73 CONDUÇÃO MELÓDICA/HARMÔNICA DAS DISSONÂNCIAS NA HARMONIA DA PRÁTICA COMUM: DEFININDO PARÂMETROS PARA UMA ANÁLISE MUSICAL Francisco Koetz Wildt ∗ RESUMO: Este trabalho apresenta passos iniciais de uma pesquisa rumo à definição e desenvolvimento de um objeto de estudo. Discute-se um dos principais aspectos da harmonia tonal, relacionado ao tratamento de notas estranhas aos acordes, sendo este tratamento dividido em duas categorias diferentes em termos da resolução das dissonâncias: o tratamento melódico, no qual as dissonâncias são resolvidas em consonâncias; e o tratamento harmônico, no qual as dissonâncias são incorporadas à estrutura do acorde. PALAVRAS-CHAVE: análise musical, harmonia tonal, notas estranhas aos acordes, repertório pianístico. ABSTRACT: This work presents some initial steps taken by its author towards the definition and development of a subject for research. It discusses one of the main aspects of harmony which is related to the melodic treatment of non-harmonic tones, being this treatment separated in two different categories in terms of their resolution: the melodic treatment, by which dissonaces are resolved into consonances; and the harmonic treatment, when dissonances are absorbed into the chordal structure instead of being resolved. KEYWORDS: musical analysis, tonal harmony, non-harmonic tones, piano repertoire. A presente comunicação faz parte de um estudo em fase inicial, o qual será desenvolvido dentro do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em Artes e cujo foco será desenvolvido dentro do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em Artes e que terá o seu foco voltado ao estudo do repertório pianístico na música brasileira. Esta pesquisa em início encontra-se em relação direta com projeto de extensão Brasil no Piano, no qual o repertório em questão tem sido trabalhado juntamente com os alunos participantes em atividades de levantamento de repertório e performance pianística. O que se apresenta aqui é um primeiro passo desta pesquisa, antecedendo até mesmo a abordagem do repertório em si. O objetivo do presente estudo é estabelecer os critérios de análise musical que deverão direcionar a abordagem teórica do repertório em questão. Sabemos que a análise musical é um campo teórico abrangente, não só do ponto de vista técnico como também do ponto de vista das diferentes possibilidades no que se refere à sua finalidade. A análise de uma obra musical pode se dar com diferentes objetivos, desde obter maior compreensão da estrutura formal de uma peça, demonstrar a possibilidade de ∗ Mestre em Música pela UFRGS, professor efetivo da Faculdade de Artes do Paraná, pesquisador do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Artes da FAP. 74 aplicação de um paradigma teórico, situar determinada obra ou compositor historicamente, complementar uma discussão de aspectos sociais e históricos da música até as finalidades práticas como a memorização de uma partitura para execução pública. Uma vez definido o âmbito de aplicação da análise ou de sua finalidade, há ainda uma variedade de parâmetros musicais que podem ser abordados na análise, já que diversos aspectos da música podem ser enfocados, incluindo forma, estrutura temática, ritmo, harmonia etc. Para que possa ser estabelecido um parâmetro analítico, optou-se por dar início a um estudo voltado ao aspecto harmônico examinando, em princípio, o tópico específico do tratamento dado às chamadas notas estranhas aos acordes ou não harmônicas. Tal estudo tem como horizonte a ser alcançado a verificação da idéia de que há duas formas gerais de se tratar notas não pertencentes a um acorde: uma em que as notas não pertencentes à estrutura triádica são resolvidas em consonância, estando em conformidade com os casos descritos em tratados de harmonia (bordadura, apojatura, notas de passagem etc.) e outra em que as dissonâncias são conduzidas de maneira mais livre. Cabe ressaltar que o universo musical delimitando a pesquisa é um repertório ainda essencialmente tonal, entendido à luz da teoria harmônica tradicional, estando entre os princípios que norteiam tal discurso musical a antinomia entre consonância e dissonância e o diatonismo maior/menor. Trata-se do que Piston define como o período da prática comum – compreendido entre os séculos XVIII e virada do século XIX para XX, onde este sistema harmônico dá lugar a outras estruturações musicais tais como a atonalidade, a pantonalidade, o dodecafonismo, serialismo etc. Definindo ainda o lugar preciso a que pertencerá este estudo, é preciso considerar a subdivisão do elemento harmônico em alguns aspectos, como: a entidade vertical do acorde – em seu estado fundamental e inversões, a relação entre diferentes acordes numa progressão, a tonalidade e a relação dos acordes com um centro tonal (campo harmônico e funções harmônicas), e a condução das vozes, isto é, o aspecto horizontal (contraponto), o qual pode relacionar-se também com o uso de inversões e com o tratamento dado às notas dissonantes. Corrêa (2006), ao resumir alguns dos postulados teóricos que dão as bases para uma teoria harmônica da prática comum, a partir o estudo de autores como Dalhaus, Nattiez, Schoenberg e Rameau colocam a existência de quatro princípios transcendentes que norteiam o estudo da harmonia tonal: “a série harmônica ou sistema natural de ressonância, a escala, a superposição de intervalos de terças para construção de acordes1 e o ciclo das quintas”. Da escala, obtém-se o movimento linear das notas, isto é, o elemento melódico. Nesse movimento linear, temos a condução das vozes, o tratamento melódico individual de cada uma das vozes as quais, verticalmente, compõem os acordes. Corrêa afirma que “a movimentação linear dos sons da escala pode ocasionar sobreposições de notas estranhas aos acordes, ou seja, dissonâncias; a resolução destas dissonâncias é responsável por conferir direcionamento ao fluxo harmônico”. Neste sentido, podemos acrescentar que o conceito de dissonância não vem apenas do choque ou sonoridade conflitante entre as notas de um intervalo, mas também da noção de pertencimento ou não de uma nota a uma estrutura vertical reconhecida como acorde. E que o tratamento dispensado às notas estranhas aos acordes estabelece uma relação entre o aspecto linear e o aspecto vertical da harmonia, já que é a verticalidade que proporciona a noção de dissonância ou consonância2. Mas acima de tudo, uma que vez que se atribui ao tratamento das notas não harmônicas a função de conferir “direcionamento ao fluxo harmônico”, infere-se que o 1 Zamacois descreve a formação dos acordes como uma superposição de terças, mas também como a adição de uma terça e uma quinta sobre uma nota fundamental (1997, p. 29). 2 Deve-se considerar a noção de dissonância também no movimento melódico como, por exemplo, no saltos de trítono ou de segunda aumentada, proibidos no ensino do contraponto (CARVALHO, 2002, p.23). No entanto, é a dimensão vertical da música que nos proporciona de forma mais patente o sentido de dissonância ou de notas estranhas ao acorde. 75 antagonismo entre as noções de dissonância e de consonância é fator inseparável da idéia de música tonal. Uma vez que a música se dá intimamente associada às idéias de tempo e de movimento, tecnicamente falando é necessário que haja um fio condutor, o qual pode encontrar-se o impulso gerado pela expectativa da resolução de uma dissonância. O tratamento das notas não harmônicas vincula-se, ao mesmo tempo, ao elemento linear – escalar – da música e ao aspecto vertical, uma vez que a idéia de dissonância aqui se dá com base no não pertencimento a uma determinada estrutura triádica. Do ponto de vista linear, a resolução da dissonância se dá conforme princípio manifesto no seguinte enunciado: O movimento por grau conjunto implica numa relação dissonante entre tons vizinhos por definição, pois a segunda maior e a segunda menor são definidas como dissonâncias. O outro lado desta moeda é o fato de que qualquer intervalo dissonante pode ser convertido num intervalo consonante por meio do deslocamento conjunto (por segunda maior ou menor) de um de seus componentes3; em outras palavras, qualquer dissonância tem a possibilidade da resolução, por grau conjunto, numa consonância. (PISTON, 1987, p. 110). A validade deste princípio não se encontra apenas nas regras apresentadas por manuais de contraponto e de harmonia, mas pode ser também ser verificada por meio de um exame do repertório musical cuja organização é guiada pela oposição consonância/dissonância, isto é, do período denominado por Piston como prática comum. Não se faz necessário, portanto, definir em que medida a música é feita por meio da obediência a um conjunto de regras préexistentes ou se as regras é que são sistematizadas por meio da observação da música. O presente estudo parte do pressuposto que a música tonal tem a oposição entre dissonância e consonância como um de seus princípios estéticos fundamentais. Também não se faz indispensável, portanto, uma análise acústica da dissonância – ainda que isso seja possível, uma vez que se trata de um princípio estético e não físico que orienta as considerações aqui apresentadas. Partindo do princípio contido na citação acima, em que se descreve a resolução melódica da dissonância, pode-se inferir que há duas formas possíveis de se tratar uma nota estranha a um acorde: realizando a resolução por grau conjunto em direção a uma nota consonante ou não confirmando essa possibilidade dando origem a um tratamento livre da dissonância. Corrêa refere-se ao tratamento mais livre das notas estranhas aos acordes como “emancipação da dissonância”, onde “As notas ‘dissonantes’ dos acordes dispensam quaisquer tratamentos especiais” (2006, p. 88). Já Piston faz a distinção entre as possíveis abordagens das notas dissonantes através dos termos notas harmônicas e notas melódicas: no primeiro caso, por não serem preparadas nem resolvidas, tais notas aparecem como parte integrante do acorde e são movimentadas não no sentido de resolução, mas como se houvesse um arpejamento da harmonia; já no segundo caso, constituem uma ocorrência melódica, onde há resolução linear da dissonância (pp. 335 e 369). O exemplo abaixo ilustra a resolução melódica por grau conjunto da décima terceira sobre a quinta do acorde de sétima da dominante no último tempo do compasso (mão direita) alcançando-se a tônica, também por grau conjunto, numa cadência autêntica (Chopin, Estudo op. 10 No. 8 em Fá maior): 3 “...of one of its factors”, no original 76 Conforme Piston, um intervalo de décima terceira sobre um acorde dominante pode ou não ser tratado melodicamente, isto é, como dissonância a ser resolvida (apojatura ou retardo), podendo muitas vezes ser absorvido como nota integrante dessa harmonia. O mesmo ocorreria com a nona, sendo que já no período clássico a resolução do acorde de nona da dominante se dava, em alguns casos, através do arpejamento do fator dissonante, princípio aplicado a nenhum outro acorde na prática comum (também chamado dissolução por alguns teóricos). É como se a nona fosse considerada um harmônico a sonoridade dominante, muito alto na série para precisar fazer parte na resolução efetuada pela sétima do acorde (1987, p. 335). A tendência, no entanto, de absorver notas superiores à sétima na estrutura do acorde, parece ser própria da harmonia dominante a qual, por sua natureza instável, pode abrir espaço para a presença de outras notas. Ainda assim, o tratamento da nona e da décima terceira como notas estranhas ao acorde mesmo na harmonia dominante, é também freqüente. Cabe ressaltar que o tratamento melódico da dissonância conforme descrito acima não é privilégio de uma escrita rigorosamente polifônica. E nem exclusivo da melodia solista numa textura homofônica. Por exemplo, nas sonatas para piano de Mozart, exemplo notório do estilo de melodia acompanhada, o contraponto se encontra presente também na condução de vozes internas as quais compõem as harmonias. Quando temos um acompanhamento no estilo basso d’Alberti perfazendo um único acorde, não há aí uma noção tão expressa de contraponto, apenas uma harmonia com efeito de movimento rítmico. Mas na mudança de um acorde para o outro, a condução que a condução das vozes aparecerá inevitavelmente, de forma mais perceptível na voz do baixo. O fato de uma determinada escrita musical quebrar expectativas em torno do tratamento de notas não harmônicas não faz com que o princípio que gera tais expectativas deixe de existir. Quando uma passagem musical apresenta tratamento livre de uma nota não harmônica, isto geralmente se dá levando em conta a memória de inúmeras situações em que a nota já foi tratada da forma prescrita. Assim, quando ouvimos uma resolução melódica como a da passagem (Chopin Balada op. 23 em sol m, compasso 35): 77 – página 12), não se pode negar a memória de resoluções como a que se ouve nos dois compassos finais da Allemande da suíte 3, também em sol menor, de J. S. Bach: . Considerado o trinado cadencial o qual envolve a nota superior, temos a sonoridade da décima terceira menor nesta harmonia dominante. Ora, em Bach, a nota em questão é resolvida por grau conjunto numa consonância, a quinta do acorde. No caso de Chopin – e a escolha de peças numa mesma tonalidade é deliberada – o si bemol não confirma a tendência esperada na progressão de um acorde I 6/4 cadencial para o V, onde a terça do I6/4 tende a descer para a quinta do V para então resolver na tônica, mas salta descendentemente, por um intervalo de quarta diminuta para o fá#, a terça do acorde dominante (D7). Ainda na Balada, o trecho imediatamente a seguir manifesta maior complexidade no que se refere ao uso de notas não harmônicas. Tomemos a primeira metade do compasso logo em seguida à resolução da cadência em sol menor: Se considerarmos a harmonia do primeiro tempo do segundo compasso do exemplo acima como sol menor – tônica esperada após uma cadência longamente preparada – o fá natural, presente em ambas as mãos, constituiria uma sétima menor (escala menor natural)4. A 4 Observe-se a mão esquerda, onde vemos uma séria de apojaturas. A mão direita, por sua vez, realiza uma diminuição rítmica do padrão apresentado pela mão esquerda, com uma ornamentação das apojaturas. 78 sétima, na harmonia da prática comum, pede resolução por grau conjunto, normalmente para a terça do próximo acorde. No entanto, se tal resolução melódica se der num mesmo acorde, resulta numa sexta, também nota não harmônica. Já que o fá natural deste exemplo resolve no mi bemol, sexta menor em relação à tônica, teríamos: ou a resolução da dissonância numa outra nota não harmônica, gerando uma nova suspensão só resolvida na segunda metade do compasso, quando o mi bemol resolve sobre o ré da harmonia dominante; ou o uso livre de notas dissonantes sobre a harmonia da tônica. Por outro lado, poderíamos considerar a formação de um acorde de Eb, no qual o fá natural constituiria uma apojatura de nona. Tal ambigüidade também pode ser observada na harmonia seguinte, – segunda metade do mesmo compasso – onde se pode analisar o acorde como sendo D ou F#dim. No entanto, neste caso a harmonia dominante é inequívoca, sendo que o parentesco por demais próximo entre V7(9) e o VIIdim faz com que tais acordes muitas vezes acabem por fundir-se num único. Ainda assim, a ambigüidade entre V7 e VII diminuto permite uma dupla interpretação do mi bemol na mão esquerda: ou é a sétima diminuta do VII ou a nona menor do V7, resolvendo na fundamental do acorde e caracterizando uma apojatura. Pode-se inferir da análise acima que a ambigüidade harmônica pode ser um fator de abertura ao uso livre de notas não harmônicas, ou pelo menos de interpretação ambígua das notas que seriam pertencentes ou não a um acorde, de modo a diluir as noções de consonância e dissonância. Na sonata de Mozart KV 333 em Si bemol maior podemos destacar um caso em que a definição de estruturas triádicas aparece implícita, também gerando ambigüidade na análise harmônica. Nos compassos iniciais do terceiro movimento da sonatac, o tema do rondó é apresentado em apenas duas vozes, de modo que os acordes aparecem figurados pelo movimento linear da cada voz. O movimento melódico da mão esquerda apresenta um arpejamento das harmonias Gm (VI) e F7 (V7), enquanto a mão direita realiza um arpejo do acorde Bb. A superposição das duas tríades resultaria num acorde Gm7, cuja sétima menor não é resolvida por grau conjunto. E no compasso 2, a mão direita toca as notas mi bemol e sol, sendo esta última uma nona sobre o acorde F7, não preparada e nem resolvida por grau conjunto. Seriam, portanto, “notas livres”, dissonâncias sem nenhum tratamento especial? Na verdade, os compassos 9 e 10 esclarecem a questão, apresentando claramente o que ocorre harmonicamente nesta frase por meio do uso de acompanhamento tipo Basso d’Alberti: uma progressão I – VI – II – V7. 79 Tal progressão aparece, portanto, de forma implícita nos dois primeiros compassos, de modo que os graus I e VI, parecem mesclar-se no c. 1, gerando ambigüidade na interpretação dos acordes que se formam e também quanto ao pertencimento ou não das notas da melodia aos acordes. Por outro lado, na cadenza deste movimento, temos o tema claramente expresso em apenas duas harmonias, I e V7: O compositor demonstra que a frase poderia ser resumida harmonicamente em apenas tônica e dominante, nos levando a entender o sol da mão direita como uma nona sem preparação nem resolução. Poderíamos considerar a mudança I – VI presente na abertura do movimento como um enriquecimento de I e o II – V7 como um desdobramento de V7. Isso reforça a ambigüidade dos primeiros compassos, pois endossa o fato de que uma harmonização da frase com apenas dois acordes é possível. Assim, VI apareceria como um acorde de tônica, substituindo o I no primeiro compasso5. 5 A categorização funcional dos acordes visa entender o papel que diferentes formações podem desempenhar numa sucessão de acordes, em se contexto musical, envolvendo as frases e cadências, bem como na interligação entre diferentes idéias. A teoria normalmente referida como tradicional, que considera a tríade como estrutura harmônica básica, fora da qual qualquer nota passa a ser tratada como dissonância, estipula princípios de sucessão entre os diferentes acordes diatônicos. Neste sentido, procura-se normatizar progressões mais fortes ou mais fracas tonalmente, progressões incomuns e mais comuns. Aqui, os termos tônica, subdominante e dominante mantém-se em princípio ligadas aos graus da escala sobre os quais essas tríades são construídas (I, IV e V). Piston se refere a esses graus como graus tonais, que seriam os graus que definem com maior clareza a tonalidade. Ele afirma, no entanto, que a harmonia dominante (V) tende a absorver o VII. E que a harmonia subdominante (IV), por sua vez, tende a absorver o II. Esse autor categoriza como graus modais o III e o VI, por serem essencialmente diferentes nos modos maior e menor, definindo portanto o modo. Quanto aos graus modais, sabemos que o III e o III e VI podem aparecer com a sua fundamental alterada por um semitom ascendente na forma melódica do modo menor, mas a prática comum demonstra um uso mais freqüente desses graus com as suas fundamentais “bemolizadas” em relação à tônica (terça menor e sexta menor). O acorde dominante, por sua vez mantém-se idêntico em sua estrutura, tanto no modo maior quanto menor, variando apenas com relação à nona e à décima terceira – os quais, por sua vez, correspondem às fundamentais dos graus modais. 80 Voltando ao exemplo da Balada em sol menor, é notável ainda que o motivo da segunda região temática da Balada configura-se na não resolução melódica de uma décima terceira sobre um acorde da dominante. Assim resulta que, de maneira geral, notas consideradas não pertencentes aos acordes podem consideradas tanto harmonicamente quanto melodicamente. No entanto, Piston afirma não ter havido, no período da prática comum, a intenção deliberada de que tais notas passassem a ser parte integrante do acordes. O autor cita como uma das razões para isso o fato de que a música no referido período pode ser sempre reduzida a uma escrita a quatro partes (vozes). Assim, num acorde composto por cinco notas, um dos sons constituintes do acorde deve ser suprimido. Ocorre que a omissão de uma das notas do acorde enfraquece o sentido de estrutura de terças e faz com que o ouvido aceite os tons superiores como notas melódicas dependentes de um fundo harmônico simples, normalmente uma tríade ou um acorde de sétima da dominante (p.370). Observe-se que no caso do acorde dominante, a preponderância do trítono e a sua instabilidade permitem a omissão da quinta, a qual não tem tendência forte de resolução, sem tanto prejuízo ao reconhecimento da harmonia. A tendência de absorver notas superiores à sétima na estrutura do acorde parece ser própria da harmonia dominante a qual, por sua natureza instável, abre espaço para a presença de outras notas(isso foi tirado de outro lugar e colado aqui). Já nos acordes construídos sobre os demais graus da escala o contraste entre o tratamento harmônico e melódico das notas estranhas se faz mais patente, uma vez que a omissão de um dos fatores constituintes da tríade neste caso é mais determinante do enfraquecimento da sua definição acordal. Com este estudo, espera-se alcançar também a verificação de uma hipótese, segundo a qual o tratamento mais ou menos livre das notas não harmônicas poderia ser considerado como um elemento importante na determinação da sonoridade de uma peça, aparecendo possivelmente como fator de “modernidade” no discurso harmônico6. Tal idéia de modernidade é normalmente associada a alguns compositores ou períodos musicais, sendo que um dos compositores sempre presentes em comentários acerca de inovação musical é Chopin. O verbete dedicado a este compositor no dicionário Grove traz a seguinte observação: A harmonia de Chopin foi nitidamente inovadora. Através de contrastes melódicos, acordes ambíguos, cadências retardadas ou surpreendentes, modulações remotas ou oscilantes (às vezes, muitas em rápida sucessão), sétimas dominantes não resolvidas e, ocasionalmente, excursões no cromatismo ou na modalidade, ele levou os procedimentos consagrados de dissonância e tonalidade para territórios até então inexplorados. Temperley, ao falar sobre Chopin, é consonante com a citação anterior: “Chopin é um dos grandes inovadores da harmonia no século dezenove. Muitas vezes as inovações harmônicas de Chopin foram revolucionárias, mas o aspecto mais importante da sua originalidade foi a expansão, para territórios ainda não explorados, dos processos da dissonância cromática e da modulação até então aceitos”. Nessas observações, vemos a idéia de modernidade associada à inovação, extraindo-se a idéia de moderno do seu âmbito de aplicação estritamente histórica, ou ainda do sentido cronológico. Representa não 6 O termo modernidade é aqui empregado no seu sentido de senso comum, significando algo inovador esteticamente. 81 necessariamente aquilo que é mais recente, mas a idéia de algo que se distancia de procedimentos tidos como mais comuns. Assim, não se pretende colocar este ou outro elemento de modernidade necessariamente como inovação no sentido cronológico e evolutivo, uma vez que certa oposição entre procedimentos harmônicos tidos como mais comuns tonalmente falando e procedimentos que consideramos mais livres ou modernos pode ser detectados “coexistindo” em diferentes períodos da história da música. Além disso, o sentido de modernidade passa a ter mais sentido a partir do instante em que uma única prática harmônica passa a ser de uso comum. Desse modo, não seria necessariamente apropriado considerar moderno o que compositores dos séculos XIII ou XIV fizeram ao empregar livremente várias dissonâncias entre o início e o fim de uma seção, uma vez que a tonalidade e o pensamento harmônico vertical não haviam ainda se estabelecido tal como a partir do século XVIII. Bach, em cadências de alguns de seus corais, ao resolver um V num I, não resolvia a voz que tem a sensível encaminhando-a em direção à tônica, mas descendo uma terça para a quinta do I. Assim, temos que o trítono presente no acorde dominante não é resolvido contrapontisticamente conforme sua tendência tradicional7. Esta opção pode se dar devido a uma confluência de duas necessidades que passam a se impor como sendo de primeira ordem na situação em questão: 1) a voz que estava com a sensível dever ceder espaço à voz do soprano para que esta possa terminar na tônica, e 2) o compositor quer uma sonoridade completa no último acorde, não podendo por isso o contralto fazer uníssono com o soprano na tônica, gerando a omissão da quinta neste acorde. No entanto, a resolução da sensível na tônica, ainda que não numa mesma voz, é percebida pelo ouvinte como passando do contralto ao soprano. Neste caso, portanto, a escolha pela não resolução rigorosa do trítono não se dá com vistas em uma sonoridade inovadora, mas obedecendo a uma necessidade musical a qual se impõe à condução das vozes. Segundo a hipótese formulada, poderíamos dizer que um dos aspectos característicos de uma harmonia a qual o ouvido tende a reconhecer como mais “moderna” é o de não dar confirmação à resolução mais esperada de notas não harmônicas. Quando se comparam obras de compositores como Mozart e de Chopin, em muitos casos é na condução de vozes, ao não confirmar tendências de resolução contrapontística mais esperadas – as quais foram, ao longo do tempo sistematizadas em forma de regras – que reconhecemos o elemento de modernidade8. Podemos observar, por exemplo, que a harmonia da música popular – notadamente do jazz e, no Brasil, da Bossa Nova e MPB – passou a prescindir do tratamento tradicional exigido pelo uso das notas não harmônicas, de modo que os acordes passaram a incorporar tais notas na sua estrutura. Tal pensamento tem sua forma extrema no jazz moderno, onde a noção escalar e a harmônica no sentido verticalizante acabam por se fundir. O pianista e professor Mark Levine expressa esta idéia ao dar a seguinte orientação aos estudantes de piano e improvisação: Certamente você terá que praticar escalas para que possa usá-las quando você improvisar, mas os melhores músicos de jazz pensam nelas mais como uma ‘gama disponível de notas’ a serem tocadas num dado acorde, ao invés de dó-ré-mi-fá-sol e assim por diante (1999). 7 Isto é, sétima do V7 descendo por grau conjunto à terça do I e terça do V7 dirigindo-se à tônica. Não se pretende aqui afirmar que este seja o único elemento chave de modernidade na estruturação harmônica de uma peça musical, mas que podemos reconhecer como um dos fatos a serem observados no desenrolar da história da música ocidental compreendida no período denomimado por Piston de “prática comum”, a incorporação de notas não harmônicas à estrutura dos acordes. 8 82 E mais adiante, “a escala e o acorde são, na maior parte das vezes, duas formas de uma mesma coisa”. O conceito de dissonância irá se restringir a notas as quais não podem coexistir numa verticalidade devido à preponderância de uma categoria harmônica funcional sobre outra. O caso mais importante disso é a impossibilidade das funções tônica e dominante coexistirem verticalmente. As considerações feitas até aqui procuram estabelecer um ponto de partida para o aprofundamento da investigação acerca da harmonia como um elemento determinante do discurso musical tonal. Ao longo deste processo de estudo e pesquisa, procurar-se-á estabelecer pontos de contato entre teoria e repertório, numa relação em que o exame de exemplos do repertório tradicional dará o apoio para que se defina linha de pensamento. Resta ainda o caminho todo a ser percorrido, no qual se espera colocar luz sobre pontos importantes da definição de um parâmetro de análise, mesmo que nem sempre para responder perguntas fundamentais, mas ao menos para que se possa fazer a escolha de quais perguntas formular. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENEDICTIS, Savino de. Curso de harmonia teórico e prático. São Paulo: Sotero de Souza Editor. CARPEAUX, Otto Maria. O livro de ouro da história da música: da idade média ao século XX. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. CARVALHO, Any Raquel. Contraponto tonal e fuga: manual prático. Porto Alegre: Novak Multimedia, 2002. CORRÊA, Antenor Ferreira. Estruturações harmônicas pós-tonais. São Paulo: EdUnesp, 2006. GUEST, Ian. Harmonia. Método prático. 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