Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo & Flávia Florentino Varella (org.). Caderno de resumos & Anais
do 2º. Seminário Nacional de História da Historiografia. A dinâmica do historicismo: tradições historiográficas
modernas. Ouro Preto: EdUFOP, 2008. (ISBN: 978-85-288-0057-9)
A escrita da história da independência do Brasil: a polêmica do Correio Official
com O Chronista sobre a História do Brasil de John Armitage
Flávia Florentino Varella1
Mestranda em História
Universidade de São Paulo
John Armitage, um autor desconhecido
Diversos são os historiadores oitocentistas que escreveram sobre a história
brasileira ou que dela fizeram parte, que caíram em parcial ou total desconhecimento.
Apesar do recente aumento de trabalhos dedicados ao estudo e análise das obras de
história produzidas no século XIX, ainda somos profundos desconhecedores da
diversidade das imagens forjadas de nosso passado naquele momento.
A História do Brasil, do inglês John Armitage, integra esse grupo, sobre o qual
possuímos poucas e lacunadas informações. O principal e mais completo estudo feito a
respeito da História do Brasil foi escrito em 1914, e compõe sua terceira edição em
língua portuguesa. Com o intuito de solucionar cabalmente o problema sobre a autoria
desta História, Eugênio Egas ofereceu “Ao Leitor” informações inéditas até aquele
momento.2 Por meio de uma carta enviada ao editor do periódico inglês P. C. (são
indicadas apenas suas iniciais) obteve informações que o levaram a assegurar a
existência de John Armitage e, por conseguinte, a comprovação autoral da História do
Brasil. A polêmica que Eugênio Egas tentava solucionar era calcada nas dúvidas em
relação à autoria e tradução portuguesa dessa obra. Muitos defendiam a hipótese de que
o verdadeiro escritor da História do Brasil teria sido Evaristo da Veiga e, depois de
abandonada essa especulação, cogitaram que Veiga poderia ter sido seu tradutor.
Motivado por essas indagações, Eugênio Egas começou sua busca por John Armitage e
1
Bolsista CAPES sob orientação do Prof. Dr. João Paulo Garrido Pimenta.
Eugênio EGAS. “Ao leitor”. In: João ARMITAGE. História do Brasil: desde o período da chegada da
família de Bragança, em 1808, até a abdicação de D. Pedro I, em 1831, compilada à vista dos documentos
públicos e outras fontes originais formando uma continuação da História do Brasil de Southey. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981, pp. 11-5. Tal edição constitui-se como a mais cuidadosa que
possuímos em língua portuguesa. Algumas edições excluíram partes consideráveis da obra de Armitage,
sendo o exemplo mais crítico a edição produzida pela Melhoramentos na qual todas as notas de rodapé
são simplesmente suprimidas sem nenhum aviso aos leitores. Cf. João ARMITAGE. História do Brasil.
São Paulo: Melhoramentos, 1977.
2
obteve grande sucesso. Por intermédio das informações de um leitor do jornal P. C.
descobriu parte da trajetória do historiador inglês.
Recentemente descobrimos outras informações sobre a trajetória de Armitage
que nos ajudam a entender melhor quem era esse comerciante e seus interesses literários
que culminaram na escrita da História do Brasil. John Armitage nasceu aos 27 de
setembro de 1807 em Failsworth, Lancaster, e logo nos primeiros anos de sua infância
seus pais se mudaram para Dukinfield, Chester, onde iniciou sua educação. Membro de
uma família religiosa, recebeu lição de vários presbíteros e, por volta dos nove anos de
idade, o Reverendo Benjamin Goodier, que conduzia a Congregação Unitária de
Oldham, assumiu sua educação vivendo, inclusive, em sua casa em Dukinfield. Poucos
anos depois, teve que interromper sua instrução para ajudar seu pai na fábrica de
algodão pertencente à família. O jovem Armitage demonstrava forte inclinação para a
escrita, que sua educação ajudou a aprimorar, e mantinha também o gosto pela poesia.
Esse interesse pelas artes literárias motivou Armitage a escrever um poema logo que
deixou de ser um garoto, expressando alguns dos seus sentimentos mais ardentes da
meninice em versos.3
Pouco antes de completar 21 anos, aceitou o convite para trabalhar na firma
mercantil Philips, Wood & Co e foi enviado para a cidade do Rio de Janeiro, onde se
estabeleceu sob o gerenciamento de Mr. John Holland em 1828. No período de sua
estadia (1828-1835), compôs um poema inspirado no Rio de Janeiro. De sua amizade
com Evaristo da Veiga, importante publicista e figura influente na luta política que
levou à abdicação de Dom Pedro I, surgira a oportunidade de participar da diretoria da
Sociedade Defensora da Liberdade e da Independência Nacional, no curto período de
sua existência, entre os anos de 1831 e 1832.4 Apenas na parte final de sua estadia de
sete anos no Rio de Janeiro é que escreveu a História do Brasil. Retornando a Inglaterra
no dia 6 de julho de 18355 - aos 28 anos – publicou sua história em dois volumes no ano
seguinte, e já em 1837 contava com tradução para a língua portuguesa.
Em 1836 viajava, por outra companhia mercantil, para a ilha do Ceilão (atual
Sri Lanka); tendo obtido sucesso em suas empreitadas, abriu sua própria firma
3
The Christian Reformer; or unitarian magazine and review. New series, vol. XIL. From january to
december. London: Edward T. Whitfield, 1856, pp. 317.
4
Agradeço a preciosa informação sobre a atuação de John Armitage nesta Sociedade à Lucia Paschoal
Guimarães professora titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
5
José Honório RODRIGUES (Org.). Registro de Estrangeiros - 1831-1839. Rio de Janeiro: Ministério
da Justiça e Negócios Interiores; Arquivo Nacional, 1962. p. 16.
mercantil, chamada Armitage Brothers.6 Em 6 de setembro de 1838 se casou com Fanny
Henriette, filha única de John Jumeaux, com a qual teve seis filhos.
Após dezenove anos no Ceilão, Armitage voltou para a Inglaterra em 30 de
agosto de 1855 com o estado de saúde bem comprometido. Durante o tempo em que
viveu na ilha, serviu por longos anos ao governo belga como seu representante consular,
foi um dos diretores do Banco regional e membro do conselho legislativo por oito anos.7
Tendo devotado bastante atenção a melhoria da educação, a multiplicação de estradas e
modos de trafegar entre partes diferentes da ilha, a abolição de toda taxa desnecessária e
opressiva, o cultivo de produtos favoráveis ao clima, entre outras melhorias.
Depois de chegar em Manchester, onde se estabeleceu ao lado da família e
amigos, sua saúde continuou debilitada até o falecimento em 17 de abril de 1856, aos 48
anos, em casa. Foi enterrado no mausoléu pertencente à família na velha capela de
Dukinfield. Após esse breve contato com a trajetória do autor da História do Brasil que
foi motivo de debate entre dois redatores cariocas, estamos mais familiarizados com os
elementos que estão em jogo nesta disputa.
A polêmica sobre a legitimidade da escrita da história contemporânea: a recepção
da História do Brasil de John Armitage
Tucídides e seus contemporâneos tinham como indiscutível a escrita da história
do presente na medida em que a autoridade do historiador estava fundada na visão – na
experiência do relatado - e na possibilidade de inquirição das testemunhas oculares. Por
ter ido ao cenário da guerra do Peloponeso, participado dela e conversado com quem
presenciou seu desfecho, Tucídides produziu uma história verdadeira. Assim, quanto
mais próximo de seu objeto, maiores seriam as chances de obter relatos completos sobre
a história vivida cabendo ao historiador organizar as informações e até mesmo indicar
seu grau de veracidade. Entre os séculos I a.C. e I d.C. o historiador foi questionado
sobre a sua imparcialidade ou parcialidade tendo em vista que ao narrar a história
contemporânea corria o sério risco de confundir suas paixões com a verdade do
acontecido. No intuito de solucionar esse impasse, os historiadores, na época moderna,
lançaram não do “distanciamento histórico”, ou seja, houve praticamente uma recusa à
6
John Armitage last Will and testament. The National Archives of the United Kingdom. PROB 11/2238,
p. 674.
7
The Christian Reformer. Op. cit., pp. 319.
escrita da história contemporânea, assumindo-se, assim, a história como disciplina que
versava sobre a escrita do passado.
A polêmica que vamos apresentar em relação à validade da História do Brasil
escrita por John Armitage está diretamente ligada à possibilidade de, no século XIX,
ainda ser inquestionável a escrita da história contemporânea. Tal polêmica foi travada,
nos meses de abril e maio de 1837, entre dois periódicos cariocas: O Chronista e o
Correio Official. O redator do O Chronista, Justiniano José da Rocha, publicou uma
pequena nota sobre a tradução que saia à luz da História do Brasil de Armitage
argumentando que:
ir-se-há nela buscar juízo independente dos homens e das cousas: quer-se há ver a
história contemporânea despida das preocupações dos interesses dos partidos; a
história contemporânea com todos os privilégios de história antiga pela distância da
pessoa que a escreveu.8
Entretanto, o leitor irá se surpreender já que não encontrará nenhum desses
atributos fundamentais à escrita da história. Motivo central para isso foi a amizade
perniciosa de Evaristo da Veiga com John Armitage que influenciou de forma direta e
decisiva a escrita da história da independência brasileira. Justiniano sublinha que só
pode ser encontrada nesta História “[...] o juízo parcial e hostil que ali se faz dos
maiores homens do Brasil, dos Andradas, dos Vasconcellos”.9 Por mais que Armitage
reinvidique no prefácio da História sua imparcialidade, inerente a um estrangeiro que
não esteve de corpo e alma envolvido na luta política brasileira e que não tem nenhum
vínculo com a história nacional em questão, isso não convence o redator do O Chronista
que coloca em dúvida toda a sua História do Brasil. Para Justiniano a história
contemporânea só poderia ser escrita por alguém totalmente isento de contato com o
solo brasileiro e com os intelectuais que viveram no período que almejam estudar,
tornado a escrita da história contemporânea se não impossível, particularmente difícil.
Em resposta aos argumentos de Justiniano, o redator do Correio Official sai em
defesa da imparcialidade da História do Brasil de Armitage e, conseqüentemente, da
escrita da história contemporânea.10 Propõe que:
8
O Chronista. Nº 53, 12 de abril de 1837, p. 209.
O Chronista. Nº 53, 12 de abril de 1837, p. 210.
10
Não é isento de polêmica o nome do redator do Correio Official. José Honório Rodrigues afirma que
seria Januário da Cunha Barbosa, enquanto Nelson Werneck Sodré propõe José Cristino da Costa Cabral
como redator deste periódico carioca. Cf. José Honório RODRIGUES. Teoria da História do Brasil:
introdução metodológica. São Paulo: Ed. Nacional, 1978, p. 363; Nelson Werneck SODRÉ. História da
Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999, p. 137.
9
Quando os acontecimentos históricos estão feitos, quem melhor do que aqueles que o
fizeram, ou neles tomaram importante parte, os pode expor e explicar? Certamente as
épocas, que Armitage passa em revista, já estão transactas; a Independência, o reinado
e queda do primeiro Imperador, são fatos feitos, e que já pertencem à história [...].11
A história da independência brasileira e dos que a tornaram possível estaria
completamente terminada e nada melhor do que as pessoas que vivenciaram essa
experiência para relatar seu surgimento, desenrolar e fim. A história contemporânea
poderia ser melhor escrita pelos que tiveram a oportunidade de ver os acontecimentos
que tornaram-se históricos. O redator do Correio Official continua seu argumento
respondendo ao problema levantado por Justiniano em relação à influência de Evaristo
na escrita da História do Brasil:
[...] se com efeito o autor para os narrar [os feitos], como o Chronista o avança, foi
inspirado, com especialidade, pelos relatórios, escritos e explicações do Publicista
distinto [ Evaristo da Veiga], que antes de 7 de abril lutou com tanta sagacidade, talento,
e intrepidez, contra os abusos, e teve depois tanta influência nas medidas, que escoraram
o edifício social, não podemos fugir de louvar a sua prudência e desejo de acertar com o
verdadeiro espírito dos fatos, que queria relatar aos seus concidadãos da Inglaterra.12
Armitage não poderia ter tomado melhor decisão do que a de ter Evaristo da
Veiga como conselheiro para a escrita de sua História já que a parcialidade do distinto
publicista é tida como auxiliar na filtragem dos verdadeiros fatos. Por estar dentro do
jogo político, Evaristo tinha melhor consciência das questões que estavam em jogo no
processo de independência. Esse contato com Evaristo permitiu a Armitage “ [...] tomar
exata idéia das eras em que brilharam, para poder evocar as suas sombras, desfrutar,
ainda só por meia hora, a sua conversação [...]. Quando os atores dos dramas políticos
transactos ainda existem, os historiadores gozam desta fortuna”.13
Paralelo a essa polêmica sobre a validade da escrita contemporânea, ambos os
redatores estão profundamente preocupados com a imagem que a História do Brasil de
John Armitage transmitirá para seus leitores britânicos, tendo em vista que,
originalmente foi escrita em inglês. Um dos motivos centrais de Justiniano manifestar
descrédito em relação à obra de Armitage é, sem dúvida, a firme apreensão de que seu
autor narrou o processo de independência pelo prisma liberal. Joaquim Gonçalves Ledo,
11
Correio Official. Nº. 100, 9 de maio de 1837, p. 400.
Correio Official. Nº. 100, 9 de maio de 1837, p. 400.
13
Correio Official. Nº. 100, 9 de maio de 1837, p. 400.
12
por exemplo, um dos articuladores centrais da independência brasileira e aclamação de
D. Pedro I como Imperador, não possui qualquer destaque na História de Armitage.14
Propomos analisar a polêmica apresentada ao veto à história contemporânea
como sinalizadora da existência sincrônica, corrente na primeira metade do oitocentos
brasileiro, de dois conceitos de história: o antigo e o moderno.15 Como vimos ao longo
deste texto, o principal problema em relação a possibilidade da História do Brasil de
Armitage tornar-se canônica está diretamente ligada a escrita da história
contemporânea. Valdei Araujo, ao analisar os anos iniciais do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB), pôde concluir que os escritos de seus sócios fundadores
indicam a concepção de escrita da história nacional como um processo, como uma
totalidade em movimento, e não mais como simples sucessão cronológica dos fatos.
Descobrir o sentido da história nacional foi um dos principais objetivos dos letrados da
década de 1830-40, pois só a partir desse primeiro passo se poderia escrever um relato
que reproduzisse a origem e o destino da nação brasileira. Contudo,“[...] essa tarefa era
dificultada pela consciência nascente de que os interesses e parcialidades dos homens
vivos poderiam distorcer a compreensão dos eventos e, logo, do destino histórico da
comunidade. Para enfrentar esse problema, a positividade dos fatos é transformada em
único critério de verdade”.16
O entendimento de que a passagem do tempo permite ao historiador melhor
compreender os acontecimentos pretéritos foi uma das mudanças centrais para a
mudança do conceito antigo de história para o moderno. Aliado a essa nova
compreensão surge a demanda pela constante re-escrita da história, tendo em vista que
existe um sentido que se desvela ao longo do tempo. O depoimento da testemunha
ocular também deixa de ser a fonte maior de verdade, como era para Tucídides,
entrando em jogo o documento e a crítica documental como certificadores da veracidade
do relatado.
Em sua nota sobre a obra de Armitage, Justiniano da Rocha emprega o
vocabulário que caracteriza o conceito moderno de história, assumindo a recusa da
história contemporânea. A falta de distanciamento – temporal ou físico/emocional - do
historiador em relação ao objeto relatado é o argumento central para desvalorizar a obra
14
Encontramos movimento oposto na História da Independência do Brasil de Francisco Adolfo de
Varnhagen que descreve a forte participação de Ledo no cenário político carioca. Cf. Francisco Adolfo de
VARNHAGEN. História da Independência do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1962.
15
Sigo as proposições de Reinhart Koselleck em relação ao conceito antigo e moderno de história. Cf.
Reinhart KOSELLECK. L’expérience de l’histoire. Paris: Gallimard, 1997.
16
Valdei Lopes de ARAUJO. A experiência do tempo. São Paulo: Hucitec, 2007, p. 179.
de Armitage. O historiador da história contemporânea estaria fadado a reproduzir relatos
parciais. A boa história seria necessariamente a história antiga, produzida com devido
distanciamento, e fundada na imparcialidade do documento. Por outro lado, o redator do
Correio Official ainda acreditava profundamente que a razão humana daria conta de
controlar os possíveis arroubos partidários e que não existia melhor relato que o feito
pelos contemporâneos dos fatos.
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Texto Completo - Seminário Brasileiro de História da Historiografia