Auto-Regulação, “Bolsa S.A.” e os Discussion Papers da IOSCO Resumo: Este artigo trata das relações entre a Auto-Regulação e o movimento de desmutualização das Bolsas no mundo a partir dos Documentos da IOSCO e seus reflexos e influências no debate sobre a desmutualização no Brasil. Abstract: This article is about relations between the self-regulation and the movement of demutualization from the Exchanges in the world since the documents produced by IOSCO and his impacts and influences in the debate about the demutualization in Brazil. 1. Introdução O objetivo precípuo deste artigo é contribuir para o debate que se instaurou no país a partir do momento em que a Bolsa de Valores de São Paulo (BOVESPA) e a Bolsa de Mercadorias e Futuros (BM&F) manifestaram interesse em seguir a tendência mundial de se desmutualizarem e se tornarem sociedades anônimas 1. A partir deste momento vieram à tona muitas questões, entre as quais: como se poderia conciliar o poder auto -regulamentador das Bolsas com os seus interesses como sociedade anônima? As Bolsas poderiam emitir ações? Em caso afirmativo, quem fiscalizaria as operações que envolvessem as ações da Bolsa? Estes e outros questionamentos já tiveram que ser enfrentados pelos Mercados de Capitais alienígenas onde a 1 Esta é uma tendência mundial, sendo certo que são Bolsas de Valores organizadas sob a forma de sociedade anônima, por exemplo, as Bolsas de Londres, Chicago e Indonésia.. 1 desmutualização das Bolsas ocorreu, sendo certo que a solução encontrada por cada um deles não foi a mesma, mas sim aquela que melhor poderia se amoldar às peculiaridades jurídicas, culturais e econômicas de cada um destes países. Desta forma, procuraremos aqui expor algumas experiências ocorridas através do Direito Comparado, buscando sempre sugerir alguns caminhos para que, com base nas experiências vividas em outros países e se realmente for de interesse das Bolsas Nacionais, viabilizar tal desmutualização e preservar a segurança e credibilidade do Mercado de Capitais brasileiro. 2. Natureza jurídica das Bolsas É de conhecimento vulgar dos profissionais que atuam na área do Mercado de Capitais, que sua regulação em nosso país é hoje regida pela Lei Ordinária Federal nº. 6385/76 (LMC). Esta, em seu artigo 1º, incisos IV e V, avoca para si a competência para, dentre outros temas, dispor sobre a regulação e fiscalização da organização, o funcionamento e as operações das Bolsas de Valores e de Mercadorias e Futuros de nosso país. Em seu artigo 18, I, a LMC confere à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) a competência para editar normas gerais sobre as Bolsas no território nacional, abrangendo esta competência desde a estipulação dos requisitos para a criação de uma Bolsa, até as normas que disciplinam seu funcionamento e hipóteses de dissolução. Atualmente, a norma que satisfaz a determinação do artigo 18, I da LMC é a Resolução CVM 2690/00. 2 De acordo com a resolução supracitada, as Bolsas poderão ser constituídas como associações civis ou sociedades anônimas (art. 1º, caput); hoje, tanto a BOVESPA como a BMF estão constituídas 2 sob a forma de associações civis sem fins lucrativos . 3. Conceito, n atureza jurídica e previsão legal da Auto-Regulação Segundo Arnoldo Wald e Nelson Eizirik, “por auto-regulação do mercado compreende-se a normatização e fiscalização, pelo órgão corporativo (a Bolsa de Valores), das atividades de seus membros, com vistas à manutenção de elevados padrões éticos na prática dos negócios.3” A auto-regulação pode ser definida, grosso modo, como a capacidade de uma mesma pessoa, física ou jurídica, criar determinadas normas, fiscalizar seu cumprimento e aplicar a sanção correspondente ao infrator que, no seu entender, as descumpriu. Com efeito, este poder de auto-regulação não é absoluto, sofrendo variações de acordo com o grau de intervenção do Estado nas Bolsas. Assim, seguindo a tipologia desenvolvida por Ary Oswaldo Mattos Filho4 , se pode classificar o regime jurídico das Bolsas em três tipos: liberais, autorizadas e instituídas. 2 Vide artigo 1º do Estatuto Social da BOVESPA e artigo 1º do Estatuto Social da BM&F. WALD, Arrnoldo e Eizirik, Nelson. O Regime Jurídico das Bolsas de Valores e sua autonomia frente ao Estado in Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, nº. 61, janeiro/março de 1986, p. 05/21. 4 A este respeito vide: MATTOS FILHO. Natureza Jurídica das Atividades das Bolsas de Valores in Revista dos Tribunais, nº. 603, p.23/37. 3 3 O primeiro tipo, chamado de “liberais”, tem como arquétipo a Inglaterra, aonde vem sendo mantido já há alguns séculos, e se caracteriza por uma interferência mínima do Estado na atividade reguladora do mercado, sempre buscando harmonizar os interesses do Mercado e os interesses do Estado. O segundo tipo, as “autorizadas”, tem suas raízes ainda no século XIX, onde em países como França, Portugal e Áustria, dependiam de autorização ministerial para sua criação. Tal sistema foi evoluindo e, em 1934, com a criação nos Estados Unidos da América da Securities and Exchange Commission (SEC), a criação das Bolsas passaram a depender de autorização de órgãos estatais criados especificamente para a normatização e fiscalização do Mercado Mobiliário. Já as Bolsas “instituídas”, são aquelas que dependem de lei para sua criação. Diferentemente dos tipos descritos acima, esta Bolsas eram criadas por meio de lei, e não por uma ato de vontade de seus associados. Neste sistema, muitas vezes é o próprio Estado e não particulares, que faz o papel de intermediador, tendo sido este o regime adotado pelo Brasil até o advento da Lei Federal nº. 4728/65. Atualmente, vige em nosso país o tipo de autorização administrativa do Estado, que é de competência da CVM, que tem também poder de as supervisionar e fiscalizar5 . Não obstante, merece destaque o art. 17 da LMC que traz a ressalva de que as Bolsas de Valores, as Bolsas de Mercadorias e Futuros (...) terão autonomia 5 Artigo 2º, caput, da Resolução CVM 2690/00. 4 administrativa, financeira e patrimonial, operando sob a supervisão da 6 Comissão de Valores Mobiliários . Assim, não seria descabido afirmar que no Brasil existe uma auto-regulação mitigada do mercado de capitais, vez que o Estado intervém constante na dinâmica do mercado através da CVM. Na realidade, em nosso país há uma pluralidade de fontes normativas e fiscalizadoras do Mercado de Capitais, abarcando desde o Congresso Nacional, o Conselho Monetário Nacional, a Comissão de Valores Mobiliários e, só então e desde que não conflite com as normas emanadas do poder público, as normas expedidas pela própria Bolsa. 4. O Poder Disciplinar das Bolsas O poder disciplinar nada mais é que a prerrogativa que as Bolsas possuem de investigar, julgar e aplicar sanções aos membros do mercado de capitais que com ela se relacionam, notadamente corretoras e distribuidoras de valores, companhias e investidores. O Poder Disciplinar é um dos que formam o feixe de poderes que resulta em uma efetiva Auto-Regulação das Bolsas, vez que, se dependesse de outras entidades para julgar e exigir o cumprimento de suas regras, sua autonomia (auto –própria, nomos–normas) seria apenas formal7. Uma análise do poder disciplinar das Bolsas requer sua consideração a partir de seu alcance sobre os diversos tipos de participantes (investidores, as corretoras e empresas) e negócios relativos ao mercado mobiliário. 6 7 Vide também, em especial, os artigos 18 e 21 da Resolução CVM 2690/00. Vide os artigos 62/67 da Resolução CVM 2690/00. 5 O poder disciplinar da Bolsa tem seu maior alcance sobre as corretoras que a compõem e, de fato, não poderia ser diferente. Bolsas do tipo “autorizadas” nada mais são que a união das corretoras visando fornecer um local adequado e padrões éticos que proporcionem igualdade de acesso às informações de seus membros, garantindo a realização do melhor negócio possível. Assim, a Bolsa pode decidir sobre se admite ou não uma nova corretora como membro, suspende -la, suspender seus administradores e operadores, aprovar e negar a nomeação dos administradores, operadores e alterações societárias das corretoras, podendo chegar até mesmo a excluir a corretora do seu quadro de membros. Já no que diz respeito às Sociedades Anônimas cujas ações são negociadas na Bolsa de Valores, o poder regulamentar da Bolsa é apenas parcial; ela não intervir nos assuntos internos das companhias, tais como distribuição de dividendos, número de ações, tipo de ações, etc, embora, a Bolsa possa negar a admissão, suspender ou excluir a negociação dos papéis de determinada empresa que estejam sendo negociados na Bolsa e que ela entenda ter descumprido alguma norma referente ao Mercado de Capitais. De fato, as empresas não fazem parte da Bolsa, elas são as emissoras dos papéis que a Bolsa negocia, não seria razoável que a Bolsa pudesse ingerir nos temas internos de quem cria os “produtos” que ela comercializa, o que ela pode fazer é se negar a comercializar este produto, ou seja, a Bolsa pode suspender ou excluir de seu 6 ambiente de negociação os papéis das empresas que não cumpram os requisitos mínimos estabelecidos (BOVESPA), ou os produtos que não se encaixem nas especificações definidas por ela (BM&F). No que toca aos investidores, o poder das Bolsas é quase que nenhum, até mesmo por uma questão lógica: a Bolsa não se relaciona diretamente com os investidores. De fato, a Bolsa se relaciona com os membros que a constituem, as corretoras de valores mobiliários que nela operam por conta própria ou por ordem de um investidor. Mesmo assim, em certos casos, a Bolsa também pode aplicar determinadas sanções ao investidor, por exemplo, o proibindo de negociar derivativos. 5. Experiências internacionais relatadas pela IOSCO O tema da desmutualização tem sido tão recorrente nas Bolsas de todo o mundo que a Organização Internacional das Comissões de Valores Mobiliários (IOSCO, siga em inglês para “International Organization of Securities Commissions”) chegou a montar um grupo para se dedicar ao assunto. Este grupo da IOSCO produziu diversos documentos, dentre os quais se destacam: “Discussion Paper on Stock Exchange Demutualization8” (Dezembro de 2000); “Issues Paper on Exchange Demutualization – A report of’ the Technical Committee of the Iosco 9” 8 “Relatório das discussões sobre a desmutualização das Bolsas”. Tradução não-literal e livre do autor que , nesta e nas outras ocasiões que faz uso deste expediente, pretende preservar o sentido semântico e não etimológico da expressão inglesa quando de sua transposição ao português. 9 “Publicação de Papéis sobra a desmutualização das Bolsas – Um Relatório do Comitê de Suporte Técnico da IOSCO”. Vide comentário à nota 7. 7 10 (junho de 2001); “Exchange Demutualization in Emerging Markets ” (abril de 2005); e, mais recentemente, em junho do corrente ano, na 31ª Conferência da IOSCO, realizada em Hong Kong, foi divulgada a realização da co nsulta pública sobre as emissões de ações e resultado da evolução das Bolsas. Com efeito, o próprio “Discussion Paper on Stock Exchange Demutualization” já colocava que para que fosse viável, a desmutualização deveria responder a pelo menos três questões básicas: “a. Quais conflitos de interesse são criados ou ampliados onde uma entidade que visa o lucro também realiza as funções reguladoras que uma Bolsa poderia ter em se tratando de: i) regulação de Mercado Primário (listagem e admissão de companhias, auto-listagem ); ii) regulação de Mercado Secundário (regras de operações); e iii) regulação dos membros ? b. Um mercado de capitais justo e eficiente é um bem público. Uma bolsa que funciona bem é uma parte chave do Mercado de capitais. Existe a necessidade de impor um regime especial nas Bolsas para proteger o interesse público, como acordos particulares de governança ou regras que tratam do proprietário das trocas? c. Uma bolsa que vise o lucro irá funcionar com a preocupação de sua viabilidade financeira ? Um fundo adequado será resguardado para as funções regulatórias, incluindo acordos desenvolvidos para lidar com defeitos?11” Portanto, a discussão que o Brasil vem vivendo sobre as possibilidades e formas de conciliar a desmutualizaç ão das Bolsas com o poder disciplinar que elas exercem em decorrência do poder de auto-regulação que a lei lhes concede, já foi colocada pela própria entidade internacional que representa as Comissões de Valores Imobiliários dos mais diferentes países. 10 11 “Desmutualização das Bolsas nos Mercados Emergentes”. Vide comentário a nota 7. “Relatório das discussões sobre a desmutualização das Bolsas” , p. 02. 8 Entre as sugestões apresentadas pelos consultados à IOSCO, o “Paper” destacou as seguintes: “_ definir regras para as negociações, se assegurando para que fossem observadas ; _ determinar qualificações para listar ou admitir à negociação e assegurar a continua divulgação de informações no mercado pelas entidades listadas; _ adotar e reforçar regras de conduta para os membros de Mercado de Valores Mobiliários; _ definir padrões de qualificação e situação financeira para os profissionais do Mercado de Capitais; _ conduzir a vigilância do Mercado e seus participantes; _ investigando as violações às regras do Mercado de Capitais e punindo os violadores; _ monitorando e regulando diariamente o day-trade e a as operações do Mercado, assegurando sua integridade ; e _ agindo de forma ampla em defesa do interesse público.12” Assim, embora louváveis as sugestões da IOSCO, e ainda que de acordo com os princípios informadores do Mercado de Capitais13, o fato é que o como realizar estas idéias não aparece em nenhuma das sugestões apontadas. É bem verdade que o próprio estudo da IOSCO afirma que não pretende ser um roteiro ou “manual” para a desmutualização, mas apenas um instrumento facilitador da troca de idéias entre as diversas Bolsas do mundo, as que tivessem passado, estivessem enfrentando ou que pretend am iniciar um processo de desmutualização, suas experiências e as soluções que cada um encontrou para os problemas específicos que enfrentaram. 12 Idem, ibidem , p. 07. Tradução do autor. MOSQUERA, Roberto Quiroga. “Princípios Informadores do Mercado de Capitais” i n MOSQUERA, Roberto Quiroga. Aspectos Atuais do Mercado Financeiro e de Capitais. São Paulo, Dialética, 1999. 13 9 Neste sentido, o documento da IOSCO ressalta que a solução encontrada pelas Bolsas de cada país varia de acordo com a economia, suas características e até mesmo com a filosofia que está por trás das práticas do mercado em que se insere cada Bolsa especificamente. Assim, gostaríamos de trazer à baila, a título de exemplo, os casos de Austrália, Estados Unidos (Chicago) e Londres. 5.a) Austrália – Australian Stock Exchange No caso australiano, a Australian Stock Exchange (ASX) decidiu em 19 de outubro de 1996 (portanto dez anos atrás) que iria se desmutualizar e, em outubro de 1998 a ASX listou suas próprias ações em seu ambiente de negociação. A partir de um Acordo firmado entre a Australian Security and Investiment Commission (ASIC) e a ASX, alterações foram feitas na legislação local para que determinadas prerrogativas decorrentes do poder de auto -regulação que a ASX exercia passassem a ser de competência exclusiva da ASIC, tais como: regulação e controle dos procedimentos de listagem, cobrança de taxas, supervisão de negociações e procedimentos, registro eletrônico das negociações, procedimentos de negociação, compensação e oferecimento de informações. Como forma de dar mais transparência à sua administração e suas administração, a ASX criou uma subsidiária, a “ASX Supervisory Review Pty. Limited”, que conta com maioria de diretores independentes em seu Conselho de Administração, e que tem por objeto social a supervisão e revisão dos atos da ASX. 10 Assim, no caso australiano o que houve foi um verdadeiro afastamento da ASX da parte reguladora do mercado de capitais e títulos mobiliários, e embora a ASX tenha assegurado certas limitações à capacidade da ASIC sobre sua forma de proceder, a Bolsa australiana passou a ser uma sociedade anônima cujo objetivo é oferecer um local onde outras sociedades autorizadas pela ASIC podem comercializar títulos mobiliários. 5.b) EUA - Chicago Mercantile Exchange Já o caso da Bolsa de Chicago, a Chicago Mercantile Exchange (CME), reveste-se de especial importância porque foi o primeiro caso de desmutualização de uma Bolsa norte-americana, justamente o país que tem o mercado mobiliário mais dinâmico e economicamente mais relevante em todo o globo. Neste caso a desmutualização não foi feita através uma Oferta Pública Inicial de Ações (IPO, sigla para a expressão inglesa Initial Public Offering), mas sim pela conversão dos antigos títulos das corretoras em aproximadamente 26 (vinte e seis) milhões de Ações “classe A”, que dão direitos iguais e amplos sobre a administração e direito de intermediar negócios na CME, e algo em torno de 5 (cinco) mil ações, “classe B”, que dão apenas direito de intermediar negócios na CME, mas não de interferir na administração da própria Bolsa. Neste caso, a CME manteve todas as suas prerrogativas, inclusive no que tange à auto-regulação, o acionista que queira exercer seu direito de intermediar negócios na Bolsa de Chicago tem que obter prévia autorização da própria CME, sem a qual, embora 11 possua nominalmente o direito de intermediar negociações na Bolsa, não poderá exercer este privilégio. É importante notar que a interferência da Security Exchange Commission (SEC) e dos outros órgãos estatais reguladores do Mercado de Capitais nos Estados Unidos sempre foi muito grande, de tal sorte que as prerrogativas que a ASX deixou de exercer na Austrália, passando-as para a ASIC, já não eram mais de competência da CME nos EUA, mas já eram reguladas pela SEC. 5.c) Inglaterra - London Stocks Exchange Por fim, temos o caso da London Stocks Exchange, que na década de 1990 iniciou seu processo de desmutualização e, dez anos depois, assumiu a denominação London Stocks Exchange plc.” (LSE), assumindo definitivamente a forma de uma sociedade anônima. O caso inglês, como destacado ao se comentar a tipologia das Bolsas no mundo, é sui generis, vez que, enquanto CME e a ASX são Bolsas do tipo “autorizada”, a LSE é um dos raros exemplos de Bolsa “liberal”, o que acarretou ao seu processo de desmutualização, dentre outras especificidades, um acalorado debate em torno de seu poder de auto -regulação, secular e bem mais amplo que nos cases que descrevemos anteriormente, bem como nas outras partes do mundo. Assim, após intenso debate de quase 10 (dez) anos, em 1999 ficou acertado entre a LSE e o Estado inglês que o Mercado Primário seria regulado pela UK Listing Authority (UKLA), enquanto que o Mercado Secundário continuaria a ser regulado pela LSE, que 12 manteve inclusive poderes para conduzir investigações preliminares sobre negociações que pudessem ser irregulares, como, por exemplo, a prática do insider trading, que nada mais é que a realização de negócios na Bolsa com base em informações privilegiadas. A exemplo da ASX, a LSE tomou o cuidado de estabelecer limites de titularidade de ações, de modo a garantir que nenhuma pessoa, física ou jurídica, detivesse participação societária suficiente para controlar ou influenciar as funções de auto-regulação que a LSE possui no mercado mobiliário britânico. 6. Desmutualização e Auto -Regulação no Brasil A desmutualização no Brasil é fenômeno recente, principalmente se levarmos em conta as tendências mundiais; enquanto que em muitos países as discussões acerca da desmutualização das Bolsas começou no início ou em meados da década de 1990, no Brasil, apenas depois da virado do século XX para o século XXI é que BOVESPA e a BM&F intensificaram suas ações em direção à sua própria desmutualização. Como já havíamos desenvolvido nos itens que tratavam da natureza jurídica e do poder de auto -regulação das Bolsas, ao olharmos especificamente para o Brasil, o que vemos é um sistema em que o poder de auto-regulação e seu viés disciplinar funcionam por “camadas”, incidindo mais fortemente sobre algumas destas camadas que em outras. 13 Assim, qualquer estudo que pretenda estudar as relações entre desmutualização e auto-regulação no Brasil precisa perceber estas relações em cada uma das supracitadas “camadas”: o impacto da desmutualização no poder de auto-regulação das Bolsas e suas relações com as corretoras membros, companhias e produtores, bem como com os investidores. Atualmente, vemos que, no que diz respeito às corretoras – a camada mais externa deste sistema – as Bolsas possuem poder regulamentar, decisório e executivo de suas decisões; não obstante, em caso de desmutualização, seriam estas corretoras acionistas da “Bolsa S.A.” e, como tais, continuariam a compor seu quadro regulador, julgad or e executivo, exatamente como é hoje. Neste sentido, não vemos maiores problemas no que tange à segurança e credibilidade do mercado de capitais pátrio. A segunda “camada” talvez seja aquela que mais levante questões quando tratamos de desmutualização, pois é constituída das companhias que ofertam suas ações, debêntures e outros títulos mobiliários no mercado de capitais brasileiro. Com efeito, é de responsabilidade da Bolsa de Valores regulamentar e instrumentalizar a realização fenomenológica do Mercado de Capitais, por exemplo, o dever de determinar o procedimento e decidir sobre a listagem ou não de companhias que queiram participar do mercado mobiliário brasileiro, tal decisão , não obstante, depende de fundamentação da sua decisão, que deverá 14 estar amparada não só nas regras expedidas na Bovespa, mas também dentro dos limites previstos na lei. Tanto é assim que o art. 68, II da Resolução CVM 2690/00. determina claramente que “A Comissão de Valores Mobiliários pode sustar a aplicação de decisões das bolsas de valores, no todo ou em parte, especialmente quando se trate de proteger os interesses dos investidores”. Em suma, caso norma ou decisão da Bolsa em, por exemplo, admitir ou não a comercialização de determinado valor mobiliário fosse editada/tomada por motivo egoístico, visando unicamente ampliar seu profit e não os interesses do mercado e, em especial, dos investidores poderia ser suspensa pela CVM, que poderia não só penalizar os membros da Bolsa, como também, como medida mais extrema, cassar a autorização de funcionamento daquela Bolsa (art. 68, V da Resolução CVM 2690/00. No caso dos investidores, o alcance do poder regulamentar e disciplinar da Bolsa sempre foi mitigado, de tal sorte que a desmutualização pouco ou nada mudaria este relacio namento. 7. Conclusão Ante o exposto, podemos destacar, da forma mais sintética possível, as seguintes conclusões: I – A desmutualização das Bolsas é um fenômeno recente e de alcance internacional; 15 II – A desmutualização das Bolsas já ocorreu nos principais mercados de capitais do mundo, atingindo excelentes resultados; III – Todo processo de desmutualização de Bolsas traz uma série de questões pertinentes às suas conseqüências para a transparência, isonomia e credibilidade do mercado; IV – Estas questões podem ser sintetizadas em um problema fundamental: como conciliar o interesse de lucro da “Bolsa S.A.” com o papel regulador e disciplinador que elas exercem; V – Este tema já foi abordado pelo IOSCO em uma série de Papers , que visam compartilhar idéias e experiências verificadas nos mais diversos países e as saídas que cada um encontrou para conciliar o interesse de profit da Bolsa desmutualizada e seu papel regulador e disciplinador no mercado; VI – Nos três cases explorados pelo artigo (Austrália, EUA [Chicago] e Inglaterra) as alternativas variaram de acordo com história, costume do mercado, função e natureza jurídica das Bolsas em cada um daqueles países; VII – No Brasil, a desmutualização ainda não ocorreu; não obstante, as principais Bolsas de nosso país – BOVESPA e BM&F – já demonstraram sua intenção de se desmutualizar, contratando instituições financeiras para avaliar os impactos desta alteração em seu status societário, bem como fomentando e participando de um debate com o meio acadêmico e os principais grupos políticos e econômicos que seriam atingidos pela abertura de capital das Bolsas; VIII – O papel exercido pela CVM possibilita que, a exemplo de Chicago, as mudanças decorrentes de eventual desmutualização de nossas Bolsas ocorra sem grandes impactos, vez que a Comissão atua como “duplo grau de jurisdição” na esfera administrativa em todos – ou ao menos na grande maioria – das hipóteses em que 16 poderia haver conflito entre os interesse particular das Bolsas e do Mercado como um todo; VIII – Por fim, mas não menos importante, podemos afirmar que o mercado de capitais brasileiro está pronto para se juntar ao mercado norte-americano, europeu e de outros países onde a desmutualização já é um sucesso, e nos quais sua ocorrência não só elevou os valore s dos papéis e do capital próprio das Bolsas, como também as democratizou, aquecendo e fortalecendo ainda mais os mercados em que se encontram. 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