A SEGUNDA DERIVADA DA FUNÇÃO INVERSA Romero López-Grado, Rafael Seminário de Matemáticas IES Rosalia de Castro – Santiago de Compostela E-mail: [email protected] Campoy-Vázquez, Carlos Área de Electromagnetismo - Departamento de Física Universidade da Corunha - Corunha E-mail: [email protected] RESUMO A segunda derivada de uma função (real de variável real, em todo o trabalho) fornece informação de se a velocidade de um processo está a aumentar ou não, e permite calcular os pontos de inflexão que são aqueles em que a velocidade começou a aumentar depois de um tempo em que estava a diminuir ou a diminuir depois de aumentar. Ao aplicar este assunto a um exercício escolar de torneiras e vasos, surgiu a dificuldade de estarem invertidos os papéis tradicionais das variáveis: x = f ( y ) , equação que não é possível resolver em ordem a y . Neste trabalho propomos alguns métodos ao aluno da Escola Secundária para calcular y ' ' 1. O que é uma função Quando se fala de uma função, escreve-se algo como y = f ( x ) , que é uma abstracção de coisas assim: sen( x ) y = 7 x 2 − 3x + y = x2 y = x −1 y = 5 x 3 − 3x + 2 x −1 Mas a presença de x e y não é necessária. A função não é nenhuma de estas variáveis, senão aquilo que as relaciona, quer dizer, as operações que devem realizar-se sobre um valor numérico particular (representado pela letra x ), para obter um resultado também numérico (representado pela letra y ). Seria mais rigoroso escrever a função sem as letras x e y: f = 7⋅( )2 − 3 ⋅ ( ) + sen( ) ( )−1 para o terceiro dos exemplos dados acima. Isto é muito abstracto para o aluno do Secundário mas também o foi para nós, os professores, a primeira vez que reflectimos sobre o tema. Porque essa “coisa” é um fantasma, não é nada: não é um número ( x ) , não é o resultado de um cálculo ( y ) ; mas são os processos mentais que nos levam a este! E tal conjunto de processos mentais, bem organizados e sequenciados, são um novo objecto matemático, as funções, que imediatamente trataremos como tal: faremos com elas as mesmas operações que com os números e, além disso, outras novas como a composição e a inversão. Para acabar de complicar as coisas, subiremos um novo degrau na escada da abstracção: quando já estamos familiarizados com as funções e as vemos como coisas tão reais como os veneráveis números (reais), atribuímos-lhes uma gaveta na secretária dos nossos entes matemáticos. Temos já a dos números e agora inauguramos a das funções. Embora estejam na 2ª gaveta, a sua existência está fundamentada na 1ª: Cada função é um processo para passar de um número a outro, um modo de acasalar os objectos da gaveta dos números que ganha realidade corpórea, e é arrumado na gaveta das funções. É natural, agora, pensar que também podemos acasalar funções e assim aparece um novo objecto matemático que arrumaremos na 3ª gaveta: chamamo-lo “operador”. É algo que actua sobre uma função dada e fornece como resultado uma nova função. Um exemplo bem conhecido é o operador diferencial D : D:F → F sendo F o espaço linear das funções (definidas em um intervalo e que sejam tantas vezes diferenciáveis nele quantas forem necessárias para tudo o que vem depois). D é um operador linear do que salientaremos algumas das suas muitas propriedades: I. Dα = 0 (derivada de uma constante) (derivada da função identidade) II. DI = 1 III. D( f ⋅ g ) = Df ⋅ g + f ⋅ Dg (derivada de um produto) IV. D ( f o g ) = (Df o g ) ⋅ Dg (regra da cadeia) 2. A função inversa e as suas derivadas Há funções ( f ) para as que podemos achar uma outra ( f Aplicando a regra da cadeia: 1 = DI = D f o f −1 = Df o f −1 ⋅ Df −1 ( ) ( −1 ) tal que =I (1) Aplicamos agora a derivada de um produto: 1 = Df o f −1 ⋅ Df −1 ) de onde resulta ( −1 ) de onde resulta 1 Df −1 = Df o f −1 ( fof ) ( ) 0 = D Df o f −1 ⋅ Df −1 + Df o f −1 ⋅ DDf −1 escreveremos DDh ≡ D 2 h ; usando novamente a regra da cadeia: 0 = (D 2 f o f −1 )⋅ (Df −1 ) + (Df o f −1 )⋅ D 2 f −1 Então, a partir de (1): 2 D 2 f −1 = − D 2 f o f −1 (2) (Df o f ) −1 3 Por exemplo, se temos x = y 3 + 5 y + 2 ( x = f ( y ) ) não é possível, ou nós não sabemos, exprimir y = f −1 ( x ) . Porém podemos calcular as suas derivadas: 1 1 (1) ⇒ Df −1 (x ) = = −1 Df o f (x ) Df f −1 ( x ) ( logo y' = y' = [ ) ] 1 Df ( y ) 1 (3) 3y + 5 2 de (2) , vem D 2 f −1 ( x ) = − y' ' = − (3 y D 2 f o f −1 ( x ) (Df o f (x )) −1 3 =− D2 f (y) (3 y 2 +5 ) 3 , logo 6y 2 (4) + 5) 3 Nestas expressões das derivadas persiste a mesma dificuldade: não podem exprimirse em termos de x . Mas tanto y como y ' ou y ' ' são três quantidades que podiam ser calculadas a partir de um valor de x qualquer. Primeiro devemos achar a solução de uma equação cúbica e depois substitui-la nas expressões (3) e (4). Assim podemos proceder com um amplo número de valores e formar uma tabela: x -5 -4 -3 -2 -1 0 1 2 3 4 y -1,119438 -1 -0,86883 -0,7240756 -0,5640997 -0,3882914 -0,1984372 0 0,19843721 0,38829144 3. O problema da torneira e o vaso y' 0,11416275 0,125 0,13765389 0,15214086 0,16793667 0,18340848 0,19538379 0,2 0,19538379 0,18340848 y'' 0,00999366 0,01171875 0,01359726 0,01529934 0,01603038 0,01437366 0,00888055 0 -0,0088806 -0,0143737 Quando enchemos um vaso, seja qual for a forma dele, a altura do líquido é uma função crescente do tempo. No que segue entenderemos que o caudal é, constantemente, um litro por minuto. Se o vaso for cilíndrico, a altura aumentará sempre à mesma velocidade; se o vaso for cónico, com a base para abaixo, a velocidade far-se-á maior enquanto o nível do líquido se aproximar do vértice. A velocidade de crescimento da altura estará sempre a diminuir no caso do cone invertido. Numa esfera temos as duas situações: inicialmente a velocidade diminuirá mas, depois de ultrapassar o equador, a altura aumentará a uma velocidade crescente. Seja uma esfera de 1 dm de raio na qual entra o líquido por um buraco praticado no seu pólo norte. Queremos estudar a velocidade do crescimento da altura em decímetros ( y ) , no transcorrer do tempo ( x , em minutos). Partindo da fórmula do volume de uma calote esférica de altura h numa esfera de raio R [1]: 1 V = πh 2 (3R − h ) 3 Obtemos o tempo como função da altura do líquido (lembre-se: o caudal é um litro por minuto) : 1 x = π ⋅ y2 − π ⋅ y3 3 (5) A função que queremos estudar é y = f −1 ( x ) que não sabemos exprimir como combinação de funções elementares (algébricas ou transcendentes), em termos da variável x , embora tenhamos a sua inversa x = f ( y ) , função polinomial muito fácil de manipular, definida para 0 < y < 2 . De (1) e (2) obtemos: y' = 1 1 π y (2 − y ) y' ' = − ⋅ 2 π 2 ⋅ (6) 1− y (7) y (2 − y ) 3 3 Nos dois casos o denominador é sempre positivo. A primeira conclusão é que a altura é crescente sempre. A segunda, que 0 < y < 1 ⇒ y' ' < 0 a altura aumenta a uma velocidade decrescente 1 < y < 2 ⇒ y' ' > 0 a altura aumenta a uma velocidade crescente Podemos formar uma tabela com os valores correspondentes a diferentes momentos do processo ALTURA (dm) TEMPO (min) y x 0 0 0,25 0,179987 0,5 0,654498 0,75 1,325359 1 2,094395 1,25 2,863430 1,5 3,534291 1,75 4,008802 2 4,188789 y' y'' 0,727566 0,424413 0,339531 0,318310 0,339531 0,424413 0,727566 -56,273881 -7,446737 -1,906365 0,000000 1,906365 7,446737 56,273881 A função y = f ( x ) é sempre crescente e tem a concavidade voltada para cima quando 1 < y < 2 (2,094 < x < 4,189 ) e voltada para baixo quando 2π ) 3 Os gráficos correspondentes de y como função de x e y ' e y ' ' como funções de y , podem-se ver nas figuras 1, 2 e 3 respectivamente. 0 < y < 1 (0 < x < 2,094 ) . Então tem um ponto de inflexão para y = 1 ( x = 2,094 = Figura 1 Figura 2 Figura 3 4. A notação de Leibnitz Aquele esquema mental das funções guardadas em gavetas não foi coisa de um dia. Até o século XIX as funções não foram libertadas das variáveis para serem colocadas numa gaveta diferente. Mesmo, nas épocas iniciais, contrariamente ao que se faz agora, não se escrevia a função e sim apenas as variáveis. Por exemplo, Leibnitz (1646 – 1716) escrevia, em lugar de Df : dy dx (8) Hoje, com o conceito de límite ao nosso dispor, escrevemos para a mesma ideia: Df (a ) = lim h →0 f (a + h ) − f (a ) h (9) Sendo a um número, não uma variável: a é um valor numérico particular da variável x . Naqueles tempos iniciais do cálculo, o límite de um quociente de quantidades evanescentes, sabia-se que podia aproximar-se do valor exacto se estavam perto de zero os termos da divisão. Mas o valor exacto era impossível de alcançar porque quando aqueles chegavam a zero, a divisão já não era possível. Então Leibnitz inventou os “números” que não são zero, mas que são menores que qualquer número positivo. Em consequência já não são verdadeiros números, são outra coisa de natureza metafísica: os infinitésimos. Como não são zero, podem dividir-se e como não há números (dos verdadeiros) que estejam mais perto do zero do que eles, o quociente é igual ao límite exactamente. Temos as equivalências: Leibnitz (8) Actual (9) x y dx dy a f (a ) h f (a + h ) − f (a ) Enquanto h é um verdadeiro número que vai diminuindo em direcção a 0 , dx é um infinitésimo inferior a qualquer número mas diferente de zero. Aquele é dinâmico mas este é estático. Então compreende-se a expressão (8) Esta notação ficaria como uma curiosidade histórica, se não fosse tão cómoda. Por exemplo, se temos duas funções (mecanismos que nos permitem calcular duas quantidades u e v a partir de outra x ): x→u x→v O produto y = u ⋅ v será uma nova variável que depende também dos valores dados a x . A sua derivada será: dy (u + du )(v + dv ) − u ⋅ v du dv dv du dv = = ⋅ v + u ⋅ + du ⋅ = ⋅v + u ⋅ dx dx dx dx dx dx dx Pois du por ser mais pequeno que qualquer número positivo, o mesmo que o zero, comportase como este nos produtos por outros números. A potência de esta notação torna-se mais evidente no caso da função inversa: x→ y y→x A relação entre as derivadas é agora uma identidade aritmética: dy dx ⋅ =1 dx dy (10) A regra da cadeia é também algo aritmeticamente óbvio: dy dy du = ⋅ dx du dx (11) Leibnitz utiliza para a segunda derivada como notação uma multiplicação formal: ⎛ dz ⎞ d⎜ ⎟ 2 2 ⎝ dt ⎠ = d ⎛ dz ⎞ = d z ≡ d z ⎜ ⎟ dt dt ⎝ dt ⎠ (dt )2 dt 2 Aplicando a derivada do produto em (10) e usando depois (11): ⎛ dx ⎞ ⎛ dx ⎞ d ⎜⎜ ⎟⎟ d ⎜⎜ ⎟⎟ 2 2 dy dy dy d 2 y dx ⎛ dy ⎞ d 2 x dy dx d y dx dy d y dx dy 1= ⋅ ⇒ 0 = 2 ⋅ + ⋅ ⎝ ⎠ = 2 ⋅ + ⋅ ⎝ ⎠ ⋅ = 2 ⋅ +⎜ ⎟ ⋅ 2 dx dy dx dy dx dx dx dy dx dy dx dx dy ⎝ dx ⎠ dy 2 e por intermédio de (10): 3 d 2 x ⎛ dy ⎞ d 2 y ⋅⎜ ⎟ + =0 dy 2 ⎝ dx ⎠ dx 2 3 d 2 y ⎛ dx ⎞ d 2 x ⋅⎜ ⎟ + =0 dx 2 ⎜⎝ dy ⎟⎠ dy 2 (12) É certo que para os matemáticos actuais tudo quanto fica escrito neste parágrafo é bruxaria e deve evitar-se (embora eles o utilizem nos seus rascunhos). Porém, os físicos e os engenheiros escrevem hoje ao modo de Leibnitz e não parecem envergonhar-se. É verdade que esses objectos fantasmagóricos que são os infinitésimos, deram lugar em mãos menos hábeis que as de Leibnitz, a autênticos disparates matemáticos. Suspeito que Leibnitz sabia que trabalhava com metáforas e com a sua poderosa mente, compreendia perfeitamente o que se passava. Mas não tinha o léxico adequado para exprimi-lo: faltavam uns quantos anos para que nascesse Cauchy. (Existe uma formalização dos infinitésimos com uma axiomática e umas regras de cálculo, que permitem o uso rigoroso da notação de Libnitz. Pode ver-se em [2], e, no nosso idioma, em [3]). Um caso semelhante ocorreu nos anos trinta do século XX com a misteriosa função δ de Paul Dirac (1902 – 1984). Esta “função” define-se por meio de duas fórmulas contraditórias entre si: 1) δ a (x ) = 0 +∞ ∀x ≠ a 2) ∫ δ (x )⋅ dx = 1 a −∞ Sendo a um número real fixo. Esta suposta “função” tem o mesmo grau de esoterismo que os infinitésimos de Leibnitz, mas os físicos imediatamente a fizeram sua e começaram a operar com ela, a submetê-la a diferenciação, integração, transformações de Fourier…até que os matemáticos, após ver que com tais heterodoxias se explicavam com sucesso os enigmas da Mecânica Quântica, lançaram-se a uma desesperada corrida para pôr ordem neste imbróglio. Finalmente o conseguiram, inventando o que agora chamamos “distribuições”: todo um “corpus” matemático para que a humilde δ de Dirac tivesse os papéis em regra. De pouco lhes serviu, pois o célebre físico Richard Feynman (1918 – 1988) tirou da sua cartola um coelho que os matemáticos ainda não conseguiram caçar: as “integrais de caminho” que fornecem uma interpretação da Mecânica Quântica alternativa às de Schrödinger e Heisenberg, equivalente a elas, conquanto tem a vantagem da sua adaptabilidade ao caso relativista por tratar simetricamente as coordenadas espaciais e o tempo, ao contrário do que acontece com a equação diferencial de Schrödinger. 5. Conclusão Se importantes matemáticos cometeram erros ao usar com alegria a aritmética dos símbolos de Leibnitz, não quero pensar nas atrocidades que escreveriam os nossos alunos em situações semelhantes. Mas está por se fazer um estudo comparativo de esses erros com os que se cometem actualmente com a notação hoje abençoada pelos professores de Matemática. Quando se fizer talvez tenhamos que reflectir sobre esta questão. Bibliografia [1] Bronshtein, I. e Semendaiev, K. Manual de Matemáticas para Ingenieros y Estudiantes, Ed. MIR, Moscova, 4ª ed. 1982 [2] Robinson, Non-Standard Analysis, North-Holland Publishing Company, 1974 [3] Sousa Pinto, José J. M., Métodos Infinitesimais de Análise Matemática, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2000