Auto-Regulação, “Bolsa S.A.” e os Discussion Papers da IOSCO
Resumo: Este artigo trata das relações
entre a Auto-Regulação e o movimento
de desmutualização das Bolsas no
mundo a partir dos Documentos da
IOSCO e seus reflexos e influências no
debate sobre a desmutualização no
Brasil.
Abstract: This article is about relations
between the self-regulation and the
movement of demutualization from the
Exchanges in the world since the
documents produced by IOSCO and his
impacts and influences in the debate
about the demutualization in Brazil.
1. Introdução
O objetivo precípuo deste artigo é contribuir para o debate
que se instaurou no país a partir do momento em que a Bolsa de
Valores de São Paulo (BOVESPA) e a Bolsa de Mercadorias e
Futuros (BM&F) manifestaram interesse em seguir a tendência
mundial de se desmutualizarem e se tornarem sociedades anônimas 1.
A partir deste momento vieram à tona muitas questões, entre
as quais: como se poderia conciliar o poder auto -regulamentador das
Bolsas com os seus interesses como sociedade anônima? As Bolsas
poderiam emitir ações? Em caso afirmativo, quem fiscalizaria as
operações que envolvessem as ações da Bolsa?
Estes e outros questionamentos já tiveram que ser
enfrentados pelos Mercados de Capitais alienígenas onde a
1
Esta é uma tendência mundial, sendo certo que são Bolsas de Valores organizadas sob a forma
de sociedade anônima, por exemplo, as Bolsas de Londres, Chicago e Indonésia..
1
desmutualização das Bolsas ocorreu, sendo certo que a solução
encontrada por cada um deles não foi a mesma, mas sim aquela que
melhor poderia se amoldar às peculiaridades jurídicas, culturais e
econômicas de cada um destes países.
Desta forma, procuraremos aqui expor algumas experiências
ocorridas através do Direito Comparado, buscando sempre sugerir
alguns caminhos para que, com base nas experiências vividas em
outros países e se realmente for de interesse das Bolsas Nacionais,
viabilizar tal desmutualização e preservar a segurança e credibilidade
do Mercado de Capitais brasileiro.
2. Natureza jurídica das Bolsas
É de conhecimento vulgar dos profissionais que atuam na
área do Mercado de Capitais, que sua regulação em nosso país é
hoje regida pela Lei Ordinária Federal nº. 6385/76 (LMC). Esta, em
seu artigo 1º, incisos IV e V, avoca para si a competência para, dentre
outros temas, dispor sobre a regulação e fiscalização da organização,
o funcionamento e as operações das Bolsas de Valores e de
Mercadorias e Futuros de nosso país.
Em seu artigo 18, I, a LMC confere à Comissão de Valores
Mobiliários (CVM) a competência para editar normas gerais sobre as
Bolsas no território nacional, abrangendo esta competência desde a
estipulação dos requisitos para a criação de uma Bolsa, até as
normas que disciplinam seu funcionamento e hipóteses de dissolução.
Atualmente, a norma que satisfaz a determinação do artigo 18, I da
LMC é a Resolução CVM 2690/00.
2
De acordo com a resolução supracitada, as Bolsas poderão
ser constituídas como associações civis ou sociedades anônimas (art.
1º, caput); hoje, tanto a BOVESPA como a BMF estão constituídas
2
sob a forma de associações civis sem fins lucrativos .
3. Conceito, n atureza jurídica e previsão legal da Auto-Regulação
Segundo Arnoldo Wald e Nelson Eizirik, “por auto-regulação
do mercado compreende-se a normatização e fiscalização, pelo órgão
corporativo (a Bolsa de Valores), das atividades de seus membros,
com vistas à manutenção de elevados padrões éticos na prática dos
negócios.3”
A auto-regulação pode ser definida, grosso modo, como a
capacidade de uma mesma pessoa, física ou jurídica, criar
determinadas normas, fiscalizar seu cumprimento e aplicar a sanção
correspondente ao infrator que, no seu entender, as descumpriu.
Com efeito, este poder de auto-regulação não é absoluto,
sofrendo variações de acordo com o grau de intervenção do Estado
nas Bolsas. Assim, seguindo a tipologia desenvolvida por Ary
Oswaldo Mattos Filho4 , se pode classificar o regime jurídico das
Bolsas em três tipos: liberais, autorizadas e instituídas.
2
Vide artigo 1º do Estatuto Social da BOVESPA e artigo 1º do Estatuto Social da BM&F.
WALD, Arrnoldo e Eizirik, Nelson. O Regime Jurídico das Bolsas de Valores e sua autonomia
frente ao Estado in Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, nº. 61,
janeiro/março de 1986, p. 05/21.
4
A este respeito vide: MATTOS FILHO. Natureza Jurídica das Atividades das Bolsas de Valores in
Revista dos Tribunais, nº. 603, p.23/37.
3
3
O primeiro tipo, chamado de “liberais”, tem como arquétipo a
Inglaterra, aonde vem sendo mantido já há alguns séculos, e se
caracteriza por uma interferência mínima do Estado na atividade
reguladora do mercado, sempre buscando harmonizar os interesses
do Mercado e os interesses do Estado.
O segundo tipo, as “autorizadas”, tem suas raízes ainda no
século XIX, onde em países como França, Portugal e Áustria,
dependiam de autorização ministerial para sua criação. Tal sistema foi
evoluindo e, em 1934, com a criação nos Estados Unidos da América
da Securities and Exchange Commission (SEC), a criação das Bolsas
passaram a depender de autorização de órgãos estatais criados
especificamente para a normatização e fiscalização do Mercado
Mobiliário.
Já as Bolsas “instituídas”, são aquelas que dependem de lei
para sua criação. Diferentemente dos tipos descritos acima, esta
Bolsas eram criadas por meio de lei, e não por uma ato de vontade de
seus associados. Neste sistema, muitas vezes é o próprio Estado e
não particulares, que faz o papel de intermediador, tendo sido este o
regime adotado pelo Brasil até o advento da Lei Federal nº. 4728/65.
Atualmente, vige em nosso país o tipo de autorização
administrativa do Estado, que é de competência da CVM, que tem
também poder de as supervisionar e fiscalizar5 . Não obstante, merece
destaque o art. 17 da LMC que traz a ressalva de que as Bolsas de
Valores, as Bolsas de Mercadorias e Futuros (...) terão autonomia
5
Artigo 2º, caput, da Resolução CVM 2690/00.
4
administrativa, financeira e patrimonial, operando sob a supervisão da
6
Comissão de Valores Mobiliários .
Assim, não seria descabido afirmar que no Brasil existe uma
auto-regulação mitigada do mercado de capitais, vez que o Estado
intervém constante na dinâmica do mercado através da CVM. Na
realidade, em nosso país há uma pluralidade de fontes normativas e
fiscalizadoras do Mercado de Capitais, abarcando desde o Congresso
Nacional, o Conselho Monetário Nacional, a Comissão de Valores
Mobiliários e, só então e desde que não conflite com as normas
emanadas do poder público, as normas expedidas pela própria Bolsa.
4. O Poder Disciplinar das Bolsas
O poder disciplinar nada mais é que a prerrogativa que as
Bolsas possuem de investigar, julgar e aplicar sanções aos membros
do mercado de capitais que com ela se relacionam, notadamente
corretoras e distribuidoras de valores, companhias e investidores. O
Poder Disciplinar é um dos que formam o feixe de poderes que resulta
em uma efetiva Auto-Regulação das Bolsas, vez que, se dependesse
de outras entidades para julgar e exigir o cumprimento de suas regras,
sua autonomia (auto –própria, nomos–normas) seria apenas formal7.
Uma análise do poder disciplinar das Bolsas requer sua
consideração a partir de seu alcance sobre os diversos tipos de
participantes (investidores, as corretoras e empresas) e negócios
relativos ao mercado mobiliário.
6
7
Vide também, em especial, os artigos 18 e 21 da Resolução CVM 2690/00.
Vide os artigos 62/67 da Resolução CVM 2690/00.
5
O poder disciplinar da Bolsa tem seu maior alcance sobre as
corretoras que a compõem e, de fato, não poderia ser diferente.
Bolsas do tipo “autorizadas” nada mais são que a união das corretoras
visando fornecer um local adequado e padrões éticos que
proporcionem igualdade de acesso às informações de seus membros,
garantindo a realização do melhor negócio possível.
Assim, a Bolsa pode decidir sobre se admite ou não uma
nova
corretora
como
membro,
suspende -la,
suspender
seus
administradores e operadores, aprovar e negar a nomeação dos
administradores, operadores e alterações societárias das corretoras,
podendo chegar até mesmo a excluir a corretora do seu quadro de
membros.
Já no que diz respeito às Sociedades Anônimas cujas ações
são negociadas na Bolsa de Valores, o poder regulamentar da Bolsa é
apenas parcial; ela não
intervir nos assuntos internos das
companhias, tais como distribuição de dividendos, número de ações,
tipo de ações, etc, embora, a Bolsa possa negar a admissão,
suspender ou excluir a negociação dos papéis de determinada
empresa que estejam sendo negociados na Bolsa e que ela entenda
ter descumprido alguma norma referente ao Mercado de Capitais.
De fato, as empresas não fazem parte da Bolsa, elas são as
emissoras dos papéis que a Bolsa negocia, não seria razoável que a
Bolsa pudesse ingerir nos temas internos de quem cria os “produtos”
que ela comercializa, o que ela pode fazer é se negar a comercializar
este produto, ou seja, a Bolsa pode suspender ou excluir de seu
6
ambiente de negociação os papéis das empresas que não cumpram
os requisitos mínimos estabelecidos (BOVESPA), ou os produtos que
não se encaixem nas especificações definidas por ela (BM&F).
No que toca aos investidores, o poder das Bolsas é quase
que nenhum, até mesmo por uma questão lógica: a Bolsa não se
relaciona diretamente com os investidores. De fato, a Bolsa se
relaciona com os membros que a constituem, as corretoras de valores
mobiliários que nela operam por conta própria ou por ordem de um
investidor. Mesmo assim, em certos casos, a Bolsa também pode
aplicar determinadas sanções ao investidor, por exemplo, o proibindo
de negociar derivativos.
5. Experiências internacionais relatadas pela IOSCO
O tema da desmutualização tem sido tão recorrente nas
Bolsas de todo o mundo que a Organização Internacional das
Comissões de Valores Mobiliários (IOSCO, siga em inglês para
“International Organization of Securities Commissions”) chegou a
montar um grupo para se dedicar ao assunto.
Este grupo da IOSCO produziu diversos documentos, dentre
os quais se destacam: “Discussion Paper on Stock Exchange
Demutualization8” (Dezembro de 2000); “Issues Paper on Exchange
Demutualization – A report of’ the Technical Committee of the Iosco 9”
8
“Relatório das discussões sobre a desmutualização das Bolsas”. Tradução não-literal e livre do
autor que , nesta e nas outras ocasiões que faz uso deste expediente, pretende preservar o sentido
semântico e não etimológico da expressão inglesa quando de sua transposição ao português.
9
“Publicação de Papéis sobra a desmutualização das Bolsas – Um Relatório do Comitê de
Suporte Técnico da IOSCO”. Vide comentário à nota 7.
7
10
(junho de 2001); “Exchange Demutualization in Emerging Markets ”
(abril de 2005); e, mais recentemente, em junho do corrente ano, na
31ª Conferência da IOSCO, realizada em Hong Kong, foi divulgada a
realização da co nsulta pública sobre as emissões de ações e
resultado da evolução das Bolsas.
Com efeito, o próprio “Discussion Paper on Stock Exchange
Demutualization” já colocava que para que fosse viável, a
desmutualização deveria responder a pelo menos três questões
básicas:
“a. Quais conflitos de interesse são criados ou ampliados onde uma
entidade que visa o lucro também realiza as funções reguladoras
que uma Bolsa poderia ter em se tratando de:
i) regulação de Mercado Primário (listagem e admissão de
companhias, auto-listagem );
ii) regulação de Mercado Secundário (regras de operações); e
iii) regulação dos membros ?
b. Um mercado de capitais justo e eficiente é um bem público. Uma
bolsa que funciona bem é uma parte chave do Mercado de capitais.
Existe a necessidade de impor um regime especial nas Bolsas para
proteger o interesse público, como acordos particulares de
governança ou regras que tratam do proprietário das trocas?
c. Uma bolsa que vise o lucro irá funcionar com a preocupação de
sua viabilidade financeira ? Um fundo adequado será resguardado
para as funções regulatórias, incluindo acordos desenvolvidos para
lidar com defeitos?11”
Portanto, a discussão que o Brasil vem vivendo sobre as
possibilidades e formas de conciliar a desmutualizaç ão das Bolsas
com o poder disciplinar que elas exercem em decorrência do poder de
auto-regulação que a lei lhes concede, já foi colocada pela própria
entidade internacional que representa as Comissões de Valores
Imobiliários dos mais diferentes países.
10
11
“Desmutualização das Bolsas nos Mercados Emergentes”. Vide comentário a nota 7.
“Relatório das discussões sobre a desmutualização das Bolsas” , p. 02.
8
Entre as sugestões apresentadas pelos consultados à
IOSCO, o “Paper” destacou as seguintes:
“_ definir regras para as negociações, se assegurando para que
fossem observadas ;
_ determinar qualificações para listar ou admitir à negociação e
assegurar a continua divulgação de informações no mercado pelas
entidades listadas;
_ adotar e reforçar regras de conduta para os membros de Mercado
de Valores Mobiliários;
_ definir padrões de qualificação e situação financeira para os
profissionais do Mercado de Capitais;
_ conduzir a vigilância do Mercado e seus participantes;
_ investigando as violações às regras do Mercado de Capitais e
punindo os violadores;
_ monitorando e regulando diariamente o day-trade e a as
operações do Mercado, assegurando sua integridade ; e
_ agindo de forma ampla em defesa do interesse público.12”
Assim, embora louváveis as sugestões da IOSCO, e ainda
que de acordo com os princípios informadores do Mercado de
Capitais13, o fato é que o como realizar estas idéias não aparece em
nenhuma das sugestões apontadas.
É bem verdade que o próprio estudo da IOSCO afirma que
não pretende ser um roteiro ou “manual” para a desmutualização, mas
apenas um instrumento facilitador da troca de idéias entre as diversas
Bolsas do mundo, as que tivessem passado, estivessem enfrentando
ou que pretend am iniciar um processo de desmutualização, suas
experiências e as soluções que cada um encontrou para os problemas
específicos que enfrentaram.
12
Idem, ibidem , p. 07. Tradução do autor.
MOSQUERA, Roberto Quiroga. “Princípios Informadores do Mercado de Capitais” i n
MOSQUERA, Roberto Quiroga. Aspectos Atuais do Mercado Financeiro e de Capitais. São Paulo,
Dialética, 1999.
13
9
Neste sentido, o documento da IOSCO ressalta que a
solução encontrada pelas Bolsas de cada país varia de acordo com a
economia, suas características e até mesmo com a filosofia que está
por trás das práticas do mercado em que se insere cada Bolsa
especificamente. Assim, gostaríamos de trazer à baila, a título de
exemplo, os casos de Austrália, Estados Unidos (Chicago) e Londres.
5.a) Austrália – Australian Stock Exchange
No caso australiano, a Australian Stock Exchange (ASX)
decidiu em 19 de outubro de 1996 (portanto dez anos atrás) que iria
se desmutualizar e, em outubro de 1998 a ASX listou suas próprias
ações em seu ambiente de negociação.
A partir de um Acordo firmado entre a Australian Security and
Investiment Commission (ASIC) e a ASX, alterações foram feitas na
legislação local para que determinadas prerrogativas decorrentes do
poder de auto -regulação que a ASX exercia passassem a ser de
competência exclusiva da ASIC, tais como: regulação e controle dos
procedimentos de listagem, cobrança de taxas, supervisão de
negociações e procedimentos, registro eletrônico das negociações,
procedimentos de negociação, compensação e oferecimento de
informações.
Como forma de dar mais transparência à sua administração
e suas administração, a ASX criou uma subsidiária, a “ASX
Supervisory Review Pty. Limited”, que conta com maioria de diretores
independentes em seu Conselho de Administração, e que tem por
objeto social a supervisão e revisão dos atos da ASX.
10
Assim, no caso australiano o que houve foi um verdadeiro
afastamento da ASX da parte reguladora do mercado de capitais e
títulos mobiliários, e embora a ASX tenha assegurado certas
limitações à capacidade da ASIC sobre sua forma de proceder, a
Bolsa australiana passou a ser uma sociedade anônima cujo objetivo
é oferecer um local onde outras sociedades autorizadas pela ASIC
podem comercializar títulos mobiliários.
5.b) EUA - Chicago Mercantile Exchange
Já o caso da Bolsa de Chicago, a Chicago Mercantile
Exchange (CME), reveste-se de especial importância porque foi o
primeiro caso de desmutualização de uma Bolsa norte-americana,
justamente o país que tem o mercado mobiliário mais dinâmico e
economicamente mais relevante em todo o globo.
Neste caso a desmutualização não foi feita através uma
Oferta Pública Inicial de Ações (IPO, sigla para a expressão inglesa
Initial Public Offering), mas sim pela conversão dos antigos títulos das
corretoras em aproximadamente 26 (vinte e seis) milhões de Ações
“classe A”, que dão direitos iguais e amplos sobre a administração e
direito de intermediar negócios na CME, e algo em torno de 5 (cinco)
mil ações, “classe B”, que dão apenas direito de intermediar negócios
na CME, mas não de interferir na administração da própria Bolsa.
Neste caso, a CME manteve todas as suas prerrogativas,
inclusive no que tange à auto-regulação, o acionista que queira
exercer seu direito de intermediar negócios na Bolsa de Chicago tem
que obter prévia autorização da própria CME, sem a qual, embora
11
possua nominalmente o direito de intermediar negociações na Bolsa,
não poderá exercer este privilégio.
É importante notar que a interferência da Security Exchange
Commission (SEC) e dos outros órgãos estatais reguladores do
Mercado de Capitais nos Estados Unidos sempre foi muito grande, de
tal sorte que as prerrogativas que a ASX deixou de exercer na
Austrália, passando-as para a ASIC, já não eram mais de
competência da CME nos EUA, mas já eram reguladas pela SEC.
5.c) Inglaterra - London Stocks Exchange
Por fim, temos o caso da London Stocks Exchange, que na
década de 1990 iniciou seu processo de desmutualização e, dez anos
depois, assumiu a denominação London Stocks Exchange plc.” (LSE),
assumindo definitivamente a forma de uma sociedade anônima.
O caso inglês, como destacado ao se comentar a tipologia
das Bolsas no mundo, é sui generis, vez que, enquanto CME e a ASX
são Bolsas do tipo “autorizada”, a LSE é um dos raros exemplos de
Bolsa “liberal”, o que acarretou ao seu processo de desmutualização,
dentre outras especificidades, um acalorado debate em torno de seu
poder de auto -regulação, secular e bem mais amplo que nos cases
que descrevemos anteriormente, bem como nas outras partes do
mundo.
Assim, após intenso debate de quase 10 (dez) anos, em
1999 ficou acertado entre a LSE e o Estado inglês que o Mercado
Primário seria regulado pela UK Listing Authority (UKLA), enquanto
que o Mercado Secundário continuaria a ser regulado pela LSE, que
12
manteve inclusive poderes para conduzir investigações preliminares
sobre negociações que pudessem ser irregulares, como, por exemplo,
a prática do insider trading, que nada mais é que a realização de
negócios na Bolsa com base em informações privilegiadas.
A exemplo da ASX, a LSE tomou o cuidado de estabelecer
limites de titularidade de ações, de modo a garantir que nenhuma
pessoa, física ou jurídica, detivesse participação societária suficiente
para controlar ou influenciar as funções de auto-regulação que a LSE
possui no mercado mobiliário britânico.
6. Desmutualização e Auto -Regulação no Brasil
A
desmutualização
no
Brasil
é
fenômeno
recente,
principalmente se levarmos em conta as tendências mundiais;
enquanto que em muitos países as discussões acerca da
desmutualização das Bolsas começou no início ou em meados da
década de 1990, no Brasil, apenas depois da virado do século XX
para o século XXI é que BOVESPA e a BM&F intensificaram suas
ações em direção à sua própria desmutualização.
Como já havíamos desenvolvido nos itens que tratavam da
natureza jurídica e do poder de auto -regulação das Bolsas, ao
olharmos especificamente para o Brasil, o que vemos é um sistema
em que o poder de auto-regulação e seu viés disciplinar funcionam
por “camadas”, incidindo mais fortemente sobre algumas destas
camadas que em outras.
13
Assim, qualquer estudo que pretenda estudar as relações
entre desmutualização e auto-regulação no Brasil precisa perceber
estas relações em cada uma das supracitadas “camadas”: o impacto
da desmutualização no poder de auto-regulação das Bolsas e suas
relações com as corretoras membros, companhias e produtores, bem
como com os investidores.
Atualmente, vemos que, no que diz respeito às corretoras – a
camada mais externa deste sistema – as Bolsas possuem poder
regulamentar, decisório e executivo de suas decisões; não obstante,
em caso de desmutualização, seriam estas corretoras acionistas da
“Bolsa S.A.” e, como tais, continuariam a compor seu quadro
regulador, julgad or e executivo, exatamente como é hoje.
Neste sentido, não vemos maiores problemas no que tange à
segurança e credibilidade do mercado de capitais pátrio.
A segunda “camada” talvez seja aquela que mais levante
questões quando tratamos de desmutualização, pois é constituída das
companhias que ofertam suas ações, debêntures e outros títulos
mobiliários no mercado de capitais brasileiro.
Com efeito, é de responsabilidade da Bolsa de Valores
regulamentar e instrumentalizar a realização fenomenológica do
Mercado de Capitais, por exemplo, o dever de determinar o
procedimento e decidir sobre a listagem ou não de companhias que
queiram participar do mercado mobiliário brasileiro, tal decisão , não
obstante, depende de fundamentação da sua decisão, que deverá
14
estar amparada não só nas regras expedidas na Bovespa, mas
também dentro dos limites previstos na lei.
Tanto é assim que o art. 68, II da Resolução CVM 2690/00.
determina claramente que “A Comissão de Valores Mobiliários pode
sustar a aplicação de decisões das bolsas de valores, no todo ou em
parte, especialmente quando se trate de proteger os interesses dos
investidores”.
Em suma, caso norma ou decisão da Bolsa em, por exemplo,
admitir ou não a comercialização de determinado valor mobiliário
fosse editada/tomada por motivo egoístico, visando unicamente
ampliar seu profit e não os interesses do mercado e, em especial, dos
investidores poderia ser suspensa pela CVM, que poderia não só
penalizar os membros da Bolsa, como também, como medida mais
extrema, cassar a autorização de funcionamento daquela Bolsa (art.
68, V da Resolução CVM 2690/00.
No caso dos investidores, o alcance do poder regulamentar e
disciplinar da Bolsa sempre foi mitigado, de tal sorte que a
desmutualização pouco ou nada mudaria este relacio namento.
7. Conclusão
Ante o exposto, podemos destacar, da forma mais sintética
possível, as seguintes conclusões:
I – A desmutualização das Bolsas é um fenômeno recente e
de alcance internacional;
15
II – A desmutualização das Bolsas já ocorreu nos principais
mercados de capitais do mundo, atingindo excelentes resultados;
III – Todo processo de desmutualização de Bolsas traz uma
série de questões pertinentes às suas conseqüências para a
transparência, isonomia e credibilidade do mercado;
IV – Estas questões podem ser sintetizadas em um problema
fundamental: como conciliar o interesse de lucro da “Bolsa S.A.” com
o papel regulador e disciplinador que elas exercem;
V – Este tema já foi abordado pelo IOSCO em uma série de
Papers , que visam compartilhar idéias e experiências verificadas nos
mais diversos países e as saídas que cada um encontrou para
conciliar o interesse de profit da Bolsa desmutualizada e seu papel
regulador e disciplinador no mercado;
VI – Nos três cases explorados pelo artigo (Austrália, EUA
[Chicago] e Inglaterra) as alternativas variaram de acordo com
história, costume do mercado, função e natureza jurídica das Bolsas
em cada um daqueles países;
VII – No Brasil, a desmutualização ainda não ocorreu; não
obstante, as principais Bolsas de nosso país – BOVESPA e BM&F –
já demonstraram sua intenção de se desmutualizar, contratando
instituições financeiras para avaliar os impactos desta alteração em
seu status societário, bem como fomentando e participando de um
debate com o meio acadêmico e os principais grupos políticos e
econômicos que seriam atingidos pela abertura de capital das Bolsas;
VIII – O papel exercido pela CVM possibilita que, a exemplo
de Chicago, as mudanças decorrentes de eventual desmutualização
de nossas Bolsas ocorra sem grandes impactos, vez que a Comissão
atua como “duplo grau de jurisdição” na esfera administrativa em
todos – ou ao menos na grande maioria – das hipóteses em que
16
poderia haver conflito entre os interesse particular das Bolsas e do
Mercado como um todo;
VIII – Por fim, mas não menos importante, podemos afirmar
que o mercado de capitais brasileiro está pronto para se juntar ao
mercado norte-americano, europeu e de outros países onde a
desmutualização já é um sucesso, e nos quais sua ocorrência não só
elevou os valore s dos papéis e do capital próprio das Bolsas, como
também as democratizou, aquecendo e fortalecendo ainda mais os
mercados em que se encontram.
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Anexos
? “Discussion Paper on Stock Exchange Demutualization”. IOSCO,
dezembro de 2000.
? “Issues Paper on Exchange Demutualization – A report of’ the
Technical Committee of the Iosco” IOSCO, junho de 2001.
18
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