A C Ó R D Ã O (Ac. 3ª Turma) GMALB/tmoa/abn/AB/mn PE RECURSO DE REVISTA. MOTORISTA DE ÔNIBUS QUE REALIZA COBRANÇA DE PASSAGENS NO VEÍCULO QUE CONDUZ. AUSÊNCIA DE ACÚMULO DE FUNÇÕES QUE AUTORIZE ACRÉSCIMO SALARIAL. CLT, ART. 456, PARÁGRAFO ÚNICO. A teor do art. 456, parágrafo único, da CLT, -à falta de prova ou inexistindo cláusula expressa a tal respeito, entender-se-á que o empregado se obrigou a todo e qualquer serviço compatível com a sua condição pessoal-. Não se pondo sob foco alteração ilícita do contrato de trabalho (CLT, art. 468), descabe cogitar-se de acréscimo remuneratório para o motorista de ônibus que, a par de conduzir o veículo, ainda cobra pelas passagens. A tarefa se revela compatível e não desafia esforço superior para o trabalho desenvolvido. Precedentes. Recurso de revista conhecido e provido. Vistos, relatados e discutidos estes autos de Recurso de Revista n° TST-RR-54600-29.2006.5.15.0127, em que é Recorrente EMPRESA DE TRANSPORTES ANDORINHA S.A. e Recorrido JOÃO HUNGRIA DOS SANTOS. O Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, pelo acórdão de fls. 615/622-v, negou provimento ao recurso ordinário da Ré. Inconformada, a Reclamada interpõe recurso de revista (fls. 625/642), com fulcro nas alíneas -a- e -c- do art. 896 da CLT. Admitido o recurso a fl. 644. Sem contrarrazões. Os autos não foram encaminhados ao D. Ministério Público do Trabalho (RI/TST, art. 83). É o relatório. V O T O Tempestivo o recurso (fls. 623, 624 e 642), regular a representação (fl. 214), pagas as custas (fl. 602) e efetuado o depósito recursal (fl. 641), estão preenchidos os pressupostos genéricos de admissibilidade. 1 - MOTORISTA DE ÔNIBUS QUE REALIZA COBRANÇA DE PASSAGENS NO VEÍCULO QUE CONDUZ - ACÚMULO DE FUNÇÕES. 1.1 - CONHECIMENTO. O Regional negou provimento ao apelo patronal, sob os seguintes fundamentos (fls. 620-v/622): -O MM. Magistrado a quo, em face da prova oral produzida, que demonstrou que o autor cumulava as funções de motorista e cobrador, condenou a reclamada ao pagamento de diferenças salariais, no importe de 15% sobre o salário-básico obreiro, nos termos do art. 460 da CLT, com exceção dos meses em que o reclamante empreendeu, preponderantemente, viagens intermunicipais, assim considerados os trechos de Rosana/SP e Presidente Prudente/SP e Rosana/SP e Maringá/PR e vice-versa. Insurge-se a recorrente, afirmando que o exercício de mais de uma função por força de um único contrato de trabalho e em horário único não gera direito à multiplicidade de salário, por ausência de amparo legal. Sustenta que não restou comprovado o desempenho de atividades mais complexas ou diversas daquelas que o autor fora contratado para cumprir. Aduz que não há previsão legal ou normativa para esse acúmulo reconhecido na origem, sendo indevidas as diferenças salariais deferidas. À luz dos princípios insculpidos na Constituição Federal de 1988 que valoriza o trabalho e a dignidade da pessoa humana, penso que o Poder Judiciário não pode deixar de restabelecer o equilíbrio entre as partes do contrato de trabalho, quando demonstrado, de forma efetiva, o exercício, pelo empregado, de atribuições diversas da função para a qual fora contratado visando apenas beneficiar amplamente o empregador, que se aproveita dos préstimos do obreiro para acrescer tarefas inerentes a determinado cargo. Assim sendo, referida situação revela a existência de abuso em relação ao poder diretivo do empregador, que implica desequilíbrio na relação jurídica, olvidando-se do caráter comutativo e sinalagmático do contrato de trabalho, com destaque para o fato de que, não obstante o eventual consentimento imposto do trabalhador na realização das diversas tarefas, tal circunstância não autoriza o abuso patronal, que, ao desequilibrar as obrigações contratadas, extrapola os limites do 'jus variandi'. Assim tem decidido este E. Tribunal Regional, in verbis: [...]. Nestas situações, impõe-se o reconhecimento de 'plus' salarial ao trabalhador, por critérios de equidade, em prestígio à dignidade da pessoa humana e aos valores sociais do trabalho, disposições fixas consagradas nos incisos III e IV do artigo 1º da Constituição Federal de 1.988. No caso vertente, pelas alegações da defesa, em que a reclamada inicialmente negou o labor do reclamante como cobrador (fl. 169), é incontroverso que este foi contratado para exercer a função de motorista, não sendo previsto em seu contrato nenhuma acumulação com a função de cobrador. A testemunha ouvida pelo reclamante comprovou que este laborava como motorista e concomitantemente também como cobrador das passagens, quando trabalhou em ônibus circular. Assim declarou (fl. 571): '(...) que o reclamante trabalhava em linhas intermunicipais, mas também por um período trabalhou em linha circular urbana, em razão de um contrato firmado entre a reclamada e o município de Rosana; (...) que nos ônibus circulares urbanos nunca houve o trabalho conjunto do motorista e do cobrador; nesse casos, o motorista fazia o serviço de cobranças de passagens e recebimento dos passes sozinho, não havendo cobradores designados para acompanhá-lo; que nas linhas intermunicipais havia a presença de cobradores, mas não em todas; (...)' Dessa forma, cabalmente comprovado que houve alteração nas atividades desenvolvidas pelo reclamante, o que acarretou um desequilíbrio no contrato de trabalho, ferindo seu caráter comutativo e sinalagmático, o que merece ser reparado. Assim, correto o Juízo de origem, ao condenar a reclamada ao pagamento de diferenças salariais no importe de 15% sobre o salário-básico do autor, para o período em que trabalhou em ônibus circular.A Recorrente sustenta que não implica acúmulo de funções o fato do motorista de ônibus também realizar a cobrança de passagens, dentro do horário e do próprio ônibus, porque a atividade pode ser exercida sem esforço extraordinário. Alega violação dos arts. 5º, II, XXXV, LII e LV, e 37 da CF. Maneja divergência jurisprudencial. Os paradigmas de fls. 628/v e 629, oriundos da 3ª e da 6ª Regiões, ensejam o dissenso pretoriano, ao sufragar tese no sentido de que o exercício simultâneo das funções de motorista e cobrador não configura o acúmulo de funções. Conheço do recurso, por divergência jurisprudencial. 1.2 - MÉRITO. O cerne da controvérsia está na possibilidade de reconhecer o acúmulo de funções, por parte do motorista de transporte coletivo, em face do exercício da atribuição de cobrança das passagens daqueles que irão viajar no veículo por ele mesmo conduzido. Convém recorrer às observações do eminente Ministro Maurício Godinho Delgado, em seu clássico -Curso de Direito do Trabalho- (Editora LTr, 8ª Ed., 2009, pp. 935/937): -A) Conceito e Distinções - Função é o conjunto sistemático de atividades, atribuições e poderes laborativos, integrados entre si, formando um todo unitário no contexto da divisão do trabalho estruturada no estabelecimento ou na empresa. É essencial distinguir-se, conceitualmente, entre função e tarefa. A tarefa consiste em uma atividade laborativa específica, estrita e delimitada, existente na divisão do trabalho estruturada no estabelecimento ou na empresa. É uma atribuição ou ato singular no contexto da prestação laboral. [...] Tais diferenciações são, efetivamente, essenciais ao estudo das alterações qualitativas do contrato empregatício. De fato, o simples exercício de algumas tarefas componentes de uma outra função não traduz, automaticamente, a ocorrência de uma efetiva alteração funcional no tocante ao empregado. É preciso que haja uma concentração significativa do conjunto de tarefas integrantes da enfocada função para que se configure a alteração funcional objetivada.A atribuição de receber passagens é tarefa plenamente compatível com as condições contratuais do motorista de transporte coletivo, à luz do que preceitua o artigo 456, parágrafo único da CLT, segundo o qual, -à falta de prova ou inexistindo cláusula expressa a tal respeito, entender-se-á que o empregado se obrigou a todo e qualquer serviço compatível com a sua condição pessoal-. Pontue-se que, no caso, não se cogita de alteração contratual ilícita. Com essa compreensão, inexiste amparo legal para que se conclua que o exercício de tal tarefa importe em alteração contratual ilícita, nos termos do disposto no artigo 468 da CLT. Reporto-me aos seguintes precedentes desta Corte: -RECURSO DE REVISTA. ACÚMULO DE FUNÇÕES. MOTORISTA. COBRADOR. Na linha de precedentes desta Corte, não há falar em violação do art. 468 da CLT, decorrente da acumulação das funções de motorista e cobrador, uma vez que a situação se enquadra na previsão contida no parágrafo único do art. 456 da CLT, no sentido de que: 'à falta de prova ou inexistindo cláusula expressa a tal respeito, entender-se-á que o empregado se obrigou a todo e qualquer serviço compatível com a sua condição pessoal'. Ademais, alegado pelo reclamante que sempre cumulou as funções, descabe cogitar de alteração contratual ilícita. Arestos inservíveis (óbice da alínea 'a' do art. 896 da CLT e da Súmula 337, I/TST) ou inespecífico (Súmula 296/TST). Recurso de revista não conhecido- (RR-144300-03.2007.5.03.0131, Ac. 3ª Turma, Relatora Ministra Rosa Maria Weber, DEJT 20.5.2011). -RECURSO DE REVISTA. ACÚMULO DE FUNÇÕES. MOTORISTA DE TRANSPORTE COLETIVO. EXERCÍCIO DAS ATRIBUIÇÕES DE COBRADOR. COMPATIBILIDADE COM AS CONDIÇÕES CONTRATUAIS DO MOTORISTA. APLICAÇÃO DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ARTIGO 456 DA CLT. PROVIMENTO. Prevalece no âmbito desta Corte o entendimento de que a atribuição de receber passagens é plenamente compatível com as condições contratuais do motorista de transporte coletivo, não havendo amparo legal para que se conclua que o exercício dessa atribuição, nos momentos anteriores ao do início da viagem propriamente dita, importe em alteração contratual ilícita, nos termos do disposto no artigo 468 da CLT. Inexiste, portanto, o alegado -acúmulo de funções- devendo a questão ser dirimida à luz do que preceitua o artigo 456, parágrafo único, da CLT, que preleciona que 'à falta de prova ou inexistindo cláusula expressa a tal respeito, entenderse-á que o empregado se obrigou a todo e qualquer serviço compatível com a sua condição pessoal'. Precedentes da Corte. Recurso de Revista conhecido e provido- (RR12700-19.2008.5.01.0052, Ac. 4ª Turma, Relatora Ministra Maria de Assis Calsing, DEJT 11.3.2011). -AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. ACÚMULO DE FUNÇÕES. PLUS SALARIAL. Dá-se provimento a agravo de instrumento quando configurada no recurso de revista a hipótese da alínea 'a' do art. 896 da Consolidação das Leis do Trabalho. Agravo provido. RECURSO DE REVISTA. ACÚMULO DE FUNÇÕES. PLUS SALARIAL. Nos termos do artigo 456, parágrafo único, da Consolidação das Leis do Trabalho, à falta de prova ou inexistindo cláusula expressa a respeito, o obreiro se obriga a todo e qualquer serviço compatível com a sua condição pessoal. Além disso, a Consolidação das Leis do Trabalho não obsta que um único salário seja fixado para remunerar todas as atividades executadas durante a jornada laboral. Assim, in casu, o exercício de atividades diversas, compatíveis com a condição pessoal do empregado, não enseja o pagamento de plus salarial por acúmulo de funções, restando remuneradas pelo salário todas as tarefas desempenhadas dentro da jornada de trabalho (Precedentes desta Corte). Recurso de revista conhecido e provido. [...]- (RR104440-79.2008.5.03.0027, Ac. 2ª Turma, Relator Ministro Renato de Lacerda Paiva, DEJT 26.11.2010). -RECURSO DE REVISTA. DIFERENÇAS SALARIAIS. ACÚMULO DE FUNÇÕES. Interpretando-se as disposições da CLT (art. 456, parágrafo único), tem-se que, não havendo ressalva em sentido contrário, o empregado contratado está sujeito a todo e qualquer serviço compatível com a sua condição pessoal. O acúmulo de funções, por si só, não gera direito a outro salário ou ao recebimento de diferenças salariais ('plus'). O salário fixado pelo empregador no ato da contratação é uma contraprestação pelo serviço executado pelo trabalhador, qualquer que seja a modalidade do trabalho. Logo, o salário serve para remunerar o serviço para o qual o empregado foi contratado, e não o exercício de cada função ou atividade que este venha a exercer. Precedente. Recurso de revista a que se dá provimento. [...]- (RR-17800-22.2009.5.08.0117, Ac. 5ª Turma, Relatora Ministra: Kátia Magalhães Arruda, DEJT 15.10.2010). -DIFERENÇAS SALARIAIS - ACÚMULO DE FUNÇÕES - MOTORISTA E COBRADOR - LINHA SELETIVA DE ÔNIBUS COLETIVO - POSSIBILIDADE. 1. Conforme estabelece o art. 456, parágrafo único, da CLT, inexistindo cláusula expressa a respeito de todas as atividades a que o empregado se obrigou na época da contratação, entender-se-á que ele se sujeitou a todo e qualquer serviço compatível com a sua condição pessoal. 2. No caso, o Regional consignou que a prova colacionada nos autos, em especial a oral, demonstra que, nos últimos dois anos do contrato, o Reclamante passou a trabalhar em linha seletiva de ônibus coletivo, em que não há cobrador, motivo pelo qual o motorista também é o responsável pelo recolhimento do valor das passagens. Em vista disso, a Turma Julgadora 'a quo' concluiu que o Reclamante fazia jus ao percebimento de diferenças salariais decorrentes do acúmulo de funções. 3. Todavia, ao contrário do entendimento adotado no acórdão recorrido, não há previsão legal para o adimplemento de salários por função. O empregador, com base no 'jus variandi', pode redirecionar os ofícios de seus empregados, desde que as novas atividades sejam compatíveis com aquelas já exercidas. Na hipótese em exame, evidencia-se que a cobrança de passagens é compatível com a função de motorista, até porque tais atividades eram exercidas na mesma jornada e de forma concomitante. Saliente-se, ainda, que a remuneração mensal percebida pelos motoristas é sabidamente superior àquela devida aos cobradores, e a realização de ambas as tarefas não exige do Reclamante esforço ou capacidade acima do que foi contratualmente ajustado. Recurso de revista conhecido e provido- (RR-76500-81.2002.5.02.0382, Ac. 4ª Turma, Relator Ministro Ives Gandra Martins Filho, DJ 11.4.2006). Ante o exposto, dou provimento ao recurso de revista, para excluir da condenação o pagamento das diferenças salariais deferidas em razão do exercício da tarefa de cobrar passagens. ISTO POSTO ACORDAM os Ministros da Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho, por unanimidade, conhecer do recurso de revista, por divergência jurisprudencial, e, no mérito, dar-lhe provimento, para excluir da condenação o pagamento das diferenças salariais deferidas em razão do exercício da tarefa de cobrar passagens. Brasília, 14 de setembro de 2011. Firmado por assinatura digital (MP 2.200-2/2001) Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira Ministro Relator fls. PROCESSO Nº TST-RR-54600-29.2006.5.15.0127