Resistência ao Management em Organizações da Cultura Popular
Autoria: Luciana Araújo de Holanda
Posso sair daqui pra me organizar
Posso sair daqui pra me desorganizar (...)
Com a barriga vazia não consigo dormir
E com o bucho mais cheio comecei a pensar
Que eu me organizando posso desorganizar
Que eu desorganizando posso me organizar (...)
(Da Lama ao Caos - Chico Science & Nação Zumbi)
Resumo: A racionalidade dominante na modernidade ocidental produz ativamente a
inexistência de outro princípio de organização produtiva e social que não seja o do mercado
capitalista. O management, amparado pelo discurso científico, reclamou para si o monopólio
do conhecimento válido e assumiu preponderância total, impregnando o modo de organização
da sociedade inteira, marginalizando e descredibilizando todas as formas de organização que
não se pautam no modelo empresarial. A empresa, enquanto modelo de organização, passou a
exercer influência crescente sobre todas as atividades humanas, sem exceção. Nesse contexto,
organizações culturais vêm sendo conduzidas a adotar pressupostos gerenciais e
mercadológicos e práticas características do mundo dos negócios, subordinadas a critérios de
eficiência, de rentabilidade e de competitividade, muitas vezes, distantes dos objetivos das
organizações que lidam com aspectos mais substantivos da vida organizada. A mídia em geral
dissemina o discurso da necessidade de profissionalização do setor cultural e os guias práticos
de captação de recursos e de marketing cultural, conteúdos da maioria das obras publicadas na
área de gestão cultural, recomendam o tratamento da cultura como negócio e a gestão das
organizações culturais como empresas. Estudos sobre grupos de cultura popular apontaram
que muitas organizações acabam transformando seus objetivos, estruturas e práticas a fim de
adaptarem-se às exigências do mercado. Todavia, estudos recentes constaram que a adoção do
modelo empresarial por organizações que lidam com aspectos mais substantivos da vida
organizada não se dá sem resistências. A transposição das técnicas empresariais para o âmbito
da cultura popular mostrou-se polêmica e controversa. Algumas organizações procuram pela
preservação da tradição de suas práticas, bem como pela geração de alternativas para o seu
modo de gestão distanciadas da visão de mundo do mercado e do modelo empresarial de
organização. O presente trabalho, de natureza predominantemente qualitativa, teve seu marco
em uma ação extensionista de um grupo de pesquisa de uma universidade púbica brasileira e
configura um testemunho de evidências empíricas da resistência por parte de alguns sujeitos
da cultura popular em transpor conceitos, ferramentas e práticas do management para
organizações substantivas e movimentos sociais. Seu objetivo é trazer da ausência à presença
uma lógica de organização alternativa que apesar de marginalizada e produzida como
inexistente pela racionalidade dominante na modernidade ocidental, faz parte do cotidiano de
sujeitos capazes de produzir sua própria história. Ressalta-se os conflitos com a natureza e
aspectos substantivos dos coletivos populares que consistem em agrupamentos voluntários de
pessoas, sem fins lucrativos, visando promover a cidadania por meio da cultura popular
prezando pelo seu valor simbólico. Com isso, espera-se contribuir para a construção de um
corpus de conhecimento específico e pertinente aos propósitos da cultura popular.
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Contextualização
O cenário delineado a partir dos anos 1980, marcado, nomeadamente, pelo
desenvolvimento do capitalismo financeiro, pela implantação do projeto político-econômico
neoliberal e pela disseminação da lógica de mercado e do pensamento empresarial, vem
exercendo influência crescente no modo de organização da sociedade.
A difusão massiva dos discursos e das práticas de gestão empresarial atingiu setores
mantidos até então fora da influência do “espírito gestionário”, moldando uma sociedade
managerial que descreve, explica e interpreta o mundo a partir das categorias da gestão
(CHANLAT, 2000, p. 16). Como observa Chanlat (Ibid, p. 17), o managerialismo encontra-se
profundamente instalado na experiência social contemporânea, podendo ser constatado tanto
em nível organizacional como em nível individual.
Símbolos, linguagem, crenças e ideologias do managementi invadiram
progressivamente os domínios da ciência, tecnologia, arte, literatura, transformando a cultura
tanto do ponto de vista material, como intelectual e espiritual (WOOD JR e PAULA, 2006, p.
93-94).
O management, amparado pelo discurso científico, reclamou para si o monopólio do
conhecimento válido e assumiu preponderância total, impregnando o modo de organização da
sociedade inteira, marginalizando e descredibilizando todas as formas de organização que não
se pautam no modelo empresarial.
A empresa, enquanto modelo de organização, tem exercido influência crescente sobre
todas as atividades humanas, sem exceção, caracterizando o fenômeno histórico designado
por Solè (2003) de “empresarização do mundo”.
A empresa aparece cada vez mais como uma organização autônoma (havendo suas
próprias “leis”, obedecendo a sua própria “lógica”) - incontrolável, portanto. A
sensação mais e mais compartilhada é que a sociedade é controlada - organizada pela empresa. A “empresarização” do mundo é vivida, pensada pelo nosso mundo
como um processo inexorável e irresistível; como um acontecimento natural, uma
necessidade; como um destino, uma fatalidade (SOLÈ, 2003, p. 5).
Todavia, salienta-se que a empresa é apenas um tipo particular de organização social e
sua influência na vida humana associada deve ser limitada e circunscrita ao enclave especifico
do mercado que, por sua vez, também é somente um dentre outros muitos cenários
constitutivos da tessitura global da sociedade (RAMOS, 1981). Segundo Ramos (Ibid, p. 52),
o mercado passou a desempenhar o papel de força modeladora da mente dos cidadãos devido
ao fato do processo de socialização estar, em grande parte, subordinado a uma política
cognitiva exercida por vastos complexos empresariais que agem sem nenhum controle,
levando as pessoas a confundir as regras e normas de operação do mercado com regras e
normas de sua conduta como um todo, ofuscando o senso pessoal de critérios adequados de
modo geral à conduta humana.
Nesse contexto, organizações culturais vêm sendo conduzidas a adotar práticas
características do mundo dos negócios, subordinadas a critérios de eficiência, de rentabilidade
e de competitividade, pressupostos estes mais apropriados à realidade administrativa de
empresas e, muitas vezes, distantes dos objetivos daquelas organizações que lidam com
aspectos mais substantivos da vida organizada (CARVALHO, 2006, p. 1).
No Brasil, o Estado não esteve alheio a esse processo, em parceria com o mercado,
tem conduzido as organizações culturais à mercantilização ao permitir que a burocracia e sua
racionalidade tornem-se os únicos modelos possíveis para estas organizações (CARVALHO;
ANDRADE, 2006, p. 2).
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A regulamentação da Lei Rouanet (Decreto N° 1494 de 17 de maio de 1995)
oficializou a atividade de organização da cultura no Brasil e a figura do produtor cultural,
reconhecendo legalmente a existência de trabalho de intermediação de projetos culturais com
possibilidade de ganho financeiro (RUBIM, 2005, p. 14). Com a abertura dada pela
legislação, houve uma proliferação de pessoas, profissionais ou biscateiros, vendedores de
projetos culturais, interessados nos benefícios das leis (BRANT, 2004, p. 140).
Desde então, assistiu-se ao início de um processo de estruturação de cursos
acadêmicos (extensão, graduação e pós-graduação) em algumas regiões do Brasil por
iniciativas pública e privada. A formação profissional passou a ser apontada no cenário
cultural como necessidade ou mesmo exigência (CUNHA, 2007, p. 3-5) e a atividade de
produção cultural tornou-se visível para a sociedade brasileira, ganhando inusitada
notoriedade pela sua presença na telenovela da Rede Globo “Celebridades” exibida no horário
nobre (RUBIN, 2005, p. 13).
A mídia em geral dissemina o discurso da necessidade de profissionalização como
caminho privilegiado para a modernização do setor cultural. A incipiente bibliografia
específica sobre organizações culturais trata a gestão cultural como uma especialidade
recente, surgida diante da atual complexidade do mundo cultural, e prescreve como
indispensável a formação especializada que permita dispor de métodos e técnicas
profissionalizantes (D’ARCIER, HERAS e ZABARTE, 1999, p. 11).
Os guias práticos de captação de recursos e de marketing cultural, conteúdos da
maioria das obras publicadas, recomendam o tratamento da cultura como negócio e a gestão
das organizações culturais como empresas. Porém, as justificativas para a necessidade de
profissionalização dos gestores culturais e adoção de práticas empresariais são evasivas,
baseiam-se na desqualificação das práticas organizativas da cultura popular e seus
pressupostos são superficialmente discutidos.
Por profissionalização, entende-se tratar a cultura como negócio, tornar a organização
produtiva e eficiente para competir na atração de patrocinadores e captação de recursos,
adotar estrutura formal e burocrática para atender às exigências dos editais e dos processos de
prestação de contas. Dessa maneira, as organizações culturais vêm sendo impelidas a
incorporar pressupostos gerenciais oriundos da administração empresarial.
As práticas organizativas populares são estigmatizadas por termos e expressões
pejorativos, sendo consideradas amadoras, caseiras, arcaicas, anacrônicas, sem sistematização
do trabalho, tendo no improviso a regra, feita na correria (BRANT, 2004, p. 105-106), feita
naturalmente, na marra, apagando incêndios, de última hora, o que denota sua baixa
credibilidade (VILAS BOAS, 2005, p. 101). Na atual sociedade capitalista, verifica-se a
valorização do acadêmico e do intelectual em relação ao mestre da experiência, o prático, sem
reconhecer a relevância social dos saberes populares para a realização da produção e das
práticas sociais cotidianas. “O que é popular é necessariamente associado a ‘fazer’ desprovido
de ‘saber’” (ARANTES, 2007, p. 14).
A gestão é apontada como aspecto frágil do mercado cultural e um problema
generalizado. Ressalta-se que os empreendimentos culturais administrados como negócio têm
sido privilegiados numa espécie de “seleção natural” pelo mercado competitivo e globalizado
levando os gestores culturais a se conscientizarem de que é preciso planejar ações,
desenvolver normas e procedimentos de gestão e qualidade, firmar parcerias e se colocar de
maneira diferenciada nesse mercado (BRANT, 2004, p. 81-82).
Estudos sobre grupos de cultura popular (MACIEL, 2003; GAMEIRO, MENEZES e
CARVALHO, 2003; SILVA e DELLAGNELO, 2006) apontaram que estas organizações
acabam transformando seus objetivos, estruturas e práticas a fim de adaptarem-se às
exigências do mercado.
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Todavia, estudos recentes constaram que a adoção do modelo empresarial por
organizações que lidam com aspectos mais substantivos da vida organizada não se dá sem
resistências. Algumas organizações procuram pela preservação da tradição de suas práticas,
bem como pela geração de alternativas para o seu modo de gestão distanciadas da ‘visão de
mundo do mercado’ e do modelo empresarial de organização (CARVALHO, 2006, p. 5).
O presente trabalho, de natureza predominantemente qualitativa, é um testemunho de
evidências empíricas da resistência por parte de alguns sujeitos da cultura popularii em
transpor conceitos, ferramentas e práticas do management para organizações substantivas e
movimentos sociais. Seu objetivo é trazer da ausência à presença uma lógica de organização
alternativa, que apesar de marginalizada e produzida como inexistente pela racionalidade
dominante na modernidade ocidental que não reconhece outro princípio de organização
produtiva e social que não seja o do mercado capitalista (SANTOS, 2006; 2008), existe e faz
parte do cotidiano de sujeitos capazes de produzir sua própria história.
Nas seções subseqüentes encontram-se uma breve caracterização deste estudo, a
apresentação e análise dos dados empíricos, bem como um exercício crítico visando
desnaturalizar o modelo de gestão empresarial e contribuir para a concepção de práticas
organizativas pertinentes aos propósitos da cultura popular.
Encontrando resistência no campo empírico
Este estudo teve seu marco em uma ação extensionista de um grupo de pesquisa de
uma universidade púbica brasileira em convênio com o Ministério da Cultura (MinC) que
consistiu na realização de Oficinas de Gestão por e para organizações da cultura popular. A
autora participou dessa atividade de extensão, iniciada em março de 2007, no papel de
facilitadora da construção coletiva de tais oficinas inspiradas na pedagogia freiriana. O
objetivo era dialogar sobre conhecimentos e formas de organizar e de gerir as organizações, e
os temas abordados foram previamente escolhidos pelos representantes das organizações da
cultura popular, de modo que o modelo de gestão empresarial foi apresentado para ser
discutido, debatido, confrontado, sem a intenção de transferi-lo e muito menos impô-lo.
Durante a realização das referidas oficinas, contatou-se que a transposição das técnicas
empresariais para o âmbito da cultura popular é polêmica e controversa. Enquanto alguns
representantes das organizações da cultura popular defenderam que suas organizações
“precisam de patrocínio da iniciativa privada e por isso devem adequar o uso de ferramentas e
instrumentos de gestão”, outros defenderam que os coletivos culturais “devem ter seu próprio
modo de organização”. Um membro de um coletivo sugeriu que as organizações culturais
devem se inspirar no trecho da música que consta na epígrafe desse artigo: “organizando para
desorganizar, desorganizando para organizar”.
A entrada da pesquisadora no campo empírico ocorreu, portanto, sem estabelecimento
prévio de questões, sem sistematização a priori de referencial teórico, nem instrumentação
metodológica. De forma espontânea e não planejada, a coleta de dados teve início nas
discussões coletivas e conversas informais com sujeitos da cultura popular nas oficinas, e
posteriormente, em visitas a algumas organizações e em eventosiii na área cultural, bem como
em um curso de gestão cultural para organizações da cultura populariv em que a pesquisadora
participou na condição de aluna. Em cada ocasião foram feitos registros em áudio e em um
bloco de notas por meio de observação participante (PATTON, 2002).
Em paralelo foi realizada uma pesquisa documental em uma rede virtual de debate e
uma base de dados online, ambas criadas pelo MinC; no relatório final de avaliação do
Programa Cultura Viva criado pelo MinC para promover a cultura popular; e nos relatórios de
eventos promovidos pelo grupo de pesquisa do qual a pesquisadora é membrov.
4
Post-factum, pode-se classificar essa pesquisa como qualitativa, caracterizada pela de
imersão da pesquisadora no cenário natural em que os fenômenos estudados ocorrem, atuando
como um intérprete da realidade (DENZIN e LINCOLN, 2006, p. 16-17).
Com base nessa vivência no campo empírico foi possível identificar alguns coletivos
que demonstraram sinais de resistência ao modelo empresarial. Nos dados recolhidos
percebeu-se que a construção das práticas organizativas no cotidiano desses sujeitos é
intuitiva, não sendo permeadas por relações de autoridade, mecanismos burocráticos e
princípios mercantis, como ilustram algumas falas transcritas nos subtópicos apresentados na
seqüência.
Verificou-se um conflito em relação à estrutura organizacional. Para captar recursos,
muitas organizações participam de editais do governo e estes exigem que as organizações
possuam Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) e que nomeiem um presidente,
impondo, mesmo que formalisticamente, uma hierarquia. Porém, há coletivos que são geridos
por um grupo de pessoas, havendo dificuldade de se nomear apenas um indivíduo. Isso fica
bem claro na seguinte fala: “o próprio Estado é presidencialista. (...) a estrutura do Estado é
imposta (...), não permite uma estrutura que não seja hierárquica (...) exige CNPJ”. Algumas
organizações que preferiram continuar atuando na informalidade utilizaram “CNPJ de
aluguel” recorrendo a organizações instituídas e tendo que repassar cerca de 10 a 20% da
verba captada para produtores culturais, conhecidos como “atravessadores da cultura”.
Ainda em relação à formalização, identificou-se um conflito entre a oralidade,
característica da cultura popular, e a formalização escrita da prática de gestão empresarial.
Segundo dados do MinC (2006, p. 70-71) e discussões nas oficinas, a maioria das
organizações utilizam reuniões, cartazes ou murais como principais veículos de comunicação
interna e verificou-se resistência categórica por parte de uma representante de um coletivo
popular que afirmou que “enquanto estiver à frente” da organização “jamais” usará algumas
técnicas de comunicação empresarial tais como a CI (comunicação interna) e o memorando.
Outro conflito encontrado diz respeito ao aspecto concorrencial do mercado. A
necessidade de captar recursos financeiros para sua sustentabilidade, posto que muitas
organizações não conseguem sobreviver com a comercialização de seus próprios produtos e
serviços culturais, tendo em vista que isto não é sua missão, tem levado-as a competir por
recursos escassos via patrocínio público e privado. Como as organizações que promovem a
cultura popular têm menor repercussão na mídia em comparação aos produtos culturais de
massa, seus projetos correm o risco de não ser patrocinados quando não oferecem garantia de
retorno mercadológico para as empresas. Diante da preferência do mercado em patrocinar
grupos já consagrados e da dificuldade encontrada pelos grupos iniciantes em obter
patrocínio, muitas organizações estão utilizando os pressupostos e ferramentas do marketing
cultural para “aprender como vender seu peixe”. Todavia, enquanto alguns representantes de
organizações vêem “a concorrência como um ponto positivo", outros se recusam a tratar as
demais como concorrentes por entender que “têm que ser parceiros”. Neste aspecto, percebeuse uma resistência mais forte nos grupos de Afoxé que se recusam até a participar de
concursos durante o carnaval promovidos pela prefeitura municipal para receber verba de
subvenção: “a gente não participa de liga ou campeonato porque somos irmãos. Eu não posso
ficar competindo com você, se você precisar de meus instrumentos, roupas eu te empresto, te
dou”.
De modo geral, percebeu-se que associações, centros e ONGs apresentam tendência de
adotar com menos resistência preceitos do management enquanto que os grupos de maracatu,
afoxés, por exemplo, demonstram maior resistência e utilizam práticas mais informais e
espontâneas de gestão. Tal resistência sinaliza outras práxis organizacionais alternativas ao
modelo empresa que não consistem em mera aplicabilidade do conhecimento científico da
administração, funcional à sociedade de mercado capitalista, mas contesta o modelo empresa
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imposto pelo sistema e busca outros modos de organizar pertinentes às peculiaridades e
interesses de organizações da cultura popular, como será discutido na seção a seguir.
Problematizando a transposição do Management para organizações da cultura popular
A adoção de técnicas gerenciais de empresa por parte de organizações substantivas é
uma idéia constantemente veiculada pela mídia e defendida por vários acadêmicos como
caminho privilegiado para a modernização do terceiro setor em geral, e do campo cultural em
particular. Todavia, como alerta Cunha (1997 apud DELLAGNELO, 2004, p. 7), há perigo
potencial em “transplantar de forma acrítica os métodos e procedimentos de gestão, calcados
na razão instrumental, para o âmbito de organizações que cultivam objetivos estranhos à
lógica do mercado” visto que as técnicas e ferramentas gerenciais carregam em si
pressupostos como pragmatismo, produtividade, cálculo constante entre meios e fins,
eficiência, competitividade, individualismo, etc., que podem trazer distorções à natureza das
organizações substantivas e desvirtuar sua ligação com transformações sociais mais amplas.
Assim como pode comprometer a sociabilidade entre seus membros, levar à perda de
identidade e à mercantilização da cultura.
A produção empresarial da arte “popular” – qualquer que seja a orientação
ideológica e política de seus responsáveis – retira-lhe duas dimensões sociais
fundamentais. Alterando data, local de apresentação e a própria organização do
grupo artístico, ela transforma em produto terminal, evento isolado ou coisa, aquilo
que, em seu contexto de ocorrência, é o ponto culminante de um processo que parte
de um grupo e a ele retorna, sendo indissociável da vida desse grupo. Os gestos,
movimentos e palavras, em que pese todo o aperfeiçoamento técnico possível,
tendem a perder seu significado primordial. Eles deixam de ser signos de uma
determinada cultura para se tornarem “representações” que “outros” fazem dela
(ARANTES, 2007, p. 19-20).
No Brasil, a institucionalização das leis de incentivo à cultura foram um divisor de
águas na organização da cultura (BRANT, 2004; RUBIM, 2005). As atividades de organizar e
produzir cultura - antes um conjunto indiferenciado que abarcava simultaneamente, de modo
inespecífico, diversas dimensões, não havendo fragmentação entre elas - passaram a ser
distintas, especializadas e profissionalizadas em decorrência do processo de complexidade da
sociedade e do sistema cultural (RUBIM apud RUBIM, 2005, p. 16).
Até os anos 1990, os gestores culturais eram autodidatas e construíam suas práticas
organizativas e elaborações conceituais a partir de experiências no cotidiano do trabalho, do
exercício prático da atividade. Desde então, artistas e produtores culturais que antes
afirmavam não entender “muito bem dessa tal coisa de negócio” e que mesuravam os
resultados no “tom abstrato dos aplausos”, nos “olhos que enxergam a natureza humana”, nos
“ouvidos que reencontram seus sons ancestrais”, precisaram transformar essa experiência
sublime em capital e em valor agregado e hoje se denominam “profissionais da cultura”
(MARTINEZ, 2004 apud BRANT, 2004, p. 7).
Para fundamentar a problematização da transposição do management para
organizações da cultura popular, é preciso fazer distinção entre o significado substantivo e o
significado formal da organização, fato negligenciado pela teoria da organização, e retomar as
categorias de racionalidade instrumental e racionalidade substantiva como reelaboradas por
Ramos (1981).
A organização formal orienta-se pela razão instrumental que toma o mercado como
referência para ordenação da vida social e pessoal pautando-se no utilitarismo e pragmatismo.
A organização econômica é um artefato social fundado em cálculos entre meios e fins;
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projetada deliberadamente para atender ao imperativo da acumulação de capital, expansão das
capacidades do sistema de mercado e maximização dos recursos e lucros; possui regras
operacionais mecânicas, normas funcionais de conduta e comunicação, critérios quantitativos;
e transforma o homem em uma criatura que age de acordo com o ethos utilitário e exerce
atividades mecanomórficas (RAMOS, 1981, p. 134-135).
Já a organização substantiva é guiada pela racionalidade substantiva assente na psique
humana e conduz à auto-realização, auto-desenvolvimento e emancipação do ser humano.
Embora possa exercer funções econômicas, não tem o lucro como prioridade (RAMOS, 1981,
p. 178). Nesta proposta de vida associada, a interação simbólica constitui o principal
fundamento para relações interpessoais; as ações e atitudes são definidas a partir de um plano
de reciprocidade de perspectivas; há grande tolerância a ambiguidades; as comunicações entre
os indivíduos se fundamentam no livre fluxo da experiência direta da realidade (Ibid, p. 129).
As finalidades da vida humana são diversas e só umas poucas pertencem,
essencialmente, à esfera das organizações econômicas formais (RAMOS, 1981, p. 125). O
comportamento administrativo é uma conduta humana condicionada por imperativos
econômicos, sendo intrinsecamente incompatível com o pleno desenvolvimento das
potencialidades humanas (Ibid, p. 135). A existência social e individual não pode ser
explicada apenas segundo categorias mecanomórficas (Ibid, p. 128).
O homem tem diferentes tipos de necessidades cuja satisfação requer múltiplos tipos
de sistemas sociais que podem ser categorizados e ter suas condições operacionais peculiares
formuladas. Os interesses humanos correspondentes a cada tipo de sistema social devem ser
propriamente considerados como tópicos do desenho organizacional (RAMOS, 1981, p. 135).
Reconhecendo que “as organizações formais não constituem o cenário apropriado para
a desalienação e auto-atualização das pessoas” (RAMOS, 1981, p. 83), cabe questionar “por
que permitir que as regras operativas das organizações formais condicionem as necessidades
dos cidadãos?” (Ibid, p. 80).
A organização empresarial não pode ser considerada um modelo para todas as formas
de organização. Derivada do latim modulus, a palavra modelo refere-se a molde, forma.
Apesar de empregada em diferentes contextos com significados diferenciados, implica certa
noção de organização e ordenamento de partes que compõem um conjunto. Em linguagem
simples um modelo pode ser definido como aquilo que serve de exemplo ou norma em
determinada situação. A existência de um modelo indica a predominância da forma sobre os
desejos, intenções, motivos, funções e objetivos, os quais tendem a ficar subordinados à
modelagem adotada. Na cópia e reprodução de um modelo, de modo geral, o olhar recai sobre
o como, que é mais facilmente observável, e não sobre o porquê ou para quê, já que respostas
a essas duas interrogações não se encontram pelo simples olhar ou observação direta
(FERREIRA et al., 2006, p. 18-19).
Prioriza-se nela a forma, e não a função. Sobrepõem-se normas e procedimentos a
objetivos. O adjetivo supera o substantivo. (...) se dá maior importância ao como, e
não à missão da organização e à qualidade de bens que lança no mercado ou serviços
que presta a cidadãos e comunidades (FERREIRA et al., 2006, p. 19).
Entende-se que ao serem submetidas à razão instrumental, as organizações da cultura
popular acabam por desempenhar uma função de manutenção das normas sociais do sistema
hegemônico e de conformidade com o status quo.
A organização entendida nos moldes de empresa - orientada por critérios de eficiência
e eficácia, hierarquizada, com estrutura formal e profissional, dentre outras características não é a única forma possível de organização das atividades do cotidiano, nem tampouco uma
forma útil e acessível a todos os atores sociais com vontade de intervir na sua própria
7
realidade (CARVALHO, 2009, p. 6). Organizar atividades de forma coerente com as
necessidades sentidas é um saber que pode e deve ser de domínio de todos (CARVALHO,
2009, p. 6).
O organizar é um ato elementar que faz parte da experiência humana de estar no
mundo. Segundo Arantes (1990, p. 78), a organização é o que há de mais abstrato e geral num
grupo humano, “é condição e modo de sua participação na produção da sociedade”.
Face a essa explanação, ressalta-se os conflitos com a natureza e aspectos substantivos
dos coletivos populares que consistem em agrupamentos voluntários de pessoas, sem fins
lucrativos, visando promover a cidadania por meio da cultura popular prezando pelo seu valor
simbólico.
Considerações Finais
Apesar de vivermos um tempo em que o gerencialismo de mercado é apresentado
como uma utopia em realização que não permite pensar em alternativas, existem experiências
que são exemplos claros de uma busca por outros modos de pensar a organização “fora dos
limites possíveis” da lógica empresarial onde se quer firmar a aproximação de práticas
administrativas cotidianas a princípios mais substantivos que lhes dão a base de sua
associação, podendo constituir-se em “formas não gerenciais de convivência” nas quais outras
utopias possam ser os pressupostos para outras formas de produzir o organizar (MISOCZKY
e VECCHIO, 2004, p. 11-12).
A noção de que toda a atividade social é melhor organizada quando organizada sob a
forma de mercado tem sido crescentemente confrontada pelo movimento contra-hegemônico
(alter-mundialista) iniciado em Seattle em 1999 e a partir de 2001 com a realização do Fórum
Mundial Social (FMS) em Porto Alegre-RS. Iniciativas, movimentos e organizações, através
de vínculos, redes e alianças locais/globais, estão lutando contra a forma de globalização
neoliberal, mobilizados pela aspiração por um mundo mais justo e pacífico que julgam
possível ao qual sentem ter direito (SANTOS, 2008).
As formas de organização são criações humanas e construções sociais historicamente
situadas, não constituem fatalidades, não são naturais, nem eternas, podendo, portanto, ser
mudadas (ADLER, 2002 apud MISOCZKY e AMANTINO-DE-ANDRADE, 2005; SOLÈ,
2003). Apesar de o mundo empresarial estar instituído, disseminado e incorporado, não
obstante danos ético-político e ambiental causados, experiências em curso no campo da
alternatividade nos restituem a convicção de que não estamos diante de nenhuma fatalidade,
mas de fatos, situações e construtos históricos concretos passíveis de mudança.
Mesmo que a política cognitiva operada para disseminar a mentalidade de mercado e o
modelo empresarial nos faça crer ser inútil qualquer esforço voltado para a construção de
outros modos de organizar, importa ter consciência de que este desafio situa-se no campo das
possibilidades e não no plano do determinismo. Por mais dominante que a sociabilidade do
mercado seja, ela não elimina a emergência de experiências e práticas organizativas fecundas
e credíveis ao instituído.
Espera-se que o presente trabalho, fruto de uma pesquisa em andamento, suscite
discussões e estimule novos estudos que venham a contribuir para a criação de um corpus de
conhecimento específico para a gestão de organizações da cultura popular, a partir das
experiências de seus participantes, tendo em vista que as bases e conceitos das teorias
organizacionais são todos fundamentados na concepção de empresa (SOLÈ, 2003, p. 7).
Diante de sua incapacidade de ultrapassar a hiper determinação das estruturas e a
institucionalidade, as teorias organizacionais não reconhecem a dinâmica da construção do
organizar que parcela significativa da sociedade está realizando em seu cotidiano
(CARVALHO, 2009, p. 6).
8
Não obstante a relevância do tema, as atenções do campo da administração para este
fenômeno não têm sido muitas (LEÃO JR et al, 2001; CARVALHO, 2006). A maioria dos
trabalhos em administração não leva em conta as singularidades das organizações substantivas
e baseia-se em conceitos e instrumentos utilizados nas empresas públicas e privadas
(DELLAGNELO, 2004, p. 7).
A quase totalidade desses trabalhos baseia-se numa visão tradicional e unívoca da
gestão, a qual é importada das atividades econômicas lucrativas. Assim, nesses
textos recomenda-se que técnicas de planificação, estratégia, marketing,
contabilidade e diversas outras – utilizadas nas empresas privadas – sejam aplicadas
à gestão de empresas sem fins lucrativos, sem nenhuma preocupação com as
singularidades dessas últimas. (ANDION, 1998, p. 21)
O presente artigo é um convite à academia para suplantar a preponderante inclinação
da produção científica brasileira em administração de reproduzir temas e pensamento
americano (MACHADO-DA-SILVA, CUNHA e AMBONI, 1990; BERTERO e KEINERT,
1994 apud RODRIGUES e CARRIERI, 2001), transcender a servidão intelectual e condição
de copista e repetidor por meio da adoção de procedimento crítico-assimilativo (RAMOS,
1996, p. 105), e ir além da mera adaptação funcional de conceitos e ferramentas gerenciais ao
confrontar a visão estabelecida do mundo como mercado, da organização como empresa e do
ser humano como recurso.
Referências
ANDION, Carolina. Gestão em organizações da economia solidária: contornos de uma
problemática. Revista de Administração Pública. São Paulo FGV v.32, n.1, jan/fev, 1998.
BERTERO, Carlos Osmar; CALDAS, Miguel Pinto; WOOD Jr., Thomas. Produção científica
em administração de empresas: provocações, insinuações e contribuições para um debate
local. In: ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROGRAMAS DE
PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO, 22., 1998, Foz do Iguaçu. Anais... Foz do
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i
De início cabe salientar que os termos management (gestão) e administração são utilizados nesse texto como
sinônimos intercambiáveis como faz a grande maioria dos autores da área e como consta em dicionários de
negócios. Porém, alguns autores observam certa disposição de relacionar management com iniciativa privada e
administração com setor público, e outros fazem distinção de abrangência entre os termos (ver CHANLAT,
2000; DIAS, 2002).
ii
Assim como acontece com o conceito de cultura (LARAIA, 2008), muitos são os significados atribuídos à
“cultura popular” e bastante e heterogêneos e variáveis os eventos que essa expressão recobre. Remete a um
amplo espectro de concepções e pontos de vista (ARANTES, 2007, p. 8). Nesse estudo, considera-se cultura
popular os modos de pensar, criar, fazer, expressar-se, conceber o mundo e viver construídos dinamicamente
através da justaposição de elementos tradicionais herdados dos antepassados pela oralidade e sem ensino formal
e elementos do contexto sócio-cultural atual.
iii
I Encontro dos Pontos de Cultura de Pernambuco realizado pelo Ministério da Cultura (Minc) nos dias 01 e 02
de junho de 2007; I Encontro Sub-regional Nordeste dos Pontos de Cultura realizado pelo Minc nos dias 29 e 30
de junho de 2007; Seminário Internacional em Economia da Cultura realizado pela Fundação Joaquim Nabuco
11
(Fundaj) de 16 a 20 de julho de 1997; Palestra intitulada “Gestão e difusão cultural” ministrada pela autora em
23 de setembro de 2009 no auditório da prefeitura de Camaragibe-PE, a pedido do Ponto de Cultura Tecer.
iv
Curso Formação em gestão cultural para pontos de cultura promovido pelo Pontão Comuna S.A. de Belo
Horizonte que ocorreu em dois módulos, um presencial em Recife no período de 25 a 27 de março de 2009; e
outro à distância, no período de 30 de março a 02 de junho de 2009.
v
Conversê: plataforma digital desenvolvida pelo do MinC visando troca de experiências entre os Pontos de
Cultura de todo o Brasil; MAPSYS: base de dados também do MinC onde constam os projetos dos Pontos de
Cultura; Relatório do evento “Sustentabilidade para os pontos de cultura: troca de experiências” promovido pelo
Pontão UFPE em 21 de novembro de 2007; Relatório do evento “Da casa de Xambá à Rede de Resistência
Solidária: autonomia e exercício da liberdade na cultura” promovido pelo Pontão UFPE em 06 de maio de 2008.
12
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1 Resistência ao Management em Organizações da Cultura