Florestan Fernandes:
o olhar de um socialista revolucionário sobre a Revolução Burguesa no
Brasil [1996] 1
Mário Maestri
Na “América Latina já se faz muito quando se vive com honestidade o ideal de vida de um socialista e
se observa com a coerência possível as ideias centrais do socialismo revolucionário”.
Florestan Fernandes, 1974.
Na contribuição de Florestan Fernandes para a crítica da história da formação
social brasileira ressaltam-se suas investigações sobre as comunidades nativas do
litoral e sobre a questão racial, apresentadas em Organização social dos tupinambá, A
função social da guerra na sociedade tupinambá e A integração do negro na
sociedade de classes. Na mesma ordem de importância, encontra-se o livro A
revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Esses trabalhos
constituem marcos referencias para os estudiosos de nosso passado.
A revolução burguesa no Brasil possui uma importante singularidade, em
relação às outras principais obras de Florestan Fernandes. Ela não constitui uma
reflexão surgida das determinações e das contingências de sua carreira acadêmica. Na
“Nota explicativa” à primeira edição, de agosto de 1974, o autor assinala que aquele
livro, apesar de produto de um sociólogo de profissão, expressava, sobretudo, “as
frustrações e as esperanças de um socialista militante”.
***
Muito mais do que vinte anos separam-nos da redação de A revolução
burguesa no Brasil. Em fins dos anos oitenta, a vitória histórica do capital sobre o
trabalho criou abismos mais profundos, entre aqueles tempos e os nossos, do que o
mero transcurso do tempo cronológico. Hoje, já não é evidente, como o era naquele
então, para os leitores da obra em questão, que o autor, ao discutir a “A revolução
burguesa”, discutia, também e, sobretudo, a “revolução socialista” no Brasil. O
mesmo fizera, Caio Prado Júnior, em 1966, ao editar A revolução brasileira. Nos anos
sessenta e setenta, é bom lembrar, essa discussão não possuía sentido utópico.
Na mesma “Nota explicativa”, Florestan Fernandes lembrava que o livro
começara a ser escrito, oito anos antes, em 1966, como uma “resposta intelectual à
situação política que se criara com o regime instaurado em 31 de março de 1964”.
Deixado de lado, fora concluído, no “segundo semestre de 1973”, quando o autor
retomou e reformulou “os planos iniciais”, adaptando-os a seus “pontos de vistas” de
então. Portanto, em 1973, foi iniciada e concluída a “redação da terceira parte”,
1
MAESTRI, Mário. "Florestan Fernandes: A Revolução burguesa no Brasil”. PRAXIS, Belo Horizonte,
Minas Gerais, mar./jun., 1996 n. 8 , pp. 117-123; “Florestan Fernandes: o olhar de um socialista
revolucionário sobre a revolução burguesa no Brasil”; Idéias, UNICAMP, Campinas, 4(1/2): 81-98,
jan./dez., 1997. Pp. 81-98. O texto da conferência de 1996, ministrada na Unicamp, sofreu correções
limitadas ao estilo.
1
referente à “Revolução burguesa e capitalismo dependente”. Ou seja, referente ao
período pós-64.
A terceira e última parte foi escrita durante uma conjuntura singular. Na época,
em pleno governo Emílio Garrastazu Médici, o Brasil vivia a euforia do “milagre
econômico”, com a inflação em taxas inferiores aos 20%, e o desenvolvimento do PIB
ultrapassando os 11%. Concomitante à euforia desenvolvimentista, a esquerda sofria
sua segunda grande derrota. Após o desastre das estratégias colaboracionistas e
reformistas, em 1964, a esquerda marxista e as organizações armadas eram
irremediável e brutalmente batidas e dizimadas. Em 17 de setembro de 1971, morrera
o capitão Lamarca, no interior da Bahia. Em 1973, em silêncio, iniciava a violenta
repressão à guerrilha rural do Araguaia, que terminaria apenas em 1975.
No cenário latino-americano, a conjuntura era também dramática. Nos diversos
países da América Latina vicejaram governos ditatoriais, dedicados à repressão,
quando não à eliminação física da vanguarda de esquerda e sindical. Em setembro de
1973, a Unidade Popular era derrubada e iniciava o martírio do movimento popular
chileno. Entretanto, em 1º de maio de 1974, o exército de libertação nacional
penetrava em Saigon, pondo fim à longa guerra do Vietnam, com uma clamorosa
vitória das forças revolucionárias, anti-imperialista e anti-capitalistas.
No Brasil, o crescimento econômico, o pleno emprego tendencial, a expansão
do consumo de bens duráveis, para a classe média, e de semiduráveis, para as classes
operárias, criava uma situação que associada à repressão e a uma intensa propaganda
dos grandes meios de comunicação social, permitia que a ditadura militar começasse a
conquistar os seus momentos de maior consenso.
No Brasil, há fenômenos de nosso passado recente que constituem um quase
tabu. Com a chamada redemocratização, tendeu-se a apresentar como base de apoio
do governo militar apenas as classes burguesas endinheiradas, a alta oficialidade do
exército e setores extremistas de direita. Em meados dos anos 70, quando Florestan
Fernandes finalizava seu livro, o apoio ao regime militar, ativo ou passivo, estendia-se
por uma grande parcela das classes médias e penetrava setores das classes populares.
Nas universidades, onde alguns professores e estudantes eram caçados,
aprisionados, exilados, ou mantidos sob uma estrita vigilância, desenvolvia-se um
profissionalismo e apoliticismo em setores dos corpos docente e discente que, nos
fatos, constituía uma espécie de contraponto acadêmico do desenvolvimentismo
militar. Nestes anos, não era apenas perigoso para um intelectual – por mais prestígio
que tivesse – assinalar em um livro sua adesão ao socialismo, e, mais ainda, ao
socialismo revolucionário. Nessa época, fazê-lo começava a ser, como o é ainda hoje,
definitivamente, de mauvais goût. Nesse contexto histórico, é quase desnecessário
lembrar, a redação e a edição de A revolução burguesa no Brasil constituía um ato
político democrático e militante anti-ditatorial ativo.
***
O sociólogo José de Souza Martins teve a honra e o privilégio de ter convivido,
profissional e pessoalmente, com Florestan Fernandes. Em um amplo comentário ao
“Jornal de Resenhas”, da Folha de S. Paulo, de 4 de setembro do ano passado [1995],
“O Brasil de Florestan Fernandes”, lembrava que: “O professor Florestan
Fernandes, nos últimos anos, preocupou-se muito em assegurar, até onde lhe era
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possível, que a leitura de sua obra levaria em conta uma linha de retidão e coerência,
do primeiro ao último trabalho. Sobretudo, ele parecia muito preocupado em
assegurar que seus leitores de agora não vissem nela uma obra fraturada em dois
momentos inconciliáveis: o do sociólogo e o do socialista.”
Segundo José de Souza Martins, Florestan Fernandes temia ser classificado de
“eclético”.
Na obra sociológica de Florestan Fernandes sobressai a singular coerência,
rigor e fidelidade do autor com suas principais opções metodológicas. Nesse sentido, a
sua ojeriza aos “modismos interpretativos”, tão comuns atualmente em importantes
franjas dos meios acadêmicos, estrangeiros e brasileiros, constituía certamente
expressão de uma opção e maturidade metodológicas profundas e precoces. Desde os
momentos iniciais de sua carreira, Florestan Fernandes assumiu como principais
opções metodológicas o “funcionalismo positivista de Durkheim” e a “metodologia
dos tipos ideais de Max Weber” [GORENDER: 1995, 30.]
Entretanto, acredito que A revolução burguesa no Brasil expresse uma espécie
de dualismo que divide, em forma poderosa e frutífera, a obra de Florestan Fernandes.
Talvez a consciência dessa realidade e a vontade de questioná-la e interpretá-la, do
mesmo modo que fizera como os temas sociológicos que abordara, fossem a fonte do
sentimento de insatisfação de Florestan Fernandes, registrado por José de Souza
Marins, em seu sensível artigo para o “Jornal de Resenhas”.
A crítica sociológica da formação do Estado nacional e da gênese,
desenvolvimento e concretização singular da revolução burguesa no Brasil,
apresentada no livro homônimo, constitui um dos mais complexos estudos nacionais
sobre o tema. Sobretudo as duas primeiras partes do livro, “As origens da revolução
burguesa” e “A formação da ordem social competitiva”, como já assinalamos, escritas
em 1966, constituem uma rigorosa e convincente aplicação das opções sociológicas
do autor aos problemas abordados. O modelo interpretativo de Florestan Fernandes
sobre a revolução burguesa é de amplo domínio. Apenas para compreensão desta
apresentação, tentarei realizar uma síntese, certamente muito incompleta e
aproximativa, desse modelo.
***
Durante a colônia, o Brasil constituiria uma sociedade sufocada por uma ordem
estamental, patrimonial e escravista. A riqueza produzida pelo trabalhador escravizado
era monopolizada, sobretudo, pela metrópole e, secundariamente, pelos proprietários
nativos. Os senhores-de-engenho reger-se-iam por determinações estamentais. Apenas
os grandes comerciantes e os artesãos expressariam, em forma tênue, um ideário
capitalista, burguês e liberal, dependente do capitalismo exterior.
Quando da crise do Antigo Regime, sob a pressão do capitalismo externo, a
Independência teria determinado a superação do estatuto colonial e a interiorização
das decisões político-administrativas. Essa transformação política constituiria a
“primeira revolução social” brasileira, mesmo não tendo superado a ordem
estamental, patrimonialista e escravista. Porém, neste contexto singular, o “espírito
capitalista” e “empreendedor” desenvolvido na esfera do “capitalismo comercial”,
teria ganhado força relativa no mundo urbano, estabelecendo articulações com o
interior.
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Quando da Independência, sempre segundo Florestan Fernandes, a ideologia
liberal teria desempenhado um importante papel como vetor ideológico da ruptura
com a metrópole e da inserção subordinada das ditas elites e do país na nova ordem
internacional. O ideário liberal pressionaria no sentido da autonomização do poder do
Estado das práticas patrimonialista, contrabalançando as influências nefastas da
escravidão. Sem o liberalismo, afirmava Florestan Fernandes, “talvez” tivesse
ocorrido a “fragmentação do país”.
Portanto, um Estando nacional incluso nascia das pressões progressistas do
capitalismo externo, amortecidas pela acomodação com a ordem patrimonialista,
estamental e escravista interna. A ordem competitiva expressava-se apenas e os
direitos de cidadania restringiam-se às chamadas elites. Apesar dessa inconclusão, o
progresso conhecido pela ordem capitalista externa seria visto como um ideal a ser
alcançada num futuro distante.
A Independência ensejaria importantes transformações. Para o autor, a
influência mais direta do mercado capitalista internacional ampliaria o mercado
interno e as relações comerciais, desenvolvendo um núcleo urbano de interesses
comerciais, organizado segundo os padrões racionais próprios à “iniciativa privada”,
importados ou transportados do exterior.
O estabelecimento de laços do “setor novo” – urbano, comercial, capitalista e
competitivo – com a produção rural escravista teria determinado que ela funcionasse,
internamente, como fonte de acumulação originária, já que a Independência
estabelecera uma nova partição dos bens do país entre os interesses capitalistas
externos e as ditas elites rurais internas, em condições relativamente vantajosas para
as últimas.
No novo contexto, para Florestan Fernandes, o “comerciante” teria constituído
o principal agente da revolução burguesa. Os proprietários rurais patrimonialistas, sob
a pressão da economia e do mercado internacional, interiorizada pelas relações
comerciais e pelo “setor novo”, apenas assumiam práticas mais racionais e
econômicas, sem abandonarem os princípios estamentais e patrimonialistas.
O “setor novo” fora necessário para a transição da ordem colonial para a
nacional. Transição promovida pelas chamadas elites rurais, consciente da
necessidade do rompimento com o estatuto colonial. Porém, o “setor novo” teria sido
apenas aceito desde que não conflitasse com os princípios patrimonialistas,
estamentais e escravistas da lavoura. A influência positiva dos novos e progressistas
padrões de comportamento capitalistas ensejados pelos vínculos comerciais com o
exterior era incapaz de dissolver a ordem patrimonialista
O crescimento quantitativo da pressão externa do mercado capitalista e interior
do “setor novo” teria determinado transformações qualitativas internas. A economia
de mercado teria irrompido com força revolucionária, levando o escravismo à
desagregação. Quando o “mercado” e não mais o “patrimonialismo” passou a ser visto
como fator de classificação social, a escravidão tornou-se inviável. No novo contexto,
o “fazendeiro do oeste paulista” e o “imigrante” assumiriam papéis revolucionários na
transição para uma sociedade de classes.
Para Florestan Fernandes, o “fazendeiro do oeste paulista” seria o grande
agente “humano nativo” da revolução burguesa. Filho de um setor agrário com raízes
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senhoriais recentes, superaria o comportamento patrimonialista e identificar-se-ia com
a ordem e com a racionalidade burguesa. O “imigrante”, imbuído de uma
“mentalidade capitalista”, imediatista e predatória, racional e refratária ao
patrimonialismo, interessado em acumular riqueza para voltar à pátria, transformar-seia, a seguir, no “herói da industrialização” nacional.
A Abolição, processo revolucionário encetado pelo setor mais avançado da
elite cafeicultora paulista, assinalaria a crise final da ordem patrimonialista e a
dominância da sociedade de classes. No processo, para o autor, o “escravo”, o
“liberto” e o “homem livre dependente” não desempenhariam qualquer papel. As ditas
elites rurais esvaziariam “a revolução abolicionista do significado político e da sua
grandeza humana”.
Quando da Independência, teria se realizado uma ruptura parcial do status
colonial, já que se teriam mantido a ordem patrimonial, estamental e escravista
excludente e uma interpretação estamental e patrimonialista da competição e da
iniciativa privada. Quando da Abolição, por motivos “egoísticos”, para manterem a
desigualdade interna e para realizar uma transição na ordem, as elites teriam realizado,
novamente em forma incompleta, a nova transição, sem se apresentarem como
paladinos da modernidade, da democracia e da nacionalidade.
A revolução burguesa e a transição da ordem estamental à sociedade de classes
seriam realizadas com a acomodação da oligarquia tradicional com a oligarquia
modernizante, prevalecendo a lógica “da dominação burguesa dos grupos
oligárquicos dominantes”. A influência modernizadora externa teria se frustrado com
a formação de um capitalismo competitivo bastardo.
A revolução burguesa não revolucionaria a nação gerando uma democracia
plena, competitiva e nacional que rompesse com a dependência externa e com a
exclusão interna. O processo de transição daria origem, ao contrário, a uma
democracia burguesa restritiva, autocrática e dependente, que não atentaria aos
“interesses nacionais” e negligenciaria “os requisitos igualitários, democráticos e
cívico-humanitários da ordem social competitiva”, não integrando, à sociedade de
classes, como cidadãos, grandes parcelas da comunidade nacional.
O caráter inconcluso da revolução burguesa comprometeria a posterior
transição da economia capitalista competitiva para a economia capitalista
monopolista, obrigando que as ditas elites nacionais integrassem a nação à nova
ordem internacional em forma dependente. A nova dependência possuía importantes
decorrências. O capitalismo monopolista, apesar de internar, eventualmente, formas
modernas de produção, não criava, na sua periferia, os pressupostos sociais que
ensejara nas nações centrais. Ou seja, transplantava, no máximo, um capitalismo
inconcluso e excludente.
No contexto da assimilação consciente da dupla articulação – a desigualdade
interna e da dominação imperialista – a burguesia brasileira abandonava a antiga
utopia burguesa de revolução nacional, assumindo um caráter francamente
conservador. Nesse contexto, a revolução burguesa metamorfoseava-se em contrarevolução, aceitando a subordinação ao “imperialismo total”. O novo caráter
conservador da burguesia nacional não era uma herança do passado patrimonialista,
estamental e escravista. Era expressão de sua própria essência dependente. O
5
rompimento da dependência tornava-se uma tarefa a ser alcançada para a persecução
da transição nacional de nação inconclusa à nação conclusa, de nação dependente à
nação independente.
***
A interpretação de Florestan Fernandes sobre a revolução burguesa
desenvolve-se em dois grandes momentos históricos, considerados por ele não
homogêneos e, consequentemente, impróprios a uma análise que se sirva do mesmo
instrumental sociológico. As determinações essenciais que regeriam o ciclo histórico
pré-Abolição seriam próprias a uma sociedade estamental. Nesse espaço temporal,
dominariam os fenômenos extra-econômicos – ideológicos, psicológicos,
comportamentais, etc. – sobre os econômicos. Nesse período e nesse contexto, o
motor da revolução burguesa seria a introjeção de comportamentos, de práticas e de
éticas superiores e revolucionários próprios ao capitalismo exterior. Os agentes
internos da revolução seriam os comerciantes, os imigrantes e os cafeicultores do
oeste paulista.
A evolução e a superação da sociedade patrimonial e estamental brasileira não
teriam sido minimamente determinadas pela luta de classes, mesmo sob a forma de
confronto estamental entre homens livres e escravizados. O trabalhador escravizado
está absolutamente ausente neste quadro explicativo, que constitui ruptura radical com
o método marxista de análise histórica.
A conclusão da revolução burguesa e a metamorfose da sociedade estamental
em sociedade de classes apresentariam um cenário histórico e sociológico distinto.
Agora, numa inversão radical, as determinações econômicas e de classes, e não mais
fenômenos extra-econômicos, ritmariam os grandes processos históricos nacionais.
Neste contexto, ao contrário, o autor passa lançar mão, em forma sistemática, das
categorias e das interpretações sociológicas marxianas e marxistas.
A não compreensão da leitura de Florestan Fernandes do passado nacional
como uma realidade dual – sociedade estamental; sociedade de classes – pode levar
um leitor superficial a identificar um aparente ecletismo metodológico. Entretanto,
essa transição ontológica e metodológica da análise constitui uma opção explícita e
consciente, e jamais um deslize eclético.
Nesse sentido, acredito que a crítica do modelo explicativo de Florestan
Fernandes no relativo à revolução burguesa no Brasil deva ser realizada a partir do
questionamento da sociedade brasileira colonial como uma ordem estamental. Ou
seja, como um questionamento da abordagem metodológica do autor. No caso em que
esse questionamento seja feito com base na compreensão da vigência de uma
organização social escravista e classista, colonial ou mercantil, no período préAbolição, teríamos uma inversão total dos elementos analíticos, já que a determinação
unificadora da nacionalidade, quando da Independência, passaria a constituir a
escravidão, e a contradição social essencial, durante o período colonial e imperial, a
existente entre trabalhadores escravizados e senhores de escravos.
Nesse caso, a escravidão passaria a ser considerada como uma totalidade,
possuidora de coerência e racionalidade próprias e, em nenhum caso, uma ordem
social e econômica incompleta, inacabada ou capenga, uma espécie de parada
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intermediária, em que a estação final constituiria a ordem capitalista. Leitura de claro
sentido teleológico. Tal interpretação tem sido e vem sendo desenvolvida, sobretudo
nos últimos trinta anos, por historiadores e cientistas sociais brasileiros que
compreendem o passado escravista brasileiro como uma sociedade de classes regida
pela contradição entre escravizadores e escravizados.
.
***
O historiador Jacob Gorender, em artigo recentemente escrito em homenagem
a Florestan Fernandes – “Conhecimento social e militância política em Florestan
Fernandes” –, ao comentar A revolução burguesa no Brasil, propôs que o
homenageado partisse, em sua análise, de “um tipo não só ideal, mas idealizado da
revolução burguesa”. [GORENDER: 1995, 31.] Tal apreciação parece-me pertinente.
Como vimos, um dos axiomas essenciais da interpretação de Florestan Fernandes é a
negativa e a incapacidade das forças burguesas no Brasil de realizarem e concluírem
uma verdadeira revolução nacional.
Na Europa, como alhures, o desenvolvimento e a consolidação das tarefas
democráticas assentaram-se na capacidade das classes trabalhadoras de vergarem as
tendências autoritárias e anti-democráticas das burguesias hegemônicas. A burguesia
francesa, imediatamente após destruir a ordem feudal e apoderar-se o poder político,
empenhou-se em um ativismo contra-revolucionário e conservador que, de repressão
em repressão, de massacre em massacre, terminou nos crimes cometidos contra a
população parisiense, em 1871.
Entretanto, essa idealização da revolução burguesa, uma das chaves analíticas
da leitura de Florestan Fernandes da sociedade pré-republicana, não se projeta, com o
mesmo conteúdo, quando da análise da sociedade brasileira contemporânea. Ela
jamais constitui trampolim para idealizações, ou para a construção de falsas
esperanças, na ordem burguesa contemporânea. Ao contrário, serve para a denúncia e
o combate da ordem burguesa. Parece-me essencial, para a apreciarmos esse fato, não
apenas a compreensão do caráter não homogêneo da história nacional, mas também os
fenômenos que eventualmente determinaram essa visão dual e, sobretudo, o seu
significado último.
***
No capítulo sétimo de A burguesia no Brasil – “O modelo autocrático-burguês de
transformação capitalista” –, Florestan Fernandes aborda a gênese e os prováveis
desdobramento do Estado de exceção surgido, no Brasil, em 31 de março de 1964.
Esta parte do livro, como vimos, foi escrita em 1973, em um momento em que a
ditadura e o grande capital construíram um amplo consenso social, nascido da
impulsão do desenvolvimento da produção capitalista e da repressão e derrota da
esquerda e do movimento social. Tal situação pesava, profunda e dolorosamente,
sobre uma vanguarda marxista e operária batida, dispersa e – em boa parte –
desmoralizada.
Neste contexto social e ideológico adverso, em que se insinuavam propostas
liquidadoras; de desaparecimento e enfraquecimento estrutural da classe operária
como vanguarda revolucionária; de superação do marxismo como método de análise
7
social e, até mesmo, sobre o caráter progressista da “revolução econômica” promovida
pela nova ordem militar, Florestan Fernandes perscrutou e desvelou, com uma
sensibilidade singular, aspectos essenciais da realidade brasileira da época em
transformação.
Na última parte de seu livro, Florestan Fernandes explicita, com singular
pertinência, a incapacidade da burguesia brasileira de manter, por longo prazo, o
regime de exceção, já que, para isto, necessitaria “acelerar, livremente, o
desenvolvimento econômico” e, ao mesmo tempo “manter acesa a contra-revolução
preventiva”. Lembra assim a impertinência das propostas que afirmavam ter a ordem
militar “chegado para ficar”. Mais ainda, assinalava que a luta de classes, entre
possuídos e despossuídos, mesmo sem se explicitar pelos meios tradicionais, lavrava
intensamente no Brasil, e que o desenvolvimento industrial e a extensão da sociedade
de classes tornavam “as realidades do regime de classe muito mais virulentas e
irreversíveis do que eram antes”. Ou seja, que as tensões de classe cresciam e não
decresciam.
Lembrava, igualmente, que o “novo padrão de desenvolvimento capitalista”
determinaria um crescente e positivo aumento da “participação econômica” dos
assalariados, criando uma base mais sólida para os “mecanismos de consciência e de
luta de classe”. Afirmava, combatendo os “simplismos sociológicos do quanto pior,
melhor”, que “pela primeira vez na história do capitalismo no Brasil, os assalariados,
em geral, e as classes operárias, em particular” deixariam “de ser meros instrumentos
e vítimas-mudas passivas do desenvolvimento capitalista”.
Essas propostas podem parecer truísmos, hoje, em 1996, com a construção do
PT. Em 1973, elas constituíam o resultado de uma análise singularmente penetrante
das tendências mais profundas do movimento social brasileiro, ainda mais quando
essa apreciação não desembocava em nenhum messianismo operário. Naquele então,
Florestan Fernandes assinalava que, no futuro, encontravam-se igualmente abertos,
por um lado, o caminho para a cooptação e a integração burguesas do movimento
operário e, por outro, ou para o desenvolvimento de seu espírito anticapitalista.
Nos tempos de exceção, a ficção e os tempos pretéritos servem para os
cientistas sociais e artistas de campo de críticas metafóricas e indiretas às classes
dominantes, quando fazê-las, em forma direta e no presente, constitui iniciativa
temerária. Acredito que o aparente paradoxo de que em A revolução burguesa no
Brasil ocorra precisamente o contrário – o passado seja idealizado, o presente
realizado – explique-se pelo aprofundamento e radicalização, em 1973, da crítica da
sociedade nacional iniciada, por Florestan Fernandes, em 1966.
Na primeira parte do trabalho, enquanto analisa o passado distante, tido como
uma sociedade estamental, Florestan Fernandes aborda com uma linguagem
sociológica neutra e com quase simpatia a ordem e a ideologia burguesas nascentes.
Em alguns momentos, a descrição do agir dos cafeicultores do oeste paulista, vistos
estes últimos como principais vetores da transição para a sociedade de classes,
aproxima-se da quase apologia do passado das chamadas elites paulistas
contemporâneas.
Parece-me importante uma tentativa de interpretação, mesmo exploratória e
provisória, das eventuais determinantes históricas e sociológicas das superações
8
metodológicas e analíticas da terceira parte do livro em relação às duas primeiras. São
conhecidas as origens extremamente pobres – quase miseráveis – de Florestan
Fernandes. É igualmente sabido que a construção de uma sólida e reconhecida carreira
universitária constituiu para ele um verdadeiro projeto de vida. Tal objetivo foi
perseguido com invulgar persistência e integridade. E foi realizado com uma
completitude igualmente singular.
O cenário acadêmico escolhido por Florestan Fernandes para a realização de
objetivos profissionais e pessoais certamente determinou, por muito tempo, os
quadros mínimos e máximos de sua ação intelectual e social. As opções
metodológicas básicas, o papel nulo do trabalhador escravizado como categoria
essencial do passado pré-Abolição e o próprio afastamento da militância que manteve
durante o Estado Novo não podem ser compreendidos dissociados do espaço no qual
construiu sua monumental obra teórica e sua carreira profissional – o mundo
acadêmico paulista dos anos 1940-1960. O fato de ele ser um membro expoente da
comunidade acadêmica certamente determinou o conteúdo da “resposta intelectual”
redigida em 1966 ao governo militar e, eventualmente, a desistência de sua conclusão
e apresentação, naquele momento: “Comecei a escrever este livro em 1966. Ele
deveria ser uma resposta intelectual à situação política que se criara com o regime
instaurado em 31 de março de 1964. A primeira parte foi escrita no primeiro semestre
daquele ano; o fragmento da segunda parte, no fim do primeiro ano. Vários colegas e
amigos leram a primeira parte, alguns demonstrando aceitar os meus pontos de vista,
outros combatendo-os. Isso desanimou-me, levando-me a desistir do ensaio e a
investir o tempo livre em atividades vinculadas ao ensino e ao movimento
universitário [...].”
Ao contrário, o fato de a terceira parte do livro ter sido concluída, em 1973,
quando o Estado de exceção mostrara já sua natureza e quando o autor encontrava-se
irremediavelmente afastado, por ato arbitrário, de suas posições acadêmicas,
certamente ajudam a compreender o caráter radical da nova leitura e a opção por
novos instrumentais metodológicos. A ruptura – talvez temida e certamente não
desejada, em 1966 – efetivara-se e, então, a “resposta intelectual” ao regime militar
pode dar-se, objetivamente, de fora do mundo acadêmico, em forma mais radical.
Tal evolução ajudaria a compreender por que, à medida que a análise engolfase nos tempos contemporâneos, no quotidiano vivido, o que poderia ser apresentado
como “neutralidade axiológica e sociológica” do autor – presentes na primeira e
segunda parte do livro – tende, não raro, a desaparecer, expressando profunda
indignação democrática e um – arriscamos a dizer – genuíno ódio de classe. Em forma
verdadeiramente temerária, os nomes começam a ser dado aos bois, e, em alguns
momento, a indignação e a denúncia explodem, com singular virulência. Ao analisar a
“ordem de 64” Florestan Fernandes assinala: “Em suas investigações, o sociólogo
não pode deixar de vacilar diante dos resultados de suas observações e de suas
interpretações! Parece incrível que semelhante tipo de opressão sistemática possa
existir nos nossos dias atuais; e, mais ainda, que ela e os terríveis mecanismos de
repressão a que precisa recorrer, possam ser conciliados com os ideais igualitários,
9
de respeito à pessoa humana, aos direitos fundamentais do homem e ao estilo
democrático de vida. No entanto, ela aí está - e não apenas na sociedade brasileira!”
Já assinalamos que o livro fora escrito e publicado em ano ainda distante da
chamada abertura democrática, nos momentos em que o regime militar desdobrava
força e recursos para liquidar fisicamente os últimos remanescentes dos grupos
armados e o movimento insurgente animado pelo PC do B, no Araguaia.
***
A revolução burguesa no Brasil constituiu uma das mais densas e complexas
apresentações da chamada Teoria da Dependência. No momento em que foi editado, o
senhor Fernando Henrique Cardoso já havia escrito, em associação, o livro
Dependência y desarrollo en América Latina, publicado, no México, em 1969.
Muitas vezes, as visões de Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso sobre o
capitalismo dependente foram e têm sido abusivamente aproximadas.
Em 1974, os modelos interpretativos dos dois sociólogos já se afastavam, em
pontos nodais. Como assinalamos, Florestan Fernandes via a dependência do regime
colonial e pós-colonial ao mercado externo como fator de desenvolvimento.
Entretanto, o caráter progressista desse “integracionismo” esgotava-se com a
incapacidade das burguesias nacionais de realizarem a revolução nacional. A ruptura
da dependência – o passo seguinte – seria realizada, dentro ou fora da ordem,
necessariamente por obra dos trabalhadores e das classes revolucionárias, associados à
revolução mundial.
Entretanto, nosso atual presidente, Fernando Henrique Cardoso, já dera, havia
algum tempo, no mínimo, um passo adiante, em direção oposta. Em artigo de 1971,
“O modelo político brasileiro”, ele afirmava que “o golpe de 1964” teria deslocado
“o setor nacional-burguês e o grupo estatista-desenvolvimentista da posição
hegemônica que detinham, em proveito do setor mais internacionalizado da burguesia,
mais dinâmico e mais ‘moderno’, porque parte integrante do sistema produtivo do
capitalismo internacional (...).”
Para ele, o golpe de 1964 teria posto “a burguesia nacional em compasso com o
desenvolvimento do capitalismo internacional” e subordinado “a economia nacional a
formas mais modernas de dominância econômica”. Efetivamente, FHC via como
positiva e inevitável a crescente subjunção do capitalismo brasileiro ao internacional.
Criticava apenas o regime militar como superestrutura autoritária, desnecessária e
eventualmente desestabilizadora. Ou seja, não via na dependência um fenômeno
nefasto a ser vencido. Mas sim uma relação desejável à qual devíamos entregar-nos
com gosto.
Essa referência final a FHC busca apenas ressaltar a enorme pressão que a
derrota de 1964 e dos anos setenta causara a setores democráticos e da esquerda
brasileira e a dominância das determinações ideológicas profundas sobre as
conclusões dos sociólogos e dos cientistas sociais, quando postos diante de questões
que expressem confrontos sociais essenciais. Nos momentos em que importantes
interpretes e estudiosos de nossa realidade ensaiavam o retrocesso que se transformou
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em debandada, vinte anos mais tarde, Florestan Fernandes queimava caravelas e
rompia laços com o passado.
***
Para muitos terá sido uma surpresa a galhardia com que Florestan Fernandes
manteve sua integridade intelectual e política, nos anos setenta, e vinte anos mais
tarde, quando a vitória histórica do capital sobre o trabalho causou verdadeira
hecatombe entre a intelectualidade marxista nacional e internacional. A tal ponto isto
é verdade que a Folha de S. Paulo, há alguns meses, num sentido não desprovido de
ironia conservadora, definiu Florestan Fernandes como a “A estrela solitária do
socialismo revolucionário”. Certamente para Florestan Fernandes teria sido
impensável comportar-se de maneira diversa. Em 1974, escrevera que na “América
Latina já se faz muito quando se vive com honestidade o ideal de vida de um
socialista e se observa com a coerência possível as ideias centrais do socialismo
revolucionário”. Outro projeto de vida que soube, igualmente, realizar sem
concessões.
BIBLIOGRAFIA CITADA:
CARDOSO, Fernando Henrique. O modelo político brasileiro: e outros ensaios. São
Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972.
FERNANDES, Florestan. A função social da guerra na sociedade tupinambá. 2 ed.
São Paulo: Pioneira, 1970.
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo:
Ática, 1978. V. I e II.
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação
sociológica. 3 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
FERNANDES, Florestan. Organização social dos tupinambá. São Paulo: Instituto
Progresso, [1948].
GORENDER, Jacob. “Conhecimento social e militância política em Florestan
Fernandes”. PRAXIS, Belo Horizonte, Minas Gerais, 1995, n. 5, pp. 27-32.
GORENDER, Jâcob. 1995 Conhecimento social e militância política em Florestan
Fernandes. Praxis. Belo Horizonte, 1995. (n.5).
MARTINS, José de Souza. “Retratos de Florestan” Jornal de Resenhas. Folha de S.
Paulo, 4 de setembro de 1995. pp. 10-1.
PRADO JÚNIOR, Caio. 4 ed. A revolução brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1972.
(1966).
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A revolução burguesa sob o olhar de um socialista