MARIA DO CÉU PEREIRA, CONTRIBUIÇÕES À EDUCAÇÃO, À POLÍTICA E À IMPRENSA NORTE-RIO-GRANDENSE (DÉCADA DE 1930) Isabel Cristine Machado de Carvalho – PPGED-UFRN. [email protected] Orientadora: Maria Arisnete Câmara de Morais - UFRN. E-mail: [email protected] Palavras-chave: Gênero; práticas culturais; educação. Esta pesquisa faz parte do projeto Gênero e Práticas de Leitura/CNPq que, entre seus objetivos evidencia a prática de mulheres, sejam professoras, literatas, jornalistas ou participantes ativas que contribuíram para a formação da sociedade letrada norte-riograndense a partir do século XVIII. Tal projeto é realizado na Base de Pesquisa Gênero e Práticas Culturais: abordagens históricas, educativas e literárias, coordenada pela professora Maria Arisnete Câmara de Morais. Tem como objetivo analisar as práticas educativas, jornalísticas e políticas empreendidas por Maria do Céu Pereira Fernandes, em Currais Novos, Rio Grande do Norte, na década de 1930. Na educação, evidenciamos sua atuação no Grupo Escolar Capitão Mor. Galvão; no jornalismo, através do periódico O Galvanópolis (19311932) e na política, onde se destacou, em 1935, como a primeira deputada estadual do Brasil, no Rio Grande do Norte. Para a realização desta pesquisa, buscamos subsídios teórico-metodológicos na História Cultural, que desloca sua atenção também para a história dos homens comuns, das mulheres comuns, preocupando-se com suas práticas culturais e suas experiências com o mundo. A idéia do objeto insignificante e menor não se refere de fato à extensão da figura estudada, e sim pela maneira como o historiador e a sociedade destacariam esse determinado objeto, uma vez que é comum priorizar apenas objetos considerados consagrados. Bourdieu (1989, p. 20) afirma que “a riqueza de sentido desse objeto menor aparece quando conectado a conexões maiores”, o que respalda esta pesquisa, pois a figura de Maria do Céu Pereira Fernandes proporcionou contribuições à educação, à imprensa e ao cenário político norte-riograndense. Essa concepção de fazer história abriu caminho para a construção deste objeto de estudo, evidenciando o desejo de registrar, as práticas educativas, jornalísticas e políticas de Maria do Céu Pereira Fernandes e sua vida cotidiana, revelando as configurações de uma sociedade, em particular a de Currais Novos, na década de 1930. Trazemos como uma das categorias de análise a temática gênero e as relações sociais configuradas durante o período. O conceito de gênero procura explicar as relações entre os sexos. Ele surgiu após anos da luta das feministas, pós década de 1970, e de reformulação de várias tentativas de explicações sobre a opressão das mulheres: Essa categoria foi introduzida no século passado, a partir dos anos 80, especialmente pelas feministas da área anglo-saxã, como um avanço sobre as discussões anteriores que se firmavam sobre a diferença entre os sexos e os 2 princípios masculino/feminino, passando ao largo da questão de poder que subjaz do foco masculino – androcentrismo- de quase todas as formulações teóricas e das iniciativas práticas concernentes ao tema homem/mulher. Não basta constatar as diferenças. É imprescindível considerar como elas foram construídas social e culturalmente. (MURARO; BOFF, 2002, p.17). A idéia de que existe uma construção social no ser mulher já estava presente há várias décadas do século XX. Porém, permaneciam as dificuldades teóricas sobre o surgimento da opressão das mulheres, sobre como aplicar a visão da opressão a elas no conjunto das relações sociais, sobre a relação entre essa e outras opressões, como, por exemplo, a relação entre opressão das mulheres e capitalismo. Não existia uma explicação que articulasse os vários planos em que se dá a opressão sobre as mulheres (trabalho, sexualidade, poder, identidade) e, principalmente, uma explicação que apontasse com mais clareza os caminhos para a superação dessa opressão. Nesse sentido, o conceito de gênero veio responder a vários desse impasses e permitir analisar tanto as relações de gênero quanto a construção da identidade de gênero de cada pessoa. O conceito de gênero foi trabalhado, segundo Faria e Nobre (1997), inicialmente pela antropologia e pela psicanálise, situando a construção das relações de gênero na definição das identidades feminina e masculina, como base para a existência de papéis sociais distintos e hierárquicos. Tal conceito coloca claramente, segundo as autoras, que o ser mulher e ser homem são como uma construção social e relacional, a partir do que é estabelecido como feminino e masculino do sexo biológico. De acordo com Duby e Perrot (1991), a partir da categoria gênero, busca-se construir uma história relacional que se interroga toda a sociedade e que é, na mesma medida, história dos homens. Permite trabalhar generalizações e particularidades, porque podemos perceber o significado de gênero na sociedade como um todo, assim como na experiência individual ou de um grupo. Desse modo, o que se pretende analisar são práticas enquanto representações e nelas as questões de gênero, com as diferenças e semelhanças, como também a compreensão histórica do papel da mulher na sociedade, para entender melhor a interação homem e mulher, segundo valores e interdependências historicamente constituídos. Nesse enfoque, as pesquisas sobre história de mulheres que contribuíram para a formação da sociedade letrada norte-rio-grandense, no século XIX e meados do século XX, são objetos de pesquisa que gradativamente se consolidam. Qual a contibuição que Maria do Céu Pereira Fernandes deixou para a educação, para o jornalismo e para a política norte-riograndense? Partindo de Maria do Céu Pereira Fernandes e da sua movimentação naquele espaço social, é possível evidenciar as diferentes formas como se dão as relações de interdependências entre os grupos. Em cada formação, as interdependências existentes entre os sujeitos ou os grupos se distribuem em séries de antagonismos, instáveis, móveis, equilibrados, que são a própria condição de sua possível reprodução. No centro das figurações móveis, ou seja, no centro do processo de figuração, se estabelece um equilíbrio flutuante das tensões, um movimento pendular de equilíbrio das forças, que oscila ora para um lado, ora para o outro. Esses equilíbrios de forças flutuantes incluem-se entre as particularidades estruturais de qualquer figuração. (ELIAS, 2001, p. 14). 3 Vinculamos, então, o nome dessa mulher à estrutura das relações que permeiam o seu contexto social, levando em consideração as mudanças que passava a sociedade seridoense naquele período histórico. Como então proceder nesta investigação histórica? Entendendo que o fazer historiográfico é um processo de acontecimentos situados e datados, buscamos analisá-lo a partir da percepção dessa realidade. Escolhemos uma direção e caminhamos para ela. Recolhendo informações através de permanentes questionamentos às fontes encontradas no caminho, construímos o texto. No decorrer do estudo, efetuamos o cruzamento das informações encontradas procurando respostas para as interrogações realizadas sobre o objeto estudado. A partir deste enfoque desenvolvemos uma pesquisa documental, utilizando como fonte de pesquisa os registros históricos encontrados nos livros e jornais da época, dentre os quais, destaco a coleção completa do jornal O Galvanópolis (1931-1932). De acordo com Capelato (1994, p.3), os jornais são fontes históricas, como também “manancial dos mais férteis para o conhecimento do passado, pois possibilita ao historiador acompanhar o percurso dos homens através do tempo”. A pesquisadora assinala, por sua vez, que os jornais oferecem vasto material para o estudo da vida cotidiana, tornandose material útil nas análises culturais, dentre eles, nos estudos sobre as condições de vida, relações e lutas sociais numa determinada sociedade. Utilizamos também fotografias e entrevistas, uma vez que a Nova História alargou, o tipo e o uso das fontes. Segundo Galvão (1996, p. 102), o crescente interesse pela investigação da vida cotidiana leva, necessariamente, “à busca de novos tipos de fontes, pouco explorados nos documentos oficiais escritos. Dessa forma, a fotografia, a pintura, a literatura, os depoimentos orais, entre outros, podem ser utilizados como fonte pelo historiador”. As fontes se revelam quase infinitas e os exemplos são muitos, pois são marcas do que foi, são traços, reminiscências, fragmentos, registros, vestígios do passado que chegam até nós, revelados como documentos pelas indagações trazidas pela História. Nessa medida, segundo Pesavento (2004), elas são frutos de uma renovada descoberta, pois só se tornam fontes quando contêm pistas de sentido para a solução de um enigma proposto. Elas são, portanto, uma construção do pesquisador e é por elas que se acessa o passado. Portanto, a pesquisa arquivística é de fundamental importância. Sem ela, essa história não poderia ter corpo nem forma. Para Nunes e Carvalho (1993), os acervos contêm informações inestimáveis e, muitas vezes, inéditas e necessárias ao cotejo e crítica de informações provenientes de outras fontes e da própria historiografia já produzida. A utilização de depoimentos orais possibilita dar continuidade ao passado no presente, oferecendo contato direto com os atores sociais, trazendo através da reconstrução dessas vozes o registro de visões distintas. Ao utilizarmos a oralidade como práticas metodológicas, temos preocupações que se articulam com historiadores e sociólogos, no que diz respeito ao confronto dos depoimentos com outras fontes, a complementação da documentação já existente, e também, tomando o relato como versão de um indivíduo integrante de uma coletividade. Nesta perspectiva, buscamos versões dos fatos, pressupondo a existência de lacunas espaciais e temporais, aceitando a subjetividade implícita no relato, tanto por parte do narrador, quanto do pesquisador. (CARVALHO, 2000, p. 50). Buscamos construir a trajetória percorrida por Maria do Céu Pereira Fernandes, traçando o seu perfil biográfico, estabelecendo relações com a configuração social em que 4 estava inserida. Segundo Bourdieu (1998, p. 190), “não podemos compreender uma trajetória sem que tenhamos previamente construídos os estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou, ou seja, não podemos entender uma vida por si só, desvinculada dos acontecimentos sociais”. Estabelecendo essas relações, percebemos que uma trajetória de vida não deve ser entendida como um percurso linear e estático. Portanto, vinculamos o nome de Maria do Céu Pereira Fernandes às situações que permeiam o seu contexto social, considerando as constantes mudanças ocorridas naquele momento histórico. Justificamos a escolha da década de 1930 porque é nesse período que encontramos vestígios das práticas realizadas por Maria do Céu. O fato de ter dirigido e produzido artigos nos jornais O Galvanópolis e A República; ter criado o primeiro colégio de sua cidade, o Ginásio Coronel José Bezerra, no qual lecionava francês e ter sido a primeira deputada estadual do Rio Grande do Norte são evidências consistentes que nos levaram a escolha deste objeto. Buscamos, portanto, através de suas práticas, mostrar à contemporaneidade as marcas de uma época de significativas transformações. O recorte histórico do presente trabalho é marcado por mudanças que passavam o país, a exemplo, das reivindicações que contemplavam melhores condições de vida, principalmente para as mulheres, por meio da regulamentação para o trabalho e o direito ao voto, a Revolução de 1930 e a ascensão de Getúlio Vargas, bem como a resistência das oligarquias locais a essas transformações que emergiam. Qual a contribuição de Maria do Céu Pereira Fernandes nesse contexto? Qual a sua atuação na educação, no jornalismo e na política norte-rio-grandense? Instigada na tentativa de responder tais indagações, é que nos propomos a desenvolver este estudo, que oferece sua parcela de contribuição à História das Mulheres no Brasil, especialmente no Rio Grande do Norte, ao reconstituir e tornar públicas as práticas culturais de Maria do Céu Pereira Fernandes, evidenciando sua participação nos movimentos culturais e educacionais participando efetivamente da vida social e política. Maria do Céu Pereira Fernandes nasceu no dia 06 de novembro de 1910, em Currais Novos, Rio Grande do Norte. Era filha de Olindina Cortez Pereira de Araújo e do comerciante Vivaldo Pereira de Araújo. Segundo Barreto (2003, p. 230), Sua mãe tinha características de liderança muito acentuada, sendo conselheira dos parentes e vizinhos. Tanto a mãe quanto o pai eram perspicazes e inteligentes, bondosos e prudentes. Tinham formação religiosa, sem ser piegas, mas com convicção e fé, além de caráter muito bem formado. Seu pai venceu na vida, adquiriu relativa fortuna, foi prefeito de Currais Novos, deputado estadual no Governo de Juvenal Lamartine. Fez o primário em Currais Novos, estudou com professores particulares, promotores, juízes, médicos. Lia tudo: o que era e o que não era permitido. O prazer pelo estudo e pela leitura sempre foram uma constante no seio familiar. Maria do Céu lembra que seu pai foi o grande exemplo e incentivador para os estudos. Eu lia muito com papai lá em casa, depois dos nossos jantares à mesa. Quando solteira, li as obras de Freud. Foi papai quem comprou para mim. Li porque meu desejo era a psiquiatria. Era o que eu pensava e o que eu queria, mas não deu certo (FERNANDES, 1997). 5 Do curso primário realizado no Grupo Escolar Capitão Mor Galvão, teve aulas com o professor e juiz Gilberto Pinheiro. Na ocasião, aprendeu português, história, geografia. Sempre disposta a aprender, Maria do Céu relembra seus primeiros momentos de aprendizado e leitura: “Lá (Currais Novos) não tinha mais o que aprender, mas fiquei estudando sempre. Eu sempre gostei muito de estudar e ler com papai. Passei a ter aulas também com quem chegava em Currais Novos e que sabia mais do que o ABC” (FERNANDES, 1997). Motivada pelo pai, um participante ativo na política local e nos movimentos religioso e literários da cidade, Maria do Céu, em 1924, aos 14 anos, vai para Natal cursar o secundário no Colégio da Imaculada Conceição. No educandário, dirigido pelas irmãs Dorotéias, aprendeu além do inglês, o italiano e o francês. Com a madre Cecília Barreto, fora dos horários da sala de aula, aprendeu italiano. Nunca estava satisfeita. Sempre buscava mais conhecimento. “Muita coisa eu aprendi muito particularmente, depois das aulas. Eu não me satisfazia só com as aulas, não! Eu gostava muito de estudar” (FERNANDES, 1997). Após concluir, em 1928, o Curso Técnico do Comércio (diploma de Perito Contadora), — embora desejasse cursar faculdade de Medicina — Maria do Céu, agora com 18 anos, retorna a Currais Novos e vai lecionar tanto no Ginásio particular Coronel José Bezerra quanto no Grupo Escolar Capitão Mor Galvão. Uma das entrevistadas, Maria Aliete Galvão Meira e Sá, presente na dissertação Um olhar sobre o ensino primário: o Grupo Escolar Capitão Mor. Galvão (1911-1927 Currais Novos/RN), apresenta Maria do Céu como sua professora de francês no Ginásio Coronel José Bezerra: Estudei no Ginásio Cel. José Bezerra nos anos de 1933 e1934. O Dr. Mário Moacir Porto era diretor e professor de Geografia. Ensinavam os professores Padre Benedito: História; Iracema Bezerra, Artes, Trabalhos Manuais e Português; Maria do Céu, Francês. O Ginásio funcionava à tarde. Era um ensino de boa qualidade, com excelentes professores. Depois fui estudar em Natal, na Escola Doméstica, em 1935 (MORAIS, 2006, p. 84). Suas práticas no campo da educação foram ainda confirmadas pelo seu filho, Paulo de Tarso, ex-deputado estadual, residente no Rio de Janeiro. Em seu depoimento realizado no dia 10 de setembro de 2007, o mesmo lembrou que sua mãe havia lecionado em Currais Novos, quando solteira. Segundo Morais (2006, p.144), a presença da mulher no exercício do magistério de Currais Novos intensifica-se a partir da criação do Grupo Escolar Capitão Mor Galvão, no ano de 1911 e, posteriormente, com sua instalação em prédio próprio no ano de 1927. Podemos mencionar que mais tarde, nas décadas de 1920-40, a coeducação da docência esteve a cargo de professoras, como também poetisa, Estephania Mangabeira, citada na obra de Wanderley (1922, p. 256). Rosa Cunha, Auta Gurjão, Ezilda Nascimento, Nenen Herôncio, Maria do Céu Pereira, Maria Isaura de Carvalho, Maria Isaura Pinheiro, Maria Antônia Pinheiro e Maria Laura Fontoura da Silva. Paralelamente à sua prática educativa, Maria do Céu Pereira dirigia O Galvanópolis, periódico que circulou em Currais Novos entre 1931 e 1932. Sobre sua prática jornalística, Maria do Céu relembra: Eu escrevia... até fundamos um jornalzinho em Currais Novos, O Galvanópolis. Fundei com papai e um outro amigo de papai. O primeiro 6 nome era Currais Novos, mas papai tinha muita vontade de mudar o nome de Currais Novos para Galvanópolis, porque foi fundado por um Galvão, que se instalou lá, abriu e fez os currais novos (FERNANDES, 1997). Embora fosse um órgão oficial do Currais Novos Futebol Clube (C.N.F.C.), o jornal acabou configurando-se como um dispositivo discursivo permeado de representações que adornaram o quadro cultural, político, econômico e social da cidade: Realçando os valores da nossa terra, cultuando as suas tradições gloriosas, seremos uma sentinela vigilante a pugnar com o maior denodo e altivez pelos seus interesses vitais. É o que prometemos e esperamos realizar (O GALVANÓPOLIS, 30/03/1931, p. 1). De acordo com Melo (1987), o jornal era dedicado à literatura, desportos e notícias. Era quinzenal e cobrava por assinatura anual seis mil-réis (6$000), semestral quatro mil-réis (4$000) e número avulso setessentos réis ($700). Circulou de 30 de março de 1931 a 15 de novembro de 1932, publicando ao todo 43 números. Os escritos de Maria do Céu Pereira registrados no jornal permitem ver as marcas de um determinado tempo condicionado às transformações que a sociedade brasileira vivia naquele momento histórico. Nos seus textos, registrados quase sempre na primeira página do jornal, identificamos sua preocupação em discutir o progresso da nação, a religiosidade, a condição feminina e a educação. Destacamos, respectivamente, os artigos relacionados às temáticas mencionadas: Comunismo, publicado no dia 7 de fevereiro de 1932; O atestado da religiosidade brasileira, registrado na edição de 11 de outubro de 1931 e Onde nosso campo de atividade, de 22 de novembro de 1931 e Livros, veiculado em 30 de agosto de 1931. Nesse último artigo, Maria do Céu assume, portanto, uma postura em defesa de uma cultura letrada. Comprometida em orientar a juventude de sua cidade, mostra-se preocupada com a relação desses jovens com os livros. Busca orientar e aconselhar seus leitores sobre a importância da prática de leitura dos bons livros, indispensáveis para a formação intelectual e moral. Dessa forma, Maria do Céu deixa no jornal vestígios de como se desenrolava a educação dos jovens. Com a direção de O Galvanópolis nas mãos de Maria do Céu, segundo Barros e Santos (2004), “assiste-se ao triunfo da vanguarda feminina transformadora, do seu papel marcante na vida social, política e cultural da sociedade curraisnovense”. Em seu texto, intitulado Porque não recusei, publicado no 1º número do jornal, em 30 de março de 1931, na primeira página, Maria do Céu apresenta aos seus leitores os motivos pelos quais resolve aceitar a direção do jornal: A bondade do povo de minha terra deu-me idoneidade para o honroso encargo que me quis confiar; viu-me asseosa para desempenhá-lo; criou em mim uma personalidade que está muito além do meu valor intrínseco, sob o nome de dever, combateu com a minha imperícia e venceu. Que me resta fazer? Aceitar a incumbência? Fi-lo. Ao povo do Galvanópolis, sobretudo aos que constituem o C. N. F. C., agradeço, do íntimo da alma o modo fidalgo com que me distinguiu, a bondade que será incentivo para a realização deste grande empreendimento. A confiança depositada pela população local, principalmente dos que fizeram parte do Currais Novos Futebol Clube, nos revela uma Maria do Céu como figura de destaque na sociedade. 7 Na minha infância, recordo de Maria do Céu como uma figura que se destacava em Currais Novos, possivelmente por influência do pai, grande liderança na comunidade. Uma jovem que, começando como estudante em Natal, acredito eu, vinha passar as férias em Currais Novos e participava dos movimentos sociais e dramatizações (BARROS, 2007). Puxando pelos fios da reminiscência de Genibaldo Barros, médico e ex-reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, a exemplo dos que foram acima transcritos, ele nos apresenta uma Maria do Céu de espírito libertário e bastante independente. A mesma percepção tem o advogado e jornalista Alvamar Furtado. No programa Memória Viva, da Televisão Universitária de Natal, gravado em 1983, ocasião em que a entrevistada foi Maria do Céu Pereira, Alvamar recorda a primeira vez em que a viu: Ainda estudante do ginásio do colégio Ateneu, fiz uma excursão à cidade de Caicó que terminou em Currais Novos. Na ocasião, fui destacado para realizar um discurso na praça da cidade. Era uma festividade, teve inclusive apresentação teatral. Após a minha fala, aparece-me uma jovem elegante que agradeceu em nome de Currais Novos. Fez um discurso belíssimo. Saí glorificado. Era dotada de grande inteligência e intelectualidade. Pude perceber, naquele momento, seu espírito de liderança. Espírito este confirmado pela própria Maria do Céu, no Memória Viva: Sempre fui ativa. Soube tirar proveito da província (Currais Novos). Quando jovem fiz teatro na cidade. Fazia teatro, viu! Cheguei a formar um corpo de baile. Criava para as meninas que me cercavam. Desenhava as roupas. Fiz roupas esvoaçantes, fazia as posições, a luz, a cor. Usava papel de seda colorido. Fazia um jornal e trabalhava com papai. Tal participação na comunidade, articulada com seu espírito de liderança, parecem ter sido decisivos e relevantes para seu ingresso na vida política. O convite foi efetuado por José Augusto de Medeiros, Juvenal Lamartine e por outros políticos do Seridó, entre eles João Medeiros, de Jardim do Seridó: Todos eles tinha a indicação do meu nome. Até Dinarte Mariz opinou. Ele era também do Partido Popular. Fui perguntar ao papai o que ele achava. Ele disse: eu acho que você deve aceitar. Aí eu aceitei. Meu namorado, na época, Aristófanes Fernandes, ainda não era casada com ele, também aceitou muito bem. Ele já era político e se entusiasmou. Já morava em Natal e estava começando seu comércio (FERNANDES, 1983). Quando casou, em 22 de junho de 1935, tinha sido eleita e diplomada. O casamento aconteceu em uma fazenda de Santana do Matos, município do Rio Grande do Norte. Aristófanes Fernandes, que pertencia ao mesmo partido, foi prefeito de Santana do Matos, deputado estadual e federal. Maria do Céu abraçou a causa defendida pelo Partido Popular, tendo que enfrentar, com isso, duras repressões que fizeram história aquela campanha eleitoral: 8 Organizados os partidos, foi iniciada a campanha eleitoral. Caravanas de ambos os partidos se deslocaram para o interior de estado, onde realizam comícios. Já no início da campanha, os jornais A Razão e O Jornal, ligados respectivamente ao Partido Popular e ao Partido Social Nacionalista, passam a ocupar suas páginas denunciando violências cometidas pelos adversários, o que será o prenúncio de um agitadíssimo clima que vai caracterizar toda a campanha eleitoral (COSTA, 1995, p. 34). Nesse período, Maria do Céu Pereira Fernandes, juntamente com outros nomes do Partido Popular a exemplo de Aldo Fernandes Raposo de Melo, Dioclécio Dantas Duarte, João Severiano da Câmara e José Augusto Varela, presenciou uma época de violência e assassinatos políticos, mas onde prevaleceu um forte ideal político: Era um ideal. Um ideal. Significava a entrada do regime democrático. Na época, sucediam-se os interventores. Queríamos ter vida própria. Escolhemos nosso governo. Era a independência. Poder respirar livremente (FERNANDES, 1983). Esta era a visão idealista de Maria do Céu a respeito do seu partido. Contudo, Costa (1995, p. 33) afirma que o Partido Popular nada mais era que a estrutura do velho Partido Republicano que havia dominado o Estado durante toda a chamada Primeira República. As oligarquias que haviam sido derrotadas em 1930 e que reagiram às interventorias tenentistas logo organizaram um partido a fim de disputar as quatro vagas a que o estado tinha direito. Esse partido recebe o nome de Partido Popular. O resultado final das eleições no Estado é anunciado no dia 16 de outubro de 1935. O Tribunal Superior Eleitoral divulga a vitória do Partido Popular, que elege 14 deputados estaduais contra 11 da Aliança Social. São eleitos três deputados federais do Partido Popular e dois da Aliança Social. Ainda neste mesmo dia, fica decidida a convocação para a instalação da Assembléia Constituinte para o dia 19 de outubro e o pleito do primeiro governador constitucional do Estado para o dia 29 de outubro de 1935. Vence Rafael Fernandes, pelo Partido Popular. Maria do Céu obteve 12.058 (doze mil e cinquenta e oito) votos. Torna-se, então, a primeira deputada estadual do Brasil, no Rio Grande do Norte. Pertenceu à Primeira Assembléia Constituinte. Em 1937, foi cassada pelo Estado Novo. Embora o período de imensa sublevação tenha ocorrido, principalmente, nas campanhas eleitorais, de acordo com Barreto (2003), Maria do Céu, durante seu mandato legislativo, foi várias vezes ameaçada de seqüestro, e tinha soldados guardando sua casa. Era respeitada até pelos colegas de outros partidos. Entre eles, Gil Soares, Raimundo Macedo e José Tavares. Seu primeiro pronunciamento foi a inclusão do nome de Deus na Constituição. Foi seu projeto a elevação de São Miguel à categoria de cidade. Com uma atuação política intensa, Maria do Céu contou inclusive com o apoio dos opositores na elaboração de seus projetos de Lei: Ah! meus projetinhos, eu já nem sei quando... contava até com os opositores, os do Partido Social (de Café Filho). Tinha muita coisa relativa assim aos mais necessitados, aos mais carentes e a religião também. O governo era 9 nosso, sancionava todos os projetos. É que éramos maioria. Éramos quatorze contra onze (FERNANDES, 1997). Encerrou seu mandato, após sua cassação, em 1937, com o golpe do Estado Novo. Deixa, então, a vida pública para de dedicar à família. Em 1960, passa a residir no Rio de Janeiro, somente voltando para Natal após a morte de seu marido Aristófanes Fernandes. Maria do Céu Pereira Fernandes faleceu, em 2001, no Rio de Janeiro, aos 90 anos. Verificamos diversas homenagens póstumas à sua figura. Por ocasião do seu falecimento, o então governador do Estado, Garibaldi Alves, decreta luto oficial de três dias. O texto do Decreto nº 15.440, de 10 de maio de 2001, evidencia sua contribuição enquanto precursora da participação da mulher na vida pública nacional e rearfirma sua presença marcante e de elevada significação humana e intelectual no contexto político e social do Estado. Em 2002, o Presidente da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Norte, deputado Álvaro Dias, através da Resolução nº 0037, denomina de Maria do Céu Fernandes o Espaço Cultural da Assembléia Legislativa. Dois anos depois, o deputado Robinson Faria, na condição de Presidente da Assembléia Legislativa do Estado, dispõe, através da Resolução nº 0029/2004, sobre a criação da Medalha do Mérito Social Maria do Céu Fernandes. Diante da atuação de Maria do Céu Pereira Fernandes, e partindo da sua movimentação nessa configuração, buscamos produzir a escrita desta história. Acreditamos que, ao apresentar a contribuição de Maria do Céu Pereira Fernandes na construção da sociedade letrada norte-rio-grandense, estaremos colaborando para a história da educação no Brasil, especialmente no Rio Grande do Norte, revelando as tensões e relações de interdependência próprios da sociedade brasileira. REFERÊNCIAS BARRETO, Anna Maria Cascudo. Mulheres especiais. São Paulo: Global, 2003. BARROS, Genibaldo. Sobre Maria do Céu Pereira Fernandes. Entrevista concedida à Isabel Cristine Machado de Carvalho. Natal, 08 set 2007. BARROS, Eva C. Arruda; SANTOS, Maria C. M. de. 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