Português
Fascículo 09
Carlos Alberto C. Minchillo
Izeti Fragata Torralvo
Marcia Maísa Pelachin
Índice
Gramática
Resumo Teórico ..................................................................................................................................1
Exercícios............................................................................................................................................5
Gabarito.............................................................................................................................................7
Literatura
Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis......................................................................10
Exercícios..........................................................................................................................................15
Gabarito...........................................................................................................................................18
Gramática
Resumo Teórico
Objetivos:
• Recordar a classificação morfológica tradicional
• Treinar identificação de emprego e sentido de algumas classes morfológicas
Conteúdo do resumo teórico
1. As classes gramaticais
2. Notas sobre algumas classes gramaticais
• Adjetivo
• Artigo
• Pronome
• Advérbio
As classes gramaticais
Para facilitar a abordagem de diferentes aspectos lingüísticos, as palavras estão
agrupadas em classes gramaticais ou classes morfológicas ou classes de palavras.
Uma classe gramatical é constituída por um grupo de palavras que possuem
características morfológicas, sintáticas e semânticas comuns.
De um aluno de nível médio, espera-se que consiga identificar não só a que grupo
pertence uma palavra empregada em um contexto mas também o valor de um emprego determinado.
São dez as classes de palavras, assim constituídas:
Classe
Característica
morfológica Semântica
Característica
Morfológica
Característica Sintática
Substantivo
Dá nome aos seres
Apresenta flexões próprias
de gênero e de número
É núcleo de função sintática
(sujeito, objeto, aposto,
complemento nominal)
Adjetivo
Caracteriza os substantivos Apresenta flexões de gênero É adjunto adnominal ou
e número em função do
predicativo.
substantivo a que se refere
Pronome
Acompanha ou substitui
um substantivo, fazendo
referência a uma das três
pessoas gramaticais
Artigo
Determina ou indetermina Indica gênero e número do
o substantivo
substantivo a que se refere
Tem função de adjunto
adnominal
Numeral
Quantifica o substantivo a Alguns possuem flexão de
que se refere ou indica-lhe gênero
uma ordem
Tem função de adjunto
adnominal (se acompanha o
substantivo)
Apresenta três flexões:
gênero, número e pessoa
Se substitui o nome, é
núcleo de função sintática;
se acompanha o nome, tem
função de adjunto
adnominal
1
Verbo
Indica um processo (ação, Flexiona-se para indicar
estado, fenômeno)
pessoa, número, tempo,
modo, voz e aspecto
Se expressa ação ou
fenômeno, é núcleo do
predicado; se expressa
estado, liga o sujeito a uma
qualidade.
Advérbio
Acrescenta uma
É palavra invariável.
circunstância ao verbo, ao
adjetivo, ao advérbio ou a
toda a oração.
Tem função de adjunto
adverbial.
Conjunção
Relaciona orações ou
É palavra invariável.
termos de mesma função.
Não possui função sintática.
Preposição
Relaciona termos
subordinando um ao
outro.
É palavra invariável.
Não possui função sintática.
Interjeição
Expressa sentimento ou
indica chamamento.
É invariável.
Obs.: palavras denotativas apresentam algumas características que se assemelham ao advérbio,
mas não
possuem as mesmas relações e caracterizam-se principalmente pelo sentido.
Exemplo:
“As nuvens são para não serem vistas. Mesmo um menino sabe, às vezes, desconfiar do
estreito caminhozinho por onde a gente tem de ir – beirando entre a paz e a angústia.”
Guimarães Rosa
São substantivos: nuvens, menino, caminhozinho, gente, paz, angústia
É adjetivo: estreito.
São artigos: as, um, o (do), a, a, a.
São verbos: são, serem vistas, sabe desconfiar, tem de ir, beirando.
São advérbios: não, às vezes.
São preposições: para, de (do), por, de (tem de ir), entre,
É palavra denotativa: mesmo (expressa inclusão)
É pronome: onde (pronome relativo)
Notas sobre algumas classes gramaticais
Adjetivo
É uma classe gramatical relevante na caracterização (de um ser, de um idéia). Deve-se
observar sempre sua adequação, sua expressividade, além do fato de retomar ou ser retomado por
outros termos do texto (substantivos, outros adjetivos, verbos).
Exemplo:
“Na estrada das Tabocas, uma vaca viajava. Vinha pelo meio do caminho, como uma
criatura cristã. A vaquinha vermelha, a cor grossa e afundada – o tom intenso de azamar.”
Guimarães Rosa
Na expressão destacada, o adjetivo causa estranhamento, uma vez que não se costuma
caracterizar uma cor por sua espessura ou textura. No contexto, intensifica a cor do animal, o que se
“confirma” na expressão: “o tom intenso”.
2
Artigo
Tem emprego mais ou menos estabelecido na elaboração de um texto. Em geral, quando
um substantivo é citado pela primeira, emprega-se o indefinido. Nas demais ocorrências, usa-se o
definido. Verifique, no exemplo que segue, a referência à folha:
“Defronte do escritório descobri no chão uma folha de prosa, com certeza trazida pelo
vento. Apanhei-a e corri a vista sem interesse (...)
Passeando entre as laranjeiras, esquecia a poda, reli o papel (...)
Li a folha pela terceira vez, atordoado (...)”
Graciliano Ramos.
Pronome
Esta classe de palavras apresenta uma subclassificação e inúmeros empregos.
Exemplo:
“Dava-se de entre vinte-e-muitos e trinta anos; devia de ter menos, portanto.”
Guimarães Rosa
No contexto, o pronome indefinido “muitos”, de modo vago e indeterminado, indica
uma quantidade.
Atenção especial deve ser dada ao emprego do pronome demonstrativo, que obedece a
três diferentes critérios: espaço físico, tempo, relação dentro do texto.
Espaço físico
Tempo
Demonstrativo de 1.a
pessoa
Demonstrativo de 2.a
pessoa
Demonstrativo de 3.a.
pessoa
Indica proximidade com
relação ao emissor da
mensagem.
Indica proximidade com
relação ao destinatário da
mensagem.
Indica distância do emissor
e do destinatário.
Ex.: Esta blusa que visto
foi um presente.
Ex.: Essa blusa que tu
vestes está suja.
Indica proximidade com
relação ao momento em
que se fala.
Indica certo afastamento
com relação ao presente.
Ex.: Neste bimestre ,
estudaremos verbos.
Dentro do texto Indica uma idéia a ser
citada.
Ex.: Quero aquela blusa
que está na vitrine.
Indica distância.
Ex.: Estava doente, mas
naquela época não tinha
Ex.: Acabou junho! Nesse
dinheiro para médicos.
mês não fui produtivo.
Retoma idéia já expressa.
Ex.: Estava doente; mas
Ex.: Memorize isto: a vida isso não diminuía sua
é breve.
maldade.
Opondo-se ao de 1.a
pessoa, recupera uma de
duas idéias anteriormente
expressa: a que está mais
distante no texto.
Ex.: Manuel Bandeira e
Mário de Andrade são
poetas modernistas. Este
participou da Semana de
Arte Moderna, aquele
teve seus textos
declamados por amigos.
3
Advérbio
É palavra invariável que expressa uma circunstância ou locução que expressa
circunstância.
Exemplo:
“Depois da quarta-feira de cinzas veio-me uma aura romântica que me pôs meio
lunático, trazendo-me dias agitados. Presumivelmente curado da moléstia, posso contar as coisas tal e
qual se passaram.”
Cyro dos Anjos
São advérbios e locuções adverbiais, no fragmento:
• “depois da quarta-feira de cinzas”: expressa circunstância de tempo ao verbo (“veio-me”)
• “meio”: expressa circunstância de intensidade ao adjetivo (“lunático”)
• “presumivelmente”: expressa circunstância de modo ao adjetivo (“curado”)
Exercícios
01. Neste fragmento de Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto
”— Minha pobreza tal é
que grande coisa não trago:
trago este canário da terra
que canta corrido e de estalo.
— Minha pobreza tal é
que minha oferta não é rica:
trago daquela bolacha d’água
que só em Paudalho se frabrica.”
os pronomes demonstrativos destacados indicam respectivamente:
a. Proximidade do destinatário; distância do emissor
b. Distância do destinatário; proximidade do destinatário
c. Proximidade do emissor; sinônimo de conhecido
d. Distância do destinatário; sinônimo de conhecido
e. Proximidade do emissor e do destinatário; distância do emissor e do destinatário
02. No texto
”E Gonçalo, desde estudante, amara sempre aquele Hércules bonacheirão, que o
seduzia pela prodigiosa força, a incomparável potência em beber todo um pipo e comer todo um
anho, e sobretudo pela independência, uma suprema independência, que, apoiada ao bengalão
terrífico e com as suas oito moedas dentro da algibeirão, nada temia e nada desejava nem da Terra
nem do Céu.”
Eça de Queirós – A ilustre casa de Ramires
o adjetivo bonacheirão vem parcialmente explicado pela expressão:
a. “prodigiosa força”
b. “incomparável potência”
c. “suprema independência”
4
d. “bengalão terrífico”
e. “nada temia e nada desejava”
03. Leia com atenção a composição de Gilberto Gil.
Doce do carnaval
A primeira vez que pai me trouxe
Pra que que fosse batizado
Na religião pagã do carnaval
Eu pedi que mãe me desse um doce
Pra que o batizado fosse
Mais gostoso do que o batizado com sal
Eu tive uma febre aquele dia
De alegria, de euforia, de prazer de viver
E coisa e tal
Pai me trouxe, mãe me deu um doce
Fosse lá qual fosse o doce
Nunca, nunca, nunca mais fiquei normal.
(...)
Quanta gente veio ver. WEA Music Brasil, 1998.
Assinale a alternativa que apresenta uma afirmação correta sobre as estrofes transcritas.
a. A presença de um artigo definido ou indefinido diante dos substantivos “pai” e “mãe” não
alteraria o sentido do texto.
b. Diante de palavras que indicam parentesco não se emprega artigo. Daí as construções: “pai me
trouxe”, “mãe me desse”.
c. Como se trata especificamente dos pais do “eu” lírico, não se poderia empregar artigos
indefinidos diante de “pai” e “mãe”, mas os definidos seriam obrigatórios.
d. No contexto, “pai” e “mãe” referem-se aos pais do “eu” lírico. Assim, o emprego de artigos não
seria adequado. No entanto, seria aceitável a presença de pronomes possessivos.
e. A presença do artigo definido diante dos substantivos “pai” e “mãe” funcionaria como uma
qualificador que indicaria como são bons pais.
04. Leia com atenção o fragmento que segue.
“Enorme desgraça. Estava-se no velório de Damastor Dagobé, o mais velho dos quatro
irmãos, absolutamente facínoras. A casa não era pequena; mas nela mal cabiam os que vinham fazer
quarto. Todos preferiam ficar perto do defunto, todos temiam mais ou menos os três vivos.
Demos, os Dagobés, gente que não prestava. Viviam em estreita desunião, sem mulher
em lar, sem mais parentes, sob a chefia despótica do recém-finado. Este fora o grande pior, o cabeça,
ferrabrás e mestre, que botara na obrigação da ruim fama os mais moços – “os meninos”, segundo
seu rude dizer.”
Guimarães Rosa – Os irmãos Dagobé In Primeiras estórias. 23.a edição. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1992.
5
Sobre o fragmento seria incorreto afirmar:
a. No contexto, “fazer quarto” deve ser considerada uma expressão, uma vez que a separação entre
verbo e substantivo implicaria alteração de sentido.
b. Em “todos temiam mais ou menos os três vivos” explora-se uma ambigüidade: “mais ou menos”
pode ser interpretada como uma locução (com valor de “um pouco”) ou não.
c. No texto, o emprego do artigo segue a padrões particulares. Em “sem mulher em lar”, a ausência
do artigo desrespeita completamente as normas da língua.
d. A construção inusitada “o grande pior” resulta da junção de um adjetivo que remete a tamanho
e outro que remete à qualidade.
e. O substantivo “demos”que inicia o segundo parágrafo assume um caráter e caracterizador dos
irmãos e destaca-se, em especial, pela posição que ocupa na frase.
05. Observe:
“Chove chuva choverando
Que a cidade de meu bem
Está-se toda se lavando”
Oswald de Andrade
Sobre o verso inicial é incorreto afirmar:
a. Há dois verbos e um substantivo cognatos.
b. Há uma expressão pleonástica.
c. Do ponto de vista sonoro, observa-se uma aliteração.
d. “Choverar” deve ser considerada uma criação vocabular.
e. No contexto, “choverando” é um advérbio de origem.
Gabarito
01. Alternativa c.
O pronome demonstrativo de 1.a pessoa (este) indica o que está próximo de quem fala,
do emissor da mensagem. O de 3.a pessoa indica distância de quem fala (emissor) e de quem ouve
(receptor), mas, no contexto, funciona como uma característica da bolacha: famosa, conhecida por
todos.
02. Alternativa e.
O adjetivo bonacheirão, bonachão caracteriza o que tem bondade natural, é ingênuo,
simples, paciente. Daí a idéia de nada esperar, quer da Terra, quer do Céu.
03. Alternativa d.
Quando se faz referência aos próprios pais, os artigos, quer definidos, quer indefinidos,
não são empregados. Mais comum é o emprego de um pronome possessivo.
6
04. Alternativa c.
Embora a ausência do artigo diante do substantivo “lar” possa causar estranhamento,
observa-se uma construção que obedece às normas estabelecidas pela língua diante do substantivo
“casa”: quando esse substantivo remete à própria casa, ao lar, não se emprega artigo: Estou em casa;
Vou para casa.
05. Alternativa e.
Do ponto de vista morfológico, “choverar” é uma forma verbal que caracteriza o
gerúndio (“-ndo”) . Embora, no contexto, indique a maneira como a chuva cai, não possui
características morfológicas de advérbio.
7
Literatura
Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis
Com Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis provoca ao menos duas
surpresas. Primeiro, analisa com profundidade a sociedade humana partindo de uma perspectiva
absurda, que parece contrapor-se aos pressupostos do Realismo1: um defunto escreve suas memórias
de “além-túmulo”. Segundo, ao tratar de comportamentos que podem ser verificados na humanidade
em geral – vaidade, presunção, falsidade, traição –, não deixa de estabelecer um comentário bem
específico às particularidades do brasileiro, especialmente no que se refere ao comportamento das
camadas dominantes da sociedade escravista do século XIX.
As confissões de um “defunto autor”
Adotando como narrador em
1.a pessoa um morto que decidiu escrever
os principais episódios de sua vida,
Machado inicia sua sátira à falsidade do
“mundo dos vivos”, a todos aqueles que,
ao contrário do falecido Brás Cubas, não
conseguem desfrutar da sinceridade que
a morte confere, porque devem preservar
seus interesses, devem agir de acordo
com as formalidades. Os seres humanos,
enquanto membros da sociedade, não
podem tudo confessar, devem manter na
sombra seus “pecados”, suas maldades,
encobrindo perversões sob a máscara da
mentira, da “civilidade”.
“Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe
exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a
primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o
contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar
os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não
estender ao mundo as revelações que faz à consciência; (...). Mas, na
morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como a gente
pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas,
despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que
foi e o que deixou de ser! Porque, em suma, já não há vizinhos, nem
amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos; não há
platéia. O olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial, perde a
virtude, logo que pisamos o território da morte; não digo que ele se
não estenda para cá, e nos não examine e julgue; mas a nós é que
não se nos dá do exame nem do julgamento. Senhores vivos, não há
nada tão incomensurável como o desdém dos finados.”
Mas o defunto Brás está livre
da família, dos vizinhos, da amante
Virgília, do rival Lobo Neves. Como morto,
Brás Cubas, no seu estilo brincalhão, tenta
não deve mais nada a ninguém e,
convencer o leitor de uma grande vantagem da morte: a
teoricamente, pode tudo declarar, até
liberdade em relação à vigilância pública e à necessidade de agir
mesmo suas atitudes mais mesquinhas,
de acordo com as normas sociais, que obrigam o homem a
egoístas, até mesmo seu caráter volúvel,
manter uma imagem “civilizada”, aceitável e, quase sempre,
vaidoso e interesseiro. Pode, por exemplo,
hipócrita.
confessar que morreu por causa de um
capricho infantil: quis inventar um
medicamento que salvasse a humanidade
da hipocondria2, mas não foi a filantropia que o fez trabalhar na invenção do milagroso bálsamo. Brás
Cubas interessava-se sobretudo pela fama que conseguiria angariar com esse emplasto.
1.O Realismo do século XIX caracteriza-se especialmente pela análise crítica e desiludida da sociedade e das instituições que a
sustentam: a família, o casamento, o clero, a escola. Aponta-se a mercantilização das relações humanas, mediadas pelo
dinheiro e pelos interesses individuais, como fator de corrupção moral e degeneração afetiva. O tom predominante nos
romances dessa escola literária é sério, denso. Em Memórias póstumas de Brás Cubas – obra publicada em 1881,
tradicionalmente considerada o marco inicial do Realismo no Brasil - o tom brincalhão da narrativa é surpreendente, mas
não impede, contudo, que as mesmas críticas sejam emitidas.
2. Evidentemente, nessa hipocondria está implícita uma visão bastante amarga em relação à humanidade, avaliada como
sendo essencialmente doentia, mórbida.
8
A “sede de nomeada”, a vaidade de ver seu nome estampado nos rótulos do remédio, isso sim
fascinava Brás Cubas. Durante sua “pesquisa” pegou uma corrente de vento que o colocou doente e
acabou por matá-lo. A morte do personagem-narrador dá-se portanto em uma situação ridícula,
banal, como se a vida humana fosse reles e vulnerável como os próprios desejos humanos: uma
simples corrente de ar põe tudo a perder. Uma vez tendo deixado esta vida, Brás Cubas produz suas
memórias e – mantendo o tom de triste zombaria, de desiludida galhofa – dedica sua obra ao
primeiro verme que lhe “roeu as frias carnes”.
Um fracassado que não perde a pose
Mas quem foi Brás Cubas
antes de se transformar em “defunto
“Algum tempo hesitei se devia abrir estas Memórias
autor”? Na verdade, a vida de Brás não
pelo principio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu
mereceria nenhuma linha, porque não
nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar
apresentou destaque algum. Filho de um
pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente
comerciante que enriquecera3, Brás Cubas
método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor
formou-se mediocremente em Coimbra e
defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro
jamais exerceu a profissão de advogado.
berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais
Herdeiro, nunca precisou trabalhar e, se
novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no
chegou ao cargo de deputado, não foi
intróito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o
por mérito; uma vez aceito na câmara,
Pentateuco.”
nada fez além de um discurso sem
Mesmo no “além-túmulo”, Brás Cubas continua
importância sobre o uniforme da guarda
arrogante e presunçoso: ao comparar sua narrativa à do
nacional. Tudo pelo desejo de ser
Pentateuco, livro que compõe a Bíblia, Brás Cubas acaba por se
reconhecido publicamente. O sonho de se
comparar a Moisés. Mais ainda: chega a ver vantagem em sua
ver ministro ficou irrealizado. Brás nunca
decisão de abrir suas memórias, narrando sua morte. Seu livro
assumiu casamento, apesar dos quatro
seria, portanto, mais original e mais “galante” que a narrativa
relacionamentos amorosos que marcaram
bíblica!
sua vida. Não foi bem sucedido em sua
“idéia fixa”, o emplasto, e não teve filhos,
fato que é anunciado nas últimas linhas
do romance como amarga vantagem: “não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.
Apesar de tantas “negativas”, de uma vida tão sem encanto, Brás Cubas mantém –
mesmo depois da morte – um certo ar de superioridade, a pose de quem consegue ver os defeitos
alheios, mas ainda procura em certas passagens manter o orgulho, a empáfia, a presunção que lhe
marcaram a personalidade enquanto estava vivo. Daí que o romance seja constantemente narrado
com ironia: o personagem-narrador superestima seus feitos, suas ações, encobre suas mais francas
intenções, mas o leitor percebe aos poucos que tudo não passa de uma grande mentira, um engodo.
3. O pai de Brás Cubas, para encobrir a procedência humilde da família – descendente de um fabricante de pipas (cubas) –
inventa histórias sobre a origem do sobrenome “Cubas”, tentando dar um caráter nobre à família.
9
Brás: um brasileiro da gema
A ociosidade de Brás Cubas,
“Pareceu-me então (e peço perdão à crítica, se este
assim como sua falta de afinco, sua
meu
juízo
for
temerário!),
pareceu-me que ele [Lobo Neves] tinha
volubilidade, sua extrema – e infundada –
medo
não
medo
de
mm,
nem
de si, (...) tinha medo da opinião. (...)
vaidade, tudo parece compor um retrato
cuido
que
ele
estaria
pronto
a
separar-se
da mulher, como o leitor se
da elite brasileira do século XIX. Elite que
terá separado de muitas relações pessoais; mas a opinião, essa
tinha a pretensão de parecer européia, de
opinião que lhe arrastaria a vida por todas as ruas, que abriria
seguir as modas de Paris, mas que não se
minucioso inquérito acerca do caso, que coligiria urna a urna todas
empenhava por resolver os problemas do
as circunstâncias, antecedências, induções, provas, que as relataria
país; elite para a qual o trabalho árduo
na palestra das chácaras desocupadas, essa terrível opinião, tão curiera sinal de desprestígio, para a qual os
osa das alcovas, obstou à dispersão da família. (...) Ele não podia
privilégios sociais eram perfeitamente
mostrar-se ressentido comigo, sem igualmente buscar a separação
aceitáveis e que não se envergonhava de
conjugal; teve então de simular a mesma ignorância de outrora, e,
manter um sistema escravocrata, ainda
por dedução, iguais sentimentos.”
que – em teoria – defendesse os ideais
libertários do Iluminismo e visasse ao
Lobo Neves – em nome de sua carreira política –
progresso da “nações adiantadas”. Ou
deve fingir desconhecimento do caso amoroso entre sua esposa –
seja: uma elite que se acreditava
Virgília – e Brás Cubas. Do mesmo modo, D. Plácida deve aceitar
“civilizada” e praticava no dia a dia a
(e encobrir) os encontros entre Brás e Virgília porque depende do
barbárie. Ora, uma tal contradição só
dinheiro que recebe para sobreviver. As relações humanas estão,
poderia manter-se às custas de muita
portanto, contaminadas pela hipocrisia, pelas trocas de favor, pela
presunção, de muita cegueira, de muita
dependência de alguns, pela luta desigual entre os homens.
hipocrisia. Justamente esses são os
comportamentos criticados em Memórias
póstumas de Brás Cubas4 . Por isso, ao
mesmo tempo que a obra faz um comentário filosófico sobre a condição humana em geral, também
relaciona tais reflexões generalizantes a elementos específicos da sociedade e do homem brasileiros.
4. Brás Cubas, como muitos rapazes da época, vai à Europa estudar e volta “bacharel”. No caso de Brás, ele confessa que
jamais se aplicou aos estudos e que da universidade só trouxe o verniz, o conhecimento superficial, para enfeitar as
conversas durante as reuniões sociais. Essa é mais uma prova de que a educação – um dos pilares da revolução francesa –
só tinha no Brasil caráter decorativo, falso.
10
O Humanitismo: paródia e escamoteação
A mais ousada e sarcástica
tentativa de justificar os desajustes da
sociedade brasileira é a teoria do
Humanitismo, proposta por Quincas
Borba, um maluco que havia sido colega
de Brás Cubas na escola primária. O
Humanitismo pode ser compreendido
como paródia do Positivismo, doutrina do
filósofo Alberto Comte, segundo a qual a
humanidade, por meio da ciêncim um
processo irreversível e interminável. Esse
otimismo ingênuo evidentemente só
poderia ser combatido por Machado de
Assis.
“Olha: a guerra, que parece uma calamidade, é uma
operação conveniente, como se disséssemos o estalar dos dedos de
Humanitas; a fome (e ele chupava filosoficamente a asa do frango),
a fome é uma prova a que Humanitas submete a própria víscera. Mas
eu não quero outro documento da sublimidade do meu sistema,
senão este mesmo frango. Nutriu-se de milho, que foi plantado por
um africano, suponhamos, importado de Angola. Nasceu esse
africano, cresceu, foi vendido; um navio o trouxe, um navio
construído de madeira cortada no mato por dez ou doze homens,
levado por velas, que oito ou dez homens teceram, sem contar a
cordoalha e outras partes do aparelho náutico. Assim, este frango,
que eu almocei agora mesmo, é o resultado de uma multidão de
esforços e lutas, executados com o único fim de dar mate ao meu
apetite.”
No Humanitismo, Quincas
Borba defende – de modo bastante
Com o Humanitismo, Quicas Borba ingenuamente
confusa, do saber “positivo”, da disciplina
aceita
todas
as
injustiças
humanas, assim como o egocentrismo
mental conseguiria sanar todos os
da
elite:
parece
natural
que
haja muitos homens que sofram e
problemas sociais, evoluindo e o e em um
trabalhem
para
satisfazer
os
desejos e necessidades dos que
tom de crédula euforia – que a luta entre
detêm o poder social.
os homens reverte-se sempre em bem. O
raciocínio seria aproximadamente o
seguinte: advindo todos os seres
humanos de um mesmo ser original –
chamado Humanitas, para o qual todos retornamos –, uns teriam descendido de partes mais nobres,
outros de partes menos importantes de Humanitas. Com isso, justifica-se a desigualdade entre os seres
humanos. Por outro lado, como todos os homens seriam uma redução de Humanitas, a despeito das
diferenças físicas e sociais entre eles, todos seriam em essência iguais. Portanto, as lutas entre os
homens não deveriam ser entendidas como algo negativo, pois eram apenas manifestação da força de
Humanitas e, ao final das contas, não haveria ganhadores ou perdedores: originando-se de Humanitas
e voltando a ser parte de Humanitas depois da morte, a humanidade toda era uma só e mesma força!
Ficava assim provado que a exploração de um homem por outro (como a que ocorre no sistema
escravocrata), a miséria de alguns frente à riqueza de outros, a existência de seres que dominam e
seres subjugados, tudo seria, segundo o Humanitismo, justificável, aceitável.
11
Quatro mulheres e um solteirão
Brás Cubas, ainda na
adolescência, apaixonou-se pela prostituta
Marcela, que vivia às custas de presentes
de seus amantes. Brás faz gastos
infindáveis com jóias para agradar a
amante até que o pai põe fim ao caso,
enviando-o à força para uma temporada
de estudos em Portugal5.
Voltando de Portugal, Brás
Cubas reencontra Eugênia filha bastarda
de Dona Eusébia, velha amiga da família.
Eugênia, atraente, recatada e altiva,
parece ver em Brás Cubas uma
oportunidade de casamento, mas o
moço, que simpatizou com ela, serviu-se
do pretexto de que Eugênia era coxa para
evitar um relacionamento mais sério. Na
verdade, não cairia bem que se casasse
com uma moça bastarda e, além disso,
havia promessas de um futuro grandioso
caso ele se casasse com Virgília6...
“Marcela amou-me durante quinze meses e onze
contos de réis; nada menos..”
Marcela repesenta a mercantilização do amor,
corrompido pelo jogo de interesses.
“Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma
compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a
natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa?
por que coxa, se bonita?”
O defeito físico de Eugênia – a flora da moita –
não consiste em seu maior problema: o que impede mesmo que
ela seja adequada para um homem como Brás Cubas é o fato de
ser filha de uma relação ilegítima, condenada pelos padrões
burgueses.
“Virgília comparou a águia e o pavão, e elegeu a
águia, deixando o pavão com o seu espanto, o seu despeito, e três ou
quatro beijos que lhe dera.”
Brás Cubas confessa o quanto se limitava às
aparências; Lobo Neves foi mais prático, um homem de ação e
acabou conseguindo se casar com Virgília – que, previdente,
mediu cuidadosamente as qualidades de cada candidato.
Foi o pai de Brás Cubas quem
encontrou em Virgília a esposa ideal para
o Brás: filha do Conselheiro Dutra, a
menina era jovem, esperta e bonita7.
“O que vexava a Nhã-loló era o pai. A facilidade com
Representaria não só um bom casamento,
que ele se metera com os apostadores punha em relevo antigos cosmas facilitaria a entrada de Brás na vida
tumes e afinidades sociais, e Nhã-loló chegara a temer que tal sogro
política. Brás Cubas de fato interessou-se
me parecesse indigno.”
pela moça e pelo futuro que lhe
Nhã-loló – a flor do pântano – era desajeitada e
aguardava. Pena que a moça também
vinha
de
gente
inculta
e sem requinte. Era doce, amorosa e talvez
fosse ambiciosa: preferiu casar-se com
silenciasse um grande interesse em casar-se com Brás Cubas,
Lobo Neves, que lhe prometera fazer
homem refinado que poderia apagar-lhe os traços
marquesa! Tempos depois, Virgília se
torna amante de Brás Cubas, e o caso
amoroso se mantém por longo período,
até que Lobo Neves aceita o cargo de
presidente de província e abandona, juntamente com Virgília, o Rio de Janeiro8.
Logo depois, a irmã Sabina insiste para que Brás se case com Nhã-loló, sobrinha de seu
esposo Cotrim. A família da moça tinha algum dinheiro, mas não tinha refinamento algum. Nhã-loló
morre em decorrência da febre amarela.
5. Anos mais tarde, Brás Cubas reencontra Marcela, vítima da varíola, deformada pelas marcas no rosto. A mulher perdera
completamente a beleza, mas parecia continuar hábil em manipular os amantes. Ou seja: mesmo que a vida lhe
castigasse, seu caráter não se havia regenerado. A essência humana é, segundo Machado de Assis, incorrigível.
6. A conduta cínica de Brás Cubas, ao negar que estivesse agindo de forma condenável em relação a Eugênia, é prova de seu
caráter egocêntrico: nada importava, nem o sentimento dos outros, desde que os interesses pessoais estivessem
preservados.
7.Há no romance muitas referências que associam o relacionamento amoroso à vida política, como se em ambos os
contextos ocorresse um jogo instável de interesses em que entrasse muita dissimulação, muita mentira, muita sedução.
No caso de Virgília, essa associação é explícita, já que casar-se com ela facilitaria a eleição de Brás como deputado.
8. É importante observar que, mesmo no caso de Virgília, a mulher com quem Brás Cubas mais profundamente se envolveu,
o início e o término da relação não foram decididos pelo protagonista: como se fosse uma marionete do destino, Brás
Cubas não demonstra determinação em sua relação amorosa e permite que os fatos se sucedam sem sua interferência.
12
Uma obra que não agrada nem aos frívolos, nem aos graves
No início das Memórias, o
narrador ironiza que sua obra terá
poucos leitores, porque não chega a ser
um relato sério e denso, que
conquistaria os leitores sábios, e
tampouco é um folhetim ao gosto
romântico, que agradaria aos leitores
(em especial às leitoras) acostumados
com textos fáceis, cheios de intrigas e
coincidências, aventuras e lances de
amor. De fato, Machado de Assis
inovou a estrutura e o estilo e exige um
leitor que não se interesse apenas pelo
enredo.
“Que me conste, ainda ninguém relatou o seu próprio
delírio; faço-o eu, e a ciência mo agradecerá. Se o leitor não é dado à
contemplação destes fenômenos mentais, pode saltar o capítulo; vá
direto à narração. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo
que é interessante saber o que se passou na minha cabeça durante uns
vinte a trinta minutos.”
Ao comentar o que está prestes a contar, o narrador
emprega a metalinguagem. Percebe-se no trecho também a
conversa com o leitor incluso (virtual), que é sutilmente
ridicularizado: se não é capaz de suportar uma obra surpreendente,
se está apenas interessado na continuação do enredo, então o leitor
não deveria ler o capítulo.
A principal inovação no
“E isto por aquela famosa lei da equivalência das
campo estrutural está na composição
janelas, que eu tive a satisfação de descobrir e formular, no capítulo LI.”
desconexa da narrativa. O enredo não é
A metalinguagem é também empregada para
apresentado linearmente e não forma
lembrar o leitor de idéias apresentadas anteriormente ou para
um seqüência contínua. Composto de
comentar o estilo da narrativa, como no trecho a seguir:
capítulo curtos e entrecortados, o
romance apresenta constantes
“Obra de finado. Escrevia-a com a pena da galhofa e a
interrupções na apresentação do
tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse
enredo para a inserção de comentários
conúbio.”
e reflexões do narrador. Essas
interrupções são chamadas de
digressões, durante as quais se pode
narrar uma história paralela, apresentar
uma “teoria filosófica”, analisar e interpretar fatos anteriormente narrados (ou antecipar
acontecimentos que serão posteriormente desenvolvidos), estabelecer uma analogia ou uma metáfora
que explique uma idéia proposta.
Em muitas dessas interrupções, o narrador “conversa” com o leitor (“leitor implícito”),
seja para chamar a atenção sobre algum aspecto da narrativa, seja para esclarecer o estilo que se
emprega, seja ainda para recapitular um fato já narrado. Algumas vezes, o narrador revela desprezo
pelo leitor virtual de seu texto, zombando sua inabilidade ou acusando-o de frívolo ou desatento.
Nas digressões e nas conversas com o leitor ocorre freqüentemente metalinguagem,
quando o narrador comenta a estrutura ou o estilo da própria obra. Emprega-se igualmente a função
metalingüística quando o narrador faz referência a capítulos anteriores ou posteriores e quando faz
referência aos fatos narrados.
As “teorias” de um desiludido
Ao longo da narrativa, são apresentadas várias “teorias”, às vezes de forma breve, por
meio de frases filosófica (máximas ou aforismos), às vezes desenvolvidas em todo um capítulo, por
meio de alegorias, de metáforas (como no caso das “damas turcas” ou das “botas apertadas”). Em
alguns casos, como no episódio “A borboleta preta”, a relação entre a “teoria” e a narrativa não é
explícita, mas as “teorias” sempre interpretam algum acontecimento do enredo, revelando uma visão
pessimista, tipicamente machadiana: quase todas as teorias insistem no egoísmo, na vaidade, na
falsidade que marcam as relações íntimas e sociais. Eis as mais importantes “teorias” de Memórias
póstumas:
• A borboleta preta: Brás Cubas, ao matar uma borboleta preta, procura uma desculpa para seu ato
e a encontra na idéia de que a culpa por ter morrido é da própria borboleta: se ela fosse azul, se
fosse agradável ao olhar, talvez tivesse outro destino. Este é mais um exemplo dos subterfúgios
13
encontrados pelo personagem-narrador para encobrir suas falhas, suas más ações. Este episódio
antecipa o que ocorrerá com Eugênia: Brás teoricamente não a teria deixado se ela não fosse – coxa
(e filha bastarda!). A culpa da separação, portanto, seria da própria Eugênia!
• A ponta do nariz: ao afirmar que “cada homem tem necessidade e poder de contemplar o seu
próprio nariz a fim de ver a luz celeste”, o narrador sublinha o quanto o sentimento de glória e
vaidade requerem que, olhando para nosso próprio nariz, desconsideremos os outros, desprezando
o valor daqueles que nos cercam e que ameaçam nossa auto-estima. Esta reflexão segue o episódio
em que Brás Cubas “tortura” o poeta Luís Dutra, primo de Virgília, negando-se a elogiar-lhe os
versos: “minha intenção era fazê-lo duvidar de si mesmo, desanimá-lo, eliminá-lo”.
• A vida como enxurro: ao se referir a Lobo Neves, Brás Cubas compara a vida a uma enxurrada, que
desgasta o caráter humano, corrompendo-o. “(...) havia no Lobo Neves certa dignidade
fundamental, uma camada de rocha, que resistia ao comércio dos homens. As outras, as camadas de
cima, terra solta e areia, levou-lhas a vida, que é um enxurro perpétuo.”
• As botas apertadas: tendo conseguido se livrar do incipiente relacionamento com Eugênia, Brás
Cubas sente-se aliviado e reflete que não há prazer maior que descalçar botas que nos apertam os
pés. Com essa imagem, o narrador nos revela cinicamente que estamos sempre preocupados com
nosso próprios incômodos e, de forma egoísta, podemos desfrutar o prazer de nos livrarmos deles,
despreocupados com os efeitos que nossos atos têm sobre outras pessoas.
• As damas turcas: Damasceno, pai de Nhã-loló, lastima que comparecessem tão poucos ao funeral
da filha. Cotrim observa que havia poucos presentes no enterro, mas que esses haviam ido por
motivos sinceros. Repara ainda que muitos viriam movidos apenas pela obrigação social. Damasceno
responde “Mas viesse!”. Ou seja, ele prefere a mera formalidade à franqueza, à sinceridade.
Comentando esse episódio, Brás Cubas estabelece uma relação entre o comportamento de
Damasceno e o das damas turcas de uma gravura, que usavam um véu para manter o decoro
exigido pelas leis muçulmanas, mas o véu era transparente, de modo que se vislumbravam as feições
das mulheres. Com isto, comenta-se que muitas vezes segue-se uma norma social (ou espera-se que
ela seja seguida) apenas para cumprir um ritual, não por verdadeiro respeito.
• Equivalência das janelas: ao iniciar o caso amoroso com Virgília, já casada com Lobo Neves, Brás
Cubas sente-se culpado; ao retornar de uma festa na casa de Virgília, encontra no caminho uma
moeda e a restitui. Após esse seu ato louvável, conclui que o ser humano sempre age assim: ao
cometer um ato mesquinho, mau, sente necessidade de compensar sua má ação com um gesto
nobre: “ Assim, eu, Brás Cubas, descobri uma lei sublime, a lei da equivalência das janelas, e
estabeleci que o modo de compensar uma janela fechada é abrir outra, a fim de que a moral possa
arejar continuamente a consciência.”
• Espadim: Brás Cubas, durante as comemorações pela queda de Napoleão Bonaparte, quando é
ainda uma criança, está mais interessado no espadim novo que no significado real das festividades.
Essa mesma idéia é apresentada por meio da oposição entre as “bandeiras públicas e bandeiras
particulares”: o homem – incorrigivelmente egocentrado - presta sempre mais atenção àquilo que
lhe diz respeito individualmente, que às questões coletivas, sociais.
• Filosofia dos epitáfios: o uso de manter inscrições nos túmulos é interpretada como prova da
vaidade dos homens, que não querem aceitar o próprio desaparecimento depois da morte. “E, aliás,
gosto dos epitáfios; eles são, entre a gente civilizada, uma expressão daquele pio e secreto egoísmo
que induz o homem a arrancar à morte um farrapo ao menos da sombra que passou. Daí vem,
talvez, a tristeza inconsolável dos que sabem os seus mortos na vala comum; parece-lhes que a
podridão anônima os alcança a eles mesmos.”
• O almocreve: sendo salvo por um almocreve, que impediu que seu cavalo disparasse e o carregasse
preso por uma das pernas, Brás Cubas sente inicialmente ímpetos de recompensar fartamente o
rapaz. Depois começa a achar que três moedas de ouro seria muito, talvez uma, já que o moço não
teria feito nada de especial. Brás acaba medindo o humilde almocreve e pensando que bastaria uma
moeda de prata. Depois de ofertá-la, percebe que o outro ficara bastante agradecido e que talvez
nem precisasse ter dado uma moeda de tanto valor. Fica evidente a mesquinhez, a avareza de Brás
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Cubas: o valor da recompensa vai se adaptando às circunstâncias, às desculpas que Brás encontra
para diminuir a bravura e validade da ação do almocreve.
• O menino é pai do homem: a criança revela as características que se manterão na vida adulta.
este aforismo se opõe à idéia de que o ser humano se corrige e melhora, conforme parece indicar a
“teoria das edições humanas”.
• O vergalho: Brás Cubas flagra Prudêncio, ex-escravo de seu pai, punindo impiedosamente um
escravo, que agora lhe pertencia. Na meninice, Brás Cubas costumava fazer Prudêncio de cavalo,
maltratando-o severamente; A partir da cena, Brás acha episódio “gaiato, fino, até profundo”,
considerando que Prudêncio descontava o que sofrera em outro ser humano. Evidentemente o fato
é lamentável e sublinha que os homens não aprendem com as experiências que a vida oferece, não
se sensibiliza com os sofrimentos que a vida impinge: livra-se da dor própria, mas pode passar a
causar a dor alheia.
• Pandora: em seu delírio, pouco antes de morrer, Brás Cubas viaja até o início dos tempos e lá
encontra Pandora – a Natureza, que se revela uma mulher insensível, que dá a vida e também
provoca a dor, o sofrimento humano. conforme confirmam os séculos que Brás viu passar em seu
delírio, todos marcados pela miséria, pela fome, por sangrentas batalhas. O mais cruel castigo de
Pandora é manter nos homens a eterna esperança de felicidade, que nos ilude e nos faz acreditar
que a vida pode valer a pena. Descrever a natureza de modo tão cruel revela uma perspectiva
desiludida, amarga.
• Teoria do benefício: a idéia de que “o prazer do beneficiador é sempre maior que o do
beneficiado” indica que às vezes se faz um favor apenas pela sensação de superioridade saboreada
por quem praticou a boa ação. Poder mostrar-se bom, benevolente, solícito cria uma auto-imagem
positiva, que vale mais que o favor prestado.
• Teoria das edições humanas: os homens seriam “erratas pensantes”, isto é, seres em eterna
“correção”. No entanto, essa idéia - que poderia soar otimista, já que vislumbra a possibilidade de
“melhora” – está associada ao fato de que os homens mudam apenas porque mudam igualmente
seus interesses ou suas condições. Não há na verdade “melhora do caráter”, mas tão somente
adaptação das idéias e ações de um indivíduo às circunstâncias, o que caracteriza oportunismo.
Exercícios
Teste seus conhecimentos sobre Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis
01. Indique a alternativa que completa correta e respectivamente as frases de Memórias póstumas
de Brás Cubas com as referências às personagens femininas do romance.
“Vi que era impossível separar duas coisas que no espírito de ____________ estavam
inteiramente ligadas: o nosso amor e a consideração pública.”
“_______________ morria de amores pelo Xavier. Não morria, vivia.”
“ Tu, minha ______________, é que não as descalçaste nunca; foste aí pela estrada da
vida, manquejando da perna e do amor, triste como os enterros pobres, solitária, calada, laboriosa, até
que vieste também para esta outra margem...”
“ Faltava-lhe elegância, mas compensava-a com os olhos, que eram soberbos e só tinham
o defeito de se não arrancarem de mim, exceto quando desciam ao prato; mas ________________
comia tão pouco, que quase não olhava o prato.”
a. Virgília – Marcela – a “flor da moita” – Nhã-loló.
b. a “flor do pântano” – Virgília – Eugênia – Nhã-loló.
c. Marcela – Virgília – Eugênia – a “flor da moita”.
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d. Virgília – Eugênia – a “flor da moita” – a “flor do pântano”.
e. Eugênia – Marcela – Nhã-loló – Virgília.
02. Leia os três trechos que seguem e avalie as afirmações que se fazem. Por fim, assinale a alternativa
correta.
“Não digo que a Universidade me não tivesse ensinado alguma [filosofia]; mas eu
decorei-lhe só as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto. Tratei-a como tratei o latim: embolsei três
versos de Virgílio, dois de Horácio, uma dúzia de locuções morais e políticas, para as despesas da
conversação.”
“Lobo Neves contou-me que a vida política era um tecido de invejas, despeitos, intrigas,
perfídias, interesses, vaidades. Evidentemente havia aí uma crise de melancolia; tratei de combatê-la.”
“ Teve duas fases a nossa paixão, ou ligação, ou qualquer outro nome, que eu de nomes
não curo; teve a fase consular e a fase imperial.”
I. Brás Cubas ora adota uma postura mais franco e direta em suas confissões, acusando os próprios
defeitos (trecho I), ora mantém em seu relato a mesma hipocrisia e cinismo que sustentava em vida
(trecho II).
II. A cultura como veleidade, como acessório para admiração pública é um traço que se articula no
romance com questões mais abrangentes: a falsidade humana e a falta de coerência entre a
admiração da cultura européia por nossas elites e o atraso da estrutura sócio-econômica brasileira.
III. As relações humanas, que podem ser cordatas e equilibradas como revela o trecho III, desmentem
o pessimismo que Lobo Neves manifesta (trecho II); por isso Brás Cubas afirma que a as
considerações do rival são fruto de melancolia.
a. Todas as afirmações estão corretas.
b. Somente as afirmações I e II estão corretas.
c. Somente as afirmações II e III estão corretas.
d. Somente a afirmação I está correta.
e. Somente a afirmação II está correta.
03. Sobre o narrador de Memórias póstumas, é correto afirmar que:
a. deturpa o relato dos fatos passados, porque quer demonstrar que a percepção da realidade muda
com o passar do tempo, com o amadurecimento.
b. interrompe constantemente o fluxo do enredo para interpor reflexões, comentários, análises,
analogias, de modo que a narrativa se torna alógica, alinear, representando as confusas lembranças
do “defunto autor”.
c. dificulta a leitura de suas memórias porque não avisa o leitor das freqüentes digressões.
d. manifesta um tom constantemente irônico e desencantado porque está em um momento de crise
pessoal: sente-se individualmente fracassado e reconhece que foi sempre egoísta e vaidoso.
e. zomba dos leitores virtuais, fazendo supor que eles não seriam capazes de apreciar uma obra que
não segue a estrutura tradicional do romance porque estão acostumados com os lugares-comuns
do Romantismo.
04. Leia os dois fragmentos e assinale a alternativa correta.
“Custou-lhe a D. Plácida muito a aceitar a casa; farejara a intenção, e doía-lhe o ofício;
mas afinal cedeu. Creio que chorava, a princípio: tinha nojo de si mesma. Ao menos, é certo que não
levantou os olhos para mim durante os primeiros dois meses; falava-me com eles baixos, séria,
carrancuda, às vezes triste. (...) Ao cabo de seis meses quem nos visse a todos três juntos diria que D.
Plácida era minha sogra.
Não fui ingrato; fiz-lhe um pecúlio de cinco contos, – os cinco contos achados em
16
Botafogo, — como um pão para a velhice. D. Plácida agradeceu-me com lágrimas nos olhos, e nunca
mais deixou de rezar por mim, todas as noites, diante de uma imagem da Virgem que tinha no quarto.
Foi assim que lhe acabou o nojo."
“Se não fossem os meus amores, provavelmente D. Plácida acabaria como tantas outras
criaturas humanas; donde se poderia deduzir que o vício é muitas vezes o estrume da virtude.”
a. D. Plácida não queria aceitar o relacionamento entre Brás Cubas e Virgília porque se tratava de um
adultério. Sua atitude prova que em Memórias póstumas de Brás Cubas as pessoas mais simples
mantêm um caráter menos condenável que os membros da elite.
b. Brás Cubas é um personagem complexo: não pode simplesmente ser considerado mau caráter, pois
é capaz de ações benevolentes e desinteressadas, como o dinheiro que doa para D. Plácida.
c. Brás Cubas é cínico ao afirmar que seus amores ilícitos acabaram por provocar um bem; D. Plácida é
hipócrita ao substituir suas restrições ao adultério de Virgília em função do pecúlio ofertado por
Brás Cubas.
d. O aforismo “o vício é muitas vezes o estrume da virtude” sublinha a idéia de que o egoísmo, a
ambição, a falta de princípios éticos podem dar lugar a boas ações, que alteram positivamente o
caráter humano.
e. D. Plácida aproveita-se do adultério de Virgília para chantagiar Brás Cubas e garantir seu futuro.
05. Indique a alternativa que apresenta uma interpretação inaceitável do trecho referente ao capítulo
“O Humanitismo”.
a. “Assim, descender do peito ou dos rins de
Humanitas, isto é, ser um forte, não era o mesmo
que descender dos cabelos ou da ponta do nariz.”
(
) Justificam-se hipocritamente as
diferenças entre os homens, como se elas
fossem um fator inato e não um resultado
negativo da organização social.
b.
“Como a vida é o maior benefício do universo, e
não hmendigo á que não prefira a miséria à morte
(...), segue-se que a transmissão da vida, longe de
ser uma ocasião de galanteio, é a hora suprema da
missa espiritual. Porquanto verdadeiramente há só
uma desgraça: é não nascer.”
(
) O tom mórbido do romance é
ironizado, porque a morte é o pior castigo
que a humanidade sofre.
c.
“Nota que eu não faço o homem um simples
(
) A afirmação procura tornar aceitáveis
veículo de Humanitas; não, ele é ao mesmo tempo a vaidade e o egocentrismo.
veículo, cocheiro e passageiro: ele é o próprio
Humanitas reduzido; daí a necessidade de adorar-se
a si próprio.”
d. “Sendo cada homem uma redução de Humanitas, é
claro que nenhum homem é fundamentalmente
oposto a outro homem, quaisquer que sejam as
aparências contrárias.”
(
) Trata-se de uma paródia das noções
de fraternidade e de igualdade, base da
ideologia burguesa e liberal, adotada no
Brasil como “fachada”.
e. “Conta três fases Humanitas: a estática, anterior a
toda a criação; a expansiva, começo das coisas; a
dispersiva, aparecimento do homem.”
(
) Paródia da teoria do Positivismo de
Augusto Comte, que estabelecia três fases
do desenvolvimento humano: a teológica, a
metafísica e a positiva.
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Gabarito
01. Alternativa a.
Virgília ansiava tanto pelo amor de Brás Cubas, quanto pelo respeito público e pelo
destaque social possibilitados pelo seu casamento com Lobo Neves; Marcela deixava-se sustentar por
seus amantes, como Xavier; Eugênia (a “flor da moita”) a filha ilegítima de Dona Eusébia, é “coxa de
nascença”, é rejeitada por Brás Cubas, não se casa e acaba na pobreza; Nhã-loló (a “flor do pântano”)
é a moça vistosa, mas provinciana e sem classe.
02. Alternativa b.
A frase “ Teve duas fases a nossa paixão, ou ligação, ou qualquer outro nome, que eu de
nomes não curo; teve a fase consular e a fase imperial” sugere que também no amor, como na
política, as relações se baseiam em interesses, em acordos, jogos de fidelidade e traição: a fase
“consular” do amor entre Brás e Marcela se refere ao tempo em que a moça mantinha relação
simultaneamente com mais de um amante; a fase imperial se refere ao período em que Brás Cubas
monopoliza as atenções de Marcela. Por isso, a frase não pode ser compreendida de um ponto de
vista otimista.
03. Alternativa e.
Ao conversar com o leitor, o narrador de Memórias póstumas costuma ironizar o gosto
por enredos fáceis, por estruturas simples, que predominam nos romances do Romantismo. Nas
demais alternativas, observe que:
• narrador não deturpa os fatos: narra-os conforme soube percebê-los na ocasião;
• a narrativa certamente não é alógica e predomina a seqüência linear, cronológica;
• empregando a metalinguagem, o narrador costuma comentar a formulação de seu texto, avisando o
leitor, por exemplo, dos saltos e digressões da obra;
• a ironia e o desencanto do narrador em 1.a pessoa, Brás Cubas, não advém de uma crise pessoal,
mas da percepção de que os homens todos agem por interesses particulares.
04. Alternativa c.
Para Machado, não há melhoria do caráter humano, nem mesmo para as pessoas mais
humildes (lembre-se da atitude do ex-escravo Prudêncio, que apanhava de Brás Cubas e que bateu em
público em seu escravo). Brás Cubas apenas ofertou o dinheiro a D. Plácida para comprar-lhe a
conivência com o seu caso amoroso. D. Plácida, por sua vez, aceitou o dinheiro porque dele
necessitava e, a partir disso, esquece seus princípios e aceita o relacionamento entre Brás e Virgília. O
aforismo “o vício é muitas vezes o estrume da virtude” indica que por trás das aparência, o bem pode
ser resultado de más ações.
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05. Alternativa b.
O tom do romance não pode ser considerado mórbido. A frase indica ironicamente que
as injustiças, a miséria humana, as vidas sem êxitos (como a de D. Plácida e de Eugênia) seriam um
dádiva, como um bem, idéia de que duvida o próprio Brás Cubas, como revelam os trechos:
• “Mas adverti logo que, se não fosse D. Plácida, talvez os meus amores com Virgília tivessem sido
interrompidos, ou imediatamente quebrados, em plena efervescência; tal foi, portanto, a utilidade da
vida de D. Plácida. Utilidade relativa, convenho (...)”
• “O que eu não sei é se a tua [de Eugênia] existência era muito necessária ao século.”
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