UNIrevista - Vol. 1, n° 3: (julho 2006)
ISSN 1809-4561
A questão da identidade cultural nas
comunidades de usuários de software livre:
o caso do Gulp
Guilherme Carvalho da Rosa
Mestrando em comunicação
PUCRS, RS
Resumo
O trabalho a seguir consiste em uma pesquisa sobre identidades culturais em uma comunidade de usuários de
software livre. A perspectiva teórica adotada provém da contribuição dos estudos culturais para as identidades
culturais. Este estudo utiliza dois procedimentos metodológicos: a aproximação de viés etnográfico e a observação
participante aliada ao procedimento da Grounded Theory. Os resultados remetem a utilização da linguagem técnica
como construção identitária, o exercício de identidades fragmentadas e diferença como marcação simbólica da
identidade.
Palavras-chave: identidade cultural, estudos culturais, software livre.
Introdução
Este trabalho tem como pretensa principal um estudo sobre o papel da identidade cultural em comunidades
de desenvolvimento colaborativo a partir de redes de informação e comunicação, de forma especial os
grupos identificados com o desenvolvimento de softwares livres (de código aberto e livre distribuição). Como
objeto de estudo foi escolhido uma pequena comunidade de usuários chamada Grupo de Usuários Linux de
Pelotas (Gulp), da cidade de Pelotas/RS. A motivação desta comunicação científica parte da necessidade de
revisão e aprofundamento de alguns resultados obtidos a partir de uma pesquisa inicial com o mesmo
grupo. A definição destes resultados foi pautada por algumas proposições metodológicas que serão
igualmente revisadas e ampliadas neste texto. O anseio em realizar esta reformulação advém de um
sistemático contato com o quadro teórico escolhido para realização desta proposta de estudos que são as
construções teóricas dos estudos culturais acerca das “identidades culturalmente formadas, construídas
através da cultura” (Escosteguy, 2001, p. 191). A partir deste balizamento, são muitas as contribuições da
tradição destes estudos para o tema, que se constitui em uma discussão adjunta ao embate epistemológico
de ruptura da modernidade e a necessidade da delimitação de um outro tempo em que as grandes
narrativas totalizantes entram em colapso e, primordialmente, há uma “crise de legitimação do saber”
denunciada no final dos anos 70 por Jean François Lyotard (2004, p. 69) com a obra A condição pós-
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A questão da identidade cultural nas comunidades de usuários de software livre: o caso do gulp
Guilherme Carvalho da Rosa
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moderna . O principal dos contributos utilizado na construção das análises provém do pensamento de
autores como Stuart Hall e Jorge Larrain sobre o posicionamento da identidade cultural no pós-moderno,
que se concretiza no agendamento da discussão da categoria identidade a partir da desconstrução de alguns
conceitos do marxismo no campo do popular, como o papel da hegemonia gramsciana e obviamente o
próprio tensionamento entre moderno/pós-moderno. O que nos propomos a fazer neste texto é
essencialmente uma revisão e aprofundamento do papel da identidade cultural no Grupo de Usuários Linux
de Pelotas, a luz do quadro teórico mencionado acima. Para uma melhor compreensão do foco deste estudo,
faremos agora uma pequena contextualização com a dinâmica do software livre e os elementos que o
permitem, em primeira análise, ser discutido em suas relações culturais e comunicacionais. É importante
lembrar, no entanto, que nosso objeto de estudos não são os programas livres, mas os agentes sociais
envolvidos com estas dinâmicas e suas relações. Entretanto não poderíamos nos furtar de uma pequena
contextualização sobre qual base são pautadas estas relações para que o processo social seja compreendido
sem nenhuma perda pelo leitor.
O que é software livre?
Apesar de ser um tema bastante discutido no cotidiano, consideramos que o software livre ainda constitui
um assunto bastante incipiente para o imaginário cotidiano e também pouco discutido dentro da episteme
das ciências da comunicação, sobretudo àquelas que se dedicam a compreender o processo social formado
com as novas tecnologias da informação e da comunicação.
Mesmo não tendo espaço para uma contextualização mais ampla tentaremos transmitir os elementos para
que haja uma primeira contextualização e a percepção da importância de se estudar os grupos envolvidos
com esta dinâmica. Essencialmente o software livre não se resume a um programa ou um conjunto de
programas de computador. A compreensão mais correta, a priori, seria visualizá-lo como um movimento. O
Movimento do Software Livre é uma rede mundial de desenvolvimento colaborativo que permite a milhões
de programadores de todas as partes do globo trabalharem juntos no desenvolvimento e melhoria de
softwares que podem ser distribuídos sem nenhum custo. O que permite esta abertura é a própria natureza
dos programas que são chamados livres não apenas porque podem ser gratuitos, mas principalmente pela
possibilidade de visualização e modificação do seu código-fonte, algo impensável para os programas de
licença paga desenvolvidos pelas grandes corporações do mercado informacional. O instrumento legal que
permite esta livre distribuição é o tipo de licença utilizada nos softwares livres que regulamenta a
distribuição dos programas e veta qualquer forma de apropriação indevida sobre eles, esta licença é
chamada de GPL (General Public License). O código aberto dos programas permite o franco desenvolvimento
de aplicativos, utilitários, interfaces gráficas e principalmente o sistema operacional GNU/Linux, conhecido
mais comummente apenas como Linux, embora este reducionismo não seja correto. O sistema operacional é
o programa que sustenta o funcionamento do computador. Entre os usuários de software livre o sistema é
distribuído através de distribuições que são pacotes que conjugam este sistema a diversos outros programas
como a interface gráfica, programas para processamento de texto, navegadores para a Internet e outras
aplicações.
1
O livro era editado no Brasil desde 1986 como o nome de O pós-moderno. A partir da quarta edição houve a correção
para o título original de A condição pós-moderna, que resgata o sentido inicial, tornando-se homônima a obra crítica de
David Harvey.
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Apesar de ser uma movimentação de cunho tecnicista, desde a criação dos primeiros programas livres existe
uma preocupação com relação ao posicionamento conceitual que o Movimento Software Livre teria a partir
da delimitação de um sistema de crenças na liberdade da informação. A idéia de realização de programas
2
com o código-fonte aberto foi pautada, desde o início, por um manifesto chamado de Manifesto GNU ,
escrito pelo programador Richard Stallman, fundador da Free Software Foundation (FSF), entidade
sustentáculo do Movimento Software Livre. Este manifesto foi escrito em 1984, um ano após a primeira
3
mensagem escrita por Stallman convocando outros programadores para trabalharem colaborativamente.
Desde este manifesto até hoje se formou uma imensa rede de programadores, tradutores, usuários e outros
profissionais que trabalham para o desenvolvimento dos programas. Esta rede é formada através de
pequenos grupos que trocam informações, auxiliam os usuários novos na resolução de problemas, corrigem
falhas dos programas, entre outras atribuições. A resultante deste processo foi o desenvolvimento de um
sistema operacional robusto e de aplicações que, na atualidade, já causam preocupações aos gigantes da
empresas de software por apresentarem alta qualidade e dominarem as tecnologias utilizadas nos servidores
de Internet. Nosso objeto de estudos, o Grupo de Usuários Linux de Pelotas é um dos componentes desta
grande rede, um pequeno recorte para podermos observar o papel da identidade cultural neste contexto
brevemente explicado.
O Grupo de Usuários Linux de Pelotas
Como observamos a partir desta última breve descrição, o Grupo de Usuários Linux de Pelotas (Gulp) faz
parte de uma grande rede de desenvolvedores e usuários engajados na dinâmica do software livre. O Gulp é
uma pequena comunidade de usuários com representações sociais a partir do virtual, mas também com
desdobramentos ao concreto por carregar no nome e ter suas origens na cidade de Pelotas/RS, de forma
específica na Universidade Católica de Pelotas (UCPel). De acordo com os próprios usuários o Gulp surgiu há
10 anos pela necessidade de troca de informações sobre a utilização do sistema operacional GNU/Linux e a
operacionalização dos demais softwares livres. Com cerca de 93 integrantes, o grupo é formado, em sua
maioria, por professores, funcionários e alunos da UCPel e também outros usuários de Pelotas e de cidades
vizinhas.
O grupo de usuários pode ser considerado uma comunidade virtual por reunir os parâmetros enunciados por
Jones (1997, online) que considera como critério de existência das comunidades pelo menos quatro
características que listamos a seguir: (1) ter um grau mínimo de interatividade, (2) uma variedade de
comunicadores, (3) o espaço se pretender público e acessível por todos os membros e (4) um mínimo grau
de associação sustentada (pertença). Aos espaços de interação das comunidades virtuais Jones denominou
virtual settlemments. O Gulp possui pelo menos três virtual settlements que foram utilizados no
4
desenvolvimento desta pesquisa: uma lista de discussão por correio eletrônico, um website com espaços de
5
interação para os usuários e uma comunidade no website de relacionamentos Orkut .
2
O manifesto pode ser lido na integra em http://www.gnu.org/gnu/manifesto.pt.html (03/04/2005)
http://www.gnu.org/gnu/initial-announcement.pt.html (12/09/2004)
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http://gulp.ucpel.tche.br
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http://www.orkut.com
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O Grupo foi escolhido como objeto desta pesquisa pelos seguintes critérios: (1) o pertencimento geográfico
que favoreça o acesso do pesquisador em nível concreto, para realização de entrevistas e o contato direto
com os participantes e (2) o recorte fornecido em termos de tamanho da amostra fornecida. Estas foram as
duas fortes razões para escolha do Gulp como estudo de caso para o empenho deste trabalho. De forma
particular o primeiro critério relaciona com a possibilidade de desdobramento da relação global/local na
concepção expressa por Stuart Hall (2002, p. 77) e também por Angela McRobbie (2005, p. 29) no sentido
do movimento expresso pelas redes de fortalecimento do local diretamente proporcional ao crescimento das
relações globais. A partir desta escolha, procurou-se desenvolver uma aproximação sistemática com o Grupo
de Usuários Linux de Pelotas que será detalhada a seguir.
Procedimentos metodológicos
Antes de desdobrarmos os procedimentos metodológicos utilizados nesta pesquisa, ressaltamos a intenção
deste estudo em realizar uma abordagem em caráter qualitativo tendo como estudo de casos uma
comunidade de usuários de software livre. A partir deste pressuposto, a escolha do método a ser aplicado
deveria considerar aspectos particulares, como, por exemplo, a presença de elementos do empírico na
construção das análises. Esta presença do empírico se refere a uma série de experiências pessoais do
pesquisador como usuário de software livre e também como membro efetivo da comunidade de usuários a
ser estudada, no intuito de optar pelo método de observação participante. Ao mesmo tempo este
direcionamento não deveria apenas contemplar o material empírico, mas também utilizar a “sensibilidade
teórica” (Recuero, 2002, p. 86) adquirida a partir do contato com as construções teóricas acerca do tema
desta pesquisa.
Desta forma, optamos pela utilização de procedimentos complemetares que contemplassem estes dois
elementos, como uma relação de dupla-via: do empírico ao teórico e do teórico ao empírico. Partindo dos
direcionamentos metodológicos utilizados nos estudos culturais, procuramos uma aproximação com um
certo viés etnográfico, no intuito de aproveitamento desta “sensibilidade teórica” e contextualização com a
comunidade e o modo como os usuários definem sua vivência. É importante salientar que esta aproximação
etnográfica se utiliza apenas desta particularidade de contextualização e não constitui, portanto, uma
orientação metodológica exclusivamente etnográfica. A medida correta desta clivagem é expressa através
do texto de Ana Carolina Escosteguy:
Do ponto de vista metodológico, a ênfase recaiu, mais tarde, no trabalho qualitativo. Este exerceu
uma forte influência na formação dos Estudos Culturais. A escolha por trabalhar etnograficamente
deve-se ao fato de que o interesse incide nos valores e sentidos vividos. O estudo etnográfico
acentua a importância dos modos pelos quais os atores sociais definem, por si mesmos, as condições
em que vivem. (Escosteguy, 2004, p. 143).
Como visto a partir desta citação a inclinação etnográfica deste trabalho acontece no sentido de
aproveitamento desta tradição dos estudos culturais em recortar o objeto através de alguns elementos da
pesquisa etnográfica. Este trabalho foi iniciado com o aproveitamento de alguma experiência teórica do
pesquisador e a partir de um contato sistemático com o legado dos estudos culturais sobre o tema das
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identidades culturais e outras construções teóricas complementares. Esta pequena bagagem foi aliada à
intenção etnográfica de contextualização do objeto. Neste sentido, Francisco Rüdiger menciona que a
proposição de trabalhar com elementos empíricos deve ser conectada com o referencial teórico, no sentido
de “pensar reflexivamente” o objeto de estudos:
O estudo dos materiais empíricos, sejam ações ou textos, pressupõe o emprego de um marco
teórico capaz de, em tese, conectar esse trabalho com a experiência vivida pelos sujeitos sociais e,
ao mesmo tempo, pensar reflexivamente esta autocompreensão. (Rüdiger, 2002a, p. 13)
A outra via de nosso caminho metodológico, como já salientamos, teve com ponto de partida o referencial
empírico para depois estabelecer o cruzamento teórico. Este direcionamento, especificamente, foi o que
permitiu dois processos importantes de desenvolvimento que é o aproveitamento da carga de elementos
empíricos e também a intenção do pesquisador no desenvolvimento de uma observação participante junto
ao grupo de usuários. Os referenciais empíricos não poderiam ser descartados, por conta de oferecerem
contribuições ao processo de pesquisa no sentido de contextualizar, tecnicamente, o pesquisador junto ao
escopo das comunidades de software livre que, adiantamos, tem uma linguagem e um modo de ação
baseados na técnica. Ou seja, em nosso caso, sempre será necessária a tradução destes referenciais em seu
sentido de ação social e política dos agentes. Então esta vivência do pesquisador como usuário de software
livre auxilia largamente o processo de pesquisa para a realização destas adaptações e, absolutamente, não
poderia ser desconsiderada enquanto elemento empírico.
A intenção de se estabelecer um processo de observação participante se materializou a partir do ingresso do
pesquisador como membro efetivo do Grupo de Usuários de Software Livre, durante um período específico
de observação e vivência. A observação participante é uma prática bastante conhecida nas ciências sociais e
utilizada no mesmo sentido que expressamos o emprego dos elementos empíricos: como forma de
contextualização com o objeto e primordialmente para conferir a este objeto a centralidade da pesquisa
6
permitindo uma efetiva coleta de dados. Brandão, ao trabalhar com comunidades populares de base ,
evidencia esta centralidade dos sujeitos no processo de pesquisa participante:
Participação, participar são palavras que traduzem aí, portanto, a possibilidade do envolvimento do
trabalho popular na produção do conhecimento sobre a condição da vida do povo. Homens e
mulheres de comunidades populares são convocados a serem sujeitos das pesquisas de que eram
antes objeto de estudo. (Brandão, 1984, p. 225)
Também Pierre Bourdieu (1999, p. 58) evidencia a prática da observação participante como uma
necessidade para o acompanhamento sistemático, particularmente em situações como este estudo de casos
de um grupo de agentes sociais. Desta forma, procuramos estabelecer esta aproximação efetiva com os
usuários do Grupo de Usuários Linux de Pelotas. Antes de descrevermos o método que pautou esta via de
aproximação do empírico ao teórico, é importante salientar que, apesar da utilização da observação
6
Este texto de Brandão refere-se a uma pesquisa que tem como objeto de estudo Comunidades Eclesiais de Base. Apesar
desta diferença, utilizou-se o aporte metodológico no sentido de conferir ao objeto a centralidade no processo de pesquisa.
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participante e da utilização de elementos empíricos, foram mantidos critérios bastante claros de vigilância e
o distanciamento necessário a fim de permitir “adbicações do empirismo” (Bourdieu, 1999 p. 48) em função
da importância dos aportes teóricos na construção das análises.
Para cumprir o desafio da observação participante, de conferir centralidade ao objeto de estudos e permitir
que os dados surjam desta centralidade, utilizamo-nos do método da Grounded Theory, desenvolvido por
Strauss e Glasser em 1967. Este procedimento se revela como um método adequado à nossas pretensões
por permitir que os problemas venham do objeto de pesquisa, valorizando os aportes empíricos no estudo.
O processo de análise dos dados descrito pela Grounded Theory se divide em três etapas. Em um primeiro
momento é necessário a descrição e o questionamento do objeto de estudo (open coding), em seguida todos
os dados são agrupados a partir da possibilidade de se fazer alguma relação entre eles (axial coding) e
finalmente se faz à integração e a definição destes agrupamentos de relações em categorias (selective
coding). Apesar de ser pouco utilizada no âmbito dos estudos culturais, a Grounded Theory se configura em
uma orientação metodológica interessante para o caso de análise de grupos sociais envolvidos com a
dinâmica do ciberespaço. Um exemplo de utilização da Grounded Theory nos estudos culturais é o trabalho
de Joke Hermes (2005, p. 15) sobre as audiências massivas sobre uma “perspectiva dialética-comparativa”.
Depois desta delimitação dos pressupostos metodológicos utilizados nesta pesquisa, vamos nos deter nas
ferramentas e ações práticas deste conjunto de ações. Primeiramente, procuramos delimitar quais os
espaços de pesquisa e quais as ferramentas que seriam utilizadas na coleta de dados. Partindo da intenção
de realização de uma observação participante, foram utilizados os três virtual settlements do Gulp, já
citados anteriormente: (1) a lista de discussão por e-mail do grupo (o principal deles), (2) o website do
grupo de usuários e (3) a comunidade no website de relacionamentos Orkut. A inscrição do pesquisador
como membro do grupo foi feita através do ingresso no primeiro destes espaços que significa uma espécie
de “marcador cerimonial de entrada” (Aranha, 1999, online) para o grupo de usuários. Este período de
observação e vivência junto à comunidade ocorreu durante o período de maio a outubro do ano de 2004,
nos três espaços de interação do Gulp. Como instrumento de coleta de dados, utilizamos o diário de campo
que teve seu registro facilitado pelos próprios mecanismos dos espaços de permitirem a recuperação das
mensagens sobre um determinado período de tempo. De modo que o pesquisador, através destes meios,
pode registrar digitalmente a maioria das movimentações nos ambientes do grupo de usuários. Também se
optou pela realização de entrevistas com no mínimo 20% dos usuários do grupo. Estes usuários
entrevistados (cerca de 20) foram escolhidos devido à sua efetiva participação nas discussões e por outros
fatores como tempo de permanência no grupo e atividades que desempenham na comunidade. A partir
destas escolhas e considerando nossa dupla-via metodológica foi desenvolvida a pesquisa com os usuários
com a aplicação das fases da Grounded Theory explicitadas anteriormente. Após uma breve passagem por
alguns pressupostos teóricos, passaremos ao desdobramento final da aplicação destas fases.
A trajetória dos estudos culturais para o estudo da identidade
A escolha de lançar um olhar sobre o papel da identidade cultural em nosso grupo de usuários não constitui
uma opção gratuita. Acreditamos que o processo social vivenciado com o colapso da era industrial confere a
identidade o status de um conceito-chave para compreensão dos principais tensionamentos deste período de
descrédito nas narrativas totalizantes da modernidade que constituem um grande problema epistemológico
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prenunciado por alguns autores como o surgimento de um tempo pós-moderno. Como denuncia Jean
François Lyotard (2004, p. 13), as estruturas de legitimação do saber também estão passando por uma
profunda revisão e readaptação a um novo parâmetro agonístico, onde se pode manipular as linguagens
como “em um jogo de xadrez” (2004, p. 16), cada uma com regras e posições próprias. Mais do que nunca
o sujei to iluminista, formatado pelo pensamento cartesiano e baconiano, está sofrendo seus maiores
questionamentos e rupturas com as estruturas sólidas e totalizantes que forneceram aos sujeitos “uma
ancoragem estável no mundo social” (Hall, 2002, p. 7). O mesmo autor ainda identifica um tempo de “crise
de identidade” vivenciado em meio em meio ao tensionamento do moderno com o pós-moderno e
desenvolve uma longa trajetória de descentramentos do referencial iluminista, iniciada com o surgimento
das ciências sociais e os contributos de Marx, Ferdinand de Saussure, Freud, Michel Foucault para
desconstrução paulatina do sujeito cartesiano. Este processo de descentramentos tem seu ápice a partir da
segunda metade do século XX, com o turbilhão de acontecimentos sociais do final dos anos 60, dentre eles o
surgimento do movimento feminista, considerado um acontecimento que questionaria de uma vez por todas
a idéia de uma concepção identitária fixa e imutável. Este fato é considerado um marco e é uma fala
consensual dos estudos culturais e pode ser encontrado a partir dos relatos de muitos autores como
Escosteguy (2002, p. 31), Schulman (2004, p. 211) e do próprio Stuart Hall (2003, p. 209) que, como
diretor nesta época do Centre of Contemporany Cultural Studies (CCCS) da Universidade de Birminghan, na
Inglaterra, presenciou a “invasão” protagonizada pelo feminismo como um movimento da sociedade para os
estudos culturais, particularmente através das advertências de Angela McRobbie. Este fato, largamente
abordado pela literatura sobre os estudos culturais britânicos, foi, a posteriori, o que permitiu o foco nas
questões sobre a identidade cultural e permitiu a compreensão da identidade formada através da cultura:
A intervenção do feminismo foi específica e decisiva para os estudos culturais (bem como para
muitos outros projetos teóricos). Introduziu uma ruptura. Reorganizou o campo de maneiras
bastantes concretas, [dentre estas maneiras] a abertura de muitas questões que julgávamos ter
abolido em torno da área perigosa do subjetivo e do sujeito, colocando estas questões no centro dos
estudos culturais como prática teórica (Hall, 2003, p. 209).
Este direcionamento foi o que permitiu a discussão do papel da identidade nos estudos culturais, e a partir
daí, o surgimento de diversas contribuições no sentido cartografar o papel da identidade no processo de
crise epistemológica e os embates entre modernidade e pós-modernidade protagonizados por Anthony
Giddens, Frederic Jameson, David Harvey e outros. Também outros temas adjacentes como a divisão entre
sociedade moderna e tradiconal trazida por Giddens e questionada pelo trabalho do chileno José Joaquín
Brunner (1991, p. 25) fazem parte deste debate. Outras contribuições como a concepção de representações
sociais da psicologia social, trazida por Goffman (2004), no sentido de exercício de diversos papéis sociais,
também tiveram um papel preponderante nesta história de ruptura do sujeito moderno preconizada pelo
Übermensch de Friedich Nietzsche. Esta última contribuição, apesar de distante epistemologicamente da
clivagem antropológica dos estudos culturais, constitui importante contribuição por ter se antecedido a todo
o processo de crise vivenciado na segunda metade do século XX. Autores como Rüdiger (2002, p. 47) e
Larrain (2000, p. 16) evidenciaram esta antecipação nietzscheana.
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Elementos identitários do Grupo de Usuários Linux de Pelotas
Feita esta pequena passagem por algumas das principais referências de nosso quadro teórico, trataremos de
finalmente revisar as categorizações obtidas com a aplicação da última fase da Grounded Theory, (selective
coding) que realiza os cruzamentos com a teoria e fornece categorizações a partir da aglutinação do material
encontrado na pesquisa de campo. Fazemos memória, neste momento dos elementos metodológicos
explicitados acima.
Linguagem técnica enquanto construção identitária
Um elemento bastante forte e encontrado em grande parte dos relatos do diário de campo durante a fase de
coleta de dados foi à utilização da linguagem técnica como um forte recurso identitário pelos usuários do
Gulp. Entre as comunicações dos membros do grupo, existe o predomínio de termos técnicos que exerce
uma função de referencial para a identidade dos agentes sociais. A mensagem abaixo foi enviada à lista de
discussão por e-mail da comunidade:
Salve lista! Como existe muitos usuarios debian aqui, resolvi tentar a sorte. Pessoal, negocio e o
seguinte. Estou com um problema na instalacao do debian 3.0. Sempre q tento a instalacao com o
7
kernel 2.4 (bf24) o sistema de instalacao trava na hora q encontra a placa de rede (sis 900 eth0).
Esta mensagem é apenas um exemplo do tipo de comunicação mais usual realizada com os usuários que é a
utilização do grupo para auxílio e solução de dúvidas sobre a instalação dos programas. Este recorte pode
ser relacionado por elementos de marcação simbólica de diferença entre os agentes sociais. A marcação
simbólica acontece a partir destes atos de linguagem com a utilização dos termos técnicos. Esta prática tem
uma função importante porque localiza os sujeitos em seu papel social de usuários de software livre,
estabelece referências simbólicas que estão presentes quase a todo o momento durante os atos de fala.
Hall, ao falar do papel da diferença como delimitação da identidade, oferece uma reflexão oportuna para a
análise deste resultado:
Dizer, por sua vez, que identidade e diferença são o resultado de atos de criação lingüísticas significa
dizer que elas são criadas por meio de atos de linguagem. Isto parece uma obviedade. Mas como
tendemos a tomá-las como dadas, como “fatos da vida”, com freqüência esquecemos que a
identidade e a diferença têm que ser nomeadas. É apenas por meio de atos de fala que instituímos a
identidade e a diferença como tais. (Hall, 2000, p. 76).
Desta forma a linguagem técnica, no Grupo de Usuários Linux de Pelotas, tem uma função importante como
recurso para a partilha de um imaginário da comunidade. Falar e compreender a linguagem técnica significa
uma ligação simbólica com os outros membros da comunidade e também com outros usuários da grande
rede formada em torno do Movimento Software Livre. Os termos técnicos diferenciam os usuários dos
“usuários comuns” que não dominam o jargão técnico utilizado. Assim, a linguagem técnica delimita a
diferença simbólica entre ser ou não ser usuário de software livre, entre estar ou não estar em uma
comunidade que partilha um mesmo campo de significados técnicos.
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Mensagem enviada dia 12 /09/2004
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Outra concepção teórica que pode ser relacionada com este recorte da linguagem técnica é a idéia de
Kathryn Woodward com relação ao posicionamento dos sujeitos em acordo com os campos em que atuam:
Consider the different ‘identities’ involved in different ocasions, such as attending a job interview or
a parents evening going to a party or a football match, or visiting a shopping mall. In all these
situatons we may feel, literally, like the same person, but we are differently positioned by the social
expectations and constraints and we represent ourselves to others differently in each context. In a
sense, we are positioned – and we also position ourseves – according to the ‘fields’ in which we are
acting. (Woodward, 2002, p. 22)
A partir desta perspectiva, podemos relacionar o recorte teórico com a linguagem técnica utilizada pelas
comunidades de usuários de software livre que tem o papel de delimitar este campo de atuação como
participante de um grupo de usuários. A linguagem técnica, então, estabelece uma forte marcação simbólica
na representação dos usuários do Gulp.
Vivência de uma identidade cultural fragmentada
Podemos evidenciar outro recorte com relação à vivência da identidade cultural do grupo de usuários
estudados. Durante a observação participante das comunicações na lista de discussão e especialmente o
resultado das entrevistas feitas com os usuários se pode constatar a pouca insurgência de assuntos não
técnicos
e
a
escassa discussão
dos
desdobramentos
políticos
do
software
livre.
As
entrevistas
particularmente demonstraram que a maioria dos usuários do Gulp não têm interesse na discussão destes
temas classificados por estes grupos como “filosofia do software livre” por compreender que estes assuntos
não precisam ser discutidos. Na ótica de alguns usuários, os princípios do software livre (de liberdade de
distribuição e modificação dos programas) não precisam ser discutidos e são aceitos de forma tácita por
todos os que participam da dinâmica, como podemos observar na resposta do usuário Marilton de Aguiar
(um dos fundadores do Gulp):
A filosofia deste movimento é indiscutível, todo integrante intuitivamente sabe qual é a idéia, mesmo
sem conhecer juridicamente o que implica cada tipo de licença. Todos temos idéia disso.
Relacionado a isto, também observamos, através de outros elementos, que a maioria dos usuários tem uma
concepção de política bastante voltada para as questões partidárias, de forma restrita. Qualquer
questionamento em relação às questões políticas eram compreendidas com este viés ideológico que muitas
vezes o Movimento do Software Livre assume como um processo de falsa consciência. Hall faz esta relação
da estrutura ideológica com o uso de “sistemas de representação” ligados a diferentes discursos. Segundo o
autor:
Cada [discurso] nos localiza distintamente – como trabalhador, capitalista, trabalhador assalariado,
os escravos do salário, produtor, consumidor, etc. Assim cada um nos situa como atores sociais e
como membros de um grupo social em uma relação particular com o processo e prescreve para nós
certas identidades sociais (Hall, 2003, p.285)
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Desta forma, o posicionamento dos usuários do Gulp como engajados na dinâmica do software livre
condicionam esta prescrição de uma identidade social específica, mesmo que os participantes não tenham
plena consciência ou até mesmo rejeitem este desdobramento. Um outro fato curioso para complementação
desta análise se refere ao resultado de um questionamento aplicado aos usuários se eles se percebiam como
participantes de um processo de mudança. Quase a totalidade dos entrevistados respondeu que se
compreende desta forma, alguns deles descreveram esta mudança como apenas tecnológica, outros
perceberam a mudança a uma relação com o social. Seguem abaixo duas respostas de percepção desta
questão:
Uma revolução tecnológica. No meu entender o linux é um novo sistema operacional que
proporciona facilidades que os softwares proprietários não proporcionam aos seus usuários (como
código fonte aberto), com isso acrescentou-se algo que até então não existia, e creio que isso pode
8
ser chamada de uma revolução, visto que paradigmas foram quebrados.
É uma revolução política na minha opinião porque dá alternativa para escolha, e uma escolha livre.
Tecnológica devido a características que o Linux (e os aplicativos voltados a ele) implementa que são
9
novidades se comparados ao 'mesmismo' do software da Microsoft.
No caso do primeiro usuário é percebida uma mudança em termos tecnológicos. A concepção do
envolvimento em um processo de mudança se dá em um âmbito sistêmico. Não há relação da tecnologia
com relações políticas e sociais. Já o segundo usuário considera o software livre como uma “revolução
política” relacionada com a oportunidade de escolha. Esta “escolha” evidentemente se refere à dualidade do
software livre com as empresas de software proprietário. O usuário relaciona esta oportunidade de escolha a
esfera política e em segundo plano evidencia as mudanças tecnológicas. Nos dois casos a relação política e
social permanece um pouco dissociada do tecnológico, apesar de o segundo exemplo considerar uma relação
política priorística.
O exercício de uma identidade cultural fragmentada está justamente no fato de os usuários, em um primeiro
momento não sentirem a necessidade de discussão de temas não-técnicos e ao mesmo tempo se
perceberem envolvidos em um processo de mudança, seja de forma política, social ou tecnológica. Então, ao
se perceberem envoltos em um movimento de “revolução”, estes usuários assumem dois papéis sociais em
suas id1entidades culturais: um papel de aplicação claramente tecnicista de não interesse por temas
políticos e sociais, e outro papel social de compreender-se em um processo de mudança, ou seja, o
sentimento de engajamento em uma causa. Estes papéis, apesar de conflitantes, são vivenciados de forma
concomitante pelos usuários. O recorte pode ser compreendido pela contribução de Erving Goffman (2004,
p. 72) na concepção do exercício de diversos papéis sociais pelos agentes sociais e também pelo problema
epistemológico da relação agonística entre os jogos de linguagem (Lyotard, 2004, p. 16).
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Entrevista realizada dia 16/10/2004 com o usuário João Paulo da Silva
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Entrevista realizada dia 8/10/2004 com o usuário Adriano Bonat
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UNIrevista - Vol. 1, n° 3 : (julho 2006)
A questão da identidade cultural nas comunidades de usuários de software livre: o caso do gulp
Guilherme Carvalho da Rosa
A diferença como referencial identitário no Gulp
Vamos agora fazer menção ao referencial da diferença enquanto delimitadora da identidade, idéia expressa
por Woodward (2000, p. 8). Não obstante a isso, traremos presente alguns recortes como as categorias
identificadas a partir da pesquisa qualitativa que estabelecem um grande dualismo entre os sistemas
proprietários e o software livre:
O software comercial é como o McDonalds. Ninguém gosta muito, mas todo mundo come porque
todo mundo come, já vem pronto, não há esforço. O software livre encoraja as pessoas a tomarem
suas próprias decisões e fazerem um sanduíche sem picles se não gostam de picles, e talvez incluir
uma salsicha junto com o hambúrguer. Naturalmente isto incomoda muita gente que não quer
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abdicar de sua atitude passiva frente a sua própria vida.
A comparação do usuário Fábio Leite é bastante oportuna para exemplificar o papel da diferença no Grupo
de Usuários Linux de Pelotas. A comparação do software proprietário como a rede de lanchonetes
McDonald´s e com o hambúrguer, naturalmente, delimita claramente a diferença entre o software livre e o
software proprietário. A diferença de poder “comer o hambúrguer com salsicha” não apenas delimita o
espaço da identidade do GULP e dos usuários de software livre, mas serve de referência para a identidade
do grupo. A diferença é o referencial para o estabelecimento das identidades.
A identidade é marcada por meio de símbolos; por exemplo, pelos próprios cigarros que são
fumados em cada lado. Existe uma associação entre a identidade da pessoa e as coisas que a pessoa
usa.(Woodward, 2002 p. 9)
Assim como relata Kathryn Woodward, a identidade é delimitada por meio de pequenos símbolos, no caso
da citação a diferença entre sérvios e croatas “que fumam cigarros diferentes” e isso delimita suas
identidades. Ao passo que os hambúrgueres comparados aos softwares ocupam a mesma dimensão que a
marca de cigarros dos sérvios e croatas exemplificados pela pesquisadora dos estudos culturais: delimitam
identidades, posições de sujeito e modos.
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Entrevista como usuário Fábio Leite realizada dia 12/10/2004
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UNIrevista - Vol. 1, n° 3 : (julho 2006)
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Guilherme Carvalho da Rosa
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A questão da identidade cultural nas comunidades