A questão da identidade cultural nas comunidades de usuários de software livre: o
caso do Gulp
Guilherme Carvalho da Rosa
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)
RESUMO: O trabalho a seguir consiste em uma pesquisa sobre identidades culturais em
uma comunidade de usuários de software livre. A perspectiva teórica adotada provém da
contribuição dos estudos culturais para as identidades culturais. Este estudo utiliza dois
procedimentos metodológicos: a aproximação de viés etnográfico e a observação
participante aliada ao procedimento da Grounded Theory. Os resultados remetem a
utilização da linguagem técnica como construção identitária, o exercício de identidades
fragmentadas e diferença como marcação simbólica da identidade.
Palavras-chaves: identidade cultural, estudos culturais, software livre
1.
Introdução
Este trabalho tem como pretensa principal um estudo sobre o papel da identidade
cultural em comunidades de desenvolvimento colaborativo a partir de redes de informação
e comunicação, de forma especial os grupos identificados com o desenvolvimento de
softwares livres (de código aberto e livre distribuição). Como objeto de estudo foi
escolhido uma pequena comunidade de usuários chamada Grupo de Usuários Linux de
Pelotas (Gulp), da cidade de Pelotas/RS. A motivação desta comunicação científica parte
da necessidade de revisão e aprofundamento de alguns resultados obtidos a partir de
uma pesquisa inicial com o mesmo grupo. A definição destes resultados foi pautada por
algumas proposições metodológicas que serão igualmente revisadas e ampliadas neste
texto. O anseio em realizar esta reformulação advém de um sistemático contato com o
quadro teórico escolhido para realização desta proposta de estudos que são as
construções teóricas dos estudos culturais acerca das “identidades culturalmente
formadas, construídas através da cultura” (Escosteguy, 2001 p. 191). A partir deste
balizamento, são muitas as contribuições da tradição destes estudos para o tema, que se
constitui em uma discussão adjunta ao embate epistemológico de ruptura da modernidade
e a necessidade da delimitação de um outro tempo em que as grandes narrativas
totalizantes entram em colapso e, primordialmente, há uma “crise de legitimação do
saber” denunciada no final dos anos 70 por Jean François Lyotard (2004, p. 69) com a
obra A condição pós-moderna . O principal dos contributos utilizado na construção das
análises provém do pensamento de autores como Stuart Hall e Jorge Larrain sobre o
posicionamento da identidade cultural no pós-moderno, que se concretiza no
agendamento da discussão da categoria identidade a partir da desconstrução de alguns
conceitos do marxismo no campo do popular, como o papel da hegemonia gramsciana e
obviamente o próprio tensionamento entre moderno/pós-moderno. O que nos propomos a
fazer neste texto é essencialmente uma revisão e aprofundamento do papel da identidade
cultural no Grupo de Usuários Linux de Pelotas, a luz do quadro teórico mencionado
acima. Para uma melhor compreensão do foco deste estudo, faremos agora uma
pequena contextualização com a dinâmica do software livre e os elementos que o
permitem,
em
primeira
análise,
ser
discutido
em
suas
relações
culturais
e
comunicacionais. É importante lembrar, no entanto, que nosso objeto de estudos não são
os programas livres, mas os agentes sociais envolvidos com estas dinâmicas e suas
relações. Entretanto não poderíamos nos furtar de uma pequena contextualização sobre
qual base são pautadas estas relações para que o processo social seja compreendido
sem nenhuma perda pelo leitor.
2.
O que é software livre?
Apesar de ser um tema bastante discutido no cotidiano, consideramos que o
software livre ainda constitui um assunto bastante incipiente para o imaginário cotidiano e
também pouco discutido dentro da episteme das ciências da comunicação, sobretudo
àquelas que se dedicam a compreender o processo social formado com as novas
tecnologias da informação e da comunicação.
Mesmo não tendo espaço para uma contextualização mais ampla
tentaremos transmitir os elementos para que haja uma primeira contextualização e a
percepção da importância de se estudar os grupos envolvidos com esta dinâmica.
Essencialmente o software livre não se resume a um programa ou um conjunto de
programas de computador. A compreensão mais correta, a priori, seria visualizá-lo como
um movimento. O Movimento do Software Livre é uma rede mundial de desenvolvimento
colaborativo que permite a milhões de programadores de todas as partes do globo
trabalharem juntos no desenvolvimento e melhoria de softwares que podem ser
distribuídos sem nenhum custo. O que permite esta abertura é a própria natureza dos
programas que são chamados livres não apenas porque podem ser gratuitos, mas
principalmente pela possibilidade de visualização e modificação do seu código-fonte, algo
impensável para os programas de licença paga desenvolvidos pelas grandes corporações
do mercado informacional. O instrumento legal que permite esta livre distribuição é o tipo
de licença utilizada nos softwares livres que regulamenta a distribuição dos programas e
veta qualquer forma de apropriação indevida sobre eles, esta licença é chamada de GPL
(General Public License). O código aberto dos programas permite o franco
desenvolvimento de aplicativos, utilitários, interfaces gráficas e principalmente o sistema
operacional GNU/Linux, conhecido mais comummente apenas como Linux, embora este
reducionismo não seja correto. O sistema operacional é o programa que sustenta o
funcionamento do computador. Entre os usuários de software livre o sistema é distribuído
através de distribuições que são pacotes que conjugam este sistema a diversos outros
programas como a interface gráfica, programas para processamento de texto,
navegadores para a Internet e outras aplicações.
Apesar de ser uma movimentação de cunho tecnicista, desde a criação dos
primeiros programas livres existe uma preocupação com relação ao posicionamento
conceitual que o Movimento Software Livre teria a partir da delimitação de um sistema de
crenças na liberdade da informação. A idéia de realização de programas com o códigofonte aberto foi pautada, desde o início, por um manifesto chamado de Manifesto GNU ,
escrito pelo programador Richard Stallman, fundador da Free Software Foundation (FSF),
entidade sustentáculo do Movimento Software Livre. Este manifesto foi escrito em 1984,
um ano após a primeira mensagem
escrita por Stallman convocando outros
programadores para trabalharem colaborativamente.
Desde este manifesto até hoje se formou uma imensa rede de
programadores, tradutores, usuários e outros profissionais que trabalham para o
desenvolvimento dos programas. Esta rede é formada através de pequenos grupos que
trocam informações, auxiliam os usuários novos na resolução de problemas, corrigem
falhas dos programas, entre outras atribuições. A resultante deste processo foi o
desenvolvimento de um sistema operacional robusto e de aplicações que, na atualidade,
já causam preocupações aos gigantes da empresas de software por apresentarem alta
qualidade e dominarem as tecnologias utilizadas nos servidores de Internet. Nosso objeto
de estudos, o Grupo de Usuários Linux de Pelotas é um dos componentes desta grande
rede, um pequeno recorte para podermos observar o papel da identidade cultural neste
contexto brevemente explicado.
3. O Grupo de Usuários Linux de Pelotas
Como observamos a partir desta última breve descrição, o Grupo de Usuários
Linux de Pelotas (Gulp) faz parte de uma grande rede de desenvolvedores e usuários
engajados na dinâmica do software livre. O Gulp é uma pequena comunidade de usuários
com representações sociais a partir do virtual, mas também com desdobramentos ao
concreto por carregar no nome e ter suas origens na cidade de Pelotas/RS, de forma
específica na Universidade Católica de Pelotas (UCPel). De acordo com os próprios
usuários o Gulp surgiu há 10 anos pela necessidade de troca de informações sobre a
utilização do sistema operacional GNU/Linux e a operacionalização dos demais softwares
livres. Com cerca de 93 integrantes, o grupo é formado, em sua maioria, por professores,
funcionários e alunos da UCPel e também outros usuários de Pelotas e de cidades
vizinhas.
O grupo de usuários pode ser considerado uma comunidade virtual por
reunir os parâmetros enunciados por Jones (1997, online) que considera como critério de
existência das comunidades pelo menos quatro características que listamos a seguir: (1)
ter um grau mínimo de interatividade, (2) uma variedade de comunicadores, (3) o espaço
se pretender público e acessível por todos os membros e (4) um mínimo grau de
associação sustentada (pertença). Aos espaços de interação das comunidades virtuais
Jones denominou virtual settlemments. O Gulp possui pelo menos três virtual settlements
que foram utilizados no desenvolvimento desta pesquisa: uma lista de discussão por
correio eletrônico, um website
com espaços de interação para os usuários e uma
comunidade no website de relacionamentos Orkut .
O Grupo foi escolhido como objeto desta pesquisa pelos seguintes critérios:
(1) o pertencimento geográfico que favoreça o acesso do pesquisador em nível concreto,
para realização de entrevistas e o contato direto com os participantes e (2) o recorte
fornecido em termos de tamanho da amostra fornecida. Estas foram as duas fortes razões
para escolha do Gulp como estudo de caso para o empenho deste trabalho. De forma
particular o primeiro critério relaciona com a possibilidade de desdobramento da relação
global/local na concepção expressa por Stuart Hall (2002, p. 77) e também por Angela
McRobbie (2005, p. 29) no sentido do movimento expresso pelas redes de fortalecimento
do local diretamente proporcional ao crescimento das relações globais. A partir desta
escolha, procurou-se desenvolver uma aproximação sistemática com o Grupo de
Usuários Linux de Pelotas que será detalhada a seguir.
4.
Procedimentos metodológicos
Antes de desdobrarmos os procedimentos metodológicos utilizados nesta
pesquisa, ressaltamos a intenção deste estudo em realizar uma abordagem em caráter
qualitativo tendo como estudo de casos uma comunidade de usuários de software livre. A
partir deste pressuposto, a escolha do método a ser aplicado deveria considerar aspectos
particulares, como, por exemplo, a presença de elementos do empírico na construção das
análises. Esta presença do empírico se refere a uma série de experiências pessoais do
pesquisador como usuário de software livre e também como membro efetivo da
comunidade de usuários a ser estudada, no intuito de optar pelo método de observação
participante. Ao mesmo tempo este direcionamento não deveria apenas contemplar o
material empírico, mas também utilizar a “sensibilidade teórica” (Recuero, 2002 p. 86)
adquirida a partir do contato com as construções teóricas acerca do tema desta pesquisa.
Desta forma, optamos pela utilização de procedimentos complemetares que
contemplassem estes dois elementos, como uma relação de dupla-via: do empírico ao
teórico e do teórico ao empírico. Partindo dos direcionamentos metodológicos utilizados
nos estudos culturais, procuramos uma aproximação com um certo viés etnográfico, no
intuito de aproveitamento desta “sensibilidade teórica” e contextualização com a
comunidade e o modo como os usuários definem sua vivência. É importante salientar que
esta aproximação etnográfica se utiliza apenas desta particularidade de contextualização
e não constitui, portanto, uma orientação metodológica exclusivamente etnográfica. A
medida correta desta clivagem é expressa através do texto de Ana Carolina Escosteguy:
Do ponto de vista metodológico, a ênfase recaiu, mais tarde, no trabalho qualitativo. Este
exerceu uma forte influência na formação dos Estudos Culturais. A escolha por trabalhar
etnograficamente deve-se ao fato de que o interesse incide nos valores e sentidos vividos.
O estudo etnográfico acentua a importância dos modos pelos quais os atores sociais
definem, por si mesmos, as condições em que vivem. (Escosteguy, 2004 p. 143).
Como visto a partir desta citação a inclinação etnográfica deste trabalho acontece no
sentido de aproveitamento desta tradição dos estudos culturais em recortar o objeto
através de alguns elementos da pesquisa etnográfica. Este trabalho foi iniciado com o
aproveitamento de alguma experiência teórica do pesquisador e a partir de um contato
sistemático com o legado dos estudos culturais sobre o tema das identidades culturais e
outras construções teóricas complementares. Esta pequena bagagem foi aliada à
intenção etnográfica de contextualização do objeto. Neste sentido, Francisco Rüdiger
menciona que a proposição de trabalhar com elementos empíricos deve ser conectada
com o referencial teórico, no sentido de “pensar reflexivamente” o objeto de estudos:
O estudo dos materiais empíricos, sejam ações ou textos, pressupõe o emprego de um
marco teórico capaz de, em tese, conectar esse trabalho com a experiência vivida pelos
sujeitos sociais e, ao mesmo tempo, pensar reflexivamente esta autocompreensão.
(Rüdiger, 2002a, p. 13)
A outra via de nosso caminho metodológico, como já salientamos, teve com
ponto de partida o referencial empírico para depois estabelecer o cruzamento teórico.
Este direcionamento, especificamente, foi o que permitiu dois processos importantes de
desenvolvimento que é o aproveitamento da carga de elementos empíricos e também a
intenção do pesquisador no desenvolvimento de uma observação participante junto ao
grupo de usuários. Os referenciais empíricos não poderiam ser descartados, por conta de
oferecerem contribuições ao processo de pesquisa no sentido de contextualizar,
tecnicamente, o pesquisador junto ao escopo das comunidades de software livre que,
adiantamos, tem uma linguagem e um modo de ação baseados na técnica. Ou seja, em
nosso caso, sempre será necessária a tradução destes referenciais em seu sentido de
ação social e política dos agentes. Então esta vivência do pesquisador como usuário de
software livre auxilia largamente o processo de pesquisa para a realização destas
adaptações e, absolutamente, não poderia ser desconsiderada enquanto elemento
empírico.
A intenção de se estabelecer um processo de observação participante se materializou a
partir do ingresso do pesquisador como membro efetivo do Grupo de Usuários de
Software Livre, durante um período específico de observação e vivência. A observação
participante é uma prática bastante conhecida nas ciências sociais e utilizada no mesmo
sentido que expressamos o emprego dos elementos empíricos: como forma de
contextualização com o objeto e primordialmente para conferir a este objeto a
centralidade da pesquisa permitindo uma efetiva coleta de dados. Brandão, ao trabalhar
com comunidades populares de base , evidencia esta centralidade dos sujeitos no
processo de pesquisa participante:
Participação, participar são palavras que traduzem aí, portanto, a possibilidade do
envolvimento do trabalho popular na produção do conhecimento sobre a condição da vida
do povo. Homens e mulheres de comunidades populares são convocados a serem
sujeitos das pesquisas de que eram antes objeto de estudo. (Brandão, 1984, p. 225)
Também Pierre Bourdieu (1999, p. 58) evidencia a prática da observação participante
como uma necessidade para o acompanhamento sistemático, particularmente em
situações como este estudo de casos de um grupo de agentes sociais. Desta forma,
procuramos estabelecer esta aproximação efetiva com os usuários do Grupo de Usuários
Linux de Pelotas. Antes de descrevermos o método que pautou esta via de aproximação
do empírico ao teórico, é importante salientar que, apesar da utilização da observação
participante e da utilização de elementos empíricos, foram mantidos critérios bastante
claros de vigilância e o distanciamento necessário a fim de permitir “adbicações do
empirismo” (Bourdieu, 1999 p. 48) em função da importância dos aportes teóricos na
construção das análises.
Para cumprir o desafio da observação participante, de conferir centralidade
ao objeto de estudos e permitir que os dados surjam desta centralidade, utilizamo-nos do
método da Grounded Theory, desenvolvido por Strauss e Glasser em 1967. Este
procedimento se revela como um método adequado à nossas pretensões por permitir que
os problemas venham do objeto de pesquisa, valorizando os aportes empíricos no estudo.
O processo de análise dos dados descrito pela Grounded Theory se divide em três
etapas. Em um primeiro momento é necessário a descrição e o questionamento do objeto
de estudo (open coding), em seguida todos os dados são agrupados a partir da
possibilidade de se fazer alguma relação entre eles (axial coding) e finalmente se faz à
integração e a definição destes agrupamentos de relações em categorias (selective
coding). Apesar de ser pouco utilizada no âmbito dos estudos culturais, a Grounded
Theory se configura em uma orientação metodológica interessante para o caso de análise
de grupos sociais envolvidos com a dinâmica do ciberespaço. Um exemplo de utilização
da Grounded Theory nos estudos culturais é o trabalho de Joke Hermes (2005, p. 15)
sobre as audiências massivas sobre uma “perspectiva dialética-comparativa”.
Depois desta delimitação dos pressupostos metodológicos utilizados nesta
pesquisa, vamos nos deter nas ferramentas e ações práticas deste conjunto de ações.
Primeiramente, procuramos delimitar quais os espaços de pesquisa e quais as
ferramentas que seriam utilizadas na coleta de dados. Partindo da intenção de realização
de uma observação participante, foram utilizados os três virtual settlements do Gulp, já
citados anteriormente: (1) a lista de discussão por e-mail do grupo (o principal deles), (2) o
website do grupo de usuários e (3) a comunidade no website de relacionamentos Orkut. A
inscrição do pesquisador como membro do grupo foi feita através do ingresso no primeiro
destes espaços que significa uma espécie de “marcador cerimonial de entrada” (Aranha,
1999 online) para o grupo de usuários. Este período de observação e vivência junto à
comunidade ocorreu durante o período de maio a outubro do ano de 2004, nos três
espaços de interação do Gulp. Como instrumento de coleta de dados, utilizamos o diário
de campo que teve seu registro facilitado pelos próprios mecanismos dos espaços de
permitirem a recuperação das mensagens sobre um determinado período de tempo. De
modo que o pesquisador, através destes meios, pode registrar digitalmente a maioria das
movimentações nos ambientes do grupo de usuários. Também se optou pela realização
de entrevistas com no mínimo 20% dos usuários do grupo. Estes usuários entrevistados
(cerca de 20) foram escolhidos devido à sua efetiva participação nas discussões e por
outros fatores como tempo de permanência no grupo e atividades que desempenham na
comunidade. A partir destas escolhas e considerando nossa dupla-via metodológica foi
desenvolvida a pesquisa com os usuários com a aplicação das fases da Grounded Theory
explicitadas anteriormente. Após uma breve passagem por alguns pressupostos teóricos,
passaremos ao desdobramento final da aplicação destas fases.
5.
A trajetória dos estudos culturais para o estudo da identidade
A escolha de lançar um olhar sobre o papel da identidade cultural em nosso grupo
de usuários não constitui uma opção gratuita. Acreditamos que o processo social
vivenciado com o colapso da era industrial confere a identidade o status de um conceitochave para compreensão dos principais tensionamentos deste período de descrédito nas
narrativas
totalizantes
da
modernidade
que
constituem
um
grande
problema
epistemológico prenunciado por alguns autores como o surgimento de um tempo pósmoderno. Como denuncia Jean François Lyotard (2004, p. 13), as estruturas de
legitimação do saber também estão passando por uma profunda revisão e readaptação a
um novo parâmetro agonístico, onde se pode manipular as linguagens como “em um jogo
de xadrez” (2004, p. 16), cada uma com regras e posições próprias. Mais do que nunca o
sujeito iluminista, formatado pelo pensamento cartesiano e baconiano, está sofrendo seus
maiores questionamentos e rupturas com as estruturas sólidas e totalizantes que
forneceram aos sujeitos “uma ancoragem estável no mundo social” (Hall, 2002 p. 7). O
mesmo autor ainda identifica um tempo de “crise de identidade” vivenciado em meio em
meio ao tensionamento do moderno com o pós-moderno e desenvolve uma longa
trajetória de descentramentos do referencial iluminista, iniciada com o surgimento das
ciências sociais e os contributos de Marx, Ferdinand de Saussure, Freud, Michel Foucault
para desconstrução paulatina do sujeito cartesiano. Este processo de descentramentos
tem seu ápice a partir da segunda metade do século XX, com o turbilhão de
acontecimentos sociais do final dos anos 60, dentre eles o surgimento do movimento
feminista, considerado um acontecimento que questionaria de uma vez por todas a idéia
de uma concepção identitária fixa e imutável. Este fato é considerado um marco e é uma
fala consensual dos estudos culturais e pode ser encontrado a partir dos relatos de muitos
autores como Escosteguy (2002, p. 31), Schulman (2004, p. 211) e do próprio Stuart Hall
(2003, p.209) que, como diretor nesta época do Centre of Contemporany Cultural Studies
(CCCS) da Universidade de Birminghan, na Inglaterra, presenciou a “invasão”
protagonizada pelo feminismo como um movimento da sociedade para os estudos
culturais, particularmente através das advertências de Angela McRobbie. Este fato,
largamente abordado pela literatura sobre os estudos culturais britânicos, foi, a posteriori,
o que permitiu o foco nas questões sobre a identidade cultural e permitiu a compreensão
da identidade formada através da cultura:
A intervenção do feminismo foi específica e decisiva para os estudos culturais (bem como
para muitos outros projetos teóricos). Introduziu uma ruptura. Reorganizou o campo de
maneiras bastantes concretas, [dentre estas maneiras] a abertura de muitas questões que
julgávamos ter abolido em torno da área perigosa do subjetivo e do sujeito, colocando
estas questões no centro dos estudos culturais como prática teórica (Hall, 2003 p. 209).
Este direcionamento foi o que permitiu a discussão do papel da identidade nos estudos
culturais, e a partir daí, o surgimento de diversas contribuições no sentido cartografar o
papel da identidade no processo de crise epistemológica e os embates entre modernidade
e pós-modernidade protagonizados por Anthony Giddens, Frederic Jameson, David
Harvey e outros. Também outros temas adjacentes como a divisão entre sociedade
moderna e tradiconal trazida por Giddens e questionada pelo trabalho do chileno José
Joaquín Brunner (1991, p. 25) fazem parte deste debate. Outras contribuições como a
concepção de representações sociais da psicologia social, trazida por Goffman (2004), no
sentido de exercício de diversos papéis sociais, também tiveram um papel preponderante
nesta história de ruptura do sujeito moderno preconizada pelo Übermensch de Friedich
Nietzsche. Esta última contribuição, apesar de distante epistemologicamente da clivagem
antropológica dos estudos culturais, constitui importante contribuição por ter se
antecedido a todo o processo de crise vivenciado na segunda metade do século XX.
Autores como Rüdiger (2002, p. 47) e Larrain (2000, p. 16) evidenciaram esta antecipação
nietzscheana.
6.
Elementos identitários do Grupo de Usuários Linux de Pelotas
Feita esta pequena passagem por algumas das principais referências de
nosso quadro teórico, trataremos de finalmente revisar as categorizações obtidas com a
aplicação da última fase da Grounded Theory, (selective coding) que realiza os
cruzamentos com a teoria e fornece categorizações a partir da aglutinação do material
encontrado na pesquisa de campo. Fazemos memória, neste momento dos elementos
metodológicos explicitados acima.
6.1
Linguagem técnica enquanto construção identitária
Um elemento bastante forte e encontrado em grande parte dos relatos do diário de
campo durante a fase de coleta de dados foi à utilização da linguagem técnica como um
forte recurso identitário pelos usuários do Gulp. Entre as comunicações dos membros do
grupo, existe o predomínio de termos técnicos que exerce uma função de referencial para
a identidade dos agentes sociais. A mensagem abaixo foi enviada à lista de discussão por
e-mail da comunidade:
Salve lista! Como existe muitos usuarios debian aqui, resolvi tentar a sorte. Pessoal,
negocio e o seguinte. Estou com um problema na instalacao do debian 3.0. Sempre q
tento a instalacao com o kernel 2.4 (bf24) o sistema de instalacao trava na hora q
encontra a placa de rede (sis 900 eth0).
Esta mensagem é apenas um exemplo do tipo de comunicação mais usual realizada com
os usuários que é a utilização do grupo para auxílio e solução de dúvidas sobre a
instalação dos programas. Este recorte pode ser relacionado por elementos de marcação
simbólica de diferença entre os agentes sociais. A marcação simbólica acontece a partir
destes atos de linguagem com a utilização dos termos técnicos. Esta prática tem uma
função importante porque localiza os sujeitos em seu papel social de usuários de software
livre, estabelece referências simbólicas que estão presentes quase a todo o momento
durante os atos de fala. Hall, ao falar do papel da diferença como delimitação da
identidade, oferece uma reflexão oportuna para a análise deste resultado:
Dizer, por sua vez, que identidade e diferença são o resultado de atos de criação
lingüísticas significa dizer que elas são criadas por meio de atos de linguagem. Isto
parece uma obviedade. Mas como tendemos a tomá-las como dadas, como “fatos da
vida”, com freqüência esquecemos que a identidade e a diferença têm que ser nomeadas.
É apenas por meio de atos de fala que instituímos a identidade e a diferença como tais.
(Hall, 2000 p. 76).
Desta forma a linguagem técnica, no Grupo de Usuários Linux de Pelotas, tem uma
função importante como recurso para a partilha de um imaginário da comunidade. Falar e
compreender a linguagem técnica significa uma ligação simbólica com os outros membros
da comunidade e também com outros usuários da grande rede formada em torno do
Movimento Software Livre. Os termos técnicos diferenciam os usuários dos “usuários
comuns” que não dominam o jargão técnico utilizado. Assim, a linguagem técnica delimita
a diferença simbólica entre ser ou não ser usuário de software livre, entre estar ou não
estar em uma comunidade que partilha um mesmo campo de significados técnicos.
Outra concepção teórica que pode ser relacionada com este recorte da
linguagem técnica é a idéia de Kathryn Woodward com relação ao posicionamento dos
sujeitos em acordo com os campos em que atuam:
Consider the different ‘identities’ involved in different ocasions, such as attending a job
interview or a parents evening going to a party or a football match, or visiting a shopping
mall. In all these situatons we may feel, literally, like the same person, but we are
differently positioned by the social expectations and constraints and we represent
ourselves to others differently in each context. In a sense, we are positioned – and we also
position ourseves – according to the ‘fields’ in which we are acting. (Woodward, 2002 p.
22)
A partir desta perspectiva, podemos relacionar o recorte teórico com a linguagem técnica
utilizada pelas comunidades de usuários de software livre que tem o papel de delimitar
este campo de atuação como participante de um grupo de usuários. A linguagem técnica,
então, estabelece uma forte marcação simbólica na representação dos usuários do Gulp.
6.2
Vivência de uma identidade cultural fragmentada
Podemos evidenciar outro recorte com relação à vivência da identidade cultural do
grupo de usuários estudados. Durante a observação participante das comunicações na
lista de discussão e especialmente o resultado das entrevistas feitas com os usuários se
pode constatar a pouca insurgência de assuntos não técnicos e a escassa discussão dos
desdobramentos políticos do software livre. As entrevistas particularmente demonstraram
que a maioria dos usuários do Gulp não têm interesse na discussão destes temas
classificados por estes grupos como “filosofia do software livre” por compreender que
estes assuntos não precisam ser discutidos. Na ótica de alguns usuários, os princípios do
software livre (de liberdade de distribuição e modificação dos programas) não precisam
ser discutidos e são aceitos de forma tácita por todos os que participam da dinâmica,
como podemos observar na resposta do usuário Marilton de Aguiar (um dos fundadores
do Gulp):
A filosofia deste movimento é indiscutível, todo integrante intuitivamente sabe qual é a
idéia, mesmo sem conhecer juridicamente o que implica cada tipo de licença. Todos
temos idéia disso.
Relacionado a isto, também observamos, através de outros elementos, que a maioria dos
usuários tem uma concepção de política bastante voltada para as questões partidárias, de
forma restrita. Qualquer questionamento em relação às questões políticas eram
compreendidas com este viés ideológico que muitas vezes o Movimento do Software Livre
assume como um processo de falsa consciência. Hall faz esta relação da estrutura
ideológica com o uso de “sistemas de representação” ligados a diferentes discursos.
Segundo o autor:
Cada [discurso] nos localiza distintamente – como trabalhador, capitalista, trabalhador
assalariado, os escravos do salário, produtor, consumidor, etc. Assim cada um nos situa
como atores sociais e como membros de um grupo social em uma relação particular com
o processo e prescreve para nós certas identidades sociais (Hall, 2003 p.285)
Desta forma, o posicionamento dos usuários do Gulp como engajados na dinâmica do
software livre condicionam esta prescrição de uma identidade social específica, mesmo
que os participantes não tenham plena consciência ou até mesmo rejeitem este
desdobramento. Um outro fato curioso para complementação desta análise se refere ao
resultado de um questionamento aplicado aos usuários se eles se percebiam como
participantes de um processo de mudança. Quase a totalidade dos entrevistados
respondeu que se compreende desta forma, alguns deles descreveram esta mudança
como apenas tecnológica, outros perceberam a mudança a uma relação com o social.
Seguem abaixo duas respostas de percepção desta questão:
Uma revolução tecnológica. No meu entender o linux é um novo sistema operacional que
proporciona facilidades que os softwares proprietários não proporcionam aos seus
usuários (como código fonte aberto), com isso acrescentou-se algo que até então não
existia, e creio que isso pode ser chamada de uma revolução, visto que paradigmas foram
quebrados.
É uma revolução política na minha opinião porque dá alternativa para escolha, e uma
escolha livre. Tecnológica devido a características que o Linux (e os aplicativos voltados a
ele) implementa que são novidades se comparados ao 'mesmismo' do software da
Microsoft.
No caso do primeiro usuário é percebida uma mudança em termos tecnológicos. A
concepção do envolvimento em um processo de mudança se dá em um âmbito sistêmico.
Não há relação da tecnologia com relações políticas e sociais. Já o segundo usuário
considera o software livre como uma “revolução política” relacionada com a oportunidade
de escolha. Esta “escolha” evidentemente se refere à dualidade do software livre com as
empresas de software proprietário. O usuário relaciona esta oportunidade de escolha a
esfera política e em segundo plano evidencia as mudanças tecnológicas. Nos dois casos
a relação política e social permanece um pouco dissociada do tecnológico, apesar de o
segundo exemplo considerar uma relação política priorística.
O exercício de uma identidade cultural fragmentada está justamente no fato de os
usuários, em um primeiro momento não sentirem a necessidade de discussão de temas
não-técnicos e ao mesmo tempo se perceberem envolvidos em um processo de
mudança, seja de forma política, social ou tecnológica. Então, ao se perceberem envoltos
em um movimento de “revolução”, estes usuários assumem dois papéis sociais em suas
identidades culturais: um papel de aplicação claramente tecnicista de não interesse por
temas políticos e sociais, e outro papel social de compreender-se em um processo de
mudança, ou seja, o sentimento de engajamento em uma causa. Estes papéis, apesar de
conflitantes, são vivenciados de forma concomitante pelos usuários. O recorte pode ser
compreendido pela contribução de Erving Goffman (2004, p. 72) na concepção do
exercício de diversos papéis sociais pelos agentes sociais e também pelo problema
epistemológico da relação agonística entre os jogos de linguagem (Lyotard, 2004, p. 16).
6.3 A diferença como referencial identitário no Gulp
Vamos agora fazer menção ao referencial da diferença enquanto
delimitadora da identidade, idéia expressa por Woodward (2000, p. 8). Não obstante a
isso, traremos presente alguns recortes como as categorias identificadas a partir da
pesquisa qualitativa que estabelecem um grande dualismo entre os sistemas proprietários
e o software livre:
O software comercial é como o McDonalds. Ninguém gosta muito, mas todo mundo come
porque todo mundo come, já vem pronto, não há esforço. O software livre encoraja as
pessoas a tomarem suas próprias decisões e fazerem um sanduíche sem picles se não
gostam de picles, e talvez incluir uma salsicha junto com o hambúrguer. Naturalmente isto
incomoda muita gente que não quer abdicar de sua atitude passiva frente a sua própria
vida.
A comparação do usuário Fábio Leite é bastante oportuna para exemplificar o papel da
diferença no Grupo de Usuários Linux de Pelotas. A comparação do software proprietário
como a rede de lanchonetes McDonald´s e com o hambúrguer, naturalmente, delimita
claramente a diferença entre o software livre e o software proprietário. A diferença de
poder “comer o hambúrguer com salsicha” não apenas delimita o espaço da identidade do
GULP e dos usuários de software livre, mas serve de referência para a identidade do
grupo. A diferença é o referencial para o estabelecimento das identidades.
A identidade é marcada por meio de símbolos; por exemplo, pelos próprios cigarros que
são fumados em cada lado. Existe uma associação entre a identidade da pessoa e as
coisas que a pessoa usa.(Woodward, 2002 p. 9)
Assim como relata Kathryn Woodward, a identidade é delimitada por meio de pequenos
símbolos, no caso da citação a diferença entre sérvios e croatas “que fumam cigarros
diferentes” e isso delimita suas identidades. Ao passo que os hambúrgueres comparados
aos softwares ocupam a mesma dimensão que a marca de cigarros dos sérvios e croatas
exemplificados pela pesquisadora dos estudos culturais: delimitam identidades, posições
de sujeito e modos.
7.
Referências Bibliográficas
1.
ARANHA FILHO, Jayme. Tribos Eletrônicas: usos e costumes. online 1999
Disponível em <http://www.alternex.com.br/~esocius/t-jayme.html> (15/04/2003)
2.
BOURDIEU, Pierre. A profissão de sociólogo preliminares epistemológicas.
Petrópolis/RJ: Vozes, 1999.
3.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues (org.) Repensando a pesquisa participante. São
Paulo: Brasiliense, 1984.
4.
BRUNNER, José Joaquín. Cartografias de la modernidad. Santiago Chile: Dolmen
Ediciones, 1991.
5.
ESCOSTEGUY, Ana Carolina. Cartografias dos estudos culturais: uma versão
latino-americana.Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2001.
6.
GOFFMAN, Erving , A representação do eu na vida cotidiana, Petrópolis: Editora
Vozes, 2004.
7.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade, tradução Tomaz Tadeu da
Silva,Guaracira Lopes Louro - 7ª edição. Editora DP&A. São Paulo 2002.
8.
HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e Mediações Culturais: organização Liv
Sovik. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG; Brasília, DF: Representação da UNESCO no
Brasil, 2003.
9.
HERMES, Joke. Re-reading popular culture. Oxford (Inglaterra): Blackwell
Publishing, 2005.
10.
JONES, Quentin. Virtual-Communities, Virtual Settlements & Cyber-Archaelogy – A
Theoretical Outline. In Journal of Computer Mediated Communication vol. 3 issue 3.
December, 1997. online em <http://jcmc.huji.ac.il/vol3/issue3/jones.html > (06/07/2003).
11.
LARRAIN, Jorge. Identity and Modernity in Latin America. Cambridge: Polity Press,
2000.
12.
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. 5. Ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2004.
13.
McROBBIE, Angela. The uses of cultural studies. Londres: Sage publications, 2005.
14.
RECUERO, Raquel da Cunha. As comunidades virtuais no IRC: o caso do
#Pelotas. Dissertação de mestrado concluído em 2002 no Programa de Pós-Graduação
em Comunicação Social (PPGCOM/UFRGS) Porto Alegre, 2002.
15.
RÜDIGER, Francisco. Ciência social crítica e pesquisa em comunicação. São
Leopoldo/RS: Editora Unisinos, 2002a.
16.
RÜDIGER, Francisco. Elementos para a crítica da cibercultura. São Paulo: Hacker,
2003.
17.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos
culturais/ Tomaz Tadeu da Silva (org.). Stuart Hall, Kathryn Woodward - Petrópolis, RJ:
Vozes 2000.
18.
SILVA, Tomaz Tadeu da. O que é, afinal, Estudos Culturais?/Tomaz Tadeu da
Silva (org.). Richard Johnson, Ana Carolina Escosteguy, Norma Schulman -
Belo
Horizonte, MG: Autêntica, 2004.
19.
WOODWARD, Kathryn. Identity and difference. Londres: Sage Publications/Open
University, 2002.
Download

baixar pdf