso apasionado. María Zambrano: una
intelectual al servicio del pueblo (1928-1939). Madrid: Trotta, 2009. 293 p.
______. Más allá de la filosofía. Sobre el pensamiento filosófico-místico de
María Zambrano. Madrid: Trotta, 2000. 482 p.
BUÑUEL, Luis. Meu último suspiro. Tradução André Telles. São Paulo: Cosac
Naify, 2009. 373 p.
CAETANO, Marcelo José. O Eu e o Outro em Sagrada Esperança. Caderno
CESPUC de pesquisa. Belo Horizonte, n.5, abr. 1999. Disponível em:
<http://www.sitedeliteratura.com/Litestrang/A_neto.htm - 14k>. Acesso em: 18
mai. 2008, 13:05:20.
CALVÃO, Dalva. O Lugar da Poesia em Tempo de Luta. In: CAMPOS, Maria do
Carmo Sepúlveda; SALGADO, Maria Teresa (Org.). África & Brasil: letras em
laços. São Caetano do Sul: Yendis Editora, 2006, pp.1-21.
CAMMARANO, Leonardo. Muerte y resurrección de lo sagrado. Anthropos.
María Zambrano: Pensadora de la aurora. Barcelona, número 70/71, pp.99-102,
marzo-abril 1987.
CANO BALLESTA, Juan. La poesía española entre pureza y revolución
(1920-1936). Madrid: Siglo XXI, 1996. 288 p.
CARPINTERO, Hélio. Ortega, Cervantes y las Meditaciones del Quijote.
Revista de Filosofía, Facultad de Filosofía, Universidad Complutense de Madrid,
Madrid,
Vol.
30,
Núm.
2,
2005.
Disponível
em:
<http://www.revistas.ucm.es/fsl/00348244/articulos/RESF0505220007A.PDF>.
Acesso em: 11 jan. 2011, 09:53:06.
CARRÓN DE LA TORRE, Antonio. María Zambrano y San Agustín.
Diafanidad de la persona y transparencia del corazón. Facultad de Filosofía,
Departamento de Filosofía II. Programa de Doctorado en Filosofía
Contemporánea,
Granada,
2010.
Disponível
em:
<http://www.digibug.ugr.es/bitstream/10481/5578/1/18806016.pdf>. Acesso em:
11 jan. 2011, 09:35:08.
CARVALHO, Maria de Fátima Félix. Razão poética. Uma releitura da crítica
da racionalidade em María Zambrano. Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra,
Coimbra,
2000.
Disponível
em:
<http://www.estudogeral.sib.uc.pt/jspui/bitstream/10316/9810/1/Carvalho,
%20Maria%20de%20F%C3%A1tima%20F%C3%A9lix.pdf>. Acesso em: 27
out. 2009, 07:09:12.
CARBALLO PICAZO, Alfredo. El ensayo como género literario. Notas para su
estudio en España. Revista de Literatura, t.V, n.º 9 (enero-junio),1954, pp.93156.
230
CASALDUERO, Joaquín. Vida y obra de Galdós. Madrid: Edaf, 2001. 226 p.
CASAS, Arturo. Breve Propedéutica para el análisis del ensayo, Universidad
de
Santiago
de
Compostela.
Disponível
em:
<http://www.ensayistas.org/critica/ensayo/casas.htm>. Acesso em: 16 set. 2008,
20:34:50.
CASTRO, Américo. La realidad histórica de España. México: S.A. Editorial
Porrua, 1996.
______. Origen, ser y existir de los españoles. Madrid: Taurus, 1959. 174 p.
______. Sobre el nombre y el quién de los españoles. Madrid, Taurus, 2000.
408 p.
CEREZO GALÁN, Pedro. El ensayo en la crisis de la modernidad. In: ______.
Pensar en Occidente. El ensayo español hoy. Madrid: Dirección General del
Libro y Bibliotecas, 1991, pp.35-59.
______. La herencia de M. de Unamuno, J. Ortega y Gasset y X. Zubiri en María
Zambrano. In: MORA GARCÍA, José Luis; MORENO YUSTE, Juan Manuel.
Pensamiento y palabra en recuerdo de María Zambrano (1904-1991).
Contribución de Segovia a su empresa intelectual. Valladolid: Junta de Castilla y
León, Consejería de Cultura y Turismo, 2005, pp.19-50.
CEREZO, Pedro. Filosofía y literatura en María Zambrano. Sevilla: Fundación
José Manuel Lara, 2005. 267 p.
CERNUDA, Luis. Las nubes. Desolación de la Quimera. 3ª ed. Madrid,
Cátedra,
Colección
Letras
Hispánicas,
1984.
Diponível
em:
<http://www.usuarios.multimania.es/culturagay/.../luiscernudadesolaciondelaquim
era.pdf>. Acesso em: 18 nov. 2010, 18:12:37.
______. La Realidad y el Deseo. Madrid: Alianza Editorial, 1991. 430 p.
______. Palabras antes de una lectura. Prosa completa. Derek Harris y Luis
Maristany (eds.). Barcelona: Barral, 1975a, pp.871-872.
______. Tres poetas clásicos (Garcilaso de la Vega, Fray Luis de León, San Juan
de la Cruz). Poesía y literatura I y II. Barcelona: Seix-Barral, 1975b.
CERQUEIRA, João. Arte e literatura na guerra civil de Espanha. Revista da
Faculdade de Letras. Ciências e Técnicas do Patrimônio, Porto, I Série, vol. VVI,
pp.135-140,
2006-2007.
Disponível
em:
231
<http://www.ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/6623.pdf>. Acesso em: 15 ago.
2010, 15:23:08.
CHACEL, Rosa. La confesión. Barcelona: Edhasa, 1980. 179 p.
CHAMIZO DOMÍNGUEZ, J. Pedro. La doctrina de la verdad en Michel de
Montaigne. Málaga, Secretariado de Publicaciones de la Universidad de Málaga,
1984.
______. La historicidad del género literario en filosofía: el caso de Ortega.
Cuadernos Salmantinos de Filosofía, XII, 1985, pp. 355-362.
CHARTIER, Roger. La historia o la lectura del tiempo. Barcelona: Gedisa,
2007. 96 p.
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 12. ed. São Paulo: Ática, 2001. 440 p.
CHAUÍ, Marilena. Intelectual engajado: uma figura em extinção? Disponível
em: <http://www.ces.uc.pt/bss/documentos/intelectual_engajado.pdf>. Acesso
em: 13 jun. 2010, 13:23:09.
CIORAN, E. M. María Zambrano: una presencia decisiva. Premio Miguel de
Cervantes, 1988. Ministerio de Cultura, 1989, pp. 9-10.
CLAVO SEBASTIÁN, María José. El tema del hombre en María Zambrano,
Universidad de la Rioja. C.I.F. TXVIII, fasc.1 y 2, 1992. Disponível em:
<http://www.dialnet.unirioja.es/servlet/fichero_articulo?
codigo=69037.Similares>Acesso em: 18 abr. 2009, 10:27:54.
CLEMENTE, J. E. El ensayo. Buenos Aires: Ediciones Culturales Argentinas,
1961. 146 p.
CORREA, Gustavo. La santificación por la caridad en Misericordia. In: ______.
El simbolismo religioso en las novelas de Pérez Galdós. Madrid: Gredos, 1962,
pp.195-215.
DÁMASO, Alonso. Escila y Caribdis de la literatura española. Cruz y Raya
(Madrid), n.º 7, 1933, pp.77-102.
DELACAMPAGNE, Christian. História da filosofia no Século XX. Tradução
Lucy Magalhães. Consultoria Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1997. 308 p.
DE LA FUENTE GARCÍA, Mario. Polifonía e ideología: diferentes voces en la
poesía de Luis Cernuda. En: MATAS, J., MARTÍNEZ, J. E. y TRABADO
CABADO, J. M. (eds). Nostalgia de una patria imposible. Estudios sobre la
obra de Luis Cernuda. Madrid, Akal, Universidad de León, 2005, pp.241-252.
Diponível
em:
<http://www.mariodelafuente.org/.../polifonia-e-ideologia-
232
diferentes-voces-en-la- poesia-del-luis-cernuda.pdf >. Acesso em: 16 de ago.
2010, 08:32:11.
DE MAN, Paul. Alegorías de la lectura. Barcelona: Lumen, 1990. 343 p.
_____. La autobiografía como desfiguración. Anthropos. La autobiografía y sus
problemas teóricos. Estudios e investigación documental. Barcelona, n.29,
pp.113-118, dic. 1991.
DERRIDA, Jacques. L’oreille de l’autre. Textes et débats avec Jacques Derrida.
Montréal: VLB, 1982. 214 p.
DÍAZ-PLAJA, Guillermo. Los límites del ensayo. Estafeta literaria, n.º 582,
pp.236-239, 15 feb. 1976.
DOCUMENTACIÓN TEMÁTICA. Textos de Octavio Paz: Unidad, modernidad,
tradición, Octavio Paz. Creación, historia y pensamiento. Una poética de la
reconciliación. Anthropos, Barcelona, n.º 14, 1992. Nueva Edición.
DORFLES, Gillo. Para una nueva teoría de la tragedia. Valencia: Fernando
Torres-Editor, 1975.
DUBOIS, Christian. Heidegger: introdução a uma leitura. Tradução Bernardo
Barros Coelho de Oliveira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. 248 p.
DUCROT, O. El decir y lo dicho. Polifonía de la enunciación. Barcelona:
Paidós, 1986. 248 p.
ELIOT, T. S. Ensaio de doutrina crítica. Tradução Fernando de Mello Moser.
Lisboa: Guimarães Editores, 1997.
______. Quatro quartetos. Tradução Gualter Cunha. Lisboa: Relógio d’água,
2004.
Ernst Bloch, utopia e revolução (parte II). Disponível em:
<http://www.educaterra.terra.com.br/voltaire/cultura/2007/03/06/000.htm - 23k >.
Acesso em: 13 jun. 2008, 13:10:54.
FARINELLI, Arturo. Consideraciones sobre los caracteres fundamentales de la
literatura española. In: ______. Divagaciones hispánicas. Barcelona: Bosch,
1936, Tomo I.
FERNÁNDEZ MARTORELL, Concha. María Zambrano. Entre la razón, la
poesía y el exilio. Barcelona: El Viejo Topo, 2004. 133 p.
FERRATER MORA, José. La filosofía actual. 12. ed. Madrid: Alianza Editorial,
1998. 200 p.
233
______. Obras selectas. Madrid: Revista de Occidente, 1967, 2 v.
FIGUEIREDO, Fidelino de. As duas Espanhas. 4. ed. Lisboa: Guimarães
Editores, 1959. 244 p. (Coleção Filosofia e ensaios)
Filosofia de Ernst Bloch. Disponível em: <http://www.cyberselfcyberphilosophy.blogspot.com/2007/11/filosofia-de-ernst-bloch.html - 83k>.
Acesso em: 13 jun. 2008, 14:05:41.
FINAZZI-AGRÒ, Ettore; VECCHI, Roberto. (Orgs.). Formas e mediações do
trágico moderno: uma leitura do Brasil. São Paulo: Unimarco Editora, 2004.
214 p.
FONTENELLE, Maria Aida; DUTRA, Flávia; COLARES, Karine; LOBATO,
Ângela; OTERO, Vânia; BADRA, Silvia. Mal-estar na civilização, hoje. São
Paulo: Marcela Zampronha, 2004. 136 p.
FORNERÓN, Ivan Martucci. Etopeyas de Luis Cernuda: presença e condução
do mito em Desolación de la quimera. 2010. 158 p. Dissertação de Mestrado em
Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-Americana, Universidade de
São Paulo, São Paulo.
Diponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/.../2010_IvanMartucciForneron.pdf.
Acesso em: 16 ago. 2010, 12:22:45.
FÖRSTER, Eckart. O vivente na filosofia e na poesia. Tradução Constança Ritter.
In: ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. (Org.). MARSHALL, Francisco. (Col.).
Filosofia & literatura: o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, pp.4556.
FRANZ, Michael. Os deuses no teatro. Mistérios e a tragédia na visão do século
XVIII. In: ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. (Org.). MARSHALL, Francisco.
(Col.). Filosofia & literatura: o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001,
pp.77-86.
FREUD, Sigmund. Futuro de uma ilusão / Mal-estar na civilização. São Paulo:
Imago, 2006. 299 p. (Coleção Sigmund Freud, 21)
FURTER, Pierre. Dialética da esperança.Rio de Janeiro:Paz e Terra,1974. 286 p.
GARCÍA BERRIO, A. y HUERTA CALVO, J. Los géneros literarios: sistema
e historia (Una introducción). Madrid: Cátedra, 1992. 280 p.
GARCÍA LORCA, Federico. La imagen poética de don Luis de Góngora. In:
______. Residencia, n.4, 1932, pp.94-103.
234
GARCÍA MONTERO, Luis. La lección de Luis Cernuda: el poeta y el
surrealismo. In: ______. Los dueños del vacío. Madrid: Marginales Tusquets,
2006.
GARCÍA NEGRONI, M. y TORDESILLAS, M. La enunciación en la lengua.
De la deixis a la polifonía. Madrid: Gredos, 2001. 316 p.
GIORDANO, Alberto. Modos del ensayo: de Borges a Piglia. Rosario: Beatriz
Viterbo Editora, 2005. 287 p.
GÓMEZ BLESA, Mercedes. La razón mediadora: Filosofia y Piedad en María
Zambrano. Burgos: Editorial Gran Via, 2008. 350 p.
GÓMEZ DE BAQUERO, E. El Renacimiento de la novela en el siglo XIX.
Madrid: Editorial Mundo Latino, 1924.
GÓMEZ-MARTÍNEZ, José Luis. Teoría del ensayo. 2. ed. México: UNAM,
1992. Disponível em:
<http://www.ensayistas.org/critica/ensayo/gomez/ensayo1.htm>. Acesso em: 18
jul. 2008, 07:20:32.
GONÇALVES Jr., Arlindo Ferreira. A pessoa humana como protagonista da história ética na filosofia de María Zambrano. Educação e Filosofia, Uberlândia, v.
21, n. 42, p.155-168, jul./dez. 2007. Disponível em: <http://www.seer.ufu.br/index.php/EducacaoFilosofia/article/download/467/45>.
Acesso em 16 ago. 2007, 13:32:12.
GONZÁLEZ DI PIERRO, Eduardo. El exilio y el transtierro. Visión filosófica de
la expatriación en María Zambrano y José Gaos. In: REVILLA, Carmen
(Editora). Claves de la razón poética. María Zambrano, un pensamiento en el
orden del tiempo. Madrid: Editorial Trotta, 1998, pp.55-65.
GOYTISOLO, Juan. España y los españoles. Barcelona: Lumen, 2002.
GRANADOS GARCÍA, Aimer. El problema de España en María Zambrano.
Universidad Complutense de Madrid/Europa, Fin-de-Siècle: Pensamiento y
Cultura/Theoria: portal crítico de Ciencias Sociales.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Os lugares da tragédia. Tradução Lawrence Flores
Pereira. In: ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. (Org.). MARSHALL, Francisco.
(Col.). Filosofia & literatura: o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001,
pp.9-19.
GUSDORF, Georges. Condiciones y límites de la autobiografía. La autobiografía
y sus problemas teóricos. Estudios e investigación documental. Anthropos.
Barcelona, n.29, dic. 1991, pp.9-17.
235
HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999. 232 p. (Coleção Biblioteca do tempo universitário).
______. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Nova Cultural, 2000.
______. ¿Qué es Metafísica? Traducción Fausto Xavier Zubiri. Buenos Aires:
Búho, 1997.
______. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1988/90. 2 v.
______. Ensaios e conferências. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2010. 270 p.
______. Os conceitos fundamentais da metafísica – mundo, finitude, solidão.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. 432 p.
HERNÁNDEZ GONZÁLEZ, Belén. El ensayo como ficción y pensamiento.
CERVERA, Vicente, HERNÁNDEZ, Belén & ADSUAR, Mª Dolores (eds.). El
ensayo como género literario, Murcia, Universidad de Murcia, Servicio de
Publicaciones,
pp.143-178,
2005.
Disponível
em:
<http://www.um.es/publicaciones/digital/pdfs/el-ensayo-como-generoliterario.pdf
>. Acesso em: 08 set. 2008, 15:57:08.
HERNÁNDEZ VILLALBA, Afhit. Luis Cernuda, poesía y exilios. Escritos.
Revista del Centro de Ciencias del Lenguaje, Número 32, pp.11-40, juliodiciembre
de
2005.
Disponível
em:
<http://www.escritos.buap.mx/escri32/afhithernandez.pdf>. Acesso em: 18 ago.
2010, 16:42:50.
HERRERO, Nieves. El hombre, lo sagrado y lo divino. Anthropos. María
Zambrano, Pensadora de la Aurora. Barcelona, Nº 70-71, pp. I-XI, marzo-abril
1987.
HÖLDERLIN, Friedrich. DOCUMENTO: Escritos filosóficos. Tradução Kathrin
Rosenfield e Lawrence Flores Pereira. In: ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr.
(Org.). MARSHALL, Francisco. (Col.). Filosofia & literatura: o trágico. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, pp.163-74.
HOMENAJE A MARÍA ZAMBRANO. Con aguafuerte de Baruj Salinas,
Ginebra, 1984.
HORKHEIMER, Max. Montaigne y la función del escepticismo. In: ______.
Historia, metafísica y escepticismo. Traducción María del Rosario Zurro.
Madrid: Alianza Editorial, 1982, pp.137-201.
HUXLEY, Aldous. Filosofía perenne. Lleida: Pages, 2008. 362 p.
ILIE, Paul. Documents of the Spanish Vanguard. Chapel Hill: University of
North Carolina Press, 1969, 451 p.
236
Introducción a la historia del ensayo hispánico. Disponível em:
<http://www.solotxt.brinkster.net/web/ensayo1.htm - 69k ->. Acesso em: 12 set.
2008, 19:38:54.
JARAUTA, F. Para una filosofía del ensayo. Revista de Occidente, 116, 1991.
JARAUTA MARION, Francisco. Para una filosofia del ensayo. CERVERA,
Vicente, HERNÁNDEZ, Belén & ADSUAR, Mª Dolores (eds.). El ensayo como
género literario, Murcia, Universidad de Murcia, Servicio de Publicaciones,
pp.37-42, 2005. Disponível em: <http://www.um.es/publicaciones/digital/pdfs/elensayo-como-genero-literario.pdf>. Acesso em: 17 set. 2008, 10:23:45.
JOHNSON, Roberta. De la novela de Cervantes al realismo galdosiano: la
recuperación filosófica de una tradición española. In: MORA GARCÍA, José
Luis; MORENO YUSTE, Juan Manuel. Pensamiento y palabra en recuerdo de
María Zambrano (1904-1991). Contribución de Segovia a su empresa
intelectual. Valladolid: Junta de Castilla y León, Consejería de Cultura y Turismo,
2005, pp.105-122.
JULIÁ, Santos. Historia de las dos Españas. 6. ed. Madrid: Taurus, 2004. 562 p.
KIERKEGAARD, Soren. El concepto de la angustia. Madrid: Alianza Editorial,
2007. 288 p.
KUNDERA, Milan. El arte de la novela. Barcelona: Tusquets, 1987. 184 p.
LASCH, Christopher. La Cultura del Narcisismo. Barcelona: Andrés Bello,
1999. 330 p.
LAURENZI, Elena. La cuesta de la memoria. In: REVILLA, Carmen (Editora).
Claves de la razón poética. María Zambrano, un pensamiento en el orden del
tiempo. Madrid: Editorial Trotta, 1998, pp.67-89.
LÁZARO CARRETER, F. Imitación y originalidad en la poética renacentista. In:
RICO, Francisco. (Dir.). Historia y crítica de la literatura española. Barcelona:
Crítica, 1980, vol II, pp.91-97.
______. La literatura como fenómeno comunicativo. In: MAYORAL, J. A.,
Pragmática de la comunicación literaria. Madrid: Arco/Libros, 1987, pp.151170.
LEJEUNE, Philippe. Autobiografía e historia literaria por Philippe Lejeune (De
“Le pacte autobiographique”. Paris, Seuil, 1975). In: ______. El pacto
autobiográfico y otros estudios. Madrid: Megazul-Endymion, 1990, pp.277-312.
237
______. El pacto autobiográfico. La autobiografía y sus problemas teóricos.
Estudios e investigación documental. Anthropos. Barcelona, n.29, dic. 1991,
pp.47-61.
_____. El pacto autobiográfico (bis) por Philippe Lejeune (De “Moi aussi”. Paris:
Seuil, 1986. In: ______. El pacto autobiográfico y otros estudios. Madrid:
Megazul-Endymion, 1990, pp.123-147.
_____. Le pacte autobiographique (bis). In: ______. Je est un autre.
L’autobiografie, de la litérature aux médias. Paris: Seuil, 1980, pp.416-434.
LIMA, Silvio. Ensaio sobre a essência do ensaio. Coimbra: Armênio Amado-Editor, 1944. (Coleção Studium)
LITVAT, Lily. La buena nueva: periódicos libertarios españoles, cultura
proletaria y difusión del anarquismo (1883-1913). In: ______. España 1900.
Modernismo, anarquismo y fin de siglo. Barcelona: Anthropos, [1990?],
pp.259-287.
______. Temática de la decadencia en la literatura española de fines del siglo
XIX: 1880-1913. In: ______. España 1900. Modernismo, anarquismo y fin de
siglo. Barcelona: Anthropos, [1990?], pp.245-258.
LOPARIC, Zeljko. Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. 87 p.
LOS LUGARES de la palabra en “Claros del Bosque”, voz y texto, grabación
homenaje. Madrid, Servicio de Publicaciones del Ministerio de Educación y
Ciencia, 1986.
LOUREIRO, Ángel G. La autobiografía como literatura, arte y pensamiento.
Teoría literaria y textos autobiográficos. Anthropos. La autobiografía en la
España contemporánea. Teoría y análisis textual. Barcelona, n.125, pp.2-16, oct.
1991. Editorial.
_____. Percepción intelectual de un proceso histórico. La autobiografía española:
actualidad y futuro. Anthropos. La autobiografía en la España contemporánea.
Teoría y análisis textual. Barcelona, n.125, pp.17-19, oct. 1991.
_____. Problemas teóricos de la autobiografía. Autobiografía como literatura, arte
y pensamiento. Teoría literaria y textos autobiográficos. Anthropos. La
autobiografía y sus problemas teóricos. Estudios e investigación documental.
Barcelona, n.29, pp.2-8, oct. 1991.
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Editora 34, 2000. 240 p.
(Coleção Espírito Crítico)
______. Die Seele und die Formen [A alma e as formas]. Berlim: Egon
Fleischel, 1911, 8vo, (6), 373, (3)pp.
238
______. Sobre la esencia y forma del ensayo. In: ______. El Alma y las Formas.
Barcelona: Grijalbo, 1975, pp.15-39.
LYNCH, Enrique. La lección de Sherezade. Barcelona: Anagrama, 1987. 352 p.
MACHADO, Roberto. O nascimento do trágico. De Schiller a Nietzsche. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2006. 280 p.
MAILLARD, Chantal. Ideas para una fenomenología de lo divino en María Zambrano. María Zambrano, Pensadora de la Aurora, Nº 70-71, Barcelona, Anthropos, 1987, pp.123-127.
_____. La creación por la metáfora. Introducción a la razón-poética. Barcelona:
Anthropos, 1992. 190 p.
MAILLARD, María Luisa. María Zambrano. La literatura como
conocimiento y participación. Edicions de la Universitat de Lleida, Ensayos /
Scriptura, 1997. 297 p.
MAILLARD GARCÍA, María Luisa. Filosofía y poesía. Armonización de dos
lenguajes en la obra zambraniana. In: MORA GARCÍA, José Luis; MORENO
YUSTE, Juan Manuel. Pensamiento y palabra en recuerdo de María
Zambrano (1904-1991). Contribución de Segovia a su empresa intelectual.
Valladolid: Junta de Castilla y León, Consejería de Cultura y Turismo, 2005,
pp.63-75.
MAINER, J. C. Intermedio sobre el ensayo. Introducción a F. Vela. In: ______.
Inventario de la Modernidad. Gijón: Ediciones Noega, 1983, pp.18-19.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a
Wittgenstein. 10. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. 300 p.
MARÍ, Antonio. Fe en el hombre. María Zambrano. Premio Miguel de Cervantes, 1988. Ministerio de Cultura, 1989, pp.25-26.
MARÍAS, Julián. Los géneros literarios en filosofía. In: ______. Obras
Completas. Madrid: Revista de Occidente, 1969, v. IV, pp.331-354.
_____. Ser español. Ideas y creencias en el mundo hispánico. 4. ed. Barcelona:
Planeta, 2008. 368 p.
MARICHAL, Juan. Teoría e historia del ensayismo hispánico. Madrid: Alianza
Universidad, 1984. 224 p.
MARTINS, Guilherme d’Oliveira. A Cultura como Factor de Defesa e de Coesão.
Nação e Defesa. António José Telo (Dir.). Lisboa: Instituto Nacional de Defesa,
N.º
119,
3ª
Série,
2008,
pp.167-178.
Disponível
em:
239
<http://www.idn.gov.pt/publicacoes/resumo/nd/119.pdf>. Acesso em: 13 fev.
2011, 11:46:04.
MAY, Georges. La autobiografía. México: Fondo de Cultura Económica, 1979.
MENÉNDEZ PIDAL, Ramón. Los españoles en la historia y en la literatura.
1951. 229 p.
MIRANDA, Wander Melo. Corpos escritos. Graciliano Ramos e Silviano
Santiago. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. Belo Horizonte:
UFMG Editora, 1992. 176 p.
MIRAUX, Jean-Philippe. La autobiografía. Las escrituras del yo. Buenos
Aires: Nueva Visión, 2005.
MONTAIGNE, Michel. Ensayos; De Democrito y Heraclito. Buenos Aires: Ed.
Aguilar, 1962, pp.303-306.
MORA GARCÍA, José Luis; MORENO YUSTE, Juan Manuel. Pensamiento y
palabra en recuerdo de María Zambrano (1904-1991). Contribución de
Segovia a su empresa intelectual. Valladolid: Junta de Castilla y León, Consejería
de Cultura y Turismo, 2005. 579 p.
MORA, José Luis. María Zambrano. Raíces de la cultura española. Madrid:
Fundación Fernando Rielo, 2004.
MORBIDELLI, José Donizetti. O mal-estar na civilização (resumo). 2009.
Disponível em: <http://www.pt.shvoong.com/entertainment/movies/1918756mal-estar-na-civiliza%C3%A7%C3%A3o/>. Acesso em: 14 jun. 2010, 16:24:32.
MORENO, Jesús (Preparación). Antología temática y crítica. Madrid:
Mondadori, 1989.
MOST, Glenn W. Da tragédia ao trágico. Tradução Constança Ritter. In:
ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. (Org.). MARSHALL, Francisco. (Col.).
Filosofia & literatura: o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, pp.2035.
MÜNSTER, Arno. Filosofia da práxis e utopia concreta. São Paulo: Unesp,
1993. 126 p.
NETO, Alfredo Naffah. Nietzsche: a vida como valor maior. São Paulo: FTD,
1996. 87 p. (Coleção Por outro lado)
NICOL, Eduardo. Ensayo sobre el ensayo. In: ______. El problema de la
filosofía hispánica. Madrid: Tecnos, 1961, pp.206-279.
240
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Tradução Paulo César Souza.
São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 248 p. (Coleção Companhia de bolso)
______. Ecce Homo. São Paulo: Mestas, 1999. 122 p. (Coleção Clásicos
universales)
______. O livro do filósofo. Porto: Rés Editora, 1984. 132 p. (Coleção Diagonal)
______. O nascimento da tragédia. Tradução Jaco Guinsburg. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007. 184 p. (Coleção Companhia de bolso)
NIETZSCHE, Friedrich & VAIHINGER, Hans. Sobre verdad y mentira en
sentido extramoral. Madrid: Tecnos, 2007. 96 p.
NOGUEIRA DOBARRO, Ángel. (Ideación y coordinación general). Antología,
selección de textos. Barcelona: Anthropos, 1987.
NUNES, Benedito. Passagem para o poético. 2. ed. São Paulo: Ática, 1992. 304
p. (Coleção Ensaios)
______. O tempo do niilismo. São Paulo, Ática, 1993. 200 p. (Coleção Temas)
NUÑEZ, E. Proceso y teoría del ensayo. Revista Hispánica Moderna,
Pensilvânia, 31, pp.357-364.
OBRAS REUNIDAS (PRIMERA ENTREGA), [Contiene: EL SUEÑO
CREADOR, FILOSOFÍA Y POESÍA, APUNTES SOBRE EL LENGUAJE
SAGRADO Y LAS ARTES, POEMA Y SISTEMA, PENSAMIENTO Y
POESÍA EN LA VIDA ESPAÑOLA, UNA FORMA DE PENSAMIENTO: “LA
GUÍA”]. Madrid: Aguilar, 1971. 370 p.
OCASAR, José Luis. Literatura española contemporánea. Madrid: Edinumen,
1997. 175 p. (Colección Dos Orillas – Cuadernos de Cultura Hispánica)
OCTAVIO PAZ. Creación, historia y pensamiento. Una poética de la
reconciliación. Anthropos. Barcelona, n.º 14, 1992. Nueva ed. correg. y
aumentada. 96 p.
ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita. Campinas: Papirus, 1998. 224 p.
ORTEGA MUÑOZ, Juan Fernando (Edición, introducción y notas). Algunos
lugares de la poesía. María Zambrano. Madrid: Trotta, 2007. 292 p.
______. Introducción al pensamiento de María Zambrano. México: Fondo de
Cultura Económica, 1994. 271 p.
ORTEGA Y GASSET, José. Ensayo de estética a manera de prólogo. In: Obras
Completas. Madrid: Revista de Occidente, 1964, v. VI, pp.247-64.
241
______. Meditaciones del Quijote. 2. ed. Madrid: Cátedra, 1984. 256 p.
______. Obras completas: José Ortega y Gasset. Tomo X (1949-1955). Obra
póstuma. Madrid: Taurus, 2010. 1000 p.
______. Que é filosofia? Tradução L. W. Vita. Rio de Janeiro: Ed. Livro
Iberoamericano, 1961.
______. ¿Qué es filosofia? Madrid: Espasa-Calpe, 2007. 304 p. (Colección
Austral (Nueva))
______. La rebelión de las masas. Madrid: Castalia, 1998. 384 p. (Colección
Clásicos Castalia)
OSUNA, Rafael. Las revistas españolas entre dos dictaduras: 1931-1939.
Valencia: Pre-textos, 1986. 246 p.
PARÍS, Carlos. Tiempo y modernidad. Cuadernos Hispanoamericanos, Madrid,
n.º 440-41, pp.163-173, febrero/marzo 1987.
PAVLICIC, Pavao. La intertextualidad moderna y postmoderna. Traducción
Desiderio Navarro. Criterios, La Habana, n.º 30, pp.65-87, VII-91-XII-91.
PAZ, Octavio. Convergencias: ensaios sobre arte e literatura. Tradução Moacir
Werneck de Castro. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. 240 p.
______. La palabra edificante. Luis Cernuda. Derek Harris (ed.). Madrid:
Taurus, 1977, pp.459-466.
______. La otra voz. Poesía y fin de siglo. 2. ed. Barcelona: Seix, 1990. 144 p.
______. Signos em rotação. Tradução Sebastião Uchoa Leite. LAFER, Celso;
CAMPOS, Haroldo de. (Org. e Rev.). São Paulo: Perspectiva, 2005. 316 p.
PÉREZ-BORBUJO, Fernando. Tres miradas sobre el Quijote. Unamuno –
Ortega – Zambrano. Barcelona: Herder Editorial, 2010. 237 p.
PÉREZ GALDÓS, Benito. Misericordia. Edición de Nelson. Con Prefacio del
propio Galdós. Paris: Thomas Nelson and Sons Editores, 1913, pp.5-9.
______. Misericordia. Edición de Luciano García Lorenzo. Madrid: Cátedra,
1991. 318 p.
______. Tristana. Madrid: Alianza Editorial, 1969. 183 p.
PFEIFFER, Karl Ludwig. Tragicidade: significado existencial ou performance
irresistível, conflito normativo ou efeito midiático? Tradução Luís M. Sander. In:
242
ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. (Org.). MARSHALL, Francisco. (Col.).
Filosofia & literatura: o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, pp.6071.
PICÓN-SALAS, Mariano. Y va de ensayo. Crisis, cambio, tradición. Ensayos
sobre la forma de nuestra cultura. Madrid/Caracas: Ediciones Edime, 1955,
pp.140-145.
PIRES, Francisco Murari. A morte do herói(co). In: ROSENFIELD, Kathrin
Holzermayr. (Org.). MARSHALL, Francisco. (Col.). Filosofia & literatura: o
trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, pp.102-114.
PLA, Josep. La segunda república española: crónicas parlamentarias 1931 –
1936. Barcelona: Destino, 2006. 1600 p. (Colección Imago Mundi)
POZUELO YVANCOS, José María. De la autobiografía. Teoría y estilos.
Barcelona: Crítica, 2005. 256 p.
_____. El género literario “Ensayo”. CERVERA, Vicente, HERNÁNDEZ, Belén
& ADSUAR, Mª Dolores (eds.). El ensayo como género literario. Murcia,
Universidad de Murcia, Servicio de Publicaciones, 2005, p.179-191, 2005.
Disponível em: <http://www.um.es/publicaciones/digital/pdfs/el-ensayo-comogenero-literario.pdf>. Acesso em: 08 set. 2008, 15:27:11.
PRADO BIEZMA, Javier del; BRAVO CASTILLO, Juan; DOLORES PICAZO,
María. Autobiografía y Modernidad literaria. Murcia: Ediciones de la
Universidad de Castilla La Mancha, 1994.
RAMOS ORTEGA, Manuel J. Las revistas literarias en España entre la «Edad
de Plata» y el medio siglo. Madrid: Ediciones de la Torre, 2001. 189 p.
REVILLA, Carmen. Claves de la “razón poética”. María Zambrano, un
pensamiento en el orden del tiempo. Madrid: Editorial Trotta, 1998. 221 p.
RICO, Francisco. Historia y crítica de la literatura española. Barcelona:
Crítica, 1984. Tomo VII. 914 p.
RODRIGUES, Pedro. Ernst Bloch: música/esperança/revolução. Disponível
em:<http://www.combate.info/index.php?
option=com_content&task=view&id=49&Itemid=41 - 24k>. Acesso em: 22 jun.
2008, 16:42:09.
ROMERA, José, YLLERA, Alicia, GARCÍA-PAGE, Mario & CALVET, Rosa
(eds.). Escritura autobiográfica. In: Actas del II Seminario Internacional del
Instituto de Semiótica Literaria y Teatral. Madrid: Visor Libros, 1993, pp.7-9.
ROMERA CASTILLO, José. Autobiografía de Luis Cernuda: aspectos literarios.
L´Autobiographie en Espagne. In: Actes du II Colloque International. Aix-En-
243
Provence: Université de Provence, 1982, pp.279-294. Disponível em:
<http://www.escritos.buap.mx/escri32/afhithernandez.pdf>. Acesso em: 18 ago.
2010, 17:43:14.
ROSA, Marco Aurélio. Comentários sobre a banalidade do trágico. In:
ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. (Org.). MARSHALL, Francisco. (Col.).
Filosofia & literatura: o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, pp.7276.
ROZAS LÓPEZ, Juan Manuel. Generación del 27 desde dentro. Madrid: Istmo,
1987. 373 p.
______. Las revistas de poesía del 27. In: ______. El 27 como generación.
Santander: La isla de los ratones, 1978, pp.117-126.
SALDANHA, Nelson. Filosofia: temas e percursos. Rio de Janeiro: UAPÊ,
2004. 98 p.
SALINAS, Pedro. Poesía española: Siglo XX. Madrid: Alianza, 1972.
SÁNCHEZ ALBORNOZ, C. España, un enigma histórico. 1956. 2 v.
SÁNCHEZ ALONSO, B.Historia de la historiografía española.1941-44-50.3 v.
SÁNCHEZ BENÍTEZ, Roberto. Identidad y literatura en María Zambrano.
Signos Filosóficos, Iztapalapa, Universidad Autónoma Metropolitana (Distrito
Federal, México), número 008, pp.93-110, julio-diciembre 2002. Disponível em:
<http://www.redalyc.uaemex.mx>. Acesso em: 23 jan. 2009, 18:54:09.
SÁNCHEZ MECA, Diego; DOMÍNGUEZ CAPARRÓS, José. Historia de la
relación Filosofía-Literatura en sus textos. Anthropos. Sugerencias para el
ejercicio e invención de nuevos pensamientos. Barcelona, número 32,
Monografías temáticas, 1990. 168 p.
SANTOS, Boaventura dos. Crítica da razão indolente. Contra o desperdício
da experiência. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2007, v.1. 415 p. (Coleção Para um
novo senso comum – A ciência, o direito...)
SANSEVERINO, Antônio Marcos; ZILBERMAN, Regina; GINZBURG, Jaime;
PERRONE, Claudia; CASTRO, Néa de; OLIVEIRA, Rejane Pivetta de. Lukács e
a literatura. BORDINI, Maria da Glória (Org.). Rio Grande do Sul: Edipucrs –
PUC RS, 2003. 215 p.
SATUÉ, Francisco J. Miguel de Unamuno: Confesiones del desesperado heroico.
Cuadernos Hispanoamericanos, Madrid, n.440-441, pp.31-42, fev./mar. 1987.
SABIDO RAMOS, Olga (Coord.). Georg Simmel,
contemporánea. Barcelona: Anthropos, 2007. 350 p.
una
revisión
244
SIMMEL, George. De la esencia de la cultura. Buenos Aires: Prometeo Libros,
2008. 222 p.
______. Problemas fundamentales de la filosofía. Buenos Aires: Prometeo
Libros, 2006. 127 p.
SKIRIUS, John (Compilador). El ensayo hispanoamericano del siglo XX. 3. ed.
México: Fondo de Cultura Económica, 1994. 634 p.
SOBEJANO, Gonzalo. Nietzsche en España (1890-1970). Gredos: Madrid,
2009. 706 p.
SOREL, Andrés (Dirección, Diseño y Maquetación). María Zambrano. Ahora, ya.
Al final de un centenario. Revista Literaria de la Asociación Colegial de
Escritores, Madrid, República de las Letras, número 89, 1980. Inéditos. 298 p.
SOUZA, Ronaldes de Melo e. Atualidade da tragédia grega. In: ROSENFIELD,
Kathrin Holzermayr. (Org.). MARSHALL, Francisco. (Col.). Filosofia &
literatura: o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, pp.115-140.
SOUZA, Sonia Maria Ribeiro de. Um outro olhar: filosofia. São Paulo: FTD,
1995. 248 p.
SPRINKER, Michael. Ficciones del “yo”: el final de la autobiografía. Anthropos,
La autobiografía y sus problemas teóricos. Estudios e investigación documental,
Barcelona, n.29, Monografías temáticas, pp.118-128, dic. 1991. Suplementos.
STAROBINSKI, Jean. Le style de l’autobiographie. In: ______. L’Oeil vivant
II: la relation critique. Paris: Gallimard, 1970, pp.83-89.
STEIN, Ernildo. Seis estudos sobre Ser e tempo. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2005.
136 p. (Coleção Textos filosóficos)
______. Seminário sobre a verdade. Petrópolis: Vozes, 1993. 344 p.
STEINER, Georges. As ideias de Heidegger. São Paulo: Cultrix, 2002.
SUBIRATS, Eduardo.A cultura como espetáculo.São Paulo:Nobel, 1989. 156 p.
______. A penúltima visão do paraíso. São Paulo: Studio Nobel, 2001. 166 p.
______. Intermedio sobre filosofía y poesía. Anthropos. María Zambrano:
Pensadora de la aurora. Barcelona, número 70/71, pp. 94-99, marzo-abril 1987.
______. Metamorfosis de la cultura moderna.Barcelona:Anthropos,1991.237 p.
245
SZONDI, Peter. Teoría del drama moderno. Tentativa sobre lo trágico.
Barcelona: Ensayos / Destino, 1994. 313 p.
TALENS, Jenaro. El espacio y las máscaras. Introducción a la lectura de
Cernuda. Barcelona: Anagrama, 1975. 396 p.
TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. Tradução Elia Ferreira Edel. 7. ed.
Rio de Janeiro: Vozes, 1994. 431 p.
ULACIA, Manuel. Luis Cernuda: escritura, cuerpo y deseo. Barcelona: Laia,
1986. 223 p.
UNAMUNO, Miguel de. Del sentimiento trágico de la vida. Buenos Aires:
Losada, 2008. 283 p. (Grandes Obras del Pensamiento; 20)
VALENTE, Augusto. 1885: Nasce Ernst Bloch, filósofo da utopia e da
esperança.
Disponível
em:
<http://www.dw3d.de/popups/popup_printcontent/0,,2718662,00.html - 28k>.
Acesso em: 27 jun. 2008, 22:16:34.
VICTORIA, Marcos. Teoría del ensayo. Buenos Aires: Emecé Editores, 1975.
151 p.
VIEIRA, Antonio Rufino. Princípio esperança e a “herança intacta do
marxismo” em Ernst Bloch. Universidade Federal da Paraíba. Disponível em:
<http://www.unicamp.br/cemarx/anais_v_coloquio_arquivos/arquivos/comunicac
oes/gt1/sessao6/Antonio_Rufino.pdf>. Acesso em: 27 jun. 2008, 22:20:09.
VILLANUEVA, Darío. Para una pragmática de la autobiografía. In: ______. La
autobiografía en lengua española en el siglo XX. VV. AA. Lausanne: Hispánica
Helvética, 1991, pp.201-218.
VOSSLER, Karl. Algunos caracteres de la cultura española. Buenos Aires:
Espasa-Calpe argentina, S.A., 1941. 150 p. (Colección Austral)
WATT, Ian P. Mitos do individualismo moderno: Fausto, Dom Quixote, Dom
Juan, Robinson Crusoe. Tradução Mario Pontes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1997. 316 p.
WEINBERG,
Liliana.
Situación
del
ensayo.
Disponível
em:
<http://www.cialc.unam.mx/ensayo/situaci.htm - 53k>. Acesso em: 17 set. 2008,
20:43:21.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigaciones filosóficas. Traducción Alfonso
García Suárez y Ulises Moulines. Barcelona: UNAM-Crítica, 2008. 552 p.
WODAK, Ruth; MEYER, Michael. Métodos de análisis crítico del discurso.
Barcelona: Editorial, S.A., 2003. 286 p.
246
ZAMBRANO, María. Adsum. Anthrophos. María Zambrano. Antología,
selección de textos Barcelona, número 2, Antologías Temáticas, pp.3-7,
marzo/abril 1987a. Suplementos.
______. A modo de autobiografía. Anthropos. María Zambrano: Pensadora de la
aurora. Barcelona, número 70/71, pp.69-73, marzo-abril 1987.
______. Andalucía, sueño y realidad. Seguido de Teoría de Andalucía de José
Ortega y Gasset. Granada: Eds. Andaluzas Unidas, 1984. 250 p.
______. “Carta a José M. Chacón y Calvo”. La Gaceta de Cuba, mayo-junio
1993.
______. Claros del bosque. 2. ed. Traducción francesa Marie Laffranque,
Toulousse, Asociación de Publicaciones de la Universidad de Toulouse Le Mirail,
1985. Barcelona: Seix Barral, 1987c. 159 p.
______. “Cock-tail de ciencias”. In: Cruz y Raya, Madrid, n.º 1, pp.141-145,
abril 1933.
______. De la aurora. Traducción al francés Marie Laffranque, Montpelier,
L’Eclat, 1988. Madrid: Turner, 1986. 128 p.
______. Delirio y destino. Barcelona: Círculo de Lectores, 1989a. 346 p.
______. Dos fragmentos sobre el amor. Málaga: Begar, 1982.
______. El hombre y lo divino. 2ª reimpresión. México: Fondo de Cultura
Económica, 1993. 412 p.
______. El nacimiento (Dos escritos autobiográficos). Madrid: Entregas de la
Ventura, 1981. 31 p.
______. El pensamiento vivo de Séneca (presentación y antología). 3. ed.
Madrid: Cátedra, 1987d. 194 p.
______. El vacío y la belleza. Bilingue: español-francés. Con aguafuertes de
Amadeo Galino. Milán: Impr. Maingraf, 1985.
______. España, sueño y verdad. Madrid: Siruela, 1994a. 224 p.
______. Eufemismo y metáfora: ambigüedad y suposición. In: HEREDIA
SORIANO, A.; ALBARES, R. (eds.). Filosofía y literatura en el mundo
hispánico. Salamanca: Universidad de Salamanca, 1997, pp.127-145.
______. Filosofía y poesía. 3. ed. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1987e.
123 p.
247
______. Hacia un saber sobre el alma. Revista de Occidente, Madrid, t.XLVI, n.º
138, pp.261-276, diciembre 1934.
______. Hacia un saber sobre el alma. Madrid: Alianza, 2002. 240 p.
______. Historia como sistema. In: ______. Obras completas. Madrid: Rev. de
Occidente, 1964, v. VI, pp.11-50.
______. Hoffman: «Descartes» (reseña). Revista de Occidente, Madrid,
t.XXXIX, n.º 117, pp.345-348, marzo 1933.
______. Horizonte del liberalismo. Madrid: Ediciones Morata, S. L., 1996. 271
p. (Colección Raíces de la memoria)
______. Ideas y creencias. In: ______. Obras completas. Madrid: Rev. de
Occidente, 1964, v. VI, pp.377-409.
______. La agonía de Europa. Madrid: Trotta, 2000. 104 p.
______. La confesión: género literario y método. Madrid: Ediciones Siruela,
1995. 112 p.
______. La España de Galdós. Madrid: Endymion, 1989b. 148 p.
______. La guerra, de Antonio Machado. Hora de España, Valencia-Barcelona,
n.º XII, pp.68-74, diciembre 1937.
______. Las dos grandes metáforas. In: Obras completas. Madrid-Barcelona:
Espasa-Calpe, 1932, pp.430-442.
ZAMBRANO, María y GÓMEZ BLESA, Mercedes. Las palabras del regreso.
Ed. M. Gómez Blesa, Amarú. Madrid: Cátedra, 2009. 344 p.
______. La reforma del entendimiento español. Hora de España, ValenciaBarcelona, n.º XII, pp.13-28, diciembre 1937.
______. La salvación del individuo en Spinoza. Cuadernos de la Facultad de
Filosofía y Letras, Madrid, n.º 3, pp.7-21, febrero-marzo 1936.
______. La tumba de Antígona. ______. Senderos. Barcelona: Anthropos, 1986,
pp.199-265.
______. Nostalgia de la tierra. Los Cuatro Vientos, Madrid, n.º 2, pp.108-113,
abril 1933.
______. Nostalgia de la tierra. In: ILIE, Paul. Documents of the Spanish
Vanguard. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1969, pp.172-190.
248
______. Los intelectuales en el drama de España. Madrid: Hispamerca, 1977.
208 p.
______. Meditaciones del Quijote. In: Obras completas. Madrid-Barcelona:
Espasa-Calpe, 1932, pp.1-82.
______. Misericordia. Hora de España, Valencia-Barcelona, n.º XXI, pp.29-52,
septiembre 1938.
______. Mujeres de Galdós. Asparkía, 3. Castellón de la Plana: Universitat
Jaume, 1994b.
______. Notas de un método. Madrid: Mondadori, 1989c. 144p.
______. Ortega y Gasset universitario. El Sol, Madrid, p.7, marzo 1936.
______. Os sonhos e o tempo. Tradução Cristina Rodriguez e Artur Guerra.
Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1994. 150 p.
______. Pensamiento y poesía en la vida española. México: La Casa de España
en México, 1939. 179 p.
______. Persona y democracia. La historia sacrificial. Madrid: Siruela, 1996.
208 p.
______. Por el estilo de España. Cruz y Raya. Madrid, n.º 12, pp. 111-115,
marzo 1934.
______. Por qué se escribe. Revista de Occidente, Madrid, t.XLIV, n.º 132,
pp.318-328, junio 1934.
______. Renacimiento Litúrgico. Cruz y Raya, Madrid, n.º 3, pp.161-164, junio
1933.
______. Robert Aron y Arnaud Dandieu: «La révolution nécessaire» (reseña).
Revista de Occidente, Madrid, t.XLIV, n.º 131, pp.209-221, mayo 1934.
______. San Basilio. Cruz y Raya, Madrid, n.º 2, pp.91-118, mayo 1933.
______. Señal de vida. Cruz y Raya, Madrid, n.º 2, pp.145-154, mayo 1933.
ZUBIRI, Xavier. Inteligencia y Logos. Madrid: Alianza, 1982. 400 p.
ZUZUKI, Márcio. A tragédia e a verdade de Laocoonte. In: ROSENFIELD,
Kathrin Holzermayr. (Org.). MARSHALL, Francisco. (Col.). Filosofia &
literatura: o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, pp.36-44.
249
250
251
252
253
Download

baixar - Faculdade de Letras