A questäo da interculturalidade ENSINAR UMA LINGUA E TAMBEM SE DEDICAR A EXPLICAR SEUS TRACOS CULTURAIS. » porSimone Malaguti* termo intercultural foi no come^ou a redigir as leis que contro- cunhado primeiramen- lavam a entrada de estrangeiros no pais te nos Estados Unidos dos imigrantes^ onde diversas cultu- no as ras deveriam interagir pacificamente. duas guerras mundiais. periodo entre A enfase estava, entäo, nos processos Naquela epoca, o gover- de miscigena^äo e equilibrio social por 'Simone Malaguti e graduada em em Portugues e A l e m ä o pela Universidade de S ä o Paulo e Universität Freiburg na Alemanha, com mestrado na Universidade de S ä o Paulo e doutorado em Literatura e Cinema pela Universität Kassel, na Alemanha. Trabalha como tradutora, docente e assistente em projetos de PLE para editoras. 4 0 I Conhecimento Pratico I LINGUA PORTUGUESA meio de u m controle racial. Mais tarde, Portanto, sempre que se ensina uma no periodo da Guerra Fria, a ideia da lingua se estä ensinando cultura. A l i n interculturalidade voltou a ser tema na gua e aprendida dentro de contextos sociedade americana, mas com u m novo sociais e de uma forma o mais pröxima enfoque; o economico, e uma nova deno- do real da lingua-alvo, afimde trans- mina^äo, cross-cultural communication. m i t i r conhecimentos do cödigo cultural Nesse sentido, prestou-se ao desenvol- pertinentes ao conteüdo ensinado. C o m vimento de conceitos para negocia^öes e base nessa estrategia, alguns estudiosos de treinamentos de agentes e executivos argumentam ser necessärio encorajar os americanos que deveriam representar o alunos a serem analistas e interpretes de pais ou assumir cargos no exterior. Nos cultura (incluindo a materna), auxilian- anos 1970, a Unesco C\ passou a usar do-os no caminho para a analise e inter- ambos os conceitos em documentos e a preta<;äo intercultural em uma serie de aplica-los em projetos educacionais. situa^öes a ele estranhas. da globaliza^äo, O ensino de uma lingua estrangei- iniciada a partir da nova ordern econo- ra do ponto de vista intercultural näo mica nos anos 1980, a integra^äo p o l i - e, portanto, a simples transmissäo de tica, cultural e economica de diversas informa^öes sobre a cultura. A l e m do na^öes gerou a necessidade de uma co- objetivo p r i n c i p a l (o desenvolvimento Em decorrencia munica^äo mais intensa entre as c u l t u - das tradicionais quatro habilidades l i n - ras, for^ando o cidadäo a transcender o guisticas para comunicar-se na lingua- regional e o nacional para ter acesso ao alvo), trata-se de apresentar situa^öes desenvolvimento da economia globali- que auxiliem o aluno a reconhecer as zada. Nesse contexto, o conhecimento variaveis culturais, a entender como es- de pelo menos u m i d i o m a estrangeiro sas afetam o estilo de vida das pessoas e a compreensäo de certos valores bä- e, p o r u l t i m o , a a d m i t i r que a c o m u - sicos da sociedade plural tornaram-se nica^äo eficiente depende da maneira indispensäveis. como as pessoas pensam e agem. O termo interculturalidade passou a E m u m a das abordagens da pers- ser utilizado com mais amplitude ao se pectiva intercultural a questäo e enten- referir a fenömenos verificados nas mais der o que e valorizado e significativo na diversas areas, como na antropologia, na outra cultura. Muitas vezes, esse exerci- politica, na pedagogia, nas artes em ge- cio passa pela compara^äo com os prö- ral e na administra^äo de empresas. N o prios valores. Por exemplo, enquanto ensino de linguas, ele passou a ser inte- os americanos expressam c o m clareza grado como competencia ao metodo co- uma rejei^äo, p o r exemplo, "no means municativo, incrementando as reflexöes no!", o brasileiro f o r m u l a indiretamen- que ja vinham sendo feitas a respeito de te a nega^äo, muitas vezes evitando a lingua e cultura. palavra näo. A fräse Valeu! Mas, ama- LINGUA E CULTURA u m näo em resposta ä sugestäo Vamos nhä tenho que levantar cedol equivale a Como se sabe, o metodo comunicativo provocou uma mudan^a relevante no aprendizado de linguas estrangeiras ao se basear na linguistica pös-estruturalista e incluir a competencia sociolinguista n o ensino. E m consequencia disso, passou-se a considerar lingua e cultura como inseparaveis. ao cinema hoje ä noite? Como havia- mos mencionado no artigo anterior^, trata-se de considerar t a l atitude para alem do cliche que brasileiro e vago e NÜMERiS Pais dos imigrantes Os EUA säo conhecidos como o pais dos imigrantes porterem fortemente atrelado aos seus valores a tradicäo de imigrantes, geralmente atraidos pelas promessas do sonho americano. Entre 1920 e 1929, os EUA receberam um total de 4.295.510 imigrantes legais. Na decada seguinte, com a crise economica da Grande Depressäo e as leis antiimigracäo adotadas pelo governo norte-americano, esse nümero caiu para 699.375. Durantea decada de 1990, o nümero de imigrantes beirou a casa dos 10.000.000. POR DENTRC\ Unesco A Unesco realiza projetos e acordos de cooperagäo tecnica com orgäos governamentais, privados e organizacoes da sociedade civil. Esses projetos se beneficiam de vantagens institucionais que a instituicäo possui, como conhecimentos tecnicos e gerenciais e a capacidade de mobilizacäo social. No Brasil, a Unesco desenvolve projetos como Alfabetizacäo e Educacäo de jovens e Adultos, Educacäo Ambiental, Educacäo Cientifica e Tecnolögica, Educacäo Inclusiva, Educacäo Infantil, Formacäo de Professores eTecnologias para a Educacäo, entre outros. REGISTRJpS Artigo anterior Confira o artigo "Para poder ensinar o portugues como lingua estrangeira", na edicäo 18 da CONHECIMENTO P R Ä T I C O LINGUA PORTUGUESA. entender para qual valor o u aspecto cultural essa situa^äo aponta. O estudo pode ser estimulado, p o r exemplo, a p a r t i r de capitulos significativos da nnnhpr.irr.Pntn PratiCO I LINGUA PORTUGUESA I 41 7*Vi »r*.-, , - - histöria, manifesta^öes culturais, classi- pois tudo girava em t o r n o do senhor do cos da literatura, estudos sociopoliticos engenho. Ele protegia e cuidava de t o - ou expressöes linguisticas. dos seus subordinados. A casa-grande era u m ambiente agregador, pois nela l. REGISTR|pS Carta de Pero Vaz de Caminha A carta de Pero Vaz de Caminha dirigida ao Rei D. Manuel I, na qualo escriväo da frota de Pedro Älvares Cabral narra suas impressöes sobre o espago que posteriormente viria a ser chamado de Brasil, faz parte do Registro da Memoria do Mundo da Unesco. A carta e o primeiro documento escrito da histöria brasileira e, por isso, considerado o marco inicial da obra literäria no Brasil. 0 documento foi conservado inedito por dois seculos nos arquivos da Torre do Tombo, em Lisboa, e descoberto em 1773. RETRAT Roberto DaMatta Conhecido e respeitado antropölogo brasileiro, Roberto DaMatta e autor de livros como Carnavais, malandros e heröis, 0 que faz o brasil, Brasil? e Profissöes industriais na vida brasileira, entre outros. Eleeoquarto autor mais citado em trabalhos academicos de Ciencias Sociais no Brasil, aträs dos tres pensadores que formam os pilares da sociologia: Karl Marx, Max Weber e Pierre Bourdieu. DaMatta procura interpretar os dilemas easambiguidadesdo povo brasileiro a partirdo carnaval. O PROFISSIONAL DE PORTUGUES COMO LE circulavam brancos, mesti^os e negros. Ate viajantes eram recebidos nela, p o - Ha uma vasta bibliografia que versa dendo sentar-se ä mesa e d o r m i r em sobre os aspectos culturais brasileiros. u m cömodo. Em troca, todos deviam As obras podem auxiliar o profissional r e t r i b u i r ao senhor do engenho com a fundamentar formas de comunica^äo, obediencia e lealdade, o que estimulou atitudes especificas e häbitos linguisti- uma cos de brasileiros e portugueses. Ajudam das em troca de favores e de ainda a identificar e focar uma unidade C o n f o r m e Freyre, f o i justamente esse rede de relac^öes pessoais baseajeitinhos. cultural ideal, como representa^äo men- ambiente da casa-grande que c o n t r i - tal na diversidade cultural dos grupos b u i u para que a lingua portuguesa ga- sociais da Comunidade dos Paises de nhasse certa do^ura e vivacidade. U m Lingua Portuguesa. exemplo disso e a influencia africana A carta de Pero Vaz de Caminha^P e, por exemplo, u m importante documento intercultural de lingua portuguesa, pois em colocar o pronome antes do verbo, tal como me diga, tornando mais ameno o imperativo diga-me. registra como f o i o primeiro contato dos portugueses com os indios. Caminha Outra leitura indispensävel e Raizes do Brasil de Sergio Buarque de Holanda relata do ponto de vista do colonizador (1902 -1982). Nesse estudo, ele explica que esse encontro f o i breve e amigävel o hörnern brasileiro como o hörnern e que, apesar do barulho da arrebenta- cordial, aquele que se comporta de $äo do mar e do desconhecimento das maneira sempre amavel e simpätica e respectivas linguas, tupiniquins e por- procura se tornar rapidamente i n t i m o tugueses conseguiram se entender t r o - de alguem. Essa caracteristica cando sinais e presentes. Disso depreen- ser ilustrada n o tratamento social do demos que, mesmo em circunstäncias beijo na face, o uso do primeiro nome desfavoraveis e culturalmente diversas, em detrimento do sobrenome e uso do representantes de duas culturas empe- diminutivo. O antropölogo pode Roberto nharam-se para estabelecer u m diälogo DaMatta^ ve nessa cordialidade u m ou entrar n u m acordo. De todos os via- i n s t r u m e n t o que aplaca a impessoali- jantes europeus que viveram no Brasil, dade do Estado e o pragmatismo das foi o colonizador portugues o que mais leis nas rela<;öes pessoais. Em consequ- se adaptou äs dificuldades da nova ter- encia, a f i r m a que o brasileiro e educa- ra, como as diferen^as de clima e de ali- do aprendendo a näo fazer muitas per- menta<;äo. A flexibilidade do brasileiro guntas, uma vez que perguntar pode e por muitos considerada heranc^a desse ser agressivo, contrariando, p o r t a n t o , comportamento. a cordialidade. O que explica tambem, No livro Casa gründe antropölogo e senzala, o Gilberto Freyre (1900- 1987) fez uma a anälise do sistema que caracterizou a coloniza^äo brasileira a partir dos aspectos econömicos, p o l i ticos, religiosos e das rela^öes sociais deste ambiente. O modelo latifundiärio desenvolveu u m sistema paternalista, 4 2 I Conhecimento Prätico I LINGUA PORTUGUESA a aversäo do brasileiro a uma nega<;äo clara ou uma critica direta. Por o u t r o lado, a moral do senhor de engenho e a lex do mais forte ainda p r e d o m i n a m em muitas expressöes linguisticas, c o m o a conhecida pergunta Voce sähe com quem estä falando? saber mais). (vide box para * OS ASPECTOS CULTURAIS BRASILEIROS POR AUTOR 1 EM SUA ANÄLISE, MÄRCIA MALAGUTI RELATA TRACOS CULTURAIS DOS BRASILEIROS, RELACIONANDO-OS Ä 1 SUA ORIGEM HISTÖRICA. EIS AQUI 0 RESUMO OOS ASPECTOS POR AUTOR: Gilberte Freyre Sergio Buarque de Holanda Roberto DaMatta Estrutura social do latifündio Paternalismo Favoritismo Heranja do colonizador portugues e a relajäo "fntima" entre senhor e escravo Miscigenafäo e convivencia de antagonismos Plasticidade Convivencia de distäncias em diferentes esferas sociais Acomodajäo de contribuigöes de outras culturas na cultura brasileira Relagöes sociais permeadas pela lögica familiär Patrimonialismo Unidade com Pluralidade Abrasileiramento Dualidade Espfrito Emotivo Cordialidade Personalismo "Moral da Senzala" Favoritismo Heranja das oligarquias agrärias Falta de aptidäo para a racionalidade que o Estado de direito requer Hierarquia "Voce sabe com quem estä falando" Preconceito Abuso de poder Pouco questiona Horror de parecer ignorante Excesso de cordialidade Guerreiro Ramos Conceitualizagäo vaga de tempo Complacencia em relagäo äs desigualdades Procrastinagäo Determinismo Imediatismo Confusäo entre püblico e privado Formalismo Dualidade Distäncia entre prätica e regra Estrategia de relafäo com o mundo Antropofagia Familia suplanta lögica do Estado Sociedade prismätica Alfredo Bosi Formalismo Plasticidade do portugues Cultura tupinambä Interagäo no tempo e no espago de diversos elementos Roberto Schwarz Importagäo de modelos e modismos Ivana Goldstein Diversidade Pluralidade Präticas culturais inautenticas METODO ALEMÄO U m grupo de psicölogos e consultores alemäes desenvolveu u m metodo de trabalho interessante a partir desses e de outros aspectos culturais. O metodo e aplica- 1) descri^äo de uma situa^äo; 2) pergunta ao participante sobre uma atitude da situa^äo; 3) apresenta<;äo de possiveis do em treinamento intercultural para ale- respostas ä pergunta com a mäes que se prepararam para u m trabalho seguinte escala: plausivel, bem ou uma estadia no exterior. Ele foi adapta- provävel, pouco provävel, do para diversos paises, documentado em impossivel; livros e consiste em quatro etapas: 4) explica^äo de cada resposta. Conhecimento Pratico I LINGUA PORTUGUESA I 4 3 No livro sobre o Brasil, coloca-se, por exemplo, a situa^äo de u m jovem engenheiro que ira fazer u m estagio na filial SUGESTOES PARA PESQUISA SOBRE A CULTURA BRASILEIRA: brasileira e e logo convidado a passar u m •A CULTURA BRASILEIRA Autor: Alfredo Bosi Editora: Ätica Ano:1991 Päginas: 224 te, ja que o jovem ainda näo tem muita •CASA-GRANDE E SENZALA Autor: Gilberto Freyre Editora: Global Ano:2003 Päginas: 736 final de semana na casa de praia de u m colega. Pergunta-se o motivo do conviamizade c o m o colega. As alternativas säo a) O colega deseja conhece-lo melhor, pois trabalharä com ele; b) O colega deseja acelerar a integra^äo do jovem no ambiente brasileiro; c) O colega tem prazer em convida-lo e ganhar mais u m amigo; e d) O colega quer se mostrar a u m estrangeiro que vem de u m pais eco- •0 BRASIL BEST SELLER DE JORGE AMADO Autora: llana Seltzer Goldstein Editora: Senac Ano:2003 Päginas: 321 nomicamente melhor. E m seguida, hä a •RAIZES DO BRASIL Autor: Sergio Buarque de Holanda Editora: Companhia das Letras Ano:1995 Päginas: 220 cordialidade dos brasileiros, que no ge- •CARNAVAIS, MALANDROS E HERÖIS Autor: Roberto DaMatta Editora: Rocco Ano:1994 Päginas: 352 •ADMINISTRAQÄO E C0NTEXT0 BRASILEIRO Autor: Alberto Guerreiro Ramos Editora: FGV Ano:1983 Päginas: 390 •OPOVO BRASILEIRO Autor: Darcy Ribeiro Editora: Companhia das Letras Ano:2006 Päginas: 440 •QUE HORAS SÄO? Autor: Roberto Schwarz. Editora: Companhia das Letras Ano:1997 Päginas: 180 apresentac^äo dos motivos, pelos quais as alternativas säo mais ou menos proväveis e, entre elas, explica-se que a terceira alternativa e a mais plausivel. O motivo e a ral tem muito interesse em travar novas amizades e, por isso, se aproximam rapidamente de pessoas que acabaram de conhecer. E certo que as situa^öes e as suas interpreta<;öes säo elaboradas a partir do ponto de vista da cultura alemä, na qual, como no exemplo, alguem normalmente so recebe u m convite de u m colega apös alguns anos. B Ü B B B I Perspectivas de Profissionais Brasileiros que trabalham nos Estados Unidos Autora: Märcia Malaguti Säo Paulo. Universidade Presbiteriana Mackenzie, Dissertagäo de Mestrado defendida em 2007, 147 päginas. Formas de Solicitagäo, A f i r m a g ö e s e Respostas Dialögicas do Portugues Brasileiro In: Olhares em Anälise de Discurso Critica Autora: Regina Celia Pagliuchi da Silveira Livro digital do CEPADIC, UnB: http://www.cepadic.com/index.html Beruflich in Brasilien. Trainingsprogramm für Manager, C o m alguma adaptac^äo e criatividade em sala de aula e possivel aplicar esse Fach- und Führungskräfte. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 2005. metodo no ensino de Portugues como Lingua Estrangeira. Para entender deter- A interculturalidade no ensino minado aspecto cultural, pode-se ainda comunicativo de lingua estrangeira: dramatizar a situa^äo ou partir de enun- um estudo em sala de aula com ciados cliches, como Aparece lä em casa, leitura em ingles. Desesperar jamais, Autora: Angela Maria Hoffmann Walesko Dä-se um jeito, Tem que dar certo, Fazer o que pode, Depende, Curitiba. Universidade Federal do Paranä, Um minutinho, Dissertagäo de Mestrado defendida em 2006. Pode deixar, de müsicas, como Alegria, Alegria de Caetano Veloso, de livros, como Um Brasileiro em Berlim de Joäo Ubaldo Ribeiro, filmes ou cenas de novelas. Enquanto no discurso academico ha muitos artigos e estudos sobre o assunto, faltam no mercado livros didaticos ou u m kit de materiais voltados exclusivamente para o trabalho da interculturalidade no ensino de portugues para 44 * REFERENCIAS BIBLIOGRAFICA DO ARTIGO I Conhecimento Prätico I LINGUA PORTUGUESA estrangeiros. Fica a cargo dos membros da institui^äo de ensino o u do docente suprir essa lacuna. So näo vale usar m u i to o jogo de cintura e nem dar um jeito qualquer; e preciso pesquisar e estudar a literatura especializada e, em seguida, preparar o material de apoio. m