UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
FACULDADE DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA DA LITERATURA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA LITERATURA
A FRAGMENTAÇÃO DO EU NO OCIDENTE APÓS O SÉCULO XIX E
SUAS EXPRESSÕES EM CONTOS DE MACHADO E LOBATO
Joel Theodoro da Fonseca Júnior
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação
em
Ciência
da
Literatura,
do
Departamento de Teoria Literária da Faculdade de
Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
para obtenção do título de Mestre em Letras.
Orientador: Prof. Dr. Ronaldo Lima Lins
Rio de Janeiro
2007
EXAME DE DISSERTAÇÃO
FONSECA JUNIOR, Joel Theodoro da.
Título: A fragmentação do eu no Ocidente após o século XIX e suas expressões em
contos de Machado e Lobato/ Joel Theodoro da Fonseca Junior. - Rio de Janeiro:
UFRJ/ 2007.
Orientador: Ronaldo Pereira Lima Lins
UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura,
2007.
Banca examinadora:
Prof. Dr. Ronaldo Pereira Lima Lins/ UFRJ - Orientador
Prof. Dr. André Luiz de Lima Bueno/ UFRJ
Prof. Dr. Raimundo Nonato Gurgel/ UFRJ
Suplentes:
Profª. Drª. Marta Alckim/ UFRJ
Prof. Dr. José Carlos Pinheiro Prioste/ UFRJ
Rio de Janeiro
2007
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
FACULDADE DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA DA LITERATURA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA LITERATURA
A FRAGMENTAÇÃO DO EU NO OCIDENTE APÓS O SÉCULO XIX E
SUAS EXPRESSÕES EM CONTOS DE MACHADO E LOBATO
Joel Theodoro da Fonseca Júnior
Rio de Janeiro
2007
3
FICHA CATALOGRÁFICA
FONSECA JUNIOR, Joel Theodoro da.
A fragmentação do eu no Ocidente após o século XIX e
suas expressões em contos de Machado e Lobato/ Joel
Theodoro da Fonseca Junior. - Rio de Janeiro: UFRJ/ 2007.
xi, 181f.; 30 cm.
Orientador: Ronaldo Pereira Lima Lins
Dissertação (mestrado) - UFRJ/ Programa de PósGraduação em Ciência da Literatura, 2007.
Referências Bibliográficas: f. 153-157.
1. Fragmentação do Eu. 2. Fin-de-Siècle. 3. Machado de
Assis. 4. Monteiro Lobato. 5. Contos. 6. Pós-Modernidade. I.
Lins, Ronaldo Pereira Lima. II. Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Departamento de Teoria Literária. III. Título.
4
“Por sua vez, Lobato nos fala mais à alma brasileira no sentido
interiorano da palavra. Seu Jeca Tatu, suas notificações de
cidadezinhas do interior, suas narrativas de elementos
folclóricos, mais tarde resgatadas em seus textos infantis e
juvenis: tudo era meio de expressar suas idéias. Falava muitas
vezes por parábolas e personificações. Outras vezes, utilizando
lendas e fatos de criação animal ou do universo natural, trazia à
baila situações das sociedades humanas, notadamente a do
Brasil. Num trecho de Sorte grande, que está no livro
Negrinha, Lobato, usando a figura animal, diz que nos
galinheiros também é assim. Quando aparece uma ave doente,
ou ferida, as sãs correm-na a bicadas – e bicam até destruí-la”.
Antonio Candido
5
Dedico este trabalho a minha esposa Roberta e a meus filhos
Gabriel e Rafaela, que acompanharam e estimularam meus
estudos em todas as etapas.
A meu mestre Professor Doutor Ronaldo Lima Lins, orientador,
educador e incentivador de meu crescimento acadêmico.
6
AGRADECIMENTOS
Ao Professor Doutor Luis Alberto Alves por toda atenção e
estímulos dispensados.
Aos Professores Doutores Eduardo Coutinho, Vera Lins e André
Bueno, cuja capacidade e gestão de conhecimento me permitiram
construir estes pensamentos.
A minha esposa e filhos pela compreensão e pelo estímulo.
A meus pais, pela torcida e pelos primeiros tempos de estudos
em minha vida.
A minhas irmãs Raquel e Margareth, pelo apoio inconteste.
A vultos brasileiros como Machado e Lobato, que provocam em
nós o orgulho de sermos brasileiros enquanto lemos suas obras.
A Deus que, em meio a todos os movimentos humanos, continua
sendo o mesmo.
7
RESUMO
O objetivo desta dissertação é analisar os episódios centrais e periféricos do período
que se convencionou denominar Fin-de-Siècle. Como ponto de maior interesse,
vamos estudar os efeitos diretos sobre as pessoas que viveram naqueles dias e nas
que vieram depois delas.
O ponto central desta dissertação é a notada fragmentação do Eu que se percebe no
homem ocidental desde os anos 50 do século XIX até os anos 20 do século XX.
Como elemento literário, foram escolhidos dois importantes autores brasileiros,
Machado de Assis e Monteiro Lobato e, de suas vastas obras, foram escolhidos
alguns contos para demonstrar como a influência dos episódios em questão permeou
a literatura como vínculo de narrativa do homem e seu tempo.
8
ABSTRACT
The objective of this thesis is to analyze the central and peripheral facts of the
period of time named as Fin-de-Siècle. As the most important topic, we will study
some of direct and non-direct effects over the people who lived these days and after
them.
The central point of this thesis is the well known Ego fragmentation that can be
noted and studied in the Western man after those days from the 50s of XIXth
Century until the 20s of XXth Century
As a literary study, two important Brazilian authors were chosen: Machado de Assis
and Monteiro Lobato. From their vast work, some of their short stories were also
chosen in order to demonstrate how could all the studied themes of this thesis be
visible through literature as a connection between the man and his era.
9
SUMÁRIO
RESUMO................................................................................................................ 8
ABSTRACT............................................................................................................ 9
SUMÁRIO ............................................................................................................ 10
Introdução ................................................................................................................. 12
Capítulo 1 - O século XIX - O tempo em que o homem mudou .............................. 22
1.1. Quando os absolutos deixaram de ser absolutos............................................ 24
1.2. O homem que não tinha mais certeza de nada: o Eu no Fin-de-Siècle.......... 28
1.3. Mudanças na esfera dos pressupostos............................................................ 30
Capítulo 2 - Breve resumo do pensamento ocidental em direção ao Fin-de-Siècle . 35
2.1. Liberalismo .................................................................................................... 37
2.2. Fé ................................................................................................................... 40
2.3. Cultura ........................................................................................................... 42
2.4. Política ........................................................................................................... 46
Capítulo 3 - O Fin-de-Siècle: um marco temporal e espacial................................... 53
3.1. O Fin-de-Siècle e o início do século XX ....................................................... 54
3.2. Ambiente Fin-de-Siècle ................................................................................. 58
3.3. Problemas de preconceito, exclusão e extermínio racial ............................... 61
3.4. A porta aberta para o capitalismo avançado de fins do século XX ............... 67
Capítulo 4 - A Literatura - esboço teórico e prático - de fins de século XIX e início
de século XX............................................................................................................. 74
10
4.1. A formação da leitura no Brasil - a partir do século XVIII ........................... 74
4.2. O início da literatura e da leitura no Brasil .................................................... 80
4.3. O pensamento brasileiro no início do século XX .......................................... 83
4.4. Conceitos gerais e brasileiros de literatura .................................................... 90
Capítulo 5 - Machado e Lobato. Vidas e expressões ................................................ 96
5.1. Relação entre Machado e Lobato................................................................... 97
5.2. Machado, seu mundo e suas percepções do homem fragmentado................. 99
5.3. A leitura de mundo e do Eu fragmentado de Lobato ................................... 122
Considerações Finais .............................................................................................. 146
Referências bibliográficas....................................................................................... 155
Textos impressos................................................................................................. 155
Textos eletrônicos ............................................................................................... 157
Textos adicionais recomendados ........................................................................ 159
Anexos .................................................................................................................... 160
Anexo 1: Paranóia ou mistificação? ................................................................... 160
Anexo 2: Tabela de comparação simplificada entre os fatos do mundo e os fatos
biográficos de Machado e Lobato, incluindo as bibliografias de ambos............ 164
11
Introdução
“Não será na forma que conseguiremos localizar os
elementos de uma ruptura profunda, a não ser se
utilizarmos o conceito sob uma ótica ampla. Até certo
ponto, assumir a indiferença, quando nenhuma
alternativa
parece
trazer
resultados,
significa
incomodar-se”.
(Ronaldo L. Lins. In: A indiferença pós-moderna)
Podemos afirmar que o homem passou por profundas modificações em sua forma de
ver o mundo e, sobretudo, em sua maneira de ver a si mesmo. A começar por
eventos de grande interesse para tais transformações ocorridos com maior
intensidade a partir de meados do século XIX, temos que, a literatura, bem como as
demais expressões humanas, tornou-se portadora dos novos modelos nos quais o
homem se viu inserido.
Especialmente interessa-me para este estudo o período que se convencionou
denominar de Fin-de-Siècle, no qual os pressupostos da expressão fragmentada do
Eu foram sistematizados mais que em todos os outros tempos da história humana.
Nesse período vemos os momentos de questionamento se abrirem de maneira
ostensiva. Muitas reflexões sociológicas, antropológicas e filosóficas foram então
absorvidas pelo homem comum em sua vida prática. As respostas também
12
começaram a ser buscadas de forma mais intensa a partir de então, com notadas
modificações nas Ciências, além da criação de novas modalidades científicas de
estudo do interior humano, como o que se deu com a Psicanálise.
Como não poderia deixar de ser, as artes e a literatura desse tempo e dos tempos que
se seguiram estão permeadas de todas essas questões. Especificamente no caso da
literatura, personagens, dramas, narrativas inteiras se fazem questionar sob a égide
de referenciais menos objetivos – ou sem referenciais quaisquer – na busca de
respostas que antes encontravam eco em pensamentos inquestionáveis, como os da
religião. As respostas que antes satisfaziam, mesmo sem comprovação da lógica
prática, agora não mais valiam para o homem, pois para tudo passava a haver a
necessidade de comprovação sistemática, ou, no passo seguinte a essa evolução,
múltiplas respostas poderiam apresentar várias verdades possíveis.
Como nossas atenções estão voltadas para uma época determinada na trajetória do
homem ocidental, é natural constatarmos que, no espaço de tempo que vai da
segunda metade do século XIX às primeiras décadas do século XX, o Brasil teve
expoentes ímpares em sua literatura. Nessa transição de épocas, destaco Machado de
Assis nos primeiros tempos e Monteiro Lobato nos últimos. Ambos os autores têm
seu valor inquestionado entre críticos e pensadores brasileiros e estrangeiros.
Eles não foram contemporâneos em suas expressões, mas sucederam-se no tempo.
Machado, (1839 – 1908), viveu o exato período em que as evoluções do pensamento
liberal e as convulsões que apontam para a fragmentação do Eu estavam em curso.
Ele foi testemunha viva, na sociedade brasileira, de todas as influências recebidas
13
diretamente da Europa, que significava para nossa terra o pólo de orquestração
social, política, filosófica e, também, artística e literária. Machado representa a
geração que testemunhou os episódios e deixou sua marca de observador registrada
através de seus textos literários.
Lobato, (1882 - 1948), vive a situação imediatamente seguida à de Machado. Ele
viveu a convulsão do início do século XX, com duas grandes guerras, o redesenhar
das fronteiras de antigos impérios europeus, o grande avanço tecnológico que se
iniciava, mas também viveu o mundo que tornava maior o abismo existente entre as
classes sociais no Ocidente. Tal abismo se tornava mais contundente em seus
significados, já que os movimentos humanos do período Fin-de-Siècle tinham
tornado aquele mesmo homem meio descaracterizado e com o Eu fragmentado em
um ser, paradoxalmente, mais esperançoso com relação à vida comum. Viveu
também o realinhamento das questões levantadas no século anterior, sendo que, em
seus dias, com algo de amadurecimento nas ações propostas.
Machado era perspicaz, humorado, por vezes cínico e constantemente irônico em
suas expressões. Lobato era direto, contestador e, interessante notar, conseguia falar
a crianças e interioranos da mesma forma como falava a eruditos. Mesmo assim,
não deixava de ser também irônico e mordaz em suas colocações. Da monumental
obra que ambos deixaram, interessam-me em particular alguns dentre os muitos
contos que ambos escreveram magistralmente. Textos mais curtos e mais objetivos,
os contos nos permitem ver de maneira mais rápida o que o autor quer dizer sobre a
14
tese e sobre a alma de seus personagens. Isso não diminui o valor literário do
gênero, pois é também verdade que a concisão é arte complexa.
Como elementos exemplificadores, temos que Machado nos deixou o conto O
espelho: esboço de uma nova teoria da alma humana, no qual retrata passagens em
que o Eu se acha de fato em fragmentos, bem à moda realista. “Cada criatura
humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha
de fora para dentro...”, diz Jacobina, personagem do conto, para o qual uma era a
essência interior, ou seja, como o próprio ser via a si mesmo, e outra era a percepção
exterior, ou seja, como as demais pessoas o viam. Concorda com isso Richard
Sennett em O declínio do homem público, ao entender que, em dado momento, após
o Fin-de-Siècle e após a crise do Liberalismo, as diversas classes de homens com
vida aberta ao seu semelhante passaram a viver de maneira ambivalente, com graves
preocupações em atuar diante das pessoas e dos grupos de interesse, em detrimento
até mesmo de suas convicções. Machado, mesmo em meio a sua grande forma de
escrita, permite-nos identificar objetivamente seus intentos em bem nos informar
através de seus textos. Era, assim, bastante didático no que queria mostrar ao leitor.
Lobato, por seu lado, fala mais à essência interior do brasileiro. O Jeca Tatu, as
cidadezinhas do interior que aparecem em seus escritos, os elementos folclóricos, e,
tudo isso junto em seus textos infantis e juvenis formavam o meio de expressar suas
idéias. Parábolas e personificações, em paralelo a lendas e fatos de criação animal
ou do universo real, traziam à baila situações das sociedades humanas,
principalmente a brasileira. Num trecho de Sorte grande, que está no livro
15
Negrinha, Lobato, usando a figura animal, diz que “nos galinheiros também é assim.
Quando aparece uma ave doente, ou ferida, as sãs correm-na a bicadas – e bicam até
destruí-la”. Completa depois, sem rodeios, dizendo que “em matéria de maldade o
homem é galináceo”. (Lobato, 1982, 171).
A determinação em perceber o Eu fragmentado em obras desses dois vultos da
literatura brasileira, particularmente nos contos, vem apoiada na percepção de que,
por trás da expressão literária, tanto de Machado quanto de Lobato, havia nítida
preocupação em deixar mensagens diretas ao brasileiro. Machado, cosmopolita,
amante do Rio de Janeiro, falou do que viu e viveu por aqui e do que leu de outras
partes. Lobato, empreendedor, homem vivido e viajado, falou de e para o interior e
para as crianças do Brasil, sendo que devemos entender que por detrás de caipiras e
crianças havia a fala ao adulto comum das grandes cidades brasileiras. Ambos
tocaram na ética e na eqüidade, cada um ao seu estilo. Ambos teceram críticas aos
desmandos e às mazelas de uma terra que ainda não olhava para si mesma com
olhos de quem poderia crescer não apenas em número, mas também em qualidade.
Aliás, diz Lobato que “um país não vale pelo tamanho, nem pela quantidade de
habitantes. Vale pelo trabalho que realiza e pela qualidade da sua gente”. Assim
registra num texto com o personagem Jeca Tatu, cuja aplicação seria comercial,
dando vigor ao lançamento de um produto farmacêutico, o Biotônico Fontoura.
(Disponível em: http://lobato.globo.com/misc_jeca.asp).
No caso dos dois autores, creio, há três influências fundamentais sofridas por eles. A
primeira é quanto ao tema: O Eu fragmentado passou a ser preocupação genuína de
16
todo ser humano após o Fin-de-Siècle. A maneira pela qual isso se demonstra varia
de autor a autor, no caso da literatura, mas o fato é que nunca mais se deixou de
perceber abertamente que havia algo além do que se expunha até então. Os autores
externam dessa maneira aquilo que sofrem como partícipes de uma sociedade em
transformação e ebulição, sendo que estão bem em meio ao processo em curso:
primeiro, Machado, contemporâneo dos movimentos europeus com reflexos diretos
no Brasil e, em seguida, Lobato, contemporâneo das alterações dos pólos de
dominação ocidental, ele mesmo entusiasta de seguir modelos mais evoluídos,
principalmente o americano. O homem, em meio a tudo isso, sofria bastante. A
sociedade enfermava e carecia de remédios. Os autores disso falavam em seus
escritos. Afastavam-se por vezes dos centros em que receberiam mais louros e
adentravam campos de questionamento nos quais seriam combatidos ou refutados.
Mesmo assim resolveram cumprir seus desejos de quase missão. Talvez não lhes
interessasse medir a ética ou o caráter do indivíduo, mas tratar do problema em si,
através de seus personagens, e chegar ao conhecimento do próprio indivíduo e à
educação da coletividade.
A segunda diz respeito ao modelo estrutural que seguiram por influência. Ambos,
Machado e Lobato, tinham referenciais de leitura européia e ocidental em geral, em
especial autores franceses e ingleses. Como diferencial em relação a outros grandes
autores de nossa literatura, embora não tenham sido os únicos a fazê-lo, encontra-se
o fato de eles terem trazido técnicas e conhecimentos de outras partes e de outras
literaturas nacionais para o ambiente de nossa literatura e, assim, terem sido mais
17
que capazes de falar aos seus compatriotas, os quais os entendiam perfeitamente.
Faziam literatura de alto nível, comparável à de qualquer outra parte, aos maiores
autores e às maiores obras. Utilizaram a versatilidade e a grande capacidade criativa
para falar coisa séria e profunda, sempre travestida de humor e agradabilidade.
A terceira influência notada, de certa maneira já mencionada anteriormente, é o
misto de nacionalidade, no sentido de apego ao que é brasileiro, com a observação
de vazio de sentimento de brasilidade aliado ao fato de ambos saberem que o
homem ocidental atravessava episódios críticos para sua formação. Falavam do que
viam e percebiam a pessoas que passavam pelos mesmos torvelinhos de identidade e
a pessoas que ainda viriam, que precisavam saber dos fatos e se precaver num futuro
que poderia ser melhor ou mais sombrio, dependendo das respostas alcançadas.
A menção e a leitura discriminada das três influências levam diretamente à hipótese
de que os contos de Machado e de Lobato tinham deliberadamente uma
preocupação com o indivíduo leitor e com o processo de cidadania brasileira que
estava em discussão. A fragmentação do Eu era elemento de percepção de ambos e,
de certa maneira, suas críticas e preocupações passavam por esse elemento então
recentemente observado. Um dos enfoques deste trabalho é perceber ainda que, a
partir disso, tanto em Machado quanto em Lobato, há uma leitura que vai além da
criação literária despretensiosa e sem atributos que não sejam apenas os literários.
Eles não o disseram abertamente, mas através de seus textos, seus contos e seus
personagens.
18
Basicamente, o objetivo é evidenciar que há uma nítida relação entre o estado do
homem cujo Eu se vê fragmentado e a expressão literária nos contos de Machado e
Lobato, cada um a seu modo e com sua particular habilidade.
A literatura é voz ativa de uma sociedade e, como tal, proclama fatos, anseios,
esperança e dor. O autor é a voz que se perpetua linhagens afora, sendo que, ao
registrar sua observação e sua opinião, ele o faz de modo particular, embora sob a
influência de sua comunidade, e referenciado por inúmeros fatos periféricos da
sociedade, muito embora tenha liberdade de expressão pela arte. Procuro demonstrar
neste trabalho que os autores em questão quiseram ir além de seus trabalhos com as
letras. Como parte integrante de seus tempos na história brasileira, ambos utilizaram
a arte literária para expressar aquilo que nem sempre se nota em primeiras leituras.
Nos contos, tanto de Machado como de Lobato, vejo uma síntese possível daquilo
que permeava seus pensamentos e suas preocupações. Suas esperanças aparecem
mescladas a constatações práticas do dia-a-dia de seu tempo. Personagens comuns,
extraídos da inspiração de vidas comuns que os cercavam representam toda uma
geração e seu comportamento.
O trabalho terá como objetivos principais: primeiramente, situar historicamente os
eventos que culminaram no que se convencionou denominar Fin-de-Siècle,
evidenciando os movimentos sucessivos ou paralelos que eclodiram naquele
período, seus resultados práticos no indivíduo e na coletividade e o rastro que
permanece até os nossos dias. Para tal, privilegio a leitura de textos como Viena
Fin-de-Siècle, de Carl Schorske; Amor líquido, de Zygmunt Bauman; Tudo que é
19
sólido desmancha no ar, de Marshall Berman; Pós-modernismo, a lógica cultural
do capitalismo tardio, de Fredric Jameson; O declínio do homem público e A
corrosão do caráter, de Richard Sennett; Ao vencedor as batatas, Que horas são? e
Um mestre na periferia do capitalismo, de Roberto Schwarz; As ilusões do pósmodernismo, de Terry Eagleton; A formação da leitura no Brasil, de Lajolo e
Zilberman e A indiferença pós-moderna, de Ronaldo Lima Lins.
Em segundo lugar, será objetivo inserir Machado de Assis e Monteiro Lobato no
contexto das mudanças do Fin-de-Siècle e como as opiniões expressas em seus
contos apontam para indivíduos centrados e atentos a esses episódios. Para isso,
utilizarei principalmente A educação pela noite e os dois volumes de Formação da
literatura brasileira, de Antonio Candido; Presença da literatura brasileira, de
Antonio Candido e J. Aderaldo Castello; Introdução à literatura no Brasil, de
Afrânio Coutinho; O espírito e a letra, de Sérgio Buarque de Holanda; textos
esparsos (ensaios, artigos e outros) desses e de outros autores.
No contexto do segundo objetivo, utilizarei os textos literários evidenciados neste
trabalho. De Machado de Assis, contos extraídos das obras Histórias da meia-noite,
Histórias sem data, Várias histórias, Páginas recolhidas, Contos fluminenses,
Papéis avulsos e Relíquias da casa velha. De Monteiro Lobato, contos extraídos das
obras Urupês, Cidades Mortas e Negrinha, além do livro Idéias de Jeca Tatu.
A análise aponta para a resposta à seguinte questão, que é a problematização deste
estudo: Os contos de Machado e Lobato indicam a percepção que ambos tiveram
20
desse homem cujo Eu era fragmentado. O que escreveram, no entanto, é meramente
descritivo ou prescritivo de soluções futuras?
Acredito numa contribuição aos estudos e à compreensão dos eventos que cercaram
a nossa história no período entre meados do século XIX e primeiras décadas do
século XX. Da mesma forma, acredito numa contribuição a uma releitura de alguns
dos contos de Machado de Assis e Monteiro Lobato. Ambos os autores são muito
visitados não apenas no Brasil, mas em muitas partes do mundo. Eles são, ainda
assim, fontes inesgotáveis de novas pesquisas, novos olhares. Esta é uma
perspectiva em que os coloco como porta-vozes de seu tempo, o que muito me
interessa, visto que, como escritores, são fotógrafos literários da sua época, sua
sociedade, suas crenças, sua visão de mundo e tudo mais.
Minha expectativa é de que este trabalho possa estimular novas pesquisas em áreas
diretamente ligadas aos temas tratados ou afins. O que disseram escritores desse
porte deve ser fator de constante leitura em múltiplas visões entre nós. Nas palavras
de Machado em O Espelho:
“Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora,
outra que olha de fora para dentro... Espantem-se à vontade, podem ficar de boca
aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o
charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluído, um
homem, muitos homens, um objeto, uma operação. (...) Está claro que o ofício
desta segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o
homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das
metades, perde naturalmente metade da existência (...) Agora, é preciso saber que
a alma exterior não é sempre a mesma...
- Não?
- Não, senhor; muda de natureza e de estado.”
21
Capítulo 1 - O século XIX - O tempo em que o homem mudou
“A vida é pura e severa, mas o caráter tem uma ou
duas cordas fraudulentas, a que só faltou a mão do
artista; nas coisas mínimas, mente com facilidade”.
(Machado, In: Galeria Póstuma).
Ao fazermos uma leitura ávida por compreensão e referência no texto de Schorske
(1988), é preciso lembrar sempre que o momento retratado por ele - ou seja, o
período que foi de meados do século XIX a início do século XX - era de grande
efervescência e muitos princípios de transformação que corriam em paralelo,
geralmente com alguma interligação.
Muitos movimentos nacionalistas começavam a se expandir por toda a Europa,
modificando conceitos e reformando idéias, bem como redefinindo paradigmas e
fronteiras. O Liberalismo, por exemplo, estava em crise conceitual e prática, com
nuances que não deixavam dúvida de que as mudanças eram por demais ríspidas,
com parcas possibilidades de alguém contemporâneo a elas poder perceber na
totalidade o que estava ocorrendo ao seu redor.
As diversas expressões de arte entravam, por um lado, em tempos de produção
fértil, como nunca antes imaginada, e, por outro, em crise intensa de sua produção.
A Ciência em geral sofria alterações também tremendamente significativas, com
rompimento de conceitos e princípios até pouco tempo antes aceitos como
22
axiomáticos. As idéias estavam sendo fragmentadas e as velhas categorias de
classificação de pensamento pareciam não mais se adequar de maneira a satisfazer
aos anseios populares e acadêmicos naquela virada de século.
Schorske (1988), em seu Viena Fin-de-Siècle, vem nos mostrar que em meio ao que
parecia uma tremenda desordem havia uma certa ordem que servia de elemento de
unificação, e isso se dava a partir de dois pontos básicos: a política e a cultura. O
Eu, a despeito de tudo o que ocorria, em meio ao caos organizado de idéias que
ainda buscavam caminho seguro a trilhar, era o ponto alto do desequilíbrio e da
fragmentação que vem até os nossos dias bater à porta do interior do ser humano
pós Fin-de-Siècle.
É claro que ele trata de um universo social delimitado, que é a cidade de Viena antes
e durante a virada para o século XX. Mas a Viena tratada por Schorske (1988) reúne
em si todos os elementos que ocorreram de modo semelhante no resto da Europa.
Na maioria dos episódios, em Viena, os fatos se deram de maneira concentrada e
mais intensa, servindo-nos de referencial para uma boa compreensão dos
acontecimentos mais gerais do Velho Continente.
Ao dizermos que o século XIX foi a época da história humana em que o homem
mudou, não queremos deixar transparecer que o mesmo jamais tinha mudado antes
disso. Queremos, sim, afirmar que as mudanças ocorridas ao longo daquele século e com as seqüências de nosso interesse nas primeiras décadas do século XX - foram
substancialmente profundas e de marcas que, cremos, não desaparecerão mais de
nossa história.
23
Pela agilidade de nossas empreitadas, é certo que voltaremos a experimentar
transformações profundas e penetrantes, mas todas elas terão obrigatoriamente de
passar pelos conceitos que absorvemos a partir do século XIX.
Muito do que foi consolidado desde então em nosso interior e em nossa sociedade é
a seqüência natural de nossa vida, sofrendo inequívoca influência daquilo que nos
sobreveio no passado. Mesmo que alguém possa particularmente discordar,
dificilmente poderíamos conceituar novos postulados sem nossos referenciais. Mais
cem ou cento e cinqüenta anos e alguém poderá escrever sobre o século XXI, o
tempo em que o homem mudou, sem a idéia de plágio sobre o que hoje se escreve de
nosso passado recente, mas tendo a firme convicção de que as próximas
transformações serão ainda muito mais intensas que as anteriores.
1.1. Quando os absolutos deixaram de ser absolutos
Até os dias que antecederam o século XIX não se pensava formalmente em questões
relativas. A verdade era verdade; a mentira era mentira. Os princípios do que era
relativo já existiam, mas os absolutos imperavam sem que coubesse a qualquer um
desafiar os seus postulados.
Talvez a grande diferença entre o que se vivia então e os nossos tempos é que a
mentira podia existir e, talvez, até coexistir pacificamente com a verdade. Mas uma
continuaria sendo mentira, e outra, verdade. A mistura conceitual não era algo que
se buscasse, ocorrendo furtivamente nas mentes. Os conceitos eram mais rígidos e,
por conseguinte, mais definitivos. Para os nossos dias, tal rigidez não faz sentido,
24
haja vista a relatividade com que se espera sejam analisadas todas as questões que se
nos deparam. Sobre a mentira a partir desse ponto de vista, diz-nos Lins:
A mentira funciona de tal maneira na gangorra das interpretações que, com
freqüência, a impressão inicial, frente à experiência, não ganha conotações de
delírio, o próprio delírio, com efeito, significando a verdade assumida e
reconhecida pela maioria. Isso explica a cegueira que, eventualmente, toma conta
das consciências, determinando convicções que, tempos depois, parecem
inconsistentes, quando não absurdas e desprovidas de sentido. (Lins, 2006, 10).
A mentira nos serve apenas como exemplo, não sendo o foco deste trabalho. Da
mesma forma que se deu com ela, deu-se com as demais relações de interioridade,
de afetividade, de ética e tudo o mais que cerca e dá vida ao ser humano como ser
social que é. Parece-nos lógico e bom convencer-nos de algo que surgiu dentro em
nós sem que saibamos exatamente como ou por quais razões.
Somente quando nos aproximamos do século XIX - e de maneira mais intensa a
partir do século XVII - as idéias fora de um contexto mais ortodoxo começaram a
fluir com mais liberdade, numa espécie de preparação dos meios de reflexão para o
que viria em seguida.
Mesmo com as diferenças entre teoria e prática, o homem até esses dias encontrava
um ponto de refúgio singular ao qual retornava todas as vezes que seus pensamentos
e as respostas deles decorrentes não o satisfizessem em suas dúvidas e em seus
anseios. Esse esteio era a religião, que no Ocidente, principalmente a partir da
Europa, tinha as cores do cristianismo, que apontava sempre para um caminho
seguro às indagações humanas.
25
No século XIX, o homem queria ter comprovações práticas das teorias que se
propagavam. A razão determinava que não bastava apenas dizer que o certo era o
certo, mas era preciso provar que assim o era. Com o passar dos anos, o que parece
ter sido mais rápido do que em outros séculos, até mesmo essa comprovação passou
a ser objeto de novos questionamentos, pois o que se comprovava para alguns
poderia não se comprovar para outros. A verdade, enquanto conceito, sofria graves
combates: eram dias em que a relatividade no pensamento ocidental tomava corpo e
começava a ser amplamente vivida de maneira geral na sociedade. Não apenas
pensadores, cientistas e filósofos, mas todo o montante da sociedade foi se
adequando a não mais viver com base em conceitos absolutos não comprovados, em
absolutos para os quais não se atestasse tecnicamente uma comprovação plausível.
Por esse tempo, o homem ocidental começa a dialogar com o fim dos absolutos,
com o fim das respostas previamente existentes. A partir de então, esse homem
corre contra si mesmo na expectativa de defender-se. Descobre-se um por dentro e
outro por fora. Pergunta sem saber a resposta, mas não cessa mais de buscá-la. O
racional cedia lugar a algo mais denso, mais psicológico, como entendemos ao ler
que
a cultura liberal tradicional tinha se concentrado sobre o homem racional, cujo
domínio científico sobre a natureza e controle moral sobre si deveriam criar a boa
sociedade. No nosso século, o homem racional teve de dar lugar àquela criatura
mais rica, mas mais perigosa e inconsistente, que é o homem psicológico. Esse
novo homem não é simplesmente um animal racional, mas uma criatura de
sentimentos e instintos. (Schorske, 1988, 26).
26
O Ocidente estava sendo preparado para o evento que se convencionou chamar Finde-Siècle. Como o termo francês nos mostra, tal evento trata dos passos que
culminaram com a passagem do século XIX para o XX. Não é apenas a virada de
um século para outro, mas alguns anos que a antecederam e outros tantos que a
sucederam. Como interesse de nosso estudo, esse período se estende de meados do
século XIX às primeiras décadas do século XX.
Esse homem estava se preparando a partir dali para uma nova etapa de sua
existência, uma etapa que continuava sendo gregária e social, mas que abandonava
paradoxalmente alguns dos pontos de destaque dessas características. Ele passava a
se descobrir sozinho consigo mesmo e com suas angústias, ainda que se encontrasse
imerso em verdadeira turba urbana. Só e totalmente só. Sofrendo de um isolamento
que o afunda em novas formas e novos tons de solidão. Ele não mais encontraria a
razão do compartilhamento, fechado em si mesmo e em suas dúvidas, conforme nos
relata Lins ao tratar da questão num dos mais interessantes trechos de sua obra
citada, a segunda parte do capítulo O tríptico da identidade moderna:
Uma nova solidão tomou seu lugar na sociedade dos homens, diferente do que se
vira antes, porque decidida a arcar com o seu peso, convencida da impossibilidade
de romper-se em direção à exterioridade. Trata-se, por conseguinte, de uma
solidão que leva à solidão, restringindo, cada vez mais, a comunidade capaz de
acompanhá-la. (Lins, 2006, 44).
Dessa forma, absolutamente certo de não mais ter certeza de nada, o homem chegou
ao Fin-de-Siècle.
27
1.2. O homem que não tinha mais certeza de nada: o Eu no Fin-de-Siècle
Estamos falando de um período de nossa história em que o homem estava por
encontrar novos rumos, mesmo que conscientemente nenhum desses rumos fosse
mais uma luz perene para seu caminho, pois o mesmo homem sabia haver optado
por não querer mais pressupostos permanentes em suas reflexões e em sua vida.
O Fin-de-Siècle estava por chegar. As idéias se mostravam generalizadas, sem foco
definido e, com as certezas desaparecidas, a fragmentação se mostrava como a única
coisa certa e concreta, por paradoxal que pareça. Os rompimentos não se deram
apenas em relação a axiomas de religiosidade ou comportamento, mas em todas as
áreas da humanidade ocidental foram percebidas rupturas profundas nos antigos
modelos. A Ciência não foi exceção a essa regra, bem como as artes, a vida em
coletividade e tudo mais que diga respeito ao homem simples e comum. Nesse
período, as caracterizações que dessem mais certeza sobre fatos do que as incertezas
apregoadas eram simplesmente contestadas, mesmo as definições mais comuns,
como Romantismo ou Iluminismo, por exemplo.
Mas foi também nesse mesmo ponto que algumas das mais importantes ciências
para o melhor entendimento do interior humano foram sistematizadas ou adequadas
à nova razão. Falamos das ciências da área psicológica, como Psicologia, Psiquiatria
e sua irmã mais nova, a Psicanálise. O intenso ambiente de agitação e transformação
aliado ao caos da transição entre o certo e não-certo formaram o esteio adequado
para os estudos de Sigmund Freud que, partindo de nova ótica, estabeleceu os
estudos que deram origem à moderna Psicanálise.
28
Esse homem sem mais certezas, cujo Eu se sentia inquieto e em processo de
fragmentação chegava à encruzilhada da história. No Fin-de-Siècle esse era o
homem: alguém sem certezas, alguém cujo Eu aguardava olhando para frente,
embora soubesse não poder parar e simplesmente aguardar o futuro. Fragmentado, o
Eu sentia-se agora na iminente missão de escrever a história de maneira inédita, sem
conhecimento prévio que lhe permitisse antever o que seria de si algumas décadas a
seguir. Ele estava no momento em que tentava descobrir quem era de fato, ou se
isso realmente era importante.
Um outro Eu parecia pulsar dentro dele. “Afirmar a alteridade do Eu, (...) implicava
multiplicar as possibilidades. Nada a ver com enfermidade mental do dilaceramento
de personalidade, estudada pela psiquiatria”. (Lins, 2006, 29). Como vemos hoje
mais claramente, era um ser que precisava não apenas se descobrir, mas precisava e ainda precisa -, sendo descoberto, ser tratado para melhor viver e conviver consigo
mesmo e com os demais a sua volta. Sua resposta parece ter sido uma pragmática
relação de indiferença que, se num primeiro momento parecia se direcionar apenas
ao outro, ao externo, depois se viu que também se voltava contra si.
Um indivíduo indiferente não sairia de seus embaraços para olhar e interferir no
exterior. Voltando para um "eu" que só se dobraria ao peso da angústia, não
possuiria disposição para mergulhar nas dificuldades alheias, por mais agudas que
se mostrassem. A tal ponto permaneceria anestesiado que não perceberia aquilo
que o ameaça em família, na pracinha ou no meio da multidão, partindo de um
conhecido ou de um estranho. Estaria incapaz de amor, de solidariedade, de
paixão. (Idem, 8).
29
Lins coloca essa relação como verdadeira anomalia, dizendo que, “nesse caso, é
como se uma rebelião das células tomasse conta do espírito” (Idem, 9). E completa,
ainda sobre o mesmo tema, dizendo que a “perturbação rouba a vontade de viver”
(Idem, 9). Este era, portanto, um homem abalado, um ser em reconfiguração. E
muito do que começou a lhe ocorrer por ocasião do Fin-de-Siècle faz parte do que
consolida hoje em nós.
Talvez a primeira das providências para minimizar seus esforços e tranqüilizar esse
homem sem certezas fosse uma mudança na base de suas reflexões, exatamente nos
seus pressupostos. A forma como o homem via o que se dava ao seu redor, ou seja,
a sua cosmovisão, já abalada pelas sucessivas alterações, precisava agora ser
redefinida, a fim de que os choques externos se tornassem menos intensos
interiormente.
Com a anulação dos velhos pressupostos das categorias de classificação até então
conhecidas, cabia ao homem do Fin-de-Siècle buscá-los novos sobre os quais
pudesse se apoiar em busca de suas novas respostas.
1.3. Mudanças na esfera dos pressupostos
Entendemos os pressupostos como o conjunto de idéias que compõem a visão de
mundo pela qual o indivíduo ou a coletividade se guiam. Há aqueles que o são
apenas em nível particular, que podem diferir dos que são comuns a uma
coletividade. Por exemplo, um cidadão muçulmano inserido numa determinada
coletividade cristã terá pressupostos diferentes, que certamente influenciarão suas
30
decisões e comportamentos, mesmo que conviva pacificamente e que tenha muitas
coisas em comum com as demais pessoas. Este trabalho não tem por objeto maior o
aprofundamento no que tange aos pressupostos, mas trataremos aqui de alguns
daqueles que foram alterados a partir dos eventos que envolveram o período de
nosso maior interesse de estudos.
Creio que reside na desestruturação dos pressupostos que norteavam o homem do
século XIX o ponto chave da também desestruturação e conseqüente fragmentação
do Eu, conforme vemos no seguir da história. Ora, o homem comum tinha as bases
sobre as quais pautava seu pensamento, mesmo quando não fosse imprescindível
recorrer ao intelecto. Havia uma gama de respostas disponíveis a partir dos
processuais religiosos, políticos, culturais, artísticos, intelectuais e em diversas
outras áreas da civilização ocidental que ofereciam franco atendimento às
necessidades de respostas imediatas. Essas áreas deveriam ser comungantes entre si,
ou seja, elas não deveriam funcionar de maneira estanque, mas a vida do indivíduo,
com reflexos evidentes na vida comunitária, deveria ter lastro de várias dessas áreas
para que a vida fizesse mais sentido.
Dessa forma, era de se esperar que a ética proposta por uma de suas esferas de vida
tivesse reflexos claros e evidentes nas demais. Era o caso aberto de um político que
não poderia sê-lo de forma autêntica se sua moral e ética individuais e privadas não
correspondessem ao que ele apregoava às vésperas de sua candidatura. No Ocidente,
até pouco antes dos eventos da crise do Liberalismo e da ida em direção ao Fin-deSiècle, a cosmovisão, ou os pressupostos que governavam vidas e consciências eram
31
os do cristianismo na maior parte da Europa. Esses mesmos reflexos também foram
bem percebidos nas Américas colonizadas ou recém-libertas de suas matrizes por
causa da forte e sistemática presença européia no continente, ora como colonizador
e povoador por imposição direta, ora pela imposição social e econômica.
Os pressupostos individuais ou coletivos, e é bom percebermos que em muito eles
se encontram no íntimo do próprio indivíduo, migraram em direção a um processo
no qual as esferas de ação passaram a se manifestar de maneira estanque sem que
isso representasse mais problemas na ordem de consciência. Resultados esperados
poderiam justificar ações intermediárias sem riscos maiores a uma carreira
parlamentar com horário fixo de funcionamento, a uma campanha militar
justificada, sem que se levassem em conta outros pontos de reflexão ou mesmo a
uma perseguição étnica, sem que isso causasse nenhum dano a outras esferas de
pensamento ou de consciência, fosse ela individual ou coletiva.
A vida privada estava a partir de agora totalmente despida das responsabilidades
públicas, enquanto a vida pública estava desnudada do Eu privado e familiar. A
alma tornava-se endurecida e sem calor de sentimentos ou de pequenas doses de
resistência frente a tamanha indiferença relacional. Esses parecem ser amparos de
sobrevivência para aqueles que se encontravam em meio ao fogo cruzado das
alterações de pressupostos, conforme bem nos diz Lins (2006).
As pessoas envolvidas têm dois caminhos: endurecer a alma, fingir que são o que
não são, ou resistir, minar com pequenas bombas caseiras o universo de calma
determinado pela sociedade. Logo se perceberiam os traços de hipocrisia no
quadro familiar do século XIX. (Idem, 156).
32
Aparentemente, tudo o que percebemos ao ler a respeito do homem de meados e fim
do século XIX parece haver se potencializado no homem dito pós-moderno. Talvez
a cimentação de passos seguidos automaticamente e sem tempo nem espaço para
reflexões mais profundas não lhe permitam pensar de modo mais detalhado sobre
sua realidade atual. Não temos qualquer estímulo interior para buscar o reparo do Eu
que se encontra fragmentado em nós, o que nos torna insensíveis com relação ao
outro e adormecidos, anestesiados, com relação a nós mesmos. Perceber a realidade
não tem sido capaz de nos fortalecer a ponto de buscar alternativa transformadora
que dinamize nossos sentimentos de humanidade.
Nas percepções que convergem para nós, ressalta a consciência da fragmentação
como um dado cada vez mais presente pelas formas assumidas pela realidade. Os
princípios da identidade, esgarçados pela dinâmica da indiferenciação em escala
internacional, comprometendo até mesmo as tradições de pátria e de
nacionalidade, transmitem uma sensação de desarmonia com os outros e consigo
mesmo. A única defesa contra isso implica um recuo para um eu desgarrado no
qual, sem outros pontos de contato, a pessoa se imagina mais ou menos segura.
(Idem, 225).
Assim, é difícil perceber se a vida com pressupostos estanques fragmentou o Eu do
homem do século XIX, se foi a fragmentação desse mesmo Eu que tornou tais
pressupostos algo diferente do que eram, ou se ambos se auxiliaram mutuamente,
por pura necessidade de equalização das percepções e das ações. Foi nesse trânsito
de pressupostos que o homem ocidental começou a definir novas linhas de ações
que correspondem a eventos e idéias que perduram até aos nossos dias, já em inícios
do século XXI. Aliás, a nova base de pressupostos, com esferas estanques, parece
33
acompanhar nossa existência até aqui, sem que percebamos claramente se - e
quando - isso sofrerá novas transformações substanciais.
Com a noção de alterações de pressupostos mais clara em nossas mentes,
entenderemos melhor a linha de pensamentos que governou a nova mentalidade
humana na segunda metade do século XIX e início do século XX, no ápice do Finde-Siècle.
No entanto, nosso pensamento não pode nem deve ser o de castigar o homem do
passado por ter construído a História conforme lhe vieram os meios para a construir.
É o que nos diz mais uma vez Lins:
O passado não guarda apenas revelações esquecidas; guarda valores, muitos deles
úteis, se fosse possível trazê-los à modernidade para esquentar, com um cobertor
de fraternidade, a frieza das nossas relações. (...) Deixaremos de culpar os grandes
e irreverentes criadores da segunda metade do século XIX e do século XX, como
se houvessem abusado da paciência em vez de cumprir um papel histórico. (Idem,
20).
34
Capítulo 2 - Breve resumo do pensamento ocidental em direção ao
Fin-de-Siècle
“Nos galinheiros também é assim. Quando aparece
uma ave doente, ou ferida, as sãs correm-na a bicadas
- e bicam-na até destruí-la. Em matéria de maldade o
homem é galináceo”.
(Lobato, In: Sorte grande).
A Europa do século XIX foi de uma incrível efervescência política, cultural,
científica, intelectual e de muitas outras áreas. As fronteiras ainda seriam redefinidas
algumas vezes, mas muito do que hoje tratamos por Europa, com seus conceitos, a
sua História e a sua contribuição à humanidade já estavam presentes e visíveis
naqueles dias. Quando queremos a melhor maneira de pensar a Europa de maneira
condensada e sintetizada para melhor compreendermos aqueles dias, podemos
recorrer a Carl Schorske (1988) e sua escolha de fazer de Viena de Áustria a melhor
amostra de tudo que ocorria em termos continentais.
Política e cultura andaram de mãos dadas nesse período de Fin-de-Siècle. Muitas
ações e realizações no campo das artes e do academicismo tiveram influência aberta
das estruturas políticas que regiam os momentos pelos quais atravessavam as
sociedades ocidentais mais desenvolvidas.
35
A influência, ou a mutualidade de interesses, ia desde uma obra de arte, como uma
tela, até um conglomerado arquitetônico que denunciava a presença de traços mais
afeitos a esta ou aquela tendência de pensamento.
Em A esperança, no capítulo O tríptico da aventura pós-moderna, Lins (2006) trata
do tema que lhe dá nome. Ora, o que nós, vivendo no que se convenciona chamar
pós-moderno, vemos ao olhar para dentro de nós? Conseguimos ver razão,
esperança, calor? Neste ponto, o autor questiona e traz experiências de outros
autores ao seu texto, a partir do qual temos uma visão sobre o reflexo de tudo o que
se dava em nível interior refletido em áreas exteriores, como música e artes em
geral. Chega a dizer que “o futuro, como um fantasma, insinua-se carregado de
possibilidades”. Mas, continua, “sem saber o que nos aguarda, sabemos, no entanto,
o que não queremos”. (Lins, 2006, 196).
O mundo seguia o seu percurso decepcionante, e era assim era retratado, a
despeito das luzes de diversas cores que porventura o iluminavam, de acordo com
quem segurava o foco, se de direita, se de esquerda. Pouco importava. O
importante, vê-se hoje, era que a vida se insinuava cheia de curiosidades e
valores. A resistência se mantinha, engajada nas formas de expressão e
responsável pela capacidade de retocar até o mais extremo desenho da tradição,
renovando-o e submetendo-o às discussões da atualidade. (Idem, 196,197).
Os tempos de Fin-de-Siècle eram de total inconstância de valores e conceituações, o
que fortaleceu imensamente o surgimento ou o reforço das ciências que estudam a
parte psicológica do ser humano, como a Psicanálise, conforme anteriormente
mencionado. A instabilidade no que crer ou em que postulados se basear fez do
homem do Fin-de-Siècle um homem solitário, mesmo quando em meio a multidões.
36
Repentinamente, cada qual parecia ter ganhado a liberdade ou, pelo menos, a
possibilidade de formular suas próprias crenças e sua própria fé, mesmo sem saber
exatamente como fazê-lo.
Vimos estabelecendo a idéia que o homem do Fin-de-Siècle era um homem com seu
Eu fragmentado. Seu pensamento, da mesma forma, encontrava-se em franco
processo de fragmentação. No entanto, isso não significa ausência de pensamento.
Pelo contrário, a fragmentação do Eu empurrou o homem a uma nova ordenação de
sua razão, de suas reflexões, agora com novos pressupostos e com uma nova visão
de esperança em relação a seu futuro.
2.1. Liberalismo
O Liberalismo não era um movimento recém-nascido quando o século XIX apontou
no horizonte. Podemos dizer que remonta ao século XVI e tinha por princípios
fundamentais assegurar as liberdades e direitos do indivíduo, além de ter em seu
bojo alguns processos de alerta contra possíveis abusos de poder. Isso se devia ao
fato de o Liberalismo ter surgido principalmente como reação de defesa social e
política contra uma seqüência de guerras sangrentas em que a Europa do século XVI
havia se envolvido, com destaque para a Guerra dos 30 Anos. Thomas Hobbes, John
Locke e Adam Smith são leituras indispensáveis para aquele que quiser se
aprofundar nesse período.
Quando chegamos ao século XIX, ou seja, 300 anos após o que acima foi
mencionado, o Liberalismo se depara com uma sociedade em ebulição, com
37
desmandos e confrontações políticas, além do que não se imaginava três séculos
antes: a revolução industrial e o conseqüente avanço da presença humana em
centros cada vez mais populosos. O Estado era freqüentemente instado a se afastar
cada vez mais das intervenções sociais e a deixar que o primitivo enfoque laissezfaire do Liberalismo se tornasse sua mola mestra.
Roberto Schwarz no capítulo Nacional por Subtração, de sua obra Que horas são?
(1989) dá-nos interessante posição sobre o Brasil da época, quando diz que, “no
século XIX comentava-se o abismo entre a fachada liberal do Império, calcada no
parlamentarismo inglês, e o regime de trabalho efetivo, que era escravo” (Schwarz,
1989, 29). Com isso vemos claramente algumas das posições defendidas neste
trabalho, quais sejam, sobretudo, a relativização dos preceitos de coerência, e o
Liberalismo sendo tratado como uma mera expressão de fachada, sabendo nós que
por interesses peculiares à geopolítica da época. Vemos a perfeita convivência de
um esquema de dualidades que muito se aproxima do que hoje é o comum de
determinadas esferas da vida pública.
Esse Liberalismo já repleto de remendos, mas que mantinha historicamente em si
algumas figuras doutrinárias axiomáticas não suportou viver mais que meio século
XIX. Ele jamais desapareceu em sua totalidade. A história mostra que suas bases
estão vivas quando vemos os modernos movimentos de Neoliberalismo que se
implantam - no todo ou em parte - em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil.
O Liberalismo não conseguiu avançar muito. Dizendo que a razão refrearia os
abusos, não encontrou mais eco numa nova conjuntura que havia retirado a base da
38
razão como era conhecida até então. Poderíamos perguntar em pleno século XIX o
que seria razão, o que seriam os excessos, o que representaria invadir o espaço
alheio sem demonstrar peso de consciência nem frear os impulsos.
Lins (2006, 29) nos alerta, ao falar dos problemas relativos à interioridade, que a
realidade, a despeito de tudo, continua a existir, e que “uma vez de posse da
verdade, a lógica determinava que o caminho em direção a ela conduzisse a uma
individualidade mais forte e, desta, a uma sociedade melhor e mais aceitável”. Com
isso, esperava-se, o ser humano migraria a uma situação de equilíbrio interior e
exterior em seguida à descoberta de suas próprias dificuldades e limitações. Mas,
como saber delimitar os papéis se os mesmos não mais poderiam ser delimitados
numa visão ampla, mas apenas no âmbito das liberdades individuais e relativas?
Como contribuir com o outro se o indivíduo ainda não descobriu como ajudar a si
mesmo?
Esse mesmo Liberalismo, a partir de certo ponto, não encontrou mais veio de
navegação entre os Estados europeus. Os governos queriam manter-se liberais, por
tradição ou interesses governamentais e partidários, mas ideologicamente isso não
era mais uma realidade assim tão ampla.
O Liberalismo, portanto, definhou progressivamente na primeira metade do século e
agonizou ao longo da segunda metade. Novas teorias para o Estado, para a política e
para a economia foram estabelecidas exatamente nesse último período,
enfraquecendo ainda mais a combalida doutrina liberal. O Socialismo, enquanto
pensamento sistematizado, surge nesse ponto da história e se mostra publicamente
39
de modo mais amplamente sistematizado através da escrita de Karl Marx. Via de
regra, o homem como o do Fin-de-Siècle não era mais um liberal, no sentido
político do termo, mas isso também estava por ser revisto no Ocidente. Fruto disso e
para permear a política, a economia e a sociologia, duas grandes correntes foram ali
consolidadas e serviram de disputas universais futuras: o Socialismo e o
Capitalismo.
2.2. Fé
O pensamento básico encontrado na Europa do século XIX e início do século XX
ainda é o cristianismo. E por esse tempo, os olhares das duas maiores correntes
cristãs do continente estavam voltados para além-mar, a fim de aproveitar o
caminho aberto pelas navegações e esforços coloniais de suas próprias nações em
novos locais dominados. Dessa forma, as missões cristãs encontraram novo fôlego
por mais de cem anos.
Internamente, a teologia cristã estava também inserida nos contextos do século XIX
e, como todo o demais da sociedade, estava rumando abertamente em direção ao
Fin-de-Siècle. Notadamente, os pensamentos reinantes no Ocidente influenciaram
não apenas artes, filosofias, culturas e modelos práticos da sociedade, mas também
tocaram profundamente no que era até então o ponto de base inflexível do
pensamento do homem ocidental.
Embora as doutrinas ortodoxas do cristianismo não tenham sido alteradas nem
revistas, é fato que novas correntes de interpretação surgiram, algumas delas dando
40
cores totalmente novas ao que era a idéia central de sua reflexão. O Liberalismo,
que tanto influenciou o homem até esse ponto da história, também tocou fundo na
Teologia.
Com a fragmentação do Eu no Ocidente, o que era axiomático tendia a desaparecer,
cedendo lugar à relatividade e à pluralidade. Na Teologia, o processo foi muito
semelhante, passando a se expandir rapidamente o conceito de não uniformidade
teológica, com múltiplas possibilidades interpretativas e com a relativização quase
total dos elementos doutrinais.
Na prática, o que se deu foi uma invasão da esfera cristã pela esfera cultural e
filosófica que estava em ebulição no Ocidente. Isso se tornou possível graças à
alteração de conduta e de pressupostos, em que o homem podia agir em esferas
estanques, sem interligações entre elas. Por não mais ser o centro das ações
humanas, o que permeava todas as demais, o homem ocidental isolou as ações e o
contrário se notou posteriormente, quando a fé passou a ser influenciada pelas
outras esferas. Podemos notar o que diz Lins: “É certo que, como observa Marx e
mais recentemente Marshall Berman, nos últimos séculos, tudo o que era sólido se
desmanchou no ar, tudo o que era sagrado se dessacralizou.” (Lins, 2006,18).
Assim era o pensamento religioso do homem ocidental cujo Eu se via desfigurado e
fragmentado. Um homem que agora não ouvia mais, porém dizia como gostaria de
crer. Mesmo que sua fé fosse depositada no transcendente e no sobrenatural, ele
agora a relativizava e se permitia crer ainda, mas em novos moldes.
41
2.3. Cultura
A Europa do século XIX era uma verdadeira fábrica de cultura que trabalhava todo
o tempo e a todo vapor. As mais diversas personalidades dos mais variados
espectros das expressões artística e cultural humanas habitavam o Velho Continente
e dali propagavam suas inquietações e suas esperanças através de suas
manifestações culturais. Muitos pensadores europeus estavam em plena atividade de
reformular as próprias tradições nas artes e na cultura em geral, chegando a
estabelecer escolas de expressão e de pensamento em muitas delas, como História
da Arte, Literatura e Música, num intervalo de tempo muito curto. A ascensão e
queda do Liberalismo parece ter sido de grande auxílio para o desenrolar de todo
esse processo.
Schorske (1988) analisa as ligações entre política e cultura que se estendiam através
da arquitetura modernista dos suntuosos edifícios vienenses onde percebia forte
influência dos projetos liberais, das obras de artistas influentes como Klimt,
Schönberg e Kokochka. Vemos que, para esse pensador, política e cultura
condensaram o veio de coerência e unidade reflexiva em meio a um processo
caótico de vazios e ausências. Vemos também que aquilo que ele percebia em Viena
poderia ser transposto para o restante da Europa, haja vista a condensação que se viu
na capital austríaca naqueles dias.
O Fin-de-Siècle foi um período atípico para várias razões e muitos postulados
humanos. Cremos ser realmente estranho englobar numa mesma praça de análise
questões tão afastadas quanto religião e racismo, por exemplo, mas elementos assim
42
poderiam aparecer bastante integrados com a cultura que entrava em colapso, pois
ela estava por sofrer alterações permanentes e irreversíveis, a partir das quais os
moldes modernos e pós-modernos encontraram vincos de sustentação.
Entendo aqui por cultura todo o conjunto de códigos que podem reinar sobre os
procedimentos humanos numa sociedade como, por exemplo, a que vislumbramos
no Fin-de-Siècle. Em todos os momentos das sociedades podemos perceber sua
cultura, seja na forma de trabalho, no comportamento das pessoas, nas suas crenças,
em seus valores metafísicos (ou na ausência dos mesmos), nas suas formas de
expressão, etc.
Uma das mais objetivas formas de expressar a cultura de uma sociedade talvez seja
a expressão pictórica ou expressões que consigam aliar elementos visuais. Isso por
ser a visão o mais intenso dos sentidos humano e a busca por interpretações ou
simples contemplações representar um papel muito profundo no homem. Por essa
razão, fazemos uma relação entre cultura e artes visuais, o que leva de volta ao
ambiente Fin-de-Siècle e a explosão de artes plásticas e arquitetônicas que se viu em
toda a Europa e particularmente na Viena daqueles dias.
Uma interessante leitura sobre alguns estudos freudianos é feita por Codina (2005)
quando ela faz uma análise de ilusão e mal-estar passando por nossa busca interior
de identidade em meio à quase utopia de se encontrar uma. A autora do ensaio
trabalha aplicando tais conceitos no filme Clube da Luta (Estados Unidos, 1999,
direção de David Fincher). Lembremo-nos que a base desse tipo de raciocínio foi
extraída de Freud, que pensava seu tempo e o homem nele inserido exatamente sob
43
a premissa de que a identidade estava fragmentada e que algo poderia ser buscado a
fim de solucionar ou explicar tal questão. Diz ela em determinado trecho de seu
artigo: “para o ser humano e sua cultura existem duas saídas básicas: a sublimação
ou o recalque”. Continua dizendo que “o recalque é patológico e paralisa. O
neurótico experimenta a infelicidade de não conseguir conciliar seu desejo com a
cultura. Quanto à sublimação, seu alcance permanece ambíguo”. Diz mais:
Esse quadro agrava-se quando se compreende que o Eu não cumpre
adequadamente sua tarefa de harmonizar as diversas forças que nele agem, na
tentativa de superar os conflitos entre indivíduo e civilização. O trabalho de
sublimação e a identificação fracassam, a hostilidade aumenta. O mal-estar
insuperável na cultura obriga-nos a concluir que a aspiração de identidade e a
tentativa de fortalecer e de reconciliar o Eu consigo mesmo manifesta a mesma
insuficiência de qualquer outro desejo, já que o Eu se apresenta como modelo
inatingível. A própria psicanálise mostra um Eu fragmentado, que fracassa
constantemente, e parece pressupor a ilusão de atingir um Eu por meio de outro
Eu igualmente ilusório. A reconciliação consigo mesmo e, portanto, com a
cultura, apresenta-se assim como aquilo que sempre procuramos, sempre
atingível, mas que permanentemente foge de nós. (Codina, 2005, 79).
A crise nas esferas política, social e interior do homem que viveu em tempos tão
dramáticos certamente contribuiu para que ele desenvolvesse meios de expressão
que deixassem à posteridade os sentimentos que trazia dentro de si. Uma onda
exploradora avassalou a Europa e deu conta de novos movimentos que surgiram em
várias áreas da expressão humana. Tudo buscava encontrar respostas e demonstrar a
crise vivida. Em muitos casos, a crise pessoal de autores, cientistas e artistas foi a
mola propulsora para suas expressões. É bem verdade que, inseridos num amplo
contexto, todos eles, invariavelmente, tinham reflexos interiores do que estava
acontecendo ao seu redor.
44
A busca e a instabilidade vividas refletiam, por exemplo, a forma de expressão. Era
bastante comum ver manifestações artísticas e culturais nas quais o moderno se
aliava ao antigo, numa busca por identidade atual com apego ao passado, numa
expressão que nem sempre refletia a realidade, posto que muitas das manifestações
clássicas utilizadas não tinham respaldo histórico com aquela sociedade específica.
Na Áustria, por exemplo, as estruturas oficiais, quando os trabalhos de reformulação
do centro da cidade, no Rinsgstrasse, geralmente tinham motivos históricos
clássicos, ligados à mitologia, sem relação alguma com o passado da sociedade
austríaca, mas evocativas de símbolos que dessem sentido à sensação de vazio que o
Eu fragmentado deixava ao largo da sociedade. Fachadas falsas com interiores
diferentes da expressão externa eram mais uma confirmação dessas motivações:
representavam um homem reembaralhado dentro de si mesmo, sem conseguir ainda
concatenar o Eu de dentro com o Eu de fora. Ainda em Viena, a Casa de Secessão,
uma espécie de museu misturado a uma casa de exposições culturais, foi uma
resposta às pressões da vida moderna, oferecendo a alternativa de se tornar um oásis
para o homem inquieto.
Em meio a todas essas novidades, alternativas modernizadoras eram postas em
prática. Além disso, nas artes plásticas, a expressão já era mais afeita ao moderno,
com o surgimento de arte menos convencional. Talvez não se tenha visto em outra
época da história uma tamanha efervescência de manifestações nas artes e na cultura
em geral: ao que tudo indica, o desassossego e a fragmentação do Eu motivaram
intensas amostras de expressão humana.
45
Schorske (1988, 248), por exemplo, transcreve uma sentença presente num painel
que representa a realização e que expressa tudo isso de forma sintética, falando de
poesia e arte: “O desejo de felicidade se consuma na poesia” e segue completando
que a arte “nos conduz ao reino ideal, o único onde podemos encontrar a alegria
pura, a felicidade pura, o amor puro”.
As artes, notadamente as artes plásticas, não eram mais a representação, mas a
apresentação de um ser humano em nova realidade, embora ainda em processo de
descoberta. Lemos que
O artista, embora seja um “homem sem regras” no oceano inexplorado da vida,
pode, portanto, dar forma a uma parcela do ilimitado através da sua consciência
dos rostos e visões. Essa consciência é simultaneamente dinâmica e estática:
“deixando fluir a corrente e existir as visões”. Ela não “representa” a realidade
humana ou natural, tal como fizeram os pintores até agora, mas a “apresenta”
como a criação deliberada de uma consciência formada dentro dela. (Idem, 318).
Era o tempo de personagens como Klimt, Kokoschka, Schönberg, Loos e Mahler.
Este último, sendo também um musicista, influenciou profundamente artistas
plásticos, inspirando principalmente Klimt e boa parte de sua obra. Todos eles
foram exemplos de expressões nas artes: arquitetura, música e artes plásticas. Em
paralelo, expressões das letras e psicanalíticas fecharam um circuito em que o ser
humano se conduzia em direção a suas novas fronteiras culturais.
2.4. Política
A Europa era um teatro em cujo palco inúmeros movimentos nacionalistas
proliferavam por toda parte. O Liberalismo político entrava em crise aberta e já se
46
mostrava desfigurado. Foi em meio a essa evolução política européia que Schorske
(1988) observou detalhadamente o que ocorreu na Áustria entre 1848 e 1897, ou
seja, no período que vai de meados do século XIX ao auge do Fin-de-Siècle, em
particular, o processo de queda dos liberais. Ele nos mostra como as investidas dos
liberais contra as tradições da classe aristocrática que ocupava o governo até então,
bem como as reações e desdobramentos dessas investidas, influenciaram nos rumos
das artes, da arquitetura urbana, da política e dos movimentos sociais vienenses.
Muitos setores da sociedade sentiram-se estimulados à oposição dos processos
apresentados pelas reformas políticas e sociais do Liberalismo que, em síntese,
pareciam não corresponder aos anseios de maior fluidez, mas de reformas aparentes
que visavam apenas à manutenção das classes detentoras de poder em seus pontos
de domínio. Entre esses setores encontravam-se alguns que inicialmente poderiam
parecer opostos, ou pelo menos não coadjuvantes, mas que agora uniam forças
contra o mal comum, como setores insatisfeitos com os rumos de mudanças
propostas e aqueles reprimidos pelo antigo Liberalismo e que viam naquele
momento a chance de exigir uma mudança radical que consolidasse seus direitos.
Voltando-nos para a realidade brasileira de então, apenas a título de confirmação, há
uma interessante ponderação quando lemos que “o estatuto brasileiro da lei
burguesa, que vale e não vale, é o referente remoto desta relativização do escrúpulo
- encantadora ou detestável segundo o caso” (Schwarz, 1990, 130). Poucas
afirmativas quanto ao substrato social visto no século XIX brasileiro poderiam ser
mais ambíguas. Valer e não valer ou ser encantadora ou detestável pareciam
47
antíteses que conviviam lado a lado sem maiores problemas conceituais. Podemos
entender isso a partir do que temos estudado a respeito do Fin-de-Siècle e suas
circunstâncias. Lembremo-nos, no entanto, que o Brasil apenas o espelhava a
realidade de centros mais desenvolvidos que nos serviam de referência.
O meio político europeu, por sua vez, ia desde a nova maneira de pensar a ética aos
anseios expansionistas que chegavam a contradizer os recém-estabelecidos
postulados de respeito ao outro Eu, mesmo quando diferente do próprio Eu. O
cenário político europeu era vasto, rico e com muitos atores. Sionistas, anti-semitas,
nacionalistas, pan-nacionalistas, representantes da velha tradição política, radicais,
aristocratas, camponeses, artesãos, imperialistas, centralizadores, velhos liberais e
antiliberais: eis alguns dos muitos focos possíveis de pensamento político
encontrados facilmente na Europa. Em fins do século XIX e no ápice do Fin-deSiècle, sem dúvida, foram essas forças, que agiam centrifugamente, as grandes
ocasionadoras das derrocadas de impérios e tradicionais casas de governo europeus.
A tensão constante e progressiva dos muitos movimentos retrógrados e progressistas
aliada aos retrocessos sofridos pelos liberais que insistiam na manutenção do poder
não lhes permitiu suportar a velocidade institucional das mudanças e os fez ruir
velozmente. Conforme lemos em relatos sobre a Áustria,
Os novos movimentos de massa antiliberais - o nacionalismo tcheco, o pangermanismo, o socialismo cristão, a social-democracia e o sionismo - surgiram de
baixo para desafiar a tutela da classe média cultivada, paralisar seu sistema
político e minar sua confiança na estrutura nacional da história. (Schorske, 1988,
127).
48
Embora a Europa pudesse viver experiências utópicas, os liberais austríacos não
penderam para a utopia e não criam abertamente nos princípios da perfectibilidade,
o que os tornava, num primeiro olhar, menos suscetíveis às instabilidades comuns e
generalizadas em todo o continente. De certa forma, eles demonstravam entender
melhor o que estava acontecendo nas camadas intelectuais, talvez por
sistematizarem seus pensamentos liberais em comparação com as mudanças sociais.
Os tempos eram de construções e substituições que muitas vezes se manifestavam
de maneira arbitrária, como a seqüência em que o credo liberal substituiu os
preceitos feudais que, àquela altura dos fatos, eram pejorativamente colocados sob a
alcunha aristocrata. Num outro viés, a monarquia constitucional veio substituir o
esteio formado pelo absolutismo aristocrático. Na seqüência dos fatos, o centralismo
parlamentar também veio para ficar no espaço deixado pela derrocada do
federalismo aristocrático.
Nos meios civis em toda a Europa, mas com especial vigor em Viena, ao se
somarem estas mudanças com as alterações éticas e de pressupostos gerais, temos
que a base de reconhecimento a partir do mérito passava a substituir a base anterior
que era pautada nos princípios do privilégio. Com esse pano de fundo, no qual as
mudanças se dão a partir de elementos que a própria sociedade não era capaz de
perceber com a mesma acuidade que seria preciso para acompanhá-las com a
necessária rapidez, chega um dado momento em que todos se voltam contra os
liberais, cada segmento político ou social tendo em mente suas próprias razões para
fazê-lo.
49
Como exemplo, diz Schorske (1988, 126) que “a sociedade austríaca não conseguiu
respeitar essas coordenadas liberais de ordem e progresso” e que, mais para fins do
século XIX, “a petite bourgeoisie alemã antiliberal” se colocou frontalmente contra
os liberais após estes terem atenuado de maneira aberta e ostensiva a sua antiga
retórica germanista, que em muito favorecia o espírito germânico na Europa e, de
maneira especialmente eficaz, em toda a parte da Áustria em que havia histórica
influência germânica. Em outra frente, o laissez-faire, ao invés de gerar princípios
de libertação da economia em relação às amarras do passado, findou por levantar e
fortalecer os marxistas de um tempo não muito distante de seus dias, olhando para
um futuro muito próximo. O catolicismo, antes inquestionável, agora perdia
definitivamente a vez entre a aristocracia, mas ressurgia com força sob a forma de
ideologia de camponeses e artesãos, que tinham um pensamento obstinado que os
levava a crer que Liberalismo era Capitalismo, e que Liberalismo era, portanto,
coisa de judeu. Quando chegamos ao final do século, até mesmo os judeus se
voltaram contra o Liberalismo, já que a sua derrota os deixou vitimados e
perseguidos na sociedade. A resposta dos judeus para estes últimos fatos foi a
sedimentação do sionismo como a derradeira possibilidade de sobrevivência, tendo
como matiz a fervorosa pregação de uma então hipotética volta à terra que seria o
sonhado lar nacional para os judeus dispersos por várias partes do mundo, mas que,
na Europa de Fin-de-Siècle, precisavam de alguma forma de escape a curto prazo.
Três importantes expoentes são citados como tendo começado suas vidas públicas e
sua pregação ideológica como liberais políticos e terminaram em vias diferentes,
50
fazendo de suas ideologias a prática formadora das massas que queriam atingir: São
os já mencionados Schönerer, Lueger e Herlz. Os dois primeiros foram os esteios
inspiradores de Adolf Hitler e o último foi o responsável por responder
sistematicamente às vítimas deste contra o levante do terror que se instauraria contra
os judeus na Europa.
Resume Schorske (1988):
Schönerer e Lueger, cada um à sua maneira, tinham conseguido defender a
democracia contra o liberalismo. Ambos compuseram sistemas ideológicos que
unificavam os inimigos do liberalismo. Cada qual à sua maneira empregou estilos,
atitudes ou pretensões aristocráticas para mobilizar uma massa de seguidores
ainda ávidos por uma liderança (...). Entre os dois líderes, Schönerer foi o mais
impiedoso e o pioneiro mais ousado no desencadeamento de instintos destrutivos.
Rompeu os muros co seu poderoso apelo anti-semita, mas Lueger organizou as
tropas que ganhariam a vitória e os despojos.
Lueger era menos alienado e mais tradicional que o cavaleiro-burguês frustrado
de Rosenau. Mesmo em seu anti-semitismo, Lueger carecia do rancor, da
convicção e da coerência de Schönerer. Enquanto Schönerer explorou o caráter
supranacional da comunidade judaica (...), Lueger revitalizou o anti-semitismo em
seu ataque ao liberalismo e ao capitalismo. (Idem, 151, 152)
O poder carismático de Herzl como rei-messias redivivus não deve nos fazer
negligenciar os elementos modernos de classe média que permeavam seus
objetivos e métodos. O Estado judaico, tal como ele o concebera num panfleto de
mesmo nome, não tinha nenhum traço de caráter judaico. Não existiria uma língua
comum - certamente não o hebraico. (...).
Em todas as suas características, a terra prometida de Herzl, de fato, não era uma
utopia judaica, mas liberal. Os sonhos de assimilação que não poderiam se
realizar na Europa seriam realizados no Sião, onde os judeus teriam a nobreza e a
honra com que Herzl sonhara desde a juventude. (Idem, 175)
Falando de Schönerer, Lueger e Herlz, diz Schorske (1988, 177) que eles
conduziram “seus seguidores para fora do mundo liberal em colapso, recorrendo às
fontes de um passado reverente para satisfazer aos anseios de um futuro
51
comunitário” e os classifica como “filhos rebeldes da cultura austro-liberal, uma
cultura que podia satisfazer os intelectos, mas matava a fome as almas de uma
população ainda apegada à memória de uma ordem social paternalista”.
Para melhor entender algumas questões, é importante termos sempre em mente que
a Áustria era uma nação multiétnica, que dentro de suas fronteiras abrigava diversas
etnias, sendo que as duas de maior projeção eram a germânica e a magiar, de origem
húngara. Interessante notar que o pensamento político, bem como suas ações na
Europa do século XIX, marcadamente no Fin-de-Siècle, deixou forte rastro que em
muito ultrapassou seu espaço e seu tempo, atingindo-nos ainda hoje com suas ações
e seus pensamentos. Capitalismo, Liberalismo, Socialismo, sionismo, antisemitismo, racismo, exclusão, inclusão, tolerância e tantas outras sistematizações
práticas e políticas daquele período ainda hoje assustam ou confortam o homem
ocidental.
52
Capítulo 3 - O Fin-de-Siècle: um marco temporal e espacial
“Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao
estudo e à cura de si mesmo. Dizem os cronistas que
ele morreu dali a dezessete meses, no mesmo estado
em que entrou, sem ter podido alcançar nada. Alguns
chegam ao ponto de conjeturar que nunca houve outro
louco, além dele, em Itaguaí”.
(Machado, In: O alienista).
O Fin-de-Siècle não foi um fato isolado na história sobre o qual não saibamos
marcar períodos e acontecimentos. Como o nome diz claramente, Fin-de-Siècle fala
do final do século XIX e início do século XX.
Mais que isso, fala de eventos relacionados às transformações de toda a Europa, do
Ocidente, dos momentos críticos em que o homem dessa metade do planeta
descobriu-se sem identidade, com seu Eu fragmentado pelas sucessivas dissoluções
de seus pressupostos anteriores e pela luta individual e coletiva em estabelecer seus
novos modelos de visão de mundo.
Não é sem razão que vemos uma preocupação latente com aquilo em que estávamos
nos tornando a partir de então. O Eu, nesse tempo de alterações profundas, buscava
um novo espaço e novas cores através das quais se relacionar com o indivíduo que o
portava e com o mundo que o cercava. Para Lins, até hoje nos é difícil compreender
53
todos os ângulos da visão que temos do Eu, seja ele o nosso próprio, seja ele o
alheio. Isso por termos entrado num contexto de sociedade de massa, com tudo
macrodimensionado, enquanto o nosso Eu, esse sim, faz-se diminuto e fragmentado
dentro em nós, com notados reflexos por toda parte, inclusive na coletividade
massificada.
O eu, que começou sensível ao sofrimento, para transformá-lo por dentro,
apropriar-se dele e quem sabe vencê-lo, aceitaria de bom grado a abandonar o
projeto como se houvesse chegado a ele. Uma das dificuldades dos nossos
contemporâneos consiste na grandeza dos números e das estatísticas. Tudo
assumiu um aspecto gigantesco; tudo, tirando o eu, reduzido, ao contrário, a
proporções microscópicas e condenáveis como se, ao mencioná-lo, quiséssemos
sustentar o egoísmo. Não se pode agir com a sociedade de massa como se agia
com a sociedade do século XVIII.
Lins, 2006, 71,72
Os eventos que antecipavam o final do século XIX e mostravam os primeiros anos
do século XX não foram de pouca importância, mas significaram um verdadeiro
sinal no tempo e no espaço, que marcariam permanentemente a figura humana.
Fosse em sociedade ou em solitária reclusão, o homem deveria seguir seu novo
rumo, traçado por ele próprio. Restava adequar-se e sobreviver a ele.
3.1. O Fin-de-Siècle e o início do século XX
Sennett (1998) nos mostra que até bem perto de meados do século XIX, o homem
aparentemente desejava ser indivisível, transparecendo ao máximo ao mundo
exterior e às demais pessoas o que ele realmente era. A partir daí, ele era uma
pessoa em determinados planos, mas começava a ser outra em outras cenas,
principalmente nas que envolviam o jogo público. Assim, na esfera pública, as
54
pessoas tendiam cada vez mais a serem diferentes daquilo que eram em sua vida
privada. Surgiam, a partir de então, os atores da vida pública, que tinham por
necessário desempenhar papéis específicos para o exterior de suas vidas, esperando
preservar ao máximo o que eram apenas para a sua privacidade.
Surgia o homem público que vem até hoje, visível e com projeção pessoal ostensiva,
mas que tenta se esconder dos olhares coletivos em sua vida privada. Dependendo
do seu momento, esse mesmo homem público desempenha dois papéis diferentes:
um papel passivo, de mero observador, ao fitar os demais; e um outro, ativo, de ator,
ao protagonizar o seu próprio jogo de cena.
Voltando-nos para a vida cotidiana prática, o que vemos de uma personalidade
pública no exercício de seu papel é apenas a exteriorização de seu jogo. Não
sondamos verdadeiramente a pessoa e seu caráter. Isso se fez axiomático e perdura
até nossos dias, nos quais vemos os jogos que se desenrolam à nossa vista, com
discursos de simulação e atuação objetiva, principalmente por parte da classe
política, hoje a maior expressão dessa característica.
Aqueles eram tempos em que a personalidade migrava de sua intimidade para o
público e, por isso, precisava ter defesas. Tempos de mudanças bruscas nos
sentimentos das pessoas, nos códigos de conduta coletiva, nas personalidades
variadas, nos discursos múltiplos, nas expressões individuais, do falar e do silenciar:
tudo poderia ser um jogo, com papéis definidos e por vezes conhecidos de todos.
Mas era necessário abrir a cena.
55
De certa forma, o homem moderno, e com isso quero dizer o homem que se moldou
no Fin-de-Siècle, passa a ser alguém que vive pelo menos dois “Eus”. Ele vive seu
Eu dividido em um Eu real e um Eu circunstancial. O Eu real é ativo e tem por base
as motivações e impulsos individuais, enquanto o Eu passivo é aquele que aparece
para a sociedade que cerca o indivíduo. O autor chama esses dois “Eus” de Eu (o
ativo) e mim (o passivo). (Sennett, 1998, 403).
Há algo mais a ver que apenas reações aparentes. O que estamos vendo no homem
que migrava de um século a outro, particularmente do XIX ao XX, era um
verdadeiro drama interior que, por essa mesma razão, se permitia mostrar no seu
exterior. Para Lins (2006) isso representava algo insuportável, dramático, a ponto de
tocar os ossos do ser humano. E é exatamente por causa das características
assumidas a partir de então por esse novo perfil que o homem se solta de suas
relações, inclusive daquelas que lhe dariam as bases para a seqüência de sua vida. O
que antes era trazido dos antepassados, dos pais, era agora renegado, mesmo que o
fosse inconscientemente.
Alguma coisa no século XIX, dramático nas suas dores, chegava aos ossos e se
mostrava insuportável.
Para um cidadão dos dias que correm, os outros, nos Novecentos ou Oitocentos,
para não falar daqueles anteriores ainda, apresentam um perfil tão distante que já
não se afiguram antepassados. Cabe perguntar o que deles conservamos que nos
torna a um só tempo iguais e dessemelhantes. (Lins, 2006, 29)
Esse homem cujo Eu está fragmentado e dividido é um homem que se sente só,
mesmo em meio a uma polis completamente povoada. As multidões circundantes
56
não mais representam companhia, mas podem ser canal simples e aceito de uma
intensa solidão. Máspoli (2001) diz que
Todas as relações com outros são, em última instância, meras estações ao longo
do caminho através do qual o ego chega a si próprio. (...) Em termos sociológicos,
a solidão é um subproduto da construção social do indivíduo. Ao afirmar a sua
individualidade, o homem afirma também a fragmentação do universo social e o
isolamento do outro. Este isolamento, porém, pode se tornar insuportável, gerando
a tentativa de superá-lo por meio da relação interpessoal. (Máspoli, 2001, 5).
A adequação a esses valores pode representar sobrevida do Eu que aparece, sendo
ele apenas plástico, enquanto o verdadeiro Eu, ativo, se dá em oculto, o que também
o faz sobreviver. Cada um a sua forma, os dois modelos do Eu contemporâneo
parecem continuar sua corrida por adaptação. Muito do exposto e defendido por
Sennett foi buscado nos princípios psicanalíticos do narcisismo. Sobre seus
postulados, pode-se ler com detalhamento no capítulo 14, O ator privado de sua
arte. (Sennett, 1998, 243-314; 381-409).
Na literatura, que via de regra mostra o que se passa em determinados contextos e
tempos da sociedade, vemos uma interessante nota de Antonio Candido:
Quando a atividade dos escritores de um dado período se integra em tal sistema,
ocorre outro elemento decisivo: a formação da continuidade literária, - espécie de
transmissão da tocha entre corredores, que assegura no tempo o movimento
conjunto, definindo os lineamentos de um todo. “É uma tradição, no sentido
completo do termo, isto é, transmissão de algo entre os homens, e o conjunto de
elementos transmitidos, formando padrões que se impõem ao pensamento ou ao
comportamento, e aos quais somos obrigados a nos referir, para aceitar ou
rejeitar.” Sem esta tradição não há literatura, como fenômeno de civilização.
(Candido, 2000, Vol I, 24).
57
No ápice do Fin-de-Siècle, o homem estava por completar o processo de
transformações que iam muito além do que ele talvez tivesse pensado quando os
movimentos de meados do século XIX tinham sido deflagrados. Muitas alterações
foram sentidas; novos marcos foram fixados no caminho do homem; as sociedades
ocidentais não eram mais as mesmas. E o Fin-de-Siècle foi o elemento demarcador
de tudo isso.
3.2. Ambiente Fin-de-Siècle
Fin-de-Siècle, como já sabemos, é termo aplicado não apenas a alguns pontos
geográficos determinados, como Viena, mas a todo um tempo, ou processo, durante
o qual o mundo, principalmente o Ocidental, com maior destaque ainda para o
europeu, teve uma verdadeira metamorfose social, política e cultural, com raios
atingindo todas as esferas da vida humana a partir de então.
Uma enorme massa de pensadores, artistas, psicólogos e historiadores estava
empenhada em responder perguntas eternas ao ser humano, mas que agora se
tornavam cruciais. O momento levava à discussão do problema da natureza do
indivíduo numa sociedade em crise de desintegração. Foi essa leva de
questionamentos que elevou Viena a um lugar de destaque no cenário em que se
buscava uma nova concepção para o ser humano. Até havia pouco tempo, o homem
tinha por boas e satisfatórias as respostas metafísicas a suas incógnitas, mesmo as
mais profundas. Quando não encontrava respostas plausíveis, o transcendente
58
atendia perfeitamente o seu silêncio e a paz aparentemente continuava a reinar nos
seres humanos.
A partir do desmonte da idéia mais universal desses pressupostos, as idéias mais
antropocêntricas ganham muito vigor e passam a governar a razão de modo objetivo
e direto. Nesse ambiente, toma força a idéia do homem psicológico (onipresente),
sendo que Schorske (1988) defende que ele surge a partir da crise política e cultural
de Viena.
O declínio, ou o incremento, da crise do Liberalismo gerou um severo clima de
ansiedade, inconstância, percepção nua da brutalidade da sociedade. O
desaparecimento da boa esperança, talvez um tanto ingênua, no homem, parece ter
se dado, ou, pelo menos, se evidenciado, exatamente por esses dias. Os traços
humanistas e cada vez menos metafísicos passaram a ser centrais nos temas e
discussões entre a intelectualidade. Com isso, o passo alcançado foi o do homem
que pensa e tem em si a resposta para suas mazelas, para seus vazios e para seus
questionamentos permanentes. O olhar do homem passou a ser posto dentro de si ao
invés de numa esperança externa, como acontecia tempos antes, no auge da
religiosidade ocidental européia.
A alta burguesia de então tinha bases simples e modelares: no aspecto da
moralidade, ela era convicta, virtuosa e repressora; no campo político, ela era
voltada para a lei e para seu império, que estava invariavelmente acima do indivíduo
e da ordem social; no aspecto intelectual, ela defendia a supremacia da mente sobre
o corpo, com progresso social advindo de trabalho duro, ciência e educação.
59
Talvez pairasse no ar uma idéia de que havia normalidade imperando sobre as
pessoas, mesmo quando ainda não a entendessem como deveriam. Difícil, talvez,
fosse alcançar intelectualmente o que poderia ser normal quando os paradigmas não
mais se mostravam tão claros. Como diz Lins (2006), a normalidade aparente,
aquela que engana, ou engoda, pode emascarar períodos de intensa crise interior.
Em suas palavras:
A ilusão de normalidade sugere um estado de calmaria que condiz mal, ou não
condiz, com o tumulto subterrâneo responsável pela anomalia. De fato, a
humanidade, apesar de irrequieta e não-conformista (caráter que, com
inteligência, valeu-lhe como trunfo para sobrepor-se, ganhando a disputa no meio
animal), atravessa períodos de estagnação nos quais a economia não manda, a
sociedade dá provas de involução e a história, retrocesso. Fala-se em decadência
dos costumes, das formas de organização, da qualidade de vida. (Lins, 2006,
9,10).
Notamos que a normalidade, quando apenas ilusória, é um mal latente que se abate
sobre o ser humano que, por não se aperceber de sua real situação, acomoda-se ao
que crê ser bom para si. Seu interior, no entanto, pode viver verdadeiras e duras
conturbações que não encontram rota de fuga alguma para aliviar o mesmo ser. Uma
série de eventos periféricos e circundantes aparecem como resultado imediato dessa
forma descompensada de ver a si mesmo e de perceber seus próprios sentimentos. A
reação se vê no que cerca o indivíduo, com claros reflexos sobre a própria sociedade
que o acolhe.
Assim, em meio a tão rica gama de mudanças, o burguês interiorizava a cultura
estética que ele absorvia, e dessa forma cultivava o seu Eu, sua unicidade pessoal, o
que lhe gerou inevitável preocupação com a vida psíquica individual. A fertilidade
60
de reflexões e postulados científicos e acadêmicos advindos desse período só nos
fazem comprovar tal realidade.
No entanto, por razões óbvias, uma problemática constante para os pensadores e
para os formadores de opinião no Fin-de-Siècle era a visão clara da dissolução do
postulado liberal em meio à política moderna da Europa e da Áustria de seu tempo.
(Schorske, 1988, 25-42). Assim como em todas as grandes fases da história em que
o homem sofreu alterações em sua sociedade ou em sua própria constituição, o
homem do Fin-de-Siècle, antes de auferir os benefícios advindos de seu novo
momento, passou por períodos de inquietação e ansiedade muito grandes. Muitos
problemas, o que é natural, também foram percebidos ao longo dos anos e décadas
em que o esteio da nova realidade se apresentava diante de sua vida.
No entanto, talvez o maior de todos os benefícios não esteja no campo dos
elementos concretos, mas na área do interior do homem: a esperança. Cansado de
uma série de fatores alienadores, opressores, aniquiladores de liberdade e de
possibilidade de igualdade, o homem do Fin-de-Siècle tinha agora diante de si uma
das mais belas sensações que o diferenciam de outros seres vivos e, em muitos
níveis, até entre homem e homem.
3.3. Problemas de preconceito, exclusão e extermínio racial
O problema relacionado ao poder e às conseqüências imediatas que dele podem
advir, quando mal estruturado e mal intencionado, jamais desapareceu de entre o ser
humano. Massacres, perseguições, exclusões, limpezas étnicas e todas as formas de
61
aberração originadas pelo poder mal coordenado foram vistas largamente durante
todo o século XIX e o Fin-de-Siècle. Lins diz que “na ânsia de varrer o mapa, de
limpar o terreno, de retirar espinhos, dissolvem-se valores” (Lins, 2006, 33), o que
pode perfeitamente ser aplicado aos esforços da geopolítica e da estrutura de poder,
tanto do Estado quanto de universos mais restritos dentro da sociedade.
Seguindo reflexões do mesmo autor, podemos entender que uma das problemáticas
de ordem política e social tenha se dado na sistematização que se fazia de uma
democracia moderna que coloriria o Ocidente a partir daqueles dias. Ele nos recorda
que há uma razão de ser da democracia e que a perda de seus pressupostos pode
acarretar males que não desejávamos para nós e nossa raça. Pensamento subjacente
a esse é que talvez tenhamos percorrido um círculo completo para cair no abismo do
qual queríamos nos livrar originalmente.
A utilidade da democracia consiste em não permitir que a exacerbação do eu até a
anomalia (ou da loucura), ou eu já não mais dividido, mas único, exclusivo, perca
a noção da realidade e nos arraste para a miséria, de onde, quando começamos,
desejamos sair. (Idem, 38).
Não nos é muito fácil imaginar que o homem que tinha acabado de lutar por um
vasto leque de libertações individuais e comunitárias, cujo centro mais importante
estava fixado na relatividade e na aceitação da alteridade, ainda praticasse
exatamente as mesmas aberrações que sempre foram marca de uma espécie que não
se respeita.
Paradoxalmente, o homem aproveitava seu novo espaço de liberdade, mesmo em
meio às dúvidas que ainda o assaltavam, para subtrair a liberdade do outro. E diz
62
ainda “A formação do ser dilacerado, capaz de extrair riqueza do sofrimento, como
se, enquanto campo de observação, num universo já de todo conhecido, restassem
regiões não desbravadas a reconhecer e a explorar” (Idem, 25).
Um novo imperialismo estava se fortalecendo com muito vigor. Bases científicas
que traziam novas possibilidades também podiam sugerir novas opressões. A
mesma teoria evolucionista que poderia representar uma resposta nova à existência
humana sem o apego ao religioso serviria também de base para que os mais fortes indivíduos ou nações - sentissem que tinham liberdade e direito de dominar os mais
fracos, mesmo que por força.
Foi exatamente por esse tempo que ciganos e judeus começaram a ser duramente
perseguidos em quase toda a Europa, sendo período que viu o surgimento de líderes
que deixaram rastros para que seus seguidores concluíssem posteriormente suas
aberrações, conforme trataremos mais adiante. Ainda nesse tempo, na França, viu-se
um notável erro acontecer contra um oficial do exército francês chamado Dreyfus, o
que até hoje é considerado uma vergonha para a política e as cortes daquele país.
Seu crime foi ter nascido filho de judeus - um judeu, portanto - mesmo em solo
francês. Há um texto disponível na Internet, da Ordem dos Advogados do Brasil,
Sessão Rio de Janeiro, (OAB-RJ), do qual extraímos alguns trechos:
O mais famoso erro judiciário de todos os tempos, sobre o qual talvez se tenha
escrito mais que sobre o processo de Jesus ou de Sócrates. Alfredo Dreyfus,
capitão israelita do exército francês, foi acusado de ser o autor de uma carta
oferecendo documentos militares aos alemães, encontrada pelo serviço de contraespionagem da França.
Condenado em 1894 como traidor, sofreu a deportação para a Ilha do Diabo e a
degradação militar. Começou então uma campanha de enormes proporções pela
63
revisão do processo e que dividiu famílias, amigos e toda a França em dois
partidos, tal como o havia feito a Revolução Francesa. Os mais diversos interesses
coligaram-se a favor ou contra o acusado, fazendo dele uma bandeira de luta. A
nobreza, o clero, os anti-semitas, os reacionários de todo tipo, os militares, eram
contra a revisão, achando que ela colocava em jogo a honra do exército francês
caso as autoridades reconhecessem ter errado na condenação de Dreyfus, que fora
julgado por um conselho de guerra, de cuja seriedade não se podia duvidar. A
esquerda, os liberais, os progressistas, eram pela revisão e conseguiram levar a
julgamento o verdadeiro culpado, o comandante Esterhazy, que foi absolvido.
(...)
Em 1902, novo pedido de revisão é feito e em 1906 a Corte de Cassação
reconhece definitivamente a inocência de Dreyfus, sem enviá-lo a novo
julgamento. Ele foi reintegrado no exército, lutou na guerra de 1914 e morreu em
1935. Na luta a favor do acusado salientaram-se grandemente Clemenceau e os
advogados Labori e Demange. O processo revelou o grande senso de justiça do
povo francês e ficou conhecido como “l’affaire” (o caso) por excelência. (Caso
Dreyfus, http://www.elfez.com.br/elfez/Dreyfus.html)
Nesse episódio que movimentou a opinião pública na Europa e até no Brasil (Émile
Zola na França e Rui Barbosa no Brasil) houve muita comoção, mas o que de fato se
via era a idéia de segregação aberta com base nos méritos de herança étnica.
Ora, na Europa e na Áustria havia movimentos de contendas étnicas acontecendo
em várias partes. Na Áustria, era longa a questão que envolvia os magiares e os
germânicos, por exemplo. No entanto, talvez a mais intensa questão nesse aspecto
seja relacionada aos movimentos envolvendo os judeus, tanto dentro quanto fora da
Áustria. Como bem sabemos, até meados do século XX esse povo não tinha região
determinada como sendo geograficamente sua nação. Assim, a exemplo de povos
como os ciganos e, mais atualmente, comunidades palestinas, os judeus eram
dispersos entre outras comunidades nacionais.
64
Os judeus, desde a Idade Média, vinham sofrendo no Ocidente perseguições
sistemáticas baseadas em diversos preceitos. Anteriormente mais religiosa, a
perseguição que vimos no período Fin-de-Siècle tomou aspectos mais políticos com
forte dose de questões econômicas. Um movimento anti-semita estava em curso, em
meio a todas as alterações vividas na Europa. Muitos dos eventos posteriores, como
os da Alemanha de Hitler, tiveram seus embriões desenvolvidos no período que vai
de meados do século XIX ao início do século XX. Os postulados alicerçados nesse
tempo deixaram as bases para argumentações de perseguições e desmandos
generalizados, a ponto de dois homens públicos, políticos austríacos do Fin-deSiècle, Schönerer e Lueger, serem declaradamente inspiradores de Hitler.
Ainda em fins do século XIX, as bases de uma política anti-semita aberta e
declarada foram bem consolidadas e estabelecidas como sendo não apenas comuns,
mas necessárias. Uma das razões apregoadas para legitimar tudo isso era o
nacionalismo. Em tempos de crises, dúvidas e necessidades de definir questões
importantes, a nacionalidade, seja ela geográfica ou conceitual, também estava em
pauta.
A abertura que se deu para as perseguições chegou a assustar homens como Herlz,
que, sendo enviado como correspondente à França, viu, em Paris, atrocidades
cometidas por um regime que já estava bem amoldado ao anti-semitismo. Isso o
constrangeu por crer ele que algo assim jamais aconteceria numa terra que era o
berço do Liberalismo, que declarava liberdade, igualdade e fraternidade, ao mesmo
tempo em que estabelecia modelos de perseguição racial.
65
Tudo ocorria em meio ao declínio da confiança no Liberalismo enquanto opção
política possível para a posteridade. A condição de povo que os judeus tinham nos
países europeus incomodava a muitos. Eles constituíam na Áustria, como em outros
lugares da Europa, uma nação dentro de outra nação. Tinham direitos restringidos
por lei, mas gozavam de certos privilégios, como o de estarem isentos de
responsabilidades que só cabiam aos austríacos de fato. É bom lembrarmos que na
Europa do Fin-de-Siècle só eram considerados naturais os filhos de pais naturais, ou
seja, filhos de estrangeiros seriam sempre estrangeiros, o que perpetuaria os judeus e
demais etnias perseguidas como estrangeiros, mesmo várias gerações após a sua
chegada aos países em que se estabelecessem.
A necessidade de afirmação nacional pode ser um dos elementos importantes nesse
contexto conturbado, o que, de forma alguma, justifica atrocidades. O ápice na
Áustria parece ter sido a ascensão de Lueger ao governo municipal de Viena, eleito
duas vezes para o cargo, em 1895 e em 1897, sendo que somente da segunda vez foi
empossado, posto que, na primeira, teve sua posse embargada pelo imperador. A
seguida aprovação popular de Lueger, anti-semita declarado e devotado, evidencia
que o povo ansiava por algo naquele sentido.
A resposta à querela étnica foi a razão sionista, quase que encarnada por Herlz e
mais tarde afirmada em movimentos que se espalharam por toda a Europa e Estados
Unidos, possibilitando seu feito maior, o retorno da Diáspora à terra que
reclamavam como sendo milenarmente sua. Inicialmente, Herlz começou por
disseminar idéias assimilacionistas, segundo as quais os judeus não deveriam ser
66
excluídos das comunidades européias, mas assimilados por elas, à custa de estes
abrirem mão de suas tradições e de sua religiosidade. Mesmo assim não logrou êxito
em sua empreitada, o que o levou à pregação sionista. Buscou dois setores dos
judeus para fortalecer sua posição: os judeus menos ricos, que seriam a mão-de-obra
para a reconstrução da nova nação quando de seu retorno, e os mais abastados, que
seriam os supridores de recursos para tais realizações. As bases para o que se veria
desenvolver nas primeiras décadas do século XX, culminando com a repatriação de
judeus no Oriente Médio, estavam lançadas.
Analisando hoje, passados mais de cem anos, os dois aspectos, o anti-semita e o
sionista, parecem ter sido originados na mesma necessidade múltipla: afirmação e
sobrevivência. É claro que agora se sabe que a História poderia ter deixado outras
possibilidades, mas os homens do Fin-de-Siècle, com a formação e conformação
que tinham naqueles tempos, agiram daquela forma. Interessante notar que todos os
atores desses movimentos geraram suas ações combinando elementos clássicos e
historicamente consolidados de suas culturas com bases filosóficas e políticas
modernas para seus dias. O resgate do que tinham sido, somado ao que queriam ser,
ajudou a modelar o que passaram a ser.
3.4. A porta aberta para o capitalismo avançado de fins do século XX
Richard Sennett (2005) trata de questões como o tempo e a linearidade e como
pessoas de apenas uma geração atrás viviam com relação a esses pontos. Suas vidas
eram planejadas sobre a estabilidade e a possibilidade de rotinização de afetos e
67
trabalhos, o que, aos olhos do autor, eram coisas boas ou, pelo menos, de melhor
tom que aquelas acenadas pelo capitalismo mais selvagem de nossos dias.
O tempo ainda era gratuito para essas pessoas, que conseguiam viver sob processos
hierárquicos variáveis de acordo com o nível em que se encontravam e isso lhes era
natural. A prosperidade como busca desenfreada e que rouba os escrúpulos dos
homens após a geração anterior é observada por Sennett, que vê as ações dessa
natureza como altamente nefastas e corrosivas nas relações entre as pessoas,
inclusive de uma mesma família.
Para o autor, os trabalhos independentes e “terceirizados” são o substituto natural da
relação trabalhista mais convencional, desagregando o homem de seu bem maior,
que é a segurança pessoal e familiar. Não há mais o longo prazo no qual as pessoas
possam se equilibrar e planejar suas vidas e seus futuros. A carreira está
desaparecendo, bem como os laços fortes de antigas associações e o que sobra hoje
em dia são os laços fracos, mais modernos das associações a curto prazo ou, mesmo,
da ausência de associações. Encerra parte de seu discurso dizendo-nos:
O que é singular na incerteza hoje é que ela existe sem qualquer desastre histórico
iminente; ao contrário, está entremeada nas práticas cotidianas de um vigoroso
capitalismo. A instabilidade pretende ser normal (...) Talvez a corrosão de
caracteres seja uma conseqüência inevitável. (Sennett, 2005, 33).
Em fins do século XX e início do XXI vemos um estrondoso retorno do trabalho à
casa, com o já familiar nome de home-office, talvez prenunciado pelo isolamento do
Eu fragmentado ainda do período Fin-de-Siècle. Esse movimento é contrário aos
tempos em que o homem, de forma oposta, migrou de sua casa para os ambientes
68
externos, o que permitiu dar grande impulso ao início da industrialização. O
homem, como se vê, e dependendo do modelo em que se insira, precisa ser flexível
para sobreviver.
Ao tratar de flexibilidade, somos lembrados que essa é a capacidade que tem a
árvore de se curvar ao vento e depois se endireitar sem se quebrar. O
comportamento humano flexível deveria ter essas características face à vida e às
dificuldades, o que compunha compreensão e busca por liberdade nos conceitos
mais antigos. Segue dizendo “Em nossa época (...) trai esse desejo pessoal de
liberdade. A repulsa à rotina burocrática e a busca da flexibilidade produziram
novas estruturas de poder e controle, em vez de criarem as condições que nos
libertam” (Idem, 54).
Interessante notar a opinião de Virgínia Drummond (2001), já sob um ponto de vista
da Psicologia, que põe a realidade atual do ser humano num retorno a um franco
processo de fragmentação, como se ele tivesse tido um momento no qual isso
sugerisse de alguma forma sinais de assentamento interior passageiro. O problema,
segundo ela, é que o ser humano, em face aos processos de fragmentação, colocouse como um autômato nas circunstâncias ao seu redor. O comportamento humano,
com isso, por uma questão de sobrevivência, deixa-se levar para “o que é mecânico,
automático, fisiológico, o que é inumano” (Drummond, 2001).
As dificuldades que ela aponta são muito próximas às de Sennett, autor que ela cita
sistematicamente em seu texto. O processo instalado no ser humano a partir do Finde-Siècle não apenas se prolonga até os dias atuais, como ganha contornos de
69
perenidade sobre os quais não antevemos mudanças significativas. Drummond vê
um ressurgimento da fragmentação, só que agora com outras características,
“roupagens”, em sua fala. Essa fragmentação, para ela, não representa apenas um
dado de perturbação do indivíduo, mas de todos os processos que o cercam, como o
próprio trabalho, pois a fragmentação é, acima de tudo, algo desorientador,
desagregador, deixando reflexos diretos e facilmente perceptíveis em todos os
grupos sociais, a começar do indivíduo. Diz ela:
O que se pode com clareza identificar é o ressurgimento, sob outra roupagem, do
“fantasma” da fragmentação, que tantas críticas propiciou às teorias fundadoras
no campo dos estudos organizacionais. O que hoje se observa é a fragilização de
todos os empreendimentos humanos pela fragmentação desorientadora, pela
excessiva flexibilização que produz desagregação. Indivíduo, família, grupos
sociais ou profissionais, e mesmo países tornam-se indefesos pela extrema
permeabilidade de suas fronteiras, através da queda de barreiras protetoras de suas
características mais constitutivas e singulares. (Idem)
Retornando a Sennett (2005), entre as páginas 123 e 126, na maior referência
seguida que faz a outro autor, Sennett abre um parêntese para resgatar e explicar
princípios de Max Weber e sua obra clássica A ética protestante e o espírito do
capitalismo. Discorre sobre o que Weber registrou de amparo teológico, histórico e
sociológico de fatos que não eram necessariamente do Capitalismo enquanto
doutrina econômica, mas que serviram de apoio aberto a muitas das suas práticas.
As modernas formas de trabalho em equipe levam a formas veladas de engano,
como as que fazem os trabalhadores, hipocritamente chamados de “colaboradores”,
pensarem que a sua equipe de trabalho faz parte de algo maior, uma grande equipe
de trabalho que compreende toda a corporação. Dela fazem parte os altos
70
executivos, os gerentes, etc. Na verdade, as equipes menores são induzidas a esse
pensamento por conta da intenção que as corporações têm de iludir seus
funcionários.
Falando sobre Weber, por exemplo, vemos que ele entende a vida social como a
conduta individual. Em sua obra já citada, Weber ressalta que as representações
sociais são juízos de valor que os indivíduos possuem e pelos quais eles se orientam.
Weber não é tão cético em relação à autonomia do indivíduo quanto outros autores,
mas é muito objetivo em suas considerações. Chama também a nossa atenção para a
importância de compreendermos bem as representações sociais para entendermos
melhor o desenvolvimento histórico.
O fracasso tornou-se a maior ameaça do homem moderno. Prova disso são as
volumosas apresentações sobre como vencer na vida, no trabalho, na família, etc.
Costumamos chamar tudo isso de auto-ajuda, na melhor das hipóteses. No mercado
competitivo, uma pequena minoria joga na derrota uma enorme maioria de gente
educada e preparada (Sennett, 2005, 141).
No começo do século XX, uma das maneiras encontradas, em tempos de crise, para
se superar o fracasso era trilhar uma carreira a ponto de fazer com que o sucesso
recobrado findasse com o fracasso. Mas, em tempos em que o capitalismo se tornou
flexível e que as carreiras não mais representam alternativa viável, o que aplicar
como antídoto? Em termos de capitalismo antigo, as empresas ofereciam modelos
nos quais os trabalhadores tinham a sensação de serem parte de algo muito maior,
de algo que era semelhante a uma enorme família. Tinham segurança e tinham
71
demonstrativos de suas habilidades para lhes garantir a possibilidade de driblar um
eventual fracasso. No Capitalismo tardio o que há é uma enorme instabilidade
individual, sem mais haver a possibilidade de expressar qualidades pessoais - por
conta, em parte, do trabalho em equipe - legando os trabalhadores à possibilidade do
fracasso e à depressão que a ele se segue.
Nasce, pela própria fragmentação das relações, um senso de dependência mútua que
gera um problema para o moderno Capitalismo, pois ele encara a dependência como
algo
vergonhoso
e
desprovido
de
sucesso.
Tornou-se
comum
pensar
automaticamente na oposição entre um Eu fraco e dependente e um Eu forte e
independente. Na verdade, estamos invertendo os valores, pois é este Eu
supostamente independente que se torna o mais fraco de todos, por sua inabilidade
em gerenciar os fracassos sofridos e as derrotas iminentes.
O uso indiscriminado do “nós” para esvaziar de conteúdo esse “Eu” leva a
problemas tais como falta de confiança, ineficiência relacional, etc. Para Sennett, no
caso específico da confiança, ela toma dois aspectos possíveis: a simples falta de
confiança e o excesso de desconfiança ativa nos outros. Esses problemas éticos
ainda sugerem mais uma face da problemática geral, que é a apropriação indevida
por parte de movimentos como o “comunitarismo” de termos com novo significado
técnico, como confiança, responsabilidade mútua, compromisso, etc.
Ao final de tudo, o que se quer de fato é o retorno à comunidade. A busca individual
está seriamente dificultada pelos pressupostos do capitalismo tardio, enquanto o
72
sistema em si não consegue mostrar saída plausível para suas crises e suas falhas de
modelo.
73
Capítulo 4 - A Literatura - esboço teórico e prático - de fins de
século XIX e início de século XX
“Nesse dia o infeliz engraçado chorou. Compreendeu
que não se desfaz do pé pra mão o que levou anos a
cristalizar-se”.
(Lobato, In: O engraçado arrependido).
4.1. A formação da leitura no Brasil - a partir do século XVIII
O Brasil, sabemos nós, juntamente com muitas outras nações, faz parte dos esforços
coloniais europeus que redesenharam o mundo a partir da Idade Média. Como terra
colonizada, a literatura que se conhece hoje nesses locais percorreu um caminho que
vai do seu surgimento com inegáveis influências diretas da metrópole ao que hoje
podemos ler e identificar como sendo a nossa literatura.
É período das mudanças decisivas, no qual as transformações que se viam em
progresso, mesmo que não se percebesse à época, redundariam, sim, na formação de
uma literatura nova, com crescente acréscimo de elementos genuínos. Isso
tampouco quer dizer que essa nova forma de fazer e perceber literatura não tenha
guardado referenciais de sua matriz que começava a perder tônus por essa ocasião.
As informações referentes à formação da leitura no Brasil, fator preponderante para
que pessoas como Machado de Assis e Monteiro Lobato tivessem leitores mais
74
tarde, servem para ilustrar o pavimento dos caminhos para a literatura que se
praticaria no Brasil, como aquela que ambos produziram.
“O ambiente para a produção literária nos meados do século XVIII era, no Brasil, o
mais pobre e menos estimulante que se possa imaginar, permanecendo a literatura
(...) um subproduto da vida religiosa e da sociabilidade das classes dirigentes”.
(Candido, 2000, Vol. I, 73). Assim começa o capítulo intitulado Literatura
congregada, no qual Candido trata de mostrar que o fato nu e cru do século XVIII
na literatura feita no Brasil apontava para direções que não eram a formação
objetiva de uma literatura nacional, mesmo sendo feita em terras brasileiras.
Candido nos diz que esse foi um período no qual se viu a formação de grupos de
interesses culturais, agremiações formadas nos moldes associativos, como
academias, que primavam pelas letras. Com o passar do tempo, os seus integrantes
desenvolviam seus textos, que ficavam sem leitura abrangente, pois este era um país
com alguma produção literária, mas sem público que a lesse.
Mesmo assim, esse modelo de agremiações foi importante, pois começou a formatar
um pequeno, porém importante público leitor, composto dos próprios agremiados,
que passaram a exercer o duplo papel de autor e leitor, com leituras retroalimentadas
e canalizadas para a fraternidade dos escritores e apreciadores das letras. “Foi,
portanto, um autopúblico, num país sem públicos”. (Idem, 74). De certa forma, este
elemento foi o propulsor da formação de um público que é sócio em suas atividades:
autor e leitor.
75
Enquanto isso, Lajolo e Zilberman (1996) colocam, em acréscimo a essas
informações de Candido, algo que pode explicar interesses de entrelinhas da
ocasião. Segundo seu relato, foi nesse mesmo período que o texto, cuja
consolidação de elemento independente pós-Gutenberg se verifica como irreversível
por várias questões, inclusive as comerciais. O autor adquire status até então
desconhecido, passando a ter importância não apenas intelectual ou fraternal, mas
importância de mercado, com normas e valores sendo aplicados ao seu trabalho.
Dizem elas que foi necessária a postulação do “reconhecimento da autoria,
fundamento da noção de propriedade literária, que adquire força de lei na passagem
do século XVIII para o XIX” (Idem, 61).
Elas concluem que os primeiros beneficiados foram os autores românticos. É bem
verdade que as autoras mencionam a Europa, mas Candido trata de uma nação em
formação que se espelha na Europa para várias coisas, inclusive para estabelecer os
embriões de sua própria literatura.
No capítulo intitulado Musa industrial, as autoras falam da mudança provocada por
um outro importante detalhe da época, que até nossos dias gera análises variadas e
discussões acaloradas. Se, por um lado, o autor começa a ser respeitado em alguma
forma, por outro, o seu texto parece ganhar mais importância que ele, pois,
transformado em produto industrializável e comercializável, cujo acabamento seria
o livro enquanto objeto, passa a valer mais dinheiro que a produção intelectual em
si.
76
A discussão não teve fim nos séculos XVIII e XIX, mas prossegue viva até hoje.
Essa forma de contradição conceitual, quando retornamos a Candido, parece servir
de base de entendimento das razões que levavam as agremiações, por exemplo, a
buscarem tenazmente um novo público que pudesse ser despertado para a leitura,
mesmo que, inicialmente, o mesmo fosse cíclico e restrito. De certa maneira,
Candido aponta para o fato de que o mercado literário brasileiro precisava começar
a funcionar.
A vinda de D. João VI para o Brasil, onde teve de, em pouco tempo, instalar a sede
de seu governo, fez com que determinados elementos importantes ao
estabelecimento de uma cultura nacional de leitura e constituição de literatura daí
surgissem. Formas mais abertas que as anteriores davam novos ares à imprensa, à
literatura, à divulgação de idéias, em paralelo ao surgimento e fortalecimento de
escolas superiores e debates que se davam em meio à intelectualidade da época.
Antonio Candido chama esse período de “nossa Época das Luzes” (Candido, 2000,
Vol. I, 215), deixando claro em sua seqüência de idéias que, para ele, isso despertou
a cultura intelectual e as artes, das quais ele destaca a literatura em particular. A
tudo isso se seguiu o primeiro público verdadeiramente consumidor de artes e de
produções literárias, que se consolida e progride até praticamente os dias atuais,
com poucas variantes. Mesmo assim, com tudo de importante que representou, essa
fase inicial foi ainda marcada pela aliança entre artes e literatura com o aparato do
Estado que, invariavelmente, era o grande fomentador de sua produção.
77
Contudo, o evento da abertura dos portos representou enorme passo ao
desenvolvimento da cultura dos livros no Brasil. Até então, Candido nos lembra que
a entrada dos mesmos era quase sempre clandestina. Com as facilidades de acesso
desse evento, o número de compradores e leitores aumentou gradativamente. De
início, nas primeiras décadas do século XIX, as livrarias eram ainda muito escassas
e os preços dos livros, muito elevados. Os livros encontrados, em muitos casos,
eram de má qualidade editorial ou de cunho estritamente religioso. Mesmo assim,
deu-se o início da comercialização dos livros, numa terra ainda sem maiores
públicos leitores.
Ações paralelas começavam a acontecer no sentido de formar bibliotecas que
dessem acesso ao público leitor em geral. A Biblioteca Real foi aberta no Rio em
1814 e, em 1820, já contava com nada menos que 60 mil títulos. Outras bibliotecas,
como a de Spix e Martius, evoluíram, do ostracismo por volta de 1817, à grande
freqüência em 1825. Para Candido, que fornece essas informações, isso representa a
evolução do hábito da leitura no Brasil.
Logo de início, há uma constatação do que pareceria óbvio, mas que de fato pode
ser verificado em nossa história: o escritor brasileiro não seria capaz de sobreviver
da literatura num Brasil do século XIX. Isso não é difícil de se entender, posto que
até nossos dias essa realidade teima em ser verdadeira para a enorme maioria dos
que se aventuram no mundo da criação literária em nossa terra.
Mesmo constatando que a imprensa trouxe enorme avanço ao universo literário,
precisamos entender que, para o mundo como um todo, mormente o ocidental,
78
estávamos com um enorme atraso. Aliado a esse dado evolutivo de nossa sociedade,
temos mais: os habitantes do Brasil do século XIX eram, na sua maioria, escravos e,
em cerca de 70%, analfabetos. Ora, escravos não compram por não terem dinheiro e
analfabetos não lêem por não saberem fazê-lo. Voltamos então à posição
anteriormente mencionada de autopúblico para as sociedades de interesse específico
em literatura e leitura em geral. Junte-se a tudo isso que, com um mercado exíguo,
tendo em vista a lei da oferta e da procura, afora os problemas técnicos de confecção
ou importação, o livro ainda era preciosidade para poucos abastados.
Numa realidade assim como a descrita, restavam poucos caminhos aos escritores
que se aventuravam naqueles tempos. Um deles era o tradicional caminho político
ou dos apadrinhamentos somente possíveis em sociedades ainda pouco sustentadas
por seus próprios recursos. Tais caminhos foram muito comuns para viabilizar as
primeiras obras e suas edições de alguns dos maiores expoentes de nossa literatura.
Finalmente com relação a esse período temos algumas informações de como se
deram as primeiras vendas dos livros então editados. Enquanto os livreiros eram
escassos e, quando existentes, de poucos produtos e muito preço, a venda direta aos
possíveis consumidores tomou bastante importância. Nesse exato contexto, o livro
era mercadoria como outra qualquer, vendável como frutas, legumes ou mesmo
escravos. Enfim, nesse método de comercialização, o livro não tinha o sentido de
cultura ou literatura que mais tarde se arraigou, mas apenas de mais um produto
comercializável por encomenda ou de porta em porta.
79
4.2. O início da literatura e da leitura no Brasil
Sobre este tema, Candido é mais rico, embora Lajolo e Zilberman também tragam
contribuições importantes. Candido faz a defesa de suas idéias da maneira que lhe é
peculiar, direta e objetivamente, em seu capítulo Teoria da literatura brasileira
(Candido, 2000, Vol. II, 293). Começa por dizer que “a crítica brasileira do tempo
do Romantismo é quase toda muito medíocre, girando em torno das mesmas idéias
básicas, segundo os mesmos recursos de expressão” (Idem). No entanto, mesmo se
posicionando dessa maneira, Candido faz diversas ressalvas, agregando real
importância a fatos de contribuição encontrados na crítica de então.
A primeira das críticas que faz é a de que, mesmo considerando a crítica algo pobre
e sem variantes, ele entende que a mesma reconhecia os momentos pelos quais
atravessava a literatura brasileira naquele momento. De igual modo, ele entende que
o amparo histórico que a crítica ofereceu aos escritores e estudiosos foi de enorme
valia, pois deu base e confirmou escritores a partir de conceituações sem as quais
seria impossível estabelecer caminhos acadêmicos, retóricos, críticos ou literários.
Como é de se esperar numa sociedade sem vínculos históricos de peso, a
estruturação de nossa crítica foi, em grande parte, fruto de uma apreciação nacional
que, com apelos internos, buscou amparo nas academias externas. O que de fato se
deu foi o apanhado de informações críticas junto às matrizes culturais de maior
peso. A busca por modelos é inegável em tempos de formação. A da literatura
brasileira e de sua crítica não fogem a essa regra. Problema novo a ser resolvido era
80
a definição do que seria o caminho adotado por uma literatura nacional, que, até
então, seguia estritos modelos externos.
Candido enumera a retomada das posições de Denis feita por Sílvio Romero, e que
seria, em suas próprias palavras, “o que se pode chamar de ‘teoria geral da literatura
brasileira’”:
“1) o Brasil precisa ter uma literatura independente; 2) esta literatura recebe suas
características do meio, das raças e dos costumes próprios do país; 3) os índios
são os brasileiros mais lídimos, devendo-se investigar as suas características
poéticas e tomá-los como tema; 4) além do índio, são critérios de identificação
nacional, a descrição da natureza e dos costumes; 5) a religião não é característica
nacional mas é elemento indispensável da nova literatura; 6) é preciso reconhecer
a existência de uma literatura brasileira no passado e determinar quais os
escritores que anunciam as correntes atuais”. (Idem, 294).
Talvez o mais ardoroso debate daqueles dias não tenha se dado no campo técnico da
crítica literária, mas, antes, tenha avançado pelas linhas das discussões políticas.
Muito se discutiu das questões nacionais, o que fez com que o debate da crítica
migrasse da área mais cultural e literária para questões como: a literatura deve ser
nacional(ista) ou não, e a partir de que tempo ou de que autorias podemos definir a
literatura brasileira como verdadeiramente nacional? Talvez esse nível de discussão
tenha enfraquecido durante tempos a real importância da crítica literária e as
contribuições mais amplas que poderia ter trazido. Mas devemos entender que o
momento era difícil e com pouco favorecimento a discussões amplas, conforme já
se mencionou anteriormente.
Lajolo e Zilberman, por sua vez, recorrem aos textos de alguns dos autores
românticos brasileiros com a finalidade de interpretar em sua forma de contato
81
quase didática uma necessidade de condução factual do leitor diante do texto. Com
isso, mostra-se que os autores românticos tinham a clara noção de escrever para que
um público ainda frágil em sua leitura tivesse acesso às suas linhas.
Sugerem que, para o autor daqueles tempos, parecia haver a clara noção de que o
público ainda era pouco capaz de compreender a sua obra. Como forma de atestar
esse princípio, elas afirmam ainda que era muito comum os autores românticos
simularem reações dos leitores, aprovando-as em seguida no texto, como se o leitor
mesmo ainda não fosse capaz de chegar a tais conclusões por si próprio.
Para realçar a importância desse momento da leitura no Brasil, voltamos a lembrar
dos episódios da instalação da Biblioteca Real no Rio de Janeiro a partir das
doações de D. João quando de sua estada como monarca sediado nesta cidade. Num
período de escassos meios literários, essa foi uma fórmula bastante eficaz de fincar
raízes num solo ainda pouco semeado como era o do Brasil oitocentista.
Destacavam-se, em certo tempo, duas bibliotecas públicas no Rio de Janeiro: uma
era a Imperial e a outra ficava no Convento de São Bento. Interessante relato no
deixou Thomas Ewbank que, de visita ao Rio entre 1844 e 1845, declara: “A
Biblioteca [Nacional] honra a cidade. Cada pessoa decentemente vestida, branca ou
preta, tem acesso livre à consulta e se quiser fazer extratos, ser-lhe-ão fornecidos
penas, tinta e papel” (Lajolo e Zilberman, 1996, 180). É difícil percebermos de hoje
como teria sido essa percepção de Ewbank de um acesso tão liberado naqueles
tempos. Como esperar, por exemplo, que um negro de então estivesse
“decentemente vestido” ou, mesmo, querendo “fazer extratos?” Os negros eram, via
82
de regra, escravos, logo, mal vestidos e analfabetos (ou semi-alfabetizados). No
entanto, mesmo assim, pela investigação desse autor, parece que havia a liberdade
de fato; talvez só não houvesse condições de fazê-la valer amplamente.
4.3. O pensamento brasileiro no início do século XX
De onde nos viria a idéia de conjugar os eventos dos anos difíceis, embora
prolíficos, do século XIX e seus desdobramentos a partir daí? Ora, os eventos que
conjugam os fatos das diversas expressões humanas de nossa sociedade parecem
apontar para dois pontos que, se bem observados, parecem se estabelecer como
paradoxais. Por um lado, o homem que se cria moderno e pós-liberal muitas vezes
parece ser o mesmo homem que passava a buscar pressupostos e parâmetros havia
pouco perdidos pela humanização social. Cremos que esse imbricado procedimento
tinha a ver com a definição de parâmetros perdidos em meados do século anterior e
que, naquele início de século, precisavam ser restabelecidos, mesmo que com novas
roupagens.
O homem precisava se encontrar novamente, ou, quem sabe, pela primeira vez. Em
1920, por exemplo, o mundo ocidental ainda respirava freneticamente todas as
descobertas e alterações sugeridas pelos novos movimentos de fins do século XIX.
Na política não foi diferente. Na cultura, muito menos ainda. No Brasil, como em
muitos outros países semelhantes ao nosso, houve tempo em que política e cultura
pareciam não haver se divorciado.
83
Política e cultura andaram de mãos dadas por muito tempo no Brasil. Muitas ações e
realizações no campo das artes e do academicismo tiveram influência aberta das
estruturas políticas que regiam os momentos pelos quais o Brasil atravessava.
Muitos dos nossos maiores autores e intelectuais foram funcionários públicos e
conviveram harmonicamente oscilando entre o servir burocraticamente a sociedade
e a servir com suas reflexões e sua arte. A influência ia desde uma obra de arte,
fosse uma tela, até um conglomerado arquitetônico que denunciava os traços dos
governos ou do Estado mesmo.
Através do universo político, a intelectualidade no Brasil se viu muito próxima do
poder público. Como não poderia deixar de ser, as formatações políticas também
influenciaram em muito as contratações e convocações para cargos de confiança.
Muitos outros intelectuais eram simplesmente funcionários públicos de carreira que
prestavam seus serviços à comunidade em geral.
Muito apropriadamente, o que se viu no Brasil foi uma forte influência políticopartidária na formação do intelectual no Brasil, até por considerarmos real a
proximidade com o poder público (Miceli, 1979, 2). Isso tornava, de certa maneira,
intelectualidade e classe política um mesmo e coeso público-alvo de diversas ações
públicas e de imprensa especializada. “A Revista do Brasil se propunha a suscitar
uma tomada de consciência por parte da nova geração de intelectuais e políticos da
oligarquia” (Idem, 3). A Revista do Brasil era uma publicação que tinha alvos
comerciais
que
conviviam harmoniosamente
com vultos
expressivos
da
intelectualidade brasileira e disputava o espaço comercial com diversas outras
84
publicações de porte expressivo. Chegou mesmo a se criar uma editora com o
mesmo nome que teve em seu catálogo os maiores expoentes da intelectualidade da
época.
Surge uma característica que se tornou praxe no Brasil, exatamente no período em
que se buscava estabelecer uma identidade intelectual e política. As questões da
Política começam a ser permeadas pelas questões das diversas políticas, inclusive as
de grupos e partidos que compunham as bases governistas. A intelectualidade que
servia publicamente foi tocada por essas questões em maior ou menor grau. O
chamado grupo do Estado (em referência ao jornal Estado de São Paulo) buscava
desanimar seus concorrentes fazendo “constantes referências às épocas em que os
órgãos de imprensa ‘viviam dos partidos e para os partidos e cada um para o seu’,
em denunciar a venalidade, o suborno e as subvenções oficiais de que dependia a
imprensa” (Idem, 5).
As ações públicas e as ações intelectuais tinham grande visibilidade da mídia da
época e dela sofriam muitas influências. Aquele mesmo ser humano tendo em algo
seu Eu desvalorizado e fragmentado, buscava por esses meios fazer com que se
tornasse menos vulnerável a sua instabilidade. Umas das práticas foi a criação e o
fortalecimento de grupos de interesse, hermeticamente estabelecidos, a fim de
propiciar aos seus integrantes uma idéia de hegemonia, força e integralidade.
Círculos do poder e do saber se formaram nas principais rodas de debate no Brasil.
Para Miceli, a ascensão no Brasil era cada vez mais dificultada, pois havia um
verdadeiro protetorado interno nesses grupos de afinidade e cuidados mútuos.
85
Após os anos 30, nota-se com mais freqüência a aproximação cada vez maior entre
intelectuais e classes de domínio de poder. Uma das ações que denunciam esse
processo é a mudança mais notada de partidos políticos, deixando em segundo plano
os objetivos do pragmatismo partidário e dando maior ênfase à continuidade dos
laços políticos estabelecidos. Muitos intelectuais da época desempenharam papel de
liderança e direção em órgãos públicos proeminentes, devendo, para manter estável
uma carreira política, se manterem fiéis muito mais a legendas pessoais e
condicionais que a princípios de ética partidária. Continuamos a ver que enquanto
esses intelectuais “assumiam diversas tarefas políticas e ideológicas, também se
lançaram a fundo nas lutas do campo literário, no intuito de impor os princípios e
modelos estéticos da arte ‘moderna’” (Idem, 12-13).
Nesse mesmo ambiente de políticas de enlaces, um outro fenômeno que muito
influenciou a formação intelectual na época foi o modelo de ensino. A formação
religiosa era a alternativa única para as pessoas oriundas de classes sociais menos
favorecidas, as quais não tinham meios para suprir seu crescer acadêmico por outras
formas. Esse modelo lhes passava formação intelectual humanista e clássica, o que
fazia delas pessoas mais preparadas para o exercício de futuras profissões,
geralmente aquelas ligadas ao serviço público. Muitas famílias deixavam para os
primogênitos a seqüência dos negócios familiares, enquanto que os demais filhos
eram endereçados a estudos acadêmicos. Ao final, em geral eles findavam por
pleitear cargos de direção em atividades políticas ou acadêmicas.
86
Isso começou a mudar com a proliferação de instituições de ensino superior livres,
fossem particulares ou públicas, que “afetou diretamente as reservas do mercado de
postos até então monopolizadas pelos detentores de diplomas concedidos pelos
cursos superiores oficiais” (Idem, 38). Diferentemente de tempos anteriores, o
diploma superior não mais representava apenas elo distintivo entre pessoas, mas
agora poderia também representar possibilidade real de colocação e disputa de
níveis diferentes de influência.
Todas essas caracterizações e peculiaridades ainda sofreram um outro movimento
de tensão, que deixava a disputa pela consolidação desse Eu em questão. A disputa
entre as questões da matéria, que pareciam mais afeitas aos novos rumos da
humanidade após o Fin-de-Siècle, e as questões do espírito, paradoxalmente
retornando com muito vigor em alguns círculos. Para Miceli, o que realmente estava
em jogo continuava a ser a estruturação e manutenção/ retomada de poder.
No campo político que geria a vida brasileira, voltamos um pouco no tempo, quando
da formação das estruturas que serviram de base ao período de virada de século. O
Brasil era terra em que os movimentos internacionais definiam muita coisa, mesmo
em âmbito interno, o que, como sabemos, continua sendo realidade até nossos dias.
Na ótica de Schwarz, a passagem do Brasil de uma condição de colônia para uma
nação independente não cumpriu todos os seus papéis, tudo aquilo que poderia se
esperar, principalmente porque a bandeira levantada era a do Liberalismo,
empunhada abertamente pelos partidários dos movimentos de independência
nacional.
87
O modelo adotado não atingiu os problemas mais profundos, passando-nos de uma
dependência formal de um pólo colonizador a uma dependência econômica em
relação a outros pólos colonizadores, desta feita com a utilização dos processos
sócio-econômicos. O autor mostra que a realidade que atingia o modus vivendi de
uma terra explorada continuava exatamente da mesma forma, citando exemplos bem
conhecidos sobre como isso se deu: enquanto a estrutura se transforma na esfera
local e na internacional, a base prática continua estagnada e sem qualquer alteração
que merecesse destaque. Isso representa fazer uma diferenciação entre pessoas e
entre possibilidades em seu tempo e em tempos futuros.
É sabido que a emancipação política do Brasil, embora integrasse a transição para
a nova ordem do capital, teve caráter conservador. As conquistas liberais da
Independência alteravam o processo político de cúpula e redefiniam as relações
estrangeiras, mas não chegavam ao complexo sócio-econômico gerado pela
exploração colonial, que ficava intacto, como que devendo uma revolução.
Noutras palavras: o senhor e o escravo, o latifúndio e os dependentes, o tráfico
negreiro e a monocultura de exportação permaneciam iguais, em contexto local e
mundial transformado. (Schwarz, 1990, 36).
No âmbito mais intelectual do processo, as mesmas pessoas e os mesmos círculos de
poder que davam continuidade aos processos arraigados na sociedade e na política
brasileira eram obrigadas a pensar com mentes que olhassem com certo cuidado os
novos movimentos, o que representa dizer que, de alguma forma, repensava-se a
condição sócio-econômica brasileira.
No tocante às idéias caíam em descrédito as justificações que a colonização e o
Absolutismo haviam criado, substituídas agora pelas perspectivas oitocentistas do
estado nacional, do trabalho livre, da liberdade de expressão, da igualdade perante
a lei etc., incompatíveis com as outras, em particular com a dominação pessoal
direta. No plano econômico-político afirmava-se o sistema internacional
88
polarizado pela industrialização capitalista, especialmente inglesa, cujo lado
liberal pautaria a consciência do século. O que significava nestas circunstâncias a
persistência do sistema produtivo montado no período anterior? (Idem, 36).
A vida nacional vivia um processo de ambivalência, numa interessante sugestão à
própria fragmentação do Eu experimentada pelo indivíduo no Fin-de-Siècle. E essa
característica, em que o avançado e retrógrado parecem conviver amigavelmente, o
Brasil consolidou muitas de suas estruturas de ação, o que persiste até hoje, assim
como persistiam os modelos de produção montados com base numa sociedade servil
e escravocrata, mesmo encharcados por idéias liberais.
O Brasil, sendo nação independente, era, no entanto, nação criminosa. A situação
em que se via o país era muito peculiar, senão estranha, como narra Schwarz, que
demonstra que, diante de uma estrutura legal, mesmo do ponto de vista
internacional, o Brasil vivia na contravenção às leis e acordos vigentes à época:
A face drástica da situação encontrava-se no tráfico negreiro, proscrito como
“pirataria” em Direito Internacional, condenado do ponto de vista religioso,
moral, político e econômico, privado dos antigos patrocínios governamentais,
transformado enfim num imenso empreendimento ilícito e - como a que entretanto
se prendia o andamento normal dos negócios brasileiros, que ficavam de
estruturalmente associados à contravenção. (Idem, 39).
Como conseqüência, e por inferência, deduzimos que os movimentos na sociedade,
nas artes e nas esferas do poder tinham também como alvos as descobertas de
princípios de centralização ideológica e de explicação do mundo ao redor dos
homens da época. Além disso, tais pessoas, que tinham seu interior desvalorizado e
fragmentado a partir de pressupostos que as esvaziavam de suas crenças, tinham
89
gerado um estado de coisas, inclusive no poder público, que agora precisava
encontrar novos rumos. Daí a importância de que, nesse momento, a
intelectualidade brasileira devia de fato ter se aproximado dessas esferas da
sociedade.
A industrialização iniciada na Europa de forma acelerada e sem retorno, cujos
efeitos se faziam perceber também na arte e na cultura em geral, parecia apontar
uma alternativa possível ao futuro humano. Isso foi mais bem percebido no período
entre as duas grandes guerras mundiais que assolaram a Europa, exatamente o
mesmo palco de todas as novas e intensas reflexões da humanidade. No entanto,
como temos visto, todo esse mover remonta ao período intermediário do século
XIX, época de formação de novos pressupostos que agora eram consolidados. No
Brasil, tudo isso era refletido de maneira direta, principalmente pelas peculiares
relações de dependência que tínhamos - e continuamos a ter - de centros europeus e,
posteriormente, do norte-americano.
4.4. Conceitos gerais e brasileiros de literatura
Antes de explicar os porquês da obra de sua autoria que aborda exatamente a
formação da literatura no Brasil, Antonio Candido trata de resgatar alguns
pressupostos de sua percepção da literatura enquanto sistema. Interessante notar que
desde esse primeiro instante, o autor pretende abarcar vários itens que vez por outra
são desprezados ou menosprezados nas análises, tais como o objeto livro, o mercado
editorial, os autores, os editores, enfim, a completa organização de um sistema
90
encadeado e que é retroalimentado a partir de sua própria necessidade de progredir e
crescer.
Quando faz a sua introdução ao tema dessa maneira, Candido se despe de evocações
mais clássicas e bem consolidadas no meio da crítica, que geralmente vê a literatura
não como um todo, mas em partes de seu interesse particular ou de específico
estudo. Em geral, tem-se o conteúdo, mas rejeita-se tocar em pormenores, como o
meio pelo qual o conteúdo é difundido e perpetuado, bem como aqueles que
trabalham para a construção desse meio.
Quebrar paradigmas parece ser uma forma de estudar divertidamente de Candido.
Nesta sua obra, ele o faz com maestria e bom humor, mesmo sendo um humor por
vezes irônico, algo mais penetrante que o humor machadiano, já que Candido, como
crítico, dá nomes e aponta problemas; e o faz de modo direto.
A formação de todo um sistema não é algo que se dê de uma hora a outra, mas
carece de todo um processual histórico, sociológico, metodológico e de inúmeras
facetas de valor imponderável no todo. Por isso é tão importante a declaração de
Candido sobre os elementos da literatura de forma tão abrangente. Diferentemente
da maioria, ele, de modo precoce, defende esse status macro da literatura.
A partir de sua apropriação de todos os elementos como sendo importantes, Candido
aponta para o ângulo maior de seu trabalho, que é a discussão do que vem a ser
literatura brasileira e trabalha sob a perspectiva de que ela seja, de fato, literatura
nacional brasileira somente a partir do Arcadismo e do Romantismo. Encaixam-se a
partir daí tanto Machado quanto, posteriormente, Lobato.
91
Para Candido, havia um vazio a ser preenchido na literatura brasileira e este só o foi
a partir do período que nos interessa, ou seja, o mesmo que temos para observar
quanto a muitos modelos de formação no Brasil. A literatura também enfrentava um
vazio de postulados, como ele mesmo assegura ainda em seu texto de introdução à
obra em destaque. Mais adiante veremos como a questão de poder e política andou
de mãos dadas com a intelectualidade brasileira ao longo de décadas a fio,
mostrando, talvez, que todas as frentes estavam envolvidas com a configuração
elementar de um Brasil que buscava sua identidade por ser nação recente e jovem,
tanto como o homem daquele tempo, que tinha havia pouco se descoberto sem seus
parâmetros clássicos. Diz ele sobre a atividade literária:
Depois da Independência o pendor se acentuou, levando a considerar a atividade
literária como parte do esforço de construção do país livre, em cumprimento a um
programa, bem cedo estabelecido, que visava à diferenciação e particularização
dos temas e modos de exprimi-los. Isto explica a importância atribuída, neste
livro, à “tomada de consciência” dos autores quanto ao seu papel, e à intenção
mais ou menos declarada de escrever para a sua terra, mesmo quando não a
descreviam. (Candido, 2000, Vol I, 26).
E:
Ao mesmo tempo, esta imaturidade, por vezes provinciana, deu à literatura
sentido histórico e excepcional poder comunicativo, tornando-a língua geral duma
sociedade à busca de autoconhecimento. Sempre que se particularizou, como
manifestação afetiva e descrição local, adquiriu, para nós, a expressividade que
estabelece comunicação entre autores e leitores, sem a qual a arte não passa de
experimentação dos recursos técnicos. (Idem, 27).
A sociedade e a literatura estavam, ambas, em processo de descoberta de quem eram
de fato. Muitas coisas que ocorriam eram experimentais e iam em direção a uma
92
busca
por
identidade
e
complementação
das
necessidades
básicas
de
(auto)conhecimento. Assim como Sennett fala de classe política num contexto mais
amplo e sociológico, Miceli nos faz interessante estudo sobre como, no Brasil, a
intelectualidade e essa classe estiveram intimamente ligadas em período de
consolidação mútua.
É Candido mesmo quem nos faz pensar sobre como a literatura é de fato a
demonstração artística daquilo que se passa na sociedade. A construção de uma
consciência nacional, o levantar e apresentar continuado dos fatos que montam a
estrutura temporal de uma sociedade e tudo o que compõe a formatação sociológica
e antropológica dos indivíduos parece ser de fato função de suma importância da
literatura.
A industrialização iniciada na Europa de forma acelerada e sem retorno, cujos
efeitos se faziam perceber também na arte e na cultura em geral, parecia apontar
uma alternativa possível ao futuro humano. Isso foi mais bem percebido no período
entre as duas grandes guerras mundiais que assolaram a Europa, exatamente o
mesmo palco de todas as novas e intensas reflexões da humanidade. No entanto,
como temos visto, todo esse mover remonta ao período intermediário do século
XIX, época de formação de novos pressupostos que agora eram consolidados.
A literatura e as artes em geral são expressões do ser humano. Neste caso, um ser
humano cujas emoções haviam sido tocadas no seu âmago. Dilacerado por dentro,
ele não conseguia mais se relacionar por fora, o que tornou viável um só caminho, o
qual o levaria a posições inesperadas para ele anteriormente. Incapacitado de se
93
resolver por dentro, o homem agora via-se incapacitado também para agir através de
seus afetos para fora de si mesmo. Sobre isso, diz-nos Lins:
No plano das emoções, também, o dilaceramento parece inevitável. Espera-se
muito e se obtém pouco das relações afetivas. Tanta expectativa depositada sobre
o outro resulta em decepção. Teria sido melhor, talvez, permanecer no território
das interdições do século XVIII do que descobrir que a liberdade de ações não se
mostra suficiente para saciar os desejos. (Lins, 2006, 160).
Fazendo uma ligação entre as últimas descrições de Candido e Lins e as demais
observações gerais deste trabalho, percebemos que a fragmentação percebida dentro
do homem correspondia a algo semelhante do lado de fora do mesmo. O tempo, as
sensações, as emoções, as crenças, os pressupostos e até a verdade eram coisas
agora relativas, passíveis de se constatarem diferentes, inclusive em planos
semelhantes, mesmo quando aparentemente não havia razão para não ser uma das
verdades igual à outra.
As sensações e sentimentos que permeavam o homem de todo esse período o
levavam cada vez mais próximo do se sentir vazio, quase nada, sem amparo, de
futuro incerto. O que está por se evidenciar neste caso é a idéia concreta, se assim a
podemos nominar, de que ele de fato encontra-se sob intensa fragmentação interior.
Voltando a Lins, o que ele nos mostra é que vivemos um verdadeiro dilema interior
que tem um claro espelhamento exterior. Sós com relação a nós mesmos, tornamonos solitários também nas metrópoles e nas concentrações humanas, deixando de
conviver naturalmente entre semelhantes para sobreviver entre dessemelhantes.
Mais uma vez, em suas palavras:
94
Caímos num dilema: por um lado, evitando os contatos pessoais (os estranhos
insinuando-se como arredios e ameaçadores ou derrotados), agindo como
dessemelhantes; e, por outro, no programa da uniformização, evitamos nos
destacar no nível do gosto e das opiniões ou dos hábitos. Sublinhe-se que a
identidade colocada em termos absolutos por um sistema de fundamentos
comerciais, na sociedade de massa, não condiz com identidade individual, o
reconhecimento do eu por si mesmo. (Idem, 173).
Em seu Tratado do desespero, Sören Kierkegaard escreve sobre o Eu fragmentado,
que ele chama de Eu-dividido como a doença mortal do desespero em que a vida é
vivida em estado de separação e de solidão. Para ele, é a partir do desespero que se
pode entender a esquizofrenia. O existente, só se sente existir se a sua existência for
confirmada pelo outro. Ele nos dá o seu rigoroso retrato em O Diário de um sedutor,
definindo-o como aquele que pede repetidamente um estímulo à realidade e que se
sente desarmado quando o perde, pois só é sensível ao prazer que cada situação lhe
traz.
95
Capítulo 5 - Machado e Lobato. Vidas e expressões
Até este ponto muito foi dito a fim de fortalecer a idéia de que ambos os autores de
interesse, Machado de Assis e Monteiro Lobato, cada um a seu tempo e ambos em
suas obras, foram influenciados pelos eventos específicos do Fin-de-Siècle e
tiveram a exposição do Eu fragmentado em seus contos. As idéias que cercavam os
autores foram, conscientemente ou não, externadas através de seus textos.
Entendemos que autores são expoentes de seu tempo e verdadeiras testemunhas
daquilo que viram e experimentaram.
É interessante notarmos a distância entre eles em paralelo aos fatos comuns que os
cercam. Procedências, famílias, genética e tempo: tudo pode ter sido diferente entre
eles, mas o fato é que são testemunhas e herdeiros de um mesmo processo. Um
viveu o ápice das transformações e o outro viveu o tempo em que elas se
consolidaram na sociedade. Foram pessoas marcantes e marcadas em seu tempo. E
também se propuseram a marcar os que viriam depois deles através de suas obras.
Nesta parte do estudo, migramos para a leitura mais objetiva da figura do Eu
fragmentado que aparece em alguns contos escolhidos de Machado e Lobato. O
pano de fundo da sociedade, da Filosofia, das artes e da geopolítica já foi
apresentado, servindo de base de compreensão de que há de fato representações
desse Eu fragmentado, desse homem sem mais verdades tão absolutas.
96
É importante também para este momento destacar trechos de suas falas,
relacionando seus ditos numa literatura ficcional com os episódios extraídos da
trama real que viveram individual e coletivamente.
Mais uma vez, creditamos o papel de testemunha de seu tempo aos autores das
literaturas nacionais, o que é confirmado pela opinião de Schwarz, citando o próprio
Machado, ao dizer que “numa fórmula célebre, que lhe serviria de programa de
trabalho, Machado afirma que o escritor pode ser ‘o homem do seu tempo e do seu
país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço’”. (Schwarz,
1990, 9).
5.1. Relação entre Machado e Lobato
Machado de Assis e Monteiro Lobato, bem o sabemos, não foram contemporâneos
na maior parte do tempo. Viveram parte de suas vidas num mesmo período, mas em
fases diferentes, tanto no que tange à evolução e maturidade pessoal, quanto a suas
produções intelectuais. Machado nasceu em 1839 e morreu em 1908. Quando
Lobato nasceu, em 1882, Machado já estava entrando na meia idade, com seus 43
anos. A morte de Lobato se deu em 1948, 40 anos após a morte de Machado. A
primeira publicação de Lobato deu-se em 1914, ou seja, começou a publicar
sistematicamente cerca de seis anos após a morte de Machado.
Machado viveu as transformações do Fin-de-Siècle e todas as questões que vimos
até aqui. Não apenas as viveu como testemunha de seu tempo, mas como intelectual
que percebia as mudanças e esperava por ver o que se daria a partir delas. Não viu
97
tudo, mas o que viu e experimentou foi o suficiente para uma das mais mordazes
manifestações literárias de nossa literatura nacional. A ética, a politicagem e as
fragilidades relacionais seriam meros casos do dia a dia, não fossem os dramas que
o homem vivia com a fragmentação do seu Eu.
Lobato foi da geração que não testemunhou as transformações diretas do Fin-deSiècle da mesma forma que Machado. Mas ele foi da geração que viu a consolidação
dos traços desse fenômeno quando o mesmo se tornou o ponto comum entre nós. A
derrocada do valor humano, a baixa estima por si e pelo outro e a luta exacerbada
por benefícios e ganhos - nem sempre obtidos de maneira ética - são apenas alguns
dos elementos que compuseram o que Lobato vivenciou desde seus primeiros anos.
E, ao se tornar maduro, foi o que percebeu na sociedade e o que deixou gravado em
seus contos.
Ambos eram brasileiros, filhos de brasileiros. Foram bem educados, cada um
segundo as posses dos seus tutores, mas é fato que tinham nível intelectual muito
bom para seu tempo. Machado fez parte de uma leva de gente que tinha poucas
opções na vida nacional: o homem para prosperar poderia ser sacerdote, militar,
político ou funcionário público. Em todas as possibilidades, inegavelmente havia
uma produção de favores em larga escala, mas essas eram as regras de seus dias.
Infelizmente, parte delas continua vigorando nos porões brasileiros em muitas áreas
da vida, principalmente aquelas que envolvem interesses públicos diretos. Machado,
portanto, segundo consta, entregou-se ao jornalismo e ao funcionalismo público, dos
quais obteve sustento para si e sua família.
98
Mais tarde, com algumas mudanças tendo se operado na sociedade brasileira,
Lobato já chegou a ver uma outra realidade que, se não anulava a anterior, pelo
menos passava a lhe apresentar outras opções como paralelas. O empreendedorismo
estava se fixando de maneira mais ostensiva no Brasil, deixando para pessoas
comuns, e não mais apenas para alguém como o Barão de Mauá, a possibilidade de
investimentos em diversas áreas de produção e serviços e a conseqüente colheita dos
frutos desse investimento mais tarde. Bastava que dispusessem de recursos e boas
relações. Lobato estava inserido nesse contexto, e assim o fez. Foi homem de
negócios, inaugurando fases, como o mercado editorial e a prospecção petrolífera
em terras brasileiras. Era homem que imaginava, acreditava e, de certa forma, estava
disposto a arriscar até obter sucesso em suas empreitadas.
5.2. Machado, seu mundo e suas percepções do homem fragmentado
“- Nada menos de duas almas.
Cada criatura humana traz duas almas consigo:
uma que olha de dentro para fora,
outra que olha de fora para dentro...”
(Machado, In: O espelho).
É de Alfredo Bosi (2006) um interessante texto cuja centralidade é a obra de
Machado a partir da re-leitura de outros críticos. Embora trate essencialmente de
99
romance, principalmente o Memórias póstumas de Brás Cubas, as análises nos
auxiliam a entender determinados pontos que eram comuns ao ser de Machado e
que, portanto, se faziam refletir em sua obra como um todo.
Na terceira parte do livro, cujo título é Raymundo Faoro leitor de Machado,
encontramos que, o Brasil, à época em que Machado desenvolveu sua percepção
social e política, era ainda o de transição do Segundo Império para a República, com
fortes traços de influência liberal, exatamente a mesma força que se via em descenso
conceitual em muitas partes da Europa, pelo menos no que tange ao modelo
clássico. A política, até pouco mais da metade do século XIX, era muito
conservadora e baseada em “influências”, as quais em geral orbitavam em torno de
fazendeiros ricos, do clero, da magistratura e do exército.
Na literatura, os textos nativistas de Alencar pareciam corroborar a escravidão que
dominava o cenário operacional, enquanto outros autores já ousavam defender a
libertação de homens escravizados, mesmo sob riscos financeiros para as classes
dominantes, o que era nítida influência através da política liberal. O autor relaciona
os eventos da política brasileira de então como uma espécie de corruptela do modelo
liberal, taxando-o de excludente numa posição em que ele, na verdade, tentava se
impor. Uma espécie de contra-senso, o que ele alcunha de modelo confuso e
fragmentário e que interessava diretamente à burguesia daqueles tempos.
Concluindo esse pensamento, o autor crê que, de fato, o Brasil viveu dois
liberalismos, um econômico e outro político. Machado, por ser contemporâneo a
ambos, viveu as crises de identidade que a sociedade experimentou enquanto ambos
100
os modelos denominados de igual forma coexistiram. A inconsistência ideológica
do poder no Brasil, particularmente dos defensores do liberalismo mais pragmático,
parece ter sido a causa maior para que Machado se mostrasse em movimento
intelectual e político, indo da militância liberal dos primeiros tempos de sua vida
pública a uma quase indiferença irônica sobre as questões da política nacional.
Por que Machado maduro, pessoalmente simpático aos novos liberais, acabou
distanciando-se de uns e de outros? Por que não propôs, nem excogitou, nem ao
menos entreviu o caminho de uma alternativa, uma terceira via? O fato a ser
interpretado é que Machado de Assis, enquanto cronista (sua face visível de
homem público), não militou em nenhuma das novas correntes nem sustentou
nostalgicamente as antigas, porque, a certa altura, passou a descrer de toda e
qualquer ideologia que pretendesse transformar o “barro humano” e a sociedade
que nele se fundara. O seu desencanto profundo tê-lo-ia impedido de engajar-se
animosamente na luta reformista dos companheiros de juventude e dos que os
sucederam. Monarquista e liberal, em senso lato, e abertamente simpático aos
abolicionistas, mas estranhamente cético, preferiu fixar o lado sombrio ou apenas
risível dos que usavam o velho nome “liberal” para defender seus direitos à
propriedade e aos cargos públicos. (Bosi, 2006, 114).
E, é exatamente nessa encruzilhada de idéias e pareceres de Machado, que mais uma
vez nos vêm à lembrança muitos de seus contos. Imagens fortuitas ou recorrentes,
como luzes, espelhos, insanidades e alterações constantes da capacidade perceptiva
de muitos personagens machadianos parecem querer apontar para o reflexo pessoal
do autor, sendo que ele mesmo talvez se percebesse fragmentado interiormente. É
por isso que Bosi coloca que
Apesar da remissão última à Natureza, a construção machadiana das personagens
não será naturalista, em senso estrito, pois o mesmo desejo “natural” enfrenta o
desafio das normas sociais. Daí a necessidade da máscara, do negaceio, da
hipocrisia e, às vezes, da mentira. (Idem, 123).
101
Além disso,
O moralismo, universalizando os desejos e os interesses do eu (ainda que os
considere, na origem, detestáveis, enquanto vaidade e ambição), irá, no limite,
compreender a sede de igualdade que a nova sociedade liberal-individualista
desperta no agregado e no independente. (Idem, 124).
É esse Machado fragmentado de certa maneira e optante por se manter fiel, antes a
um processo de sua mores interna que aos apelos de elementos externos, que é visto
como alguém moralista, no sentido pejorativo do termo, mas que, de fato o era, no
bom sentido da palavra. Sua moral era baseada em pressupostos que ele parece
haver vislumbrado e defendido aberta ou sutilmente através de seus textos.
A fragmentação exposta de e por Machado em seus contos está refletida em suas
atitudes, inclusive as de seu discurso literário. Schwarz (1989) trata de considerar
que ele apresenta traços de volubilidade quando se apresenta como o narrador de
suas obras. Sobre Machado, diz ele que
Este não permanece igual a si mesmo por mais de um curto parágrafo, ou melhor,
muda de opinião, de assunto ou de estilo quase que a cada frase. Há um elemento
de complacência nesta disposição mercurial, bem como no virtuosismo retórico de
que ela depende para se realizar. São viravoltas sobre viravoltas, que
invariavelmente se acompanham de uma satisfação de amor-próprio para o
narrador. Esta tem a ver com o desejo de atenção que sublinhávamos atrás, ao
analisar o texto, desejo decisivo para o nosso raciocínio. Uma vez que este
movimento subordina tudo o mais, pode-se ver nele o princípio formal do livro.
(Schwarz, 1989, 118-119).
O espelho, por exemplo, lembra claramente esse Machado em ebulição, querendo
falar de suas próprias metáforas quando expunha as metáforas da língua que
utilizava como veículo de idéias. As duas almas desse conto podem nos remeter a
102
um autor que gritava que as almas com as quais se relacionava em seu tempo eram
ambivalentes, incertas, voláteis e talvez inconstantes, tudo rumando a uma
fragmentação interior que, talvez ainda, fosse a expressão de si próprio na sombra
dos personagens modelados por Machado. “A lição última do conto é a vitória
indefectível do papel social que estrutura o eu”. (Bosi, 2006, 125). E segue dizendo
que “‘O espelho’ lembra, ainda uma vez, a fragilidade da alma, sendo mais um
dramático exemplo da precariedade da pessoa humana”. (Idem).
O Brasil, embora ainda em fase insípida de seu desenvolvimento social, havia
recebido por parte do Império inegável estímulo às ciências e às artes. Aquilo que se
fazia novo e recém-descoberto na Europa era abertamente aceito por aqui. Na
literatura, por exemplo, algo que chegava ao Brasil nos tempos de Machado com
maior força era o personagem com fortes traços psicológicos, fazendo coro ao que a
própria realidade humana apresentava naqueles dias.
O Brasil de Machado era aquele mesmo anteriormente citado, que vivia a
ambivalência de ser uma nação com base liberal, ao mesmo tempo em que insistia
em não abrir mão de sua realidade escravista. Nesse ponto, e com suas idéias que
migravam ao liberalismo e ao pensamento relativamente independente, Machado
deixava por vezes transparecer seus pensamentos de ordem social de maneira mais
aberta. No entanto, nos textos de Machado isso não necessariamente representa falar
diretamente ao leitor, mas apenas registrar sua posição, à sua maneira, como nos diz
Schwarz:
103
A presença de escravismo é determinante, conforme tratei de mostrar, embora as
figuras de escravo sejam raras. Umas poucas anedotas esparsas bastam para fixar
as perspectivas essenciais. A parcimônia nas alusões, calculada para repercutir, é
enfática à sua maneira: um recurso caro ao o humorismo machadiano, mais amigo
da insinuação venenosa que da denúncia. (Schwarz, 1990, 106).
Continua o autor mostrando que Machado teve condições de expor seu pensamento,
não poupando nenhum dos lados, nem mesmo o do ex-escravo que por qualquer
razão se tornava brutal após sua alforria, que, de forma geral, tenderia a ser
desconsiderado pelas circunstâncias anteriores de sua vida.
Em conclusão, as cenas onde entram escravos condenam a ordem social do país,
fixam traços de caráter perniciosos, em que é patente a impregnação escravista da
classe alta, e fazem ver o cativo segundo esquemas de psicologia universalista,
estritamente os mesmos da humanidade em geral. Para apreciar o valor crítico
deste universalismo, basta considerar que à sua luz as brutalidades de um escravo
forro não são menos complexas e espirituais que os divinos caprichos de uma
senhora elegante, contrariamente ao que pensariam o preconceito comum, ou
também o racismo científico então em voga. (Idem, 107).
É o mesmo autor quem nos indica, em outra de suas obras, a continuidade desse
raciocínio, asseverando mais uma vez “que a independência brasileira não foi uma
revolução” (Schwarz, 1989, 42), em clara alusão ao estado de coisas que vivíamos
naqueles tempos. Explica isso dizendo que a única coisa que de fato mudou foram
“o relacionamento externo e a reorganização administrativa no topo” (Idem),
deixando dessa forma intacta “a estrutura econômico-social criada pela exploração
colonial (...), agora em benefício das classes dominantes locais” (Idem, 42-43). O
aspecto fragmentado da sociedade brasileira dos tempos de Machado é exposto,
assim, numa literatura pungente que não deixou de marcar seus dias.
104
Nesse mesmo pressuposto, e fazendo referência aos mesmos problemas e questões
em outras considerações suas, Schwarz segue seus comentários, citando como
notável o texto O abolicionismo de Joaquim Nabuco, datado de 1883. A
inconstância e as dificuldades de ter idéias referenciadas em algo equilibrado são
nitidamente percebidas no trecho selecionado. Vejo como algo interessante que a
diversidade de atitudes e a fragmentação de pressupostos, de certa forma, são
concordes com o período em que nos encontrávamos em termos de posicionamento
humano. Por essa razão, chega a ser aceitável a instabilidade e a fragmentação social
que Machado notava e transcrevia, a mesma observada por outros pensadores. Uma
forma paradoxal de se ver a realidade de então: criticamos hoje a sociedade
brasileira da mesma forma que criticamos a ambigüidade das relações humanas
consigo mesmo e as interpessoais, mas não devemos nos esquecer que tanto as
relações quanto as sociedades são formadas por pessoas, exatamente as pessoas que
se encontravam fragmentadas no período Fin-de-Siècle. Por isso, talvez, as notadas
dificuldades da “situação ideológica e moral” dos dirigentes do Brasil.
Embora sejam conhecidas, as dificuldades da situação ideológica e moral da
camada dirigente brasileira, e especialmente da Coroa, não costumam ser levadas
em muita conta. O assunto pode ser visto no livro notável de Joaquim Nabuco
sobre O abolicionismo (1883). Obrigados pelo seu papel de representação externa,
esses dirigentes liberais de um país de economia escrava diariamente tinham de
pedir para a sua pátria e para si mesmos o reconhecimento do “mundo civilizado”,
cujos princípios elementares, entretanto, dada a realidade social, eles tinham de
infringir com igual constância. (Schwarz, 1989, 124).
105
Finalizando neste ponto as considerações de Schwarz sobre questões dessa natureza,
temos a sua opinião de que o período e os processos eram, de fato, assimétricos,
instáveis e, como era de esperar para a época, fragmentados em seus pressupostos.
De um lado, tráfico negreiro, latifúndio, escravidão e mandonismo, um complexo
de relações com regra própria, firmado durante a Colônia e ao qual o
universalismo da civilização burguesa não chegava; de outro, sendo posto em
xeque pelo primeiro, mas pondo-o em xeque também, a Lei (igual para todos), a
separação entre o público e privado, as liberdades civis, o parlamento, o
patriotismo, o romântico etc. A convivência familiar e estabilizada entre estas
concepções em princípio incompatíveis esteve no centro da inquietação
ideológico-moral do Brasil oitocentista. A uns, a herança colonial parecia um
resíduo que logo seria superado pela marcha do progresso. Outros viam nela o
país autêntico, a ser preservado contra imitações absurdas. Outros ainda
desejavam harmonizar progresso e trabalho escravo, para não abrir mão de
nenhum dos dois, e outros mais consideravam que esta conciliação já existia e era
desmoralizante. (Idem, 43).
Esse Machado que viveu intensamente o seu tempo tornou-se mais conhecido por
causa de suas grandes obras em formato de romance, como Memórias póstumas de
Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1889). Porém pode-se
dizer que, por seu estilo, Machado permanece essencialmente um criador de contos,
mesmo em pleno desenvolvimento de seus romances, o que o torna inserido tanto na
tradição do conto francês quanto na geração de autores nacionais cujos primeiros
modelos talvez fossem vultos como José de Alencar e Joaquim Manuel de Macedo.
Muitos textos de Machado, entre os quais O alienista, poderiam ser tidos por
romances pequenos ou por contos grandes, dadas as características híbridas de sua
escrita e de seu volume. Assim, podemos afirmar que ganham força os contos de
Machado de Assis, tão conhecidos e apreciados em toda parte. Contos fluminenses
106
(1869), Histórias da meia-noite (1873), Papéis avulsos (1877-82), Histórias sem
data (1884), Várias histórias (1896), Páginas recolhidas (1899) e Relíquias da casa
velha (1906) que nos mostram, sobretudo, a evolução do Machado narrador.
Machado vive intensamente as convulsões culturais de seu tempo, com todas as
experiências intelectuais daqueles tempos de transição de um Romantismo mais
clássico a um Realismo quase nu. No Brasil, assim como na Europa, isso é
característico da segunda metade do século XIX, exatamente o tempo em que
Machado estava em franca produção intelectual. Daí percebermos a posição crítica
ou a menção sistemática à religiosidade, ao evolucionismo, ao naturalismo e ao
cientificismo encontrados nos textos de Machado em toda a sua vasta produção.
Com tais pressupostos, torna-se possível fazer uma leitura integral dos contos de
Machado de Assis.
O primeiro e mais significativo para uma leitura de cunho psicanalítico no qual
podemos detectar traços de um Eu fragmentado é, sem dúvida, O alienista. Os
paradoxos e instabilidades humanas, além da crítica aos modelos psicanalíticos que
começavam a vigorar no Fin-de-Siècle, talvez por não ter havido tempo suficiente
para deles se perceber a real valia. Logo as primeiras letras do texto mostram as
inconseqüências que queria registrar, quando nos diz:
As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo
médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos
do Brasil, de Portugal e das Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e
quatro anos regressou ao Brasil, não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em
Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da
monarquia.
107
— A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu
universo. (Machado, 2004, 253).
Ora, o que era a Itaguaí daqueles dias senão uma vila provinciana, mas que
representasse o “universo”, disputando as atenções com todo o resto do Brasil, com
Portugal e Espanha? Nem mesmo o rei tinha sido capaz de demover de Bacamarte a
idéia de se meter de volta a Itaguaí, numa alusão possível ao claustro que antes
abrigava a religião e que, então, passava a abrigar a ciência. Sendo este seu
“emprego único”, entendem-se ao longo do conto as motivações para o descuido
com as demais pessoas e com a própria família, na tradicional e utópica postura de
cientista asséptico de seu tempo.
O alienista aparece exatamente quando surge a dúvida sobre a infalibilidade da
ciência. Surge no momento em que cresce a incerteza sobre ser a ciência a única
resposta ansiada pela humanidade para suas questões interiores, bem em meio à
transição do Positivismo Fin-de-Siècle ao Neo-Realismo. O conto é malicioso,
mordaz, irônico, satírico como, aliás, costumava se mostrar Machado. Ele retoma de
maneira inquietante o velho tema da loucura, mas, desta vez, tendo como pano de
fundo a realidade que todos viviam, que era a sistematização de uma doutrina
científica que estudava de maneira diferente a mente humana: em paralelo, Machado
parece propor a reescritura da Psiquiatria.
É possível que Machado de Assis tivesse conhecimento dos muitos estudos e das
publicações notadas em todo o século XIX a respeito dos avanços da Psiquiatria
desde o século XVII. Machado nos propõe uma leitura às avessas dos conceitos de
108
normalidade e insanidade. Os habitantes de Itaguaí estão diante da estranha situação
de verem os loucos tidos por sãos e os normais tidos por insanos.
Foi adotada, sem debate, uma postura autorizando o alienista a agasalhar na Casa
Verde as pessoas que se achassem no gozo do perfeito equilíbrio das faculdades
mentais. E porque a experiência da câmara tivesse sido dolorosa, estabeleceu ela a
cláusula de que a autorização era provisória, limitada a um ano, para o fim de ser
experimentada a nova teoria psicológica, podendo a câmara, antes mesmo daquele
prazo mandar fechar a Casa Verde, se a isso fosse aconselhada por motivos de
ordem pública. (Idem, 282).
Os habitantes da vila ficaram realmente assombrados, a ponto de se revoltarem,
quando descobriram que a todos os loucos da Casa Verde seria dada liberdade e que
ali seriam alojadas as pessoas tidas por normais. Ao ler o conto, até hoje em dia o
leitor costuma ficar extasiado diante da análise feita por Machado de Assis sobre o
conceito de normalidade. E a própria Casa Verde, conceituada como o templo da
sanidade, sofria com as oscilações da verdade relativa e da loucura.
Imagine-se a situação dos vereadores; urgia obstar ao ajuntamento, à rebelião, à
luta, ao sangue. Para acrescentar ao mal, um dos vereadores que apoiara o
presidente, ouvindo agora a denominação dada pelo barbeiro à Casa Verde, —
"Bastilha da razão humana", — achou-a tão elegante, que mudou de parecer.
Disse que entendia de bom aviso decretar alguma medida que reduzisse a Casa
Verde; e porque o presidente, indignado, manifestasse em termos enérgicos o seu
pasmo, o vereador fez esta reflexão:
— Nada tenho que ver com a ciência; mas se tantos homens em quem supomos
juízo, são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o
alienista? (Idem, 270).
Machado utiliza-se de um realismo duro e mordaz, cheio de tons de bom humor,
mas que deixam vir à tona aquilo que ele de fato cria ser a verdade dos fatos que o
cercavam. De fato, Machado “incluía em sua narrativa um elemento de pessimismo
109
e tensão social, que não chega a ser dominante, mas ao qual está ligada a sua parcela
realista” (Schwarz, 1992, 92). A loucura é um excelente modo de demonstrar a
fragmentação conceitual e social a partir do aspecto interior, psicológico.
Percebemos que não é somente no conto O alienista que ele se utiliza da parábola
da loucura, mas também o vemos com o mesmo artifício em outros contos muito
importantes, como A segunda vida, O enfermeiro e A causa secreta.
Quando retornamos a uma nova leitura de O espelho, percebemos que Machado
propositadamente quer falar ao interior desse indivíduo cujo Eu está fragmentado. A
começar de seu subtítulo Esboço de uma nova teoria da alma humana, Machado
nos deixa a todos pensativos e com olhares para dentro de nós mesmos ao enunciar
a multiplicidade ou fragmentação daquilo que carregamos dentro de nós e que
costumamos entender como nosso Eu.
— Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo:
uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... Espantemse à vontade; podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo: não admito réplica.
Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um
espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há
casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma
pessoa; e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de
botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é
transmitir a vida, como a primeira: as duas completam o homem, que é,
metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde
naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma
exterior implica a da existência inteira. Shylock, por exemplo. A alma exterior
daquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer. “Nunca mais
verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração”.
Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele.
Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...
— Não?
110
— Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas
absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que
foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas;
mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por
exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um
cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela
minha parte, conheço uma senhora, — na verdade, gentilíssima, — que muda de
alma exterior cinco, seis vezes por ano. (Machado, 2004, 346).
Se entendermos que o autor comumente se recria de forma constante em suas obras
a partir de seus personagens, poderemos ver um Machado de fato pensativo sobre
seu tempo, sobre o Fin-de-Siècle que avassaladoramente invadia a vida privada de
todo o Ocidente. Ele próprio, epiléptico, talvez se visse como um sujeito
inconstante, cujo equilíbrio fosse abruptamente interrompido sem qualquer controle
pessoal pelo distúrbio que, por séculos a fio na Europa, se entendia como algo
psíquico ou espiritual. A dualidade entre equilíbrio e desequilíbrio parece voltar
com força ao relermos que a Casa Verde era essa “bastilha da razão humana” (Idem,
270) quando a vemos exatamente de modo inverso.
Lembrando o que diz Lins, “cumpre amparar os sonhos numa base, e a base
oferecida pela cultura pressupõe a suspeita de uma essência suposta, emprestada ao
terreno das coisas e das idéias na confusão da alma dividida” (Lins, 2006, 52),
vemos que a essência, a alma do homem, parece de fato estar confusa em toda sua
extensão. Fala nesse momento não necessariamente de literatura, mas nela tocando
enquanto expressão dessa mesma confusa e fragmentada alma humana. Dois termos
centralizam o trecho destacado em seguida: inquietação e confusão. As revoluções
citadas como exemplos antecessores das convulsões interiores, por atingirem
111
também as mentes e os costumes, são o movimento de implantação de algo
profundo que se reflete no próprio indivíduo. O estado da alma dos personagens
refletia no texto aquilo que era o tornado comum entre as pessoas daquele Fin-deSiècle.
Ainda refletindo sobre O espelho, podemos notar um volume considerável de
elementos que nos remetem às incertezas do Eu, à fragmentação do ser interior. A
natureza da alma é o ponto de desequilíbrio e discordância entre os amigos reunidos
para o debate.
Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da palavra, e
não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em seus meandros,
veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos.
Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão tornou-se
difícil, senão impossível, pela multiplicidade das questões que se deduziram do
tronco principal e um pouco, talvez, pela inconsistência dos pareceres. Um dos
argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião, — uma conjetura, ao menos.
— Nem conjetura, nem opinião, redargüiu ele; uma ou outra pode dar lugar a
dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados,
posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara
demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma só
alma, há duas... (Machado, 2004, 346).
A relativização conceitual aparece espontaneamente no texto, quando Machado, ou
melhor, seu personagem, sugere que as opiniões podem divergir porque a verdade
pode divergir. Isso ele o afirma ao dizer “cada cabeça; cada sentença”. As incertezas
do Eu continuam dando seus ares a partir da inconsistência dos argumentos dos
amigos. Sob o pretexto de não provocar celeumas, Jacobina nega-se a demonstrar
sua real opinião, ao que ele cede, contanto que não tenha oposições. Em outras
palavras, ele demonstraria sua verdade, a partir do gesto de omissão das demais
112
verdades. Sua opinião não poderia ser, portanto, contraposta por outras opiniões. A
relativização apregoada exteriormente é refutada em gestos mais simples,
demonstrando a instabilidade e a inconsistência do Eu do homem ali exposto. A
necessidade de aceitar opiniões divergentes era uma espécie de pacto social e
relacional, mas o momento de verificação da real aceitação disso seria revestido de
negações desse mesmo pacto. O texto não nos leva a quais certezas um Eu assim
fragmentado poderia chegar, mas sugere que os pactos possíveis o deixariam tão
estável quanto possível aos olhos de todos, mesmo nas instabilidades reais vividas
pelo Eu interior.
Ele segue sua saga por denunciar interior do homem com perspicácia e perícia. Há
um trecho do conto em destaque que salienta enfaticamente o ponto central desta
discussão, ou seja, a fragmentação do Eu. Um homem estonteado entre duas
realidades possíveis: uma exterior, do Eu que vivia do lado de fora, e outra interior,
a do Eu que vivia dentro dele. Mas ele confessa não ter controle sobre as
manifestações desses dois Eus que ele chama de almas. O total descontrole, que se
abatia sobre ele a partir do sono, era, na verdade, o momento em que o Eu não
fragmentado, coeso, onírico e esperançoso, surgia diante dele. Mas não havia como
acessá-lo, se estava além de suas condições normais e humanas entrar nos sonhos
enquanto dormia. Da mesma forma, e paradoxalmente ao primeiro fato, ele acessava
facilmente os episódios físicos e naturais, exatamente os que ele gostaria de não
vivenciar, exatamente os que eram fragmentados. Vivia, portanto, em constante
113
dissabor, experimentando o que não gostaria e apenas sonhando com o que gostaria
de experimentar de fato.
Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um sonâmbulo,
um boneco mecânico. Dormindo, era outra coisa. O sono dava-me alívio, não pela
razão comum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar
assim esse fenômeno: — o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior,
deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio
da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes;
vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de
capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro,
esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único —porque a alma
interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não
tornar... Não tornava. Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se descobria algum
sinal de regresso. (Machado, 2004, 349-350).
Os exemplos mais graves dessa relação fragmentada surgem quando percebemos
sua denúncia contra a situação que vivia. O que o fazia viver era a verdade extraída
dos sonhos, da noite escura que lhe aclarava a mente. Ao amanhecer, quando o dia
se fazia claro, escureciam-se nele as idéias e as circunstâncias interiores se
embaçavam. A alma interior, o Eu que ele gostaria de viver, perdia a batalha mais
uma vez contra a alma exterior, o Eu que ele não gostaria de ser nem viver. Essa
constante alternância, a rotina de uma vida, demonstrava a profunda fragmentação
daquele Eu. E ele, acordado da realidade que não era a sua verdade objetiva, punhase a procurar por toda parte a sua verdade subjetiva, mas sem mais a encontrar até
novo momento de sono aliviador, de fuga da realidade prática de sua vida.
Fatos assim, que discutiam a interioridade humana, apareceram ao longo das
narrativas machadianas. Isso, de certa forma, conectava o homem de seu tempo aos
seus sentimentos. Haveria grande chance de perceber a si mesmo em textos nos
114
quais o leitor pudesse ver a representação de sensações que ele também tinha, como
se estivesse se olhando num espelho, mesmo que não pudesse notar isso de maneira
tão clara.
A falta de referenciais também era algo intensificado pelos eventos do Fin-deSiècle, conforme já tivemos oportunidade de analisar. Um Eu sem referenciais
parecia ser um problema para D. Camila. Ela simplesmente não sabia o melhor
caminho a seguir por falta de exemplos aos quais se apegar. Não tinha absolutos
para seguir. A inconstância de seus pensamentos se refletia nos seus passos práticos.
Um dia, poucos meses depois, apontou no horizonte o primeiro namorado. D.
Camila pensara vagamente nessa calamidade, sem encará-la, sem aparelhar-se
para a defesa. Quando menos esperava, achou um pretendente à porta. Interrogou
a filha; descobriu-lhe um alvoroço indefinível, a inclinação dos vinte anos, e ficou
prostrada. Casá-la era o menos; mas, se os seres são como as águas da Escritura,
que não voltam mais, é porque atrás deles vêm outros, como atrás das águas
outras águas; e, para definir essas ondas sucessivas é que os homens inventaram
este nome de netos. D. Camila viu iminente o primeiro neto, e determinou adiá-lo.
Está claro que não formulou a resolução, como não formulara a idéia do perigo. A
alma entende-se a si mesma; uma sensação vale um raciocínio. As que ela teve
foram rápidas, obscuras, no mais íntimo do seu ser, donde não as extraiu para não
ser obrigada a encará-las. (Machado, 2004, 425).
Casar ou não a filha não tinha qualquer relação com os sentimentos ou com as
posições almejadas pela moça. Ela preferia pensar em si mesma, extraindo de dentro
de si as razões para fazer isto ou aquilo, mas sem qualquer forma de ponderação de
lógica. Os motivos para não permitir o casamento da filha passavam pelos conceitos
pessoais que ela construía das pessoas que, segundo esses mesmos conceitos, são
“como as águas (...) que não voltam mais” que andam atrás de outras pessoas,
“como atrás das águas outras águas”. As qualidades do líquido mais importante para
115
nós mostram a razão do pensamento de D. Camila: fluido e sem gosto. Anteviu um
futuro em que o casamento daria a seqüência lógica do neto e este, quem sabe,
simbolizava enfado e cansaço. Era melhor não o ter a ter mais trabalho.
Como ela fez isso? Como tomou as decisões? Machado nos diz no conto que D.
Camila usou de suas sensações que valiam como raciocínio ao invés de pensar e
formular as resoluções que tomaria a partir daquele momento. Ela não arrazoou,
simplesmente se permitiu ser levada pelos sentimentos e pelos impulsos. Os seus lhe
serviram, mas não os de sua filha, pois mesmo ao lhe descobrir “um alvoroço
indefinível”, preferiu não atender aos seus anseios.
Mais uma vez, temos os princípios de um Eu fragmentado trabalhando no ser
humano com as ferramentas de um indivíduo confuso em si mesmo e em seus
sentimentos, além de ter uma visível ausência de referenciais aos quais poderia se
apegar para a seqüência de suas atitudes.
Por muitos episódios durante sua longa jornada como contista, Machado toca fundo
nas dúvidas e questionamentos da alma humana. Quando lemos o conto em Uns
braços, vemos um Machado que joga com a instabilidade dos conceitos conforme o
texto progride. Os princípios parecem se alterar sem que os personagens entendam
exatamente quais seriam seus papéis ou suas reações. As boas e as más reações
causam a mesma estranheza nos personagens centrais.
D. Severina tratava-o desde alguns dias com benignidade. A rudeza da voz
parecia acabada, e havia mais do que brandura havia desvelo e carinho. Um dia
recomendava-lhe que não apanhasse ar, outro que não bebesse água fria depois do
café quente, conselhos, lembranças, cuidados de amiga e mãe, que lhe lançaram
na alma ainda maior inquietação e confusão. Inácio chegou ao extremo de
116
confiança de rir um dia à mesa, cousa que jamais fizera; e o solicitador não o
tratou mal dessa vez, porque era ele que contava um caso engraçado, e ninguém
pune a outro pelo aplauso que recebe. Foi então que D. Severina viu que a boca
do mocinho, graciosa estando calada, não o era menos quando ria. (Machado,
2004, 494).
Quais seriam as possibilidades reais de vida equilibrada de alguém cuja reação
frente ao mais simples bem pessoal, como o cuidado amoroso de sua própria mãe,
lhe causasse conturbação? Há uma aparente indicação de que o personagem buscava
a sua felicidade, a calma e a paz, mesmo em meio a seu desespero pessoal. Como
fazê-lo passa a ser a grande incógnita deixada para que cada um resolva seu próprio
dilema com base no individualismo que se firmava. Agora, como já vimos
anteriormente, cabe a cada um absorver a fragmentação de seu Eu e sobreviver a ela
da melhor maneira possível.
Machado não trata apenas de questões tão interiores e particulares quanto as da
citação anterior. O caráter humano, por exemplo, que mesmo brotando no interior
dá seus ares nas relações exteriores. A preocupação com o caráter aparece em
diversos momentos na obra machadiana, o que deixa evidente que ele de fato se
importava com os movimentos sociais que se ambientavam ao seu redor. Em Luiz
Soares, num pequeno trecho destacado, Machado levanta um homem cujo caráter
passa por desconcertado e instável, sem equilíbrio e sem afeto nem por si mesmo.
Os leitores terão visto que, apesar de certa argúcia da parte de Soares, não tinha
ele a perfeita compreensão das cousas, e por outro lado o seu caráter era indeciso
e vário.
Hesitara em casar com Adelaide quando o tio lhe falou nisso, quando era certo
que viria a obter mais tarde a fortuna do major. Dizia então que não tinha vocação
de papagaio. A situação agora era a mesma; aceitava uma fortuna mediante uma
117
prisão. É verdade que se esta resolução era contrária à primeira, podia ter por
causa o cansaço que lhe ia produzindo a vida que levava. Além de que, desta vez,
a riqueza não se fazia esperar; era entregue logo depois do consórcio. (Idem, 56).
Precisamos ter o cuidado permanente de não confundirmos as reações humanas
naturais de todos os tempos com aquelas que queremos identificar como sendo
resultantes do momento de fragmentação em que se via mergulhado o homem. A
fragmentação interior sempre existiu, mas após o Fin-de-Siècle ela se tornou
desvelada e reconhecida de todos nós. A instabilidade de caráter do ser humano, ou
sua corrosão, para utilizar o mesmo termo que Sennett (2005) utiliza no título de sua
obra, não passa ao largo no trecho acima. Luiz Soares parecia não ter perfeita
compreensão dos fatos que o cercavam, mas, alie-se a isso o fato de ele ter um
caráter “indeciso e vário”. Machado nos aponta duas circunstâncias que ele parece
diferenciar e distanciar: a circunstância natural, cuja culpa não deve recair sobre
Luiz Soares, já que ele não teve como optar por sua condição intelectual. Mas ele
parece nos indicar um outro caminho, esse sim lançado na conta de Luiz Soares:
aquele de seu caráter, no qual ele seria co-gestor de sua formação. Separa, portanto,
a capacidade intelectual inata do que é fruto de formação posterior. E o separa,
literalmente, pela expressão “e por outro lado”, o que deixa os gestos isolados entre
si. Luiz Soares era arguto, mas não conseguiu perceber que se tornava alguém
fragmentado e deformado.
Machado de Assis era um mestre em dizer nas entrelinhas o que gostaria de dizer
abertamente, o que lhe rende até hoje multidões de estudos e pesquisas. Quando
Roberto Schwarz fala de Machado em seu Um mestre na periferia do capitalismo,
118
ele faz análise não de contos, mas de romances machadianos. No entanto, não é
possível dissociar o autor de um e outro gênero, restando muitos fatos de
semelhança entre suas diversas obras. Parece então interessante lembrar que o
pesquisador diz que:
Em linha análoga, observe-se que a vivacidade das frases depende sem exceção da
presença de algum pecadilho, que lhes dá o picante. Contar absurdos como se
fossem verdade, desconsiderar o homem comum, sacrificar o eterno à novidade,
desacatar a religião etc., são condutas ditas erradas, de que Brás faz praça
enquanto tais. Como não julgar, ainda que para desculpá-lo? Nem o leitor
atrabiliário, simpático aos abusos da personagem, esquece a norma que está sendo
desrespeitada. (Schwarz, 1991, 23).
O Braz citado e estudado por Schwarz faz coro com Luiz Soares ao pilhar sobre
instituições consagradas e tidas por colunatas sociais. O caráter de muitos dos
personagens de Machado era sofrível, mas algo que nem sempre merecesse castigo
imediato. Aliás, propor algo assim tão severo seria contrário às perspectivas de
relativização conceitual que se instalava após o Fin-de-Siècle.
Há um outro conto de Machado, cujo título já nos motiva a perceber as oscilações
de caráter e equilíbrio que serão não apenas tratadas, mas enfaticamente sugeridas
como sendo corretas ao longo do texto. Trata-se de A Igreja do diabo, do qual um
interessante trecho é destacado:
Um casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A
venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os
direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas
que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de
ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé,
coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu
mesmo? Negá-lo é cair no absurdo e no contraditório. Pois não há mulheres que
119
vendem os cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue para
transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas,
terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem?
Demonstrado assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens
de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do
preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o
que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer
duplicadamente. (Machado, 2004, 372-373).
Notamos uma divertida narrativa na qual o Diabo, dentro de uma lógica
estabelecida, sugere que o incorreto é, de fato, o correto. Um silogismo se estabelece
quando ele interpreta as questões de moralidade que somente podem ser
interpretadas à luz de uma noção diferenciada de moral e de caráter, como seria o do
próprio Diabo. Há pontos que certamente nos apontam o caminho de discussão de
um Eu absolutamente fragmentado em seus parâmetros e em suas concepções. O
Diabo percorre um caminho que vai do exterior, dos bens materiais possuídos
licitamente, ao bem interior, que também é lícito. Ambos, de certa forma, são
exeqüíveis, mas de maneiras diferentes. O bem material é ponderável objetivamente,
enquanto o bem interior só o é subjetivamente. O que o Diabo faz é sugerir que o
senso de pertencimento de ambos desconstrói a noção de bem e mal subjacentes.
Em outras palavras, o direito de posse é maior que a razão moral por trás de tudo.
Com isso, o Eu fragmentado por inúmeras noções relativas e conceitos arbitrados
por valores também relativizadores passa a suportar pressões antes não sofridas. A
proposta dada acima é a da inversão de valores, o que somente pode ser aceito
abertamente por um Eu sem pressupostos claros e bem definidos.
120
O Diabo mistura determinadas ações iniciadas apenas para o bem mas que rumaram
para o negócio a outras puramente comerciais, mas que em todos os casos, não
apresentavam ilegalidades, mas apenas pequenas nuances de interpretação moral,
estas já absorvidas completamente pela sociedade dos dias de Machado, ao que tudo
indica. Vejamos: vender cabelo é o mesmo que vender sangue para transfusão.
Parece que sim, se não nos afigurar que o comércio de sangue para salvar a vida é
menos moral que simplesmente doá-lo, já que o maior bem em jogo é a vida que
periga findar. É a mesma linha de raciocínio quando de sua proposta para que a
opinião, o voto, a palavra, a fé e a própria consciência fossem livremente
manuseadas e comercializadas, segundo os interesses e as necessidades do
momento. A sociedade fragmentada parece ter absorvido bem a argumentação
diabólica, principalmente algumas classes específicas de dirigentes e políticos.
Um texto interessante, que de certa forma traça um paralelo com o de Machado, é
Cartas de um diabo ao seu aprendiz (Lewis, 2005), composto de uma série de cartas
de Fitafuso, um diabo velho e sagaz, em seus trabalhos de orientação a um outro
diabo, seu sobrinho mais jovem, chamado Vermebile, ainda aprendendo melhor o
seu ofício. Fitafuso se dispõe a dar ao seu sobrinho instruções e conselhos sobre
como executar bem seus afazeres, haja vista a pouca experiência que o jovem tinha
então. A completa inversão dos valores éticos, morais e espirituais nos mostra muita
semelhança com a linha de raciocínio do conto de Machado.
A diferença é que no exemplo de Lewis, por mais que se ache graça, o autor
escolheu ambos os personagens sendo não humanos, trazendo-nos a percepção de
121
que seria possível uma correspondência dessa natureza a partir de quem eram os
personagens centrais do texto. Machado, por seu turno, alia um ser não humano que
influencia diretamente um ser humano com sua perspicácia e motivações dúbias.
Ao final do trecho em destaque, o Diabo sugere que o homem dissimule seus atos,
não por serem indevidos ou amorais, mas porque a sociedade seria preconceituosa.
Ou seja, o bem é algo relativo e a oposição ao desvio é tida como preconceito. Daí a
sugestão de agir com hipocrisia, o que lhe facultaria lucrar duplamente com seus
gestos.
5.3. A leitura de mundo e do Eu fragmentado de Lobato
“É honra penetrar na falange gorda dos carrapatos
orçamentívoros que pacientemente devoram o país:
é negocio lambiscar ao termo de cada mês um
ordenado fixo, tendo arrumadinha, no futuro,
a cama fofa da aposentadoria”.
(Lobato, In: Um suplício moderno).
Monteiro Lobato é personagem ímpar em nossa sociedade literária, com produção
intensa e farta atuação no cenário financeiro, econômico e político. Destaca-se
122
também como um dos gigantes de um Brasil que escreve, ao lado de muitos outros,
inclusive do próprio Machado de Assis.
Lobato via o Brasil como uma terra que poderia se tornar próspera, embora fosse
mal trabalhada. Foi defensor ferrenho das coisas nacionais, mesmo com um ponto
de vista essencialmente americanizado. Sua opção era pela luta de mercado, com
ênfase no trabalho e no risco badalados pelas sociedades capitalistas. É bem verdade
que a ética do capitalismo de seus dias era muito diferente do que vemos hoje.
Como pontos de separação do Capitalismo dos tempos de Lobato e dos atuais,
poderíamos destacar, de acordo com Sennett (2005), a perda dos laços de confiança,
o abalo do sentido de longo prazo, a troca da liderança focada pelas redes de
prestação de serviço interligadas através de projetos e a diferente percepção de
tempo individual. A continuada fragmentação do Eu parece ter sido fator de
importante ação para esse fenômeno, como nos faz refletir o pensamento do autor ao
dizer que “o distanciamento e a cooperatividade superficial são uma blindagem
melhor para lidar com as atuais realidades que o comportamento baseado em valores
de lealdade e serviço”. (Sennett, 2005, 25). Ora, isso equivale a dizer que o Eu
precisa se defender de ofensas constantes e que a melhor defesa é a superficialidade
nas relações e não mais os bons valores possíveis do íntimo do ser humano.
Em Lobato vemos a evolução de um cidadão de país subdesenvolvido, mas gerado
em berço abastado, com excelentes traços culturais para seu tempo, com
possibilidades de perpetuar a herança da família. No entanto, os tempos eram de
difícil economia, com o período entre as duas guerras mundiais modificando
123
totalmente as realidades econômicas em toda parte, o que se refletiu de maneira
intensa também no Brasil.
Era um Brasil que começava a abandonar sua política apenas agrícola e iniciava sua
carreira industrial, que tinha sonhos e líderes carismáticos, embora questionáveis
com relação à liberdade e à legalidade de seus atos. Um Brasil que via perspectivas
por um lado e barreiras de impedimento por outro, como era o caso da energia não
renovável, o petróleo, que foi uma de suas mais intensas bandeiras como cidadão e
empreendedor.
Num cenário como esse, Lobato é escritor ao mesmo tempo que é empresário,
articulador político, empreendedor financeiro, investidor de capitais, industrial, etc.
É nesse contexto múltiplo que ele chega com sua linha de textos do Sítio do Picapau Amarelo, depois de já haver estreado como contista. Muito do que ele passa em
seus textos é a entrelinha do que ele quis deixar para as análises futuras, de suas
gerações ou das nossas. Ele denunciava um Brasil quase feudal e gritava por uma
possibilidade de mudança que ele, se não a via na prática, parecia pelo menos
sonhar com ela.
Lobato teve sua expressão literária cunhada na primeira metade do século XX. No
entanto, nota-se em sua obra uma indiscutível iniciativa por demonstrar seu apreço
pela cosmovisão de fins do século XIX, expondo sistematicamente os pontos de
vista atinentes ao período imediatamente anterior na cronologia de sua própria vida.
Aquilo que representasse evolução comportamental não era necessariamente bem
aceito por Lobato, como é o caso de sua manifestação pública contra as obras de
124
Anita Malfatti numa exposição que, de maneira histórica, antecedeu a Semana de
Arte Moderna de 1922. Vide Anexo 1, à página 159, para a leitura da íntegra do
texto Paranóia ou Mistificação?
A expressão de Lobato era a de um homem racionalista e pragmático, para a qual
muito colaboravam os pontos de vista do cientificismo do qual também era
partidário e defensor. Na opinião de Neto (2004), ao analisar tais pontos no autor,
temos que:
Lobato era um assíduo leitor e admirador confesso dos ideólogos e propagandistas
da “forma mentis” objetivante do século XIX. Isto contribuiu para que ele
mantivesse sua postura cientificista, em meio a um mundo fragmentado pela visão
relativista da arte moderna e da filosofia da primeira metade do presente século.
(Idem, 3).
Paradoxalmente a algumas posições tidas por retrógradas, Lobato demonstrou ao
longo de sua vida uma incansável busca pelo novo, pela tomada de decisões que
levam as pessoas e as instituições a alcançarem novos patamares de sucesso. A
própria expressão intelectual de Lobato o comprova quando ele se atira à literatura
voltada a crianças e adolescentes em tempos em que isso era incomum no Brasil.
Além disso, ele foi altamente competitivo nos processos comerciais de vendagem de
sua produção, o que até nossos dias continua sendo fator de dificuldade ou
impedimento das novas gerações de autores nacionais. Monteiro Lobato foi
inovador em diversos aspectos. Diferindo da maioria dos demais autores, ele não foi
apenas autor de sucesso ainda em seu tempo, mas foi profissional do livro, editor e
dono de editora.
125
A que realidade Lobato teria se prendido ao escrever seus contos ainda no início do
século XX, logo após o auge do Fin-de-Siècle? Haveria uma verdade à qual se
prender? A impressão que nos fica é que, enquanto Machado se despedia de certezas
que estavam por ser abandonadas, Lobato já não as tinha, e delas mantinha apenas
as sombras que serviriam de novos batentes para uma outra realidade, essa sim em
formação ainda.
Muitas das declarações, claras ou sutis, soam como o estar preso a conceitos
passados, como a questão da inferioridade de determinadas raças, a minoração de
classes sociais menos favorecidas, a idéia de orbitar em torno de nações mais
desenvolvidas como fator de crescimento econômico, e outros procedimentos
comuns à época. Por outro lado, apresenta a visão quase paternalista e de piedade
com relação aos pobres, aos negros ex-escravos, aos caipiras e aos menos
esclarecidos. Para tais posicionamentos, certamente o pensamento cientificista
contribuiu bastante. O tom era um misto de compaixão, resignação, compreensão e
ironia sarcástica quanto ao destino dos infelizes. Mesmo assim, quando lemos
Lobato hoje em dia, temos sentimento que aflora, temos sentimento de repulsa por
certos conceitos e temos algo remexendo em nós por causa dos miseráveis que ele
descreveu e que, infelizmente, ainda nos cercam.
Lins (2006) num trecho em que fala não de um início de século XX, mas no qual
trata de questões atinentes ao que convencionamos denominar de pós-modernidade,
ou seja, de fins do século XX e início do XXI, diz-nos algo que parece ter sido
vivenciado pelo próprio Lobato em suas atitudes. O individualismo e a
126
fragmentação, quando comparamos as posturas assumidas por Lobato e algumas
falas de Lins, parecem fugir de um período determinado e aplicarem-se a quaisquer
momentos das relações humanas.
Num panorama de dominações embutidas nos costumes, postas de súbito na
condição de escolha da cidadania, o patrão e empregado se assemelham, quase
idênticos, apesar das diferenças de posição antes consideradas como
fundamentais. Opressor e oprimido, colonizador e colonizado, tudo se mistura,
sabendo-se que os comportamentos se repetem e se reproduzem por processos de
imitação. Para vencê-los, cumpriria proceder a uma reviravolta no caráter das
atitudes. (Idem, 211).
Ora, esse trecho de Lins parece nos remeter diretamente às questões de dubiedade
expostas por Lobato, frutos possíveis da fragmentação experimentada pelo homem
do Fin-de-Siècle. Poderíamos afirmar que se trata de analisar Lobato e parte de seus
contos, se não soubéssemos que se trata de analisar outro ponto da História. Por qual
razão se dá a semelhança? Provavelmente o que Lobato experimentava em termos
de instabilidade e fragmentação é o que nós, na pós-modernidade, ainda estamos a
experimentar. Nossas dúvidas, conceitos e pré-conceitos ainda são muito parecidos.
Em todo o tempo parece haver antagonismo explícito em Lobato. Quando fala de
religião e virtude, seu exemplo é degradador. Quando trata de bondade, podemos
ver a prática da maldade. E assim segue o texto em muitos casos, o que pode ser
reflexo da percepção que tinha o autor sobre um ser humano que se encontrava em
frangalhos por dentro, sem estabilidade, com seu Eu fragmentado por completo.
Esse ser humano, talvez externo ao livro na figura do leitor, via-se sempre na
127
iminente busca pela identidade. Enquanto dizia uma coisa e fazia outra, buscava
algo e indicava o avesso.
Bons exemplos disso encontramos em Negrinha. Logo de início, surge algo
diferente: o narrador posta-se ao lado de Negrinha, a desvalida do conto. Ela
apresentava todos os “problemas” que o autor quis apontar na sociedade que o
cercava: era negra, mulher, criança, pobre, ex-escrava e órfã. Trata da psicologia de
Negrinha com dura descrição, quase pondo o leitor como co-algoz por não haver
interferido na situação. A protagonista é o retrato do sofrimento feito gente, alguém
que nasceu para ser infeliz e para morrer sem marcar a vida, apenas para alimentar
os vermes da terra no dia de sua morte.
O vai-e-vem de informações demonstra as contradições da fragmentação interior
dos seres sociais. Dona Inácia era “excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do
mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado
no céu” (Lobato, 1982, 3). Segundo o padre que constantemente a visitava para
conversas, ela, além de caridosa e piedosa, era “dama de grandes virtudes
apostólicas, esteio da religião e da moral” (Idem), o que a tornava, entendamos, uma
quase-santa nesta terra. No entanto, ela, que assim aparentava e assim se via, era a
grande tortura da pobre menina. Tratava-a por adjetivos os mais variados, um pior
que o outro, como peste, diabo, epidemia, mosca morta, pinto gorado, coisa ruim,
trapo. Além, é claro, de infligir à menina toda sorte de torturas física, sempre
constantes, com cascudos, surras ou pondo-lhe ovo cozido saído da fervura na
pequena boca que impedida de gritar a sua dor.
128
A mulher, tratada sempre de excelente e bondosa, que tinha sido senhora de
escravos no tempo da escravidão, ressentia-se de não mais poder tê-los oficialmente,
mas o texto nos mostra que os serviçais, na verdade, continuavam em grande
medida, a desempenhar o mesmo papel de antes da abolição. Não os tinha
oficialmente, mas tinha-os na prática, como sabemos ter sido a sorte de milhares de
ex-escravos no Brasil que, após a sua libertação, tornaram-se serviçais semiescravizados de seus ex-donos, agora feitos senhores absolutos de suas vidas.
Lobato assim narra o episódio:
O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana.
Conservava Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Inocente
derivativo:
- Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados…
Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade. Cocres:
mão fechada com raiva e nós de dedos que cantam no coco do paciente. Puxões
de orelha: o torcido, de despegar a concha (bom! bom! gostoso de dar) e a duas
mãos, o sacudido. A gama inteira de beliscões: do miudinho, com a ponta da
agulha, à torcida do umbigo, equivalente ao puxão de orelha. A esfregadela: roda
de tapas, cascudos, pontapés e safanões a uma - divertidíssimo! A vara de
marmelo, flexível, cortante: para “doer fino” nada melhor!
Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá de vez em quando vinha um castigo
maior para desobstruir o fígado e matar as saudades do bom tempo. (Lobato,
1982, 5).
A mesma D. Inácia que era o alvo dos maiores louvores do padre - leia-se de uma
religiosidade apenas aparente - era a que oferecia diariamente o suplício à pobre
menina. A dicotomia, esse Eu incomum que funcionava como dois Eus diferentes,
um público diante do padre e outro privado em sua intimidade do lar, são
demonstrativos da fragmentação em que se via mergulhada a senhora em questão.
129
Um Eu tinha deixado o azorrague que antes estava em mãos; outro Eu jamais tinha
perdido a gana alimentada na alma. Os Eus conviviam e se retroalimentavam com
soluções que os mantivessem vivos mesmo que não abertamente em todos os pontos
almejados, mesmo que fosse com coisa miúda, com meros níqueis.
Ela sabia os valores de sua fé e os valores da lei. Mas o que ela queria mesmo era a
sensação do bem estar advindo da liberação do seu estado de agitação. Isso era
alcançado com pelo menos um remédio que ela conhecia bem: o castigo alheio,
mesmo a troco de nada. “Como alivia a gente uma boa rodada de cocres bem
fincados”. Com essa sentença vemos que o remédio de um era o mal do outro. Há a
completa descrição do receituário para se sentir melhor, com cascudos, beliscões,
puxões de orelha, varadas e esfregadelas: tudo aplicado como bom remédio ao
dispor da senhora da casa. E Negrinha, nas palavras de Lobato, era “conservada em
casa como remédio para os frenesis”. Ela era, assim, o meio de desafogo dos
problemas pessoais de D. Inácia.
Do outro lado havia outra pessoa, ainda em formação, mas sem qualquer chance de
superar seu destino, numa quase evocação à resignação que finalmente a levaria à
morte tranqüila de um passarinho triste. Negrinha não tinha nem nome nem alma.
Pelo menos era o que ela cria, ou pensava crer, até que em dado momento percebeu
que tinha sim uma alma dentro de si. Foi em meio a brincadeiras permitidas com as
sobrinhas da patroa que a visitavam, após ficar deslumbrada com as brincadeiras de
boneca, que “Negrinha, coisa humana, percebeu (…) que tinha uma alma”. Ela
ainda “sentiu-se elevada à altura de ente humano”. E veio o perigo que, para ela foi
130
fatal, pois descobriu empiricamente sua fragmentação interior e jamais, depois
disso, foi a mesma pessoa: “Cessara de ser coisa - e doravante ser-lhe-ia impossível
viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava!” (Idem, 8).
Os paradoxos não param nem mesmo na descrição da morte de Negrinha, que
“morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Jamais,
entretanto, ninguém morreu com maior beleza”. (Idem, 8-9). O texto deixa marcas
no leitor, que fica com sentimento de pesar ao lê-lo e, certamente, não haverá de o
esquecer. Mas o conto finda por dizer o oposto, dando a entender que apenas más
lembranças ficaram da pobre menina.
Depois, vala comum. A terra papou com indiferença aquela carnezinha de terceira
- uma miséria, trinta quilos mal pesados…
E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica, na
memória das meninas ricas.
- “Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca?”
Outra de saudade, no nó dos dedos de dona Inácia.
- “Como era boa para um cocre!…” (Idem, 9).
Interessante em Negrinha que Lobato trabalha a questão da fragmentação do Eu dos
personagens de maneira intensa, mesmo em meio ao humor negro do conto. D.
Inácia tinha tudo para ser equilibrada e bondosa, dadas a formação e a posição que
tinha em casa e na sociedade. Mas era insensível, relativizando suas posturas de
acordo com o objeto de seus afetos. Fica evidente que não se posicionava da mesma
forma com relação a todos os seres humanos, sendo uma com Negrinha e outra,
oposta à primeira, com suas netas. D. Inácia, com tudo ao seu dispor, parece ter
vivido sem alma todo o tempo.
131
Negrinha era o contrário. Não sabia ao certo se era gente ou coisa. Não tinha
nenhuma razão para ter sentimentos bons, mas desenvolveu lampejos de candura e
amor que são expressos ao longo do texto. Poderia ser iracunda, mas era calma e
quieta, mesmo que a poder de surras e maus-tratos. Negrinha, sofrendo toda a curta
vida e não tendo condições aparentes para isso, descobriu-se como alguém, não
mais como algo, que tinha alma dentro de si. Dava-se o caminho inverso ao da
patroa, fechando o círculo de demonstrativos da ambigüidade e duplicidade
relacionados a um Eu fragmentado. Se D. Inácia era boa para os de fora e má para
os serviçais e tinha alma que ansiava por maldade, Negrinha era boa por dentro e
mesmo para os da casa, mas tida por má por sua senhora. O dentro e o fora da
experiência humana mais uma vez se mostravam paradoxais.
Que idéia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de carinho?
Pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata-choca, pinto gorado,
mosca-morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa-ruim, lixo — não tinha
conta o número de apelidos com que a mimoseavam. Tempo houve em que foi a
bubônica. A epidemia andava na berra, como a grande novidade, e Negrinha viuse logo apelidada assim — por sinal que achou linda a palavra. Perceberam-no e
suprimiram-na da lista. Estava escrito que não teria um gostinho só na vida —
nem esse de personalizar a peste... (1982, 4).
Parece que a “alma de criança” que Lobato viu em Negrinha não era percebida em
adultos. Talvez daí venha o futuro interesse que o autor demonstrou em escrever
sobre fantasias e mundos mágicos, falando de crianças que não viviam neste mundo
fragmentado. Falava dessas crianças e falava às crianças, fossem elas crianças por
fora, por dentro ou por ambos os lados. Esse mundo pueril, sim, era estável, pois a
fantasia e a magia não precisam ser explicados com base nas convenções sociais.
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A ambivalência e a instabilidade das relações humanas fica muito evidente no texto
acima. Características de um tempo e de uma era de transformações interiores de
intensidade agigantada. Não que o homem nunca tenha experimentado
ambivalências e antagonismos de atitudes antes, mas após o Fin-de-Siècle isso se
tornava padrão, dados os postulados da relativização que foi se estruturando melhor
ao longo do século XX.
Um outro conto destacado é Quero ajudar o Brasil, que, se bem atentarmos ao estilo
do texto, mais se parece a uma crônica que a um conto. Mais parece uma declaração
do que andava nos corações brasileiros naqueles primeiros anos de século XX. Não
é criação com base em percepções, mas é a própria narrativa de um fato ocorrido
com Lobato e seus sócios no andamento da campanha da nova Companhia Petróleos
do Brasil e, segundo ele, era luta deles contra todos: “Tudo contra. O governo
contra. Os homens de dinheiro contra. Os bancos contra. A ‘sensatez’ contra”.
(Idem, 164).
As inconsistências mostradas nesse texto, se por crer nelas Lobato ou se por crítica
indireta, passam sempre pelos ambientes do abismo social e da segregação de raças.
O sucesso das vendas das ações no projeto de alto risco não era dos mais
estrondosos, mas o senso de nacionalismo parecia falar alto em alguns corações.
“Certo dia entrou-nos pela sala um preto modestamente vestido, de ar humilde.
Recado de alguém, certamente” (Idem, 165). Com essa fala, Lobato confessa como
era a primeira análise feita sobre uma pessoa negra e modesta. O homem, na
verdade, apenas tinha visto no projeto da Companhia a possibilidade de ajudar o
133
Brasil. “Ficamos a olhar uns para os outros, sem palavras. Que palavras
comentariam aquilo? Essa coisa chamada Brasil, que é de vender, que até os
ministros vendem, ele queria ajudar…” (Idem, 167).
O que se crê, o que se vê e o que mostra de fato ser a realidade torna-se uma
constante nos contos de Lobato. A instabilidade de um Eu fragmentado emerge em
textos como esses, nos quais a essência humana aflora sem pudor e, se ela anda
inconstante e relativizada, nada poderá ser condenado, apenas em níveis
interpessoais. Essa é uma leitura possível dos contos de Lobato. Não é tanto a
estética crua do exterior, mas a estética moral que importa. O difícil será, após o
Fin-de-Siècle, definir o que é essa estética moral.
Diferentemente de Machado, os textos de Lobato são por vezes mais difusos
enquanto avançam, tornando-se necessário ler trechos um pouco maiores para a boa
compreensão de seu contexto. Em Bugio Moqueado, ele faz uso sistemático de
representar um indivíduo sem referenciais claros e objetivamente demonstrados.
Lembrou-me logo o célebre Panfilo do Rio Verde, um de “doze galões”, que
“resistiu” ao tenente Galinha e, graças a esse benemérito “escumador de sertões”,
purga a esta hora no tacho de Pedro Botelho os crimes cometidos.
Mas, importava-me lá a fera! — eu queria gado, pertencesse a Belzebu ou a São
Gabriel. Expus-lhe o negócio e partimos para o que ele chamava a invernada de
fora.
Lá, escolhi o lote que me convinha. Apartamo-lo e ficou tudo assentado.
De volta do rodeio, caía a tarde e eu, almoçado às oito da manhã e sem café de
permeio até aquel’hora, chiava numa das boas fomes da minha vida. Assim foi
que, apesar da repulsão inspirada pelo urutu humano, não lhe rejeitei o jantar
oferecido. (Lobato, 1982, 23).
134
O personagem narrador do episódio não tem qualquer tipo de referencial claro,
bastando-lhe satisfazer necessidades imediatas para tomar suas decisões, que
tampouco são duradouras. Apenas circunstanciais e para o momento. Assim é que
ele diz e repete que não se importava em absoluto com quem estivesse se
relacionando, bastando apenas que atingisse seus intentos. Diz não querer saber, por
exemplo, quem seria seu interlocutor nos negócios que queria fazer, se Belzebu ou
São Gabriel, se o mal ou o bem que ambos simbolizam e personificam. Trata de
meio e resultados, fala de ética e equilíbrio.
Já noite, o dono do gado em negociação o convida para jantar e ele, apenas com um
café da manhã das oito horas, aceita, mesmo sem se agradar do cicerone. Nova
situação em que a alma humana entra em crise e o Eu fica em desequilíbrio.
Alimentar o corpo que chia de fome ou manter sã a alma que reclama o afastamento
daquela situação?
Como a morta-viva permanecesse imóvel, o urutu repetiu o convite em voz baixa,
num tom cortante de ferocidade glacial.
- “Sirva-se, faça o favor!” - E fisgando ele mesmo a nojenta coisa, colocou-a
gentilmente no prato da mulher.
Novas tremuras agitaram a mártir. Seu rosto macilento contorceu-se em esgares e
repuxos nervosos, como se o tocasse a corrente elétrica. Ergueu a cabeça, dilatou
para mim as pupilas vítreas e ficou assim uns instantes, como à espera dum
milagre impossível. E naqueles olhos de desvario li o mais pungente grito de
socorro que jamais a aflição humana calou...
O milagre não veio - infame que fui! - e aquele lampejo de esperança, o
derradeiro talvez - que lhe brilhou nos olhos, apagou-se num lancinante cerrar de
pálpebras. Os tiques nervosos diminuíram de freqüência, cessaram. A cabeça
descaiu-lhe de novo para o seio; e a morta-viva, revivida um momento, reentrou
na morte lenta do seu marasmo sonambúlico.
135
Enquanto isso, o urutu espiava-nos de esguelha, e ria-se por dentro
venenosamente...
Que jantar! Verdadeira cerimônia fúnebre transcorrida num escuro cárcere da
Inquisição. Nem sei como digeri aqueles feijões! (Idem, 25).
Os paradoxos são constantes. A mulher que sofre devia algo, depois se lê no texto.
Mas aqui é como que mártir diante da situação, o que não deixa de induzir o leitor a
uma piedade mórbida e desconhecedora de pormenores: apenas nosso emocional é
tocado quando lemos algo assim. O homem, por sua vez, sistematicamente chamado
de urutu, uma cobra temida no interior, “ria-se por dentro”, o que só pode ser
conhecido de um narrador onisciente, que quer nos informar e nos educar em seus
sentimentos com respeito aos personagens. A religiosidade e a malignidade andam
como luz e sombra todo o tempo do texto selecionado, assim como a ambivalência
de um ser humano que vive em constante alternância de bem e mal, reflexão e
sentimentalismo. O jantar, por fim, compara-se a um funeral.
E a mulher é chamada de morta-viva, o que podemos entender como a forma pela
qual Lobato nos informa de sua duplicidade. Morta por fora, sem mais valores e
sentimentos, sem vontade própria e sem qualificações para definir seu futuro. Viva
por dentro, onde ainda poderia haver alguma esperança de sobrevida e de milagre,
como o que não aconteceu naquele momento do jantar. Mas a vida não parava ali,
como a vida do homem daqueles tempos não parava por ele ser alguém cujo Eu
estava fragmentado.
136
Do ser sem referenciais, Lobato também extrai exemplos em seus contos de um
homem de seu tempo que não tinha mais suas certezas. As dúvidas eram a forma de
seguir vivendo de algumas das pessoas retratadas por ele. Era assim com um tal
João Teodoro, surgido como personagem central em Um homem de consciência.
Chamava-se João Teodoro, só. O mais pacato e modesto dos homens.
Honestíssimo e lealíssimo, com um defeito apenas: não dar o mínimo valor a si
próprio. Para João Teodoro a coisa de menos importância no mundo era João
Teodoro.
Nunca fora nada na vida, nem admitia a hipótese de vir a ser alguma coisa. E por
muito tempo não quis nem sequer o que todos ali queriam: mudar-se para terra
melhor. (Lobato, 1955, Vol. II, 185).
O mais impressionante é que no caso de João Teodoro, a menor valia de si partia de
dentro de si. Seu nome era curto, como que mostrando pouca origem, pouca
informação de suas origens. Tinha alguns valores interiores que permitia que
saíssem ao mundo exterior quando eles se voltassem a sua relação com o outro. O
superlativo para honesto e leal não deixam dúvida na preocupação de João para com
o próximo. É bem verdade que o texto não explica as reais motivações de sua
lealdade e honestidade, mas o fato é que assim vivia. Pecava, no entanto contra si
mesmo. Sua autodesvalorização era exacerbada e demonstrava que havia algo
bastante anormal com relação a sua autoestima.
Havia um João por dentro, que quase se menosprezava e mutilava as possibilidades
apresentadas ao longo da vida. Havia um outro João por fora, honesto e leal, que
fazia de tudo para manter tais adjetivos. Esse mesmo João era dois em um. Sua
lealdade para fora mostrava verdadeira traição para dentro e sua honestidade para
137
com os demais mostrava ainda mais claramente o quão desonesto era consigo
mesmo.
A vida, no entanto, parecia querer testar João e lhe dar novas possibilidades de ser
aprovado também por seu Eu interior. Uma nomeação inesperada para delegado o
deixou em verdadeira crise de sentimentos.
Um dia aconteceu a grande novidade: a nomeação de João Teodoro para
delegado. Nosso homem recebeu a notícia como se fosse uma porretada no crânio.
Delegado, ele! Ele que não era nada, nunca fora nada, não queria ser nada, não se
julgava capaz de nada... (Idem, 186).
O novo delegado tinha uma só coisa em mente: fugir da realidade que o convidava a
ser alguém além do que sempre tinha sido. O ser e o nada eram aqui uma só pessoa,
um só homem. Um lutava com o outro por conta de sua falta de consistência. O
desenrolar do conto é interessante, pois João Teodoro continuou até o final sendo
coerente com seu pensamento desde o início. O texto nos diz:
João Teodoro caiu em meditação profunda. Passou a noite em claro, pensando e
arrumando as malas. Pela madrugada botou-as num burro, montou no seu
cavalinho magro e partiu.
Antes de deixar a cidade foi visto por um amigo madrugador.
- Que é isso João? Para onde se atira tão cedo, assim de armas e bagagens?
- Vou-me embora - respondeu o retirante. - Verifiquei que Itaóca chegou mesmo
ao fim.
- Mas, como? Agora que você está delegado?
- Justamente por isso. Terra em que João Teodoro chega a delegado eu não moro.
Adeus.
E sumiu. (Idem, 186).
138
Notemos que João meditou profundamente antes de tomar sua decisão. Interessante
notar que, diferentemente de outros fragmentados que serviram de personagens para
Lobato, João pensou. Ele queria ser o que tinha decidido ser, mesmo que isso lhe
custasse a viabilidade de melhorar seu projeto de vida. E ele resolve fugir da
realidade de ser delegado, como não podendo reagir face a eleição da cidadezinha.
Talvez pela primeira vez ele estivesse demonstrando honestidade e lealdade para
com seus sentimentos, embora isso representasse ser desonesto e desleal com outra
parte de sua vida. Um Eu mantinha cativo o homem honesto e leal; o outro Eu o via
indo embora. Talvez, por isso, seu amigo tenha lhe dito com espanto, diante da
notícia de sua partida: “agora que você está delegado?” - para o que utilizou o estar
em lugar do ser, denotando a fugacidade de suas ações.
O bom marido é outro de seus contos com bons exemplos desse homem de início de
século XX, com seus pressupostos abalados e a sua premente necessidade de
exercitar suas novas convicções.
A fama do bom marido correu mundo. Todas as mulheres apontavam-no como
exemplo a seguir.
Os homens exemplares, porém, enfureciam-se.
— Um vagabundo daqueles! Um miserável chopim!
— Que tem isso? disse uma. Eu, franqueza, preferia que fosses também chopim,
mas que me desses o carinho que ele dá a Isabel.
— É o cúmulo! Pois não vês que aquilo é da profissão? Tipo asqueroso!... Agrada
à mulher porque vive dela. É o seu negócio. (Lobato, 1982, 138).
Percebemos o ressalto de algumas questões interiores do Eu fragmentado que
aparecem destacando-se no trecho. No entanto, o que mais se torna aparente é o fato
139
de todo o conto passar a idéia de que um malandro como era o marido da narrativa
era alguém adulado pela esposa. Esta, por sua vez, cegada pelo marido aproveitador
que lhe comprava o coração com algumas palavras bem encaixadas e com
promessas que nunca eram cumpridas, era o motivo de inveja conjugal das demais
mulheres.
Os maridos normais, se assim os podemos chamar, não eram alvo dos suspiros de
suas mulheres, não satisfeitas com a vida de família e sustento. Ele era
estranhamente o alvo dos desejos de outras, mesmo quando ele era o típico
malandro que faz tudo a descoberto, mas que nunca é incriminado por nada do que
faz. Os pais da moça e os maridos das demais mulheres falaram em vão. Até que a
exploração em múltiplos sentidos a levou à morte. Morte sofrida por fora e feliz por
dentro. Exaurida e acabada, mas fiel ao seu marido até o fim. E ele, sem nenhum
problema de consciência, seguiu depois a sua jornada. Enquanto para a mulher a
relação conjugal era afetiva e responsável, para o bom marido era apenas o exercício
de sua profissão.
Este homem nos faz lembrar de Sennett (2005) e seus postulados sobre o homem
cujo caráter foi transformado por conta dos processos de tempo e trabalho. Em meio
a contextos que fogem ao controle do indivíduo, este se torna capaz de se amoldar
às mudanças que se operam ao seu redor, capaz de não ter qualquer apego ao que
edifica com seu trabalho, que faz emergir mais um elemento da flexibilidade do seu
caráter: torna-se tolerante, senão receptivo, a sua própria fragmentação. A aceitação
140
resignada da fragmentação do seu Eu torna-se um dos pontos essenciais do caráter
que é formado dentro de um mundo absolutamente flexibilizado.
Na mesma linha vemos que Lobato também trata do caráter de seus personagens,
sempre afeitos ao discurso desse homem que se via fragmentado.
Terminado o jantar, saímos em direção ao Triângulo, e lá nos abancamos num
sórdido café. O meu amigo voltou ao assunto.
– Caso notável, o daquele homem! Caso merecedor de novela ou conto, já que a
justiça não tem forças para metê-lo na cadeia. (...)
Pequetita! Bem posto apelido, que não era bem mulher aquela isca de gente.
Miudinha, magrinha, sequinha, sem cadeiras, sem ombros, sem seios, Pequetita
não passava de um desses restolhos enfermiços que aparecem ao lado das espigas
viçosas – sabuguinho débil, um grão aqui, outro ali. Apesar dos seus vinte e cinco
anos, representava treze, e ao escolhê-la Pânfilo – chama-se Pânfilo Novais o meu
facínora – espantou a todos, a começar pela moça. Como, porém, era ele pobre e
ela arranjada, explicou-se financeiramente a união. (Lobato, 1982, 77).
A questão do caráter foi magistralmente trabalhada por Lobato no texto Barba azul.
Nesse conto surge um homem com formação na área médica que utiliza seus
conhecimentos para proveito próprio, mesmo que para isso as vidas de suas esposas
sejam sistematicamente subtraídas. Sim, esposas, pois o conto mostra um homem
que planeja como se beneficiar com as mortes das mesmas. E de tal modo o faz que,
no fundo, não as matava, mas as conduzia à morte.
– ...até que os separou a morte. Pequetita não resistiu ao primeiro parto; faleceu
após cruel intervenção cirúrgica.
Pânfilo, dizem, chorou amargamente a morte da esposa, embora viessem consolálo os trinta contos de um seguro por ela constituído em seu favor.
A meu ver é daqui por diante que surge o criminoso. O desastre do primeiro
casamento criou-lhe no cérebro um pensamento sinistro – pensamento que o iria
nortear pela vida afora e que o fez, como te disse, rico e poderoso. A morte de
141
Pequetita ensinou-lhe um crime inédito, não previsto pelas leis humanas. (Idem,
77).
A ética e a razão são exaustivamente abordadas no conto. Tenhamos em vista,
mesmo assim, que Lobato não se dispôs a escrever um tratado filosófico, mas uma
obra literária. Pessoas assim podem existir, principalmente se o berço de sua cultura
for desregrado e sem parâmetros éticos absolutos. O início do século XX foi, em
seqüência aos eventos de Fin-de-Siècle, um tempo sem maiores equilíbrios éticos,
coisa que vemos perdurar até hoje.
O benefício pessoal que se desenvolve por parte do marido é avesso a qualquer
relação ética, em qualquer que seja a cultura, a menos que tratemos de algum tema
patológico ou insanamente criminoso. Isto posto, no entanto, não confere com o
texto, em cujas linhas é apresentado um vilão consciente do que faz e sem nenhuma
forma aparente de arrependimento ou de tentativa de subtrair de sua vida atos tão
hediondos.
Escolhia uma mulher previamente identificada como inapta ao parto, casava-se com
ela, engravidava-a, gerava algum tipo de benefício para uso após a morte da mulher
- como um seguro - e pacientemente aguardava a morte da infeliz. E o gesto se
repetia em outra parte, com outra mulher, como se fosse outro homem começando
tal prática escusa.
Depois, imagina o sadismo dessa alma ao ver desenvolver-se no ventre da vitima,
não o filho que ela docemente esperava, mas a bolada gorda que viria acrescentar
os seus cabedais. Afez-se a tal caçada e nela aperfeiçoou-se de maneira a nunca
errar o bote.
142
A quarta, soube-o logo depois, fora pelo mesmo caminho das outras em seguida a
uma nova intervenção cirúrgica. E entraram os duzentos contos. Vês tu que
monstro?...
No outro dia lá estava na mesma mesa o doutor Pânfilo. Entraram na sala várias
moças, e pela força do hábito, o seu olhar mortiço mediu num relance as ancas de
cada uma. Bem feitas de corpo que eram, nenhuma o interessou – e seu olhar
desceu calmamente para o jornal que lia.
– Está viúvo – pensei comigo. – Anda evidentemente tocaiando a quinta mal
conformada... (Idem, 77).
E o homem, fragmentado em si mesmo, prosseguia em suas exemplificações e
aparições nos textos lobatianos. Esse é o mesmo ser que busca freneticamente a
felicidade, mas, de fato, parece não saber como obtê-la. Num outro conto, Fatia de
vida, Lobato exemplifica tal situação.
Não era homem querido o doutor Bonifácio Torres. Não era querido pela
ponderosa razão de pensar com sua própria cabeça. Para ser querido, é força
pensar como toda gente.
“Toda gente?!”
Moloch social cujos mandamentos havemos de seguir de cabecinha baixa, sob
pena dos mais engenhosos castigos. Um deles: incidir na pecha de esquisitice.
(Lobato, 1982, 154).
Chama a atenção que Lobato trata o dr. Bonifácio de “Moloch1 social” e depois,
mais à frente na mesma página, volta a dizer que ele tinha “a mentalidade do
Moloch”. O conto narra as desventuras que Isaura, uma lavadeira, sofre por causa de
1
Moloc ou Moloch
Entregar as crianças a Moloc (Melek) era queimá-las em sacrifício ao deus cananeano. (...) Crianças vivas eram queimadas
sobre o altar do deus ou nos flancos da estátua de bronze que lhe era consagrada, enquanto os sacerdotes encobriam os gritos
das vítimas com o barulho de clamores e tambores. (...) Sem dúvida, deve-se ter em Moloc a velha imagem do tirano,
ciumento, vingativo, sem pena, que exige de seus súditos obediência até à morte e confisca todos os seus bens, até mesmo os
filhos, destinados à morte na guerra ou no sacrifício. (...).Nos tempos modernos, Moloc tornou-se o símbolo do Estado
tirânico e devorador. (Chevalier, 1993, 614).
143
“bondades” que lhe são feitas em seguidos momentos de sua vida e, por causa das
caridades que lhe foram feitas, a senhora padece tremendamente. Com isso, surge a
justificativa do dr. Bonifácio em não fazer caridade a fim de evitar o mal alheio.
Mais à frente, Lobato migra o codinome para o cônego Eusébio, chamando-o de
“conspícuo representante legal do Moloch” (Idem, 155).
O dr. Bonifácio sorrira e o padre olhara-o de revés, com saudades, quem sabe, do
bem-aventurado tempo em que sorrisos assim recebiam a réplica do fogo pio.
- Sorri-se o hereje (sic)? - interpelou o padre. Nega até a caridade?
- Não nego - respondeu mansamente o filósofo - porque não nego nem afirmo
coisa nenhuma. Negam e afirmam os atores, os que se agitam no palco da vida.
Eu tenho meu lugar na platéia e, como não represento, observo. E como observo,
sorrio - sorrio para não chorar...
- Seja mais claro.
- Serei. Quando o reverendo se abriu em louvores à caridade, não desfiz nessa
cristianíssima virtude. Apenas me lembrei de certo drama a que assisti - e, repito,
sorri para não chorar...
Depois de breve pausa de interrogativa expectação, o dr. Bonifácio principiou.
- Isaura a minha lavadeira... (Idem, 155).
Isaura sofre muito ao longo de toda a narrativa. Sua pobre vida se desfaz como que
por encanto sem que nada seja feito em seu favor. Na verdade, tudo lhe ocorre por
causa dos favores recebidos. Favores indesejados e não buscados, mas favores
mesmos assim.
A busca da felicidade encontra dois aspectos neste conto. O de quem outorga a
felicidade e de quem apenas a busca, seja em terceiros, seja nas circunstâncias da
vida. Moloc parece surgir como elemento mitológico evocado por Lobato para nos
informar que ser feliz em geral não é possível. Pelo menos não em sua totalidade.
144
Algo veio devorar a felicidade da pobre mulher que, mesmo sem grandes posses,
tinha para si seu bem maior, seus filhos. Estes lhe foram arrebatados por esse
Moloch da vida que se levantou ferozmente e lhe tirou dois dos filhos, além de
deixar os outros dois em situação muito ruim. Ela própria, depois dos episódios,
integra um trio com os dois filhos aos quais Lobato chama de “três miseráveis
molambos” (Idem, 159). Assim como o ente mitológico, este do conto também veio
reclamar os filhos dos seres humanos para si.
- “Depois? Depois a gripe declinou, a normalidade foi se restabelecendo e os dois
filhos restantes voltaram à casa materna. Em que estado! O menino, semimorto,
cadavérico e a Inês (só ao vê-la chegar soube Isaura qual das duas morrera) e a
Inês com uma tosse de tuberculosa. E ali ficaram, destroços de horrível naufrágio,
aqueles três miseráveis molambos de vida, sob a assistência da negra enfermeira a Fome. Continuaram a viver sem saber como, por instinto - num desvario, numa
alucinação...
Da última vez que vi a pobre Isaura, disse-me ela, entre dois acessos de tosse:
-Tudo porque me levaram de casa os filhos. Se ficassem, nada lhes teria
acontecido. A nossa vizinha, tão boa, coitada, quis fazer o bem e fez a nossa
desgraça. É um perigo ser muito bom. (Idem, 159).
A busca pela felicidade parece não ter fim em nós. Sabemos que jamais a
atingiremos, compondo tal estado um sonho permanente em nós. No entanto, a
desventura exacerbada parece roubar até mesmo o sonho que Isaura poderia ter de,
em sua simplicidade, viver momentos felizes junto a seus filhos.
145
Considerações Finais
Após este trabalho a respeito do Eu e suas caracterizações básicas a partir do Finde-Siècle é possível perceber com mais clareza a importância real do papel que
temos a desenvolver em meio à sociedade na qual estamos inseridos. Quem sou? De
onde vim? Para onde vou? Questões assim acompanham o homem e povoam suas
idéias e conceitos desde tempos imemoriais. As respostas, essas são inúmeras e
inexistentes ao mesmo tempo. Mas o homem não desiste de as buscar
permanentemente.
Como análise final deste estudo, proponho a resposta à questão que gerou a
problematização, a qual me serviu como incentivo de pesquisa. Os contos de
Machado e Lobato realmente indicam uma percepção refinada e externada de modo
particular que cada um teve desse homem cujo Eu era fragmentado. Não o fazem,
talvez, por gesto premeditado, mas o fato é que seus textos indicam uma percepção
fina às questões sociais e humanas que os cercavam. E ao fazê-lo, deixaram para nós
uma indelével marca que nos é muito útil para a percepção do mundo de seus dias.
Como foi devidamente exposto ao longo do trabalho, Machado e Lobato foram
contemporâneos, por certo espaço de tempo, mas não o foram no que tange à
criação e à vida produtiva, pois Machado já declinava a vida quando Lobato
começava a viver a sua. Esse paralelo e esse quase-encontro despertaram a atenção
para o fato de ambos terem recebido fortes influências dos processos de Fin-deSiècle a partir dos quais tiveram suas próprias visões de mundo formadas. Assim,
146
Machado viveu os períodos de transformação diretamente enquanto Lobato
representa a geração seguinte, a que realmente começou a experimentar os primeiros
resultados práticos das conquistas e dos problemas decorrentes de seus tempos.
Tenho, portanto, algumas conclusões após a elaboração destes estudos, a começar
pela afirmação objetiva de que a leitura feita nos contos de Machado de Assis e de
Monteiro Lobato realmente deixa à mostra toda a influência que sofreram como
pessoas que viveram durante os anos que representam nosso alvo de estudos, o Finde-Siècle. É claro, também, que não teria sido diferente com outros bons autores e
outros modelos de transformação sofrida pela humanidade. Refiro-me ao fato de os
autores serem intérpretes de seu tempo e da História que viveram e ajudaram a
construir. Quero dizer com isso que eles não foram mais espetaculares que nenhum
outro autor por representarem em seus textos o que viveram. Mas poderiam também
ter sido pífios a ponto de pouco transparecerem em seus textos todos os movimentos
e episódios que os cercavam e findaram por influenciar suas vidas particulares e
seus postulados intelectuais e filosóficos.
O fato, o qual certamente é de nosso interesse particular, é que o Fin-de-Siècle e
seus modelos transformadores, com a fragmentação do Eu, com as verdades
tornando-se mais relativas a cada momento, com as inconstâncias e incertezas que
lhe foram peculiares, de fato, aparecem de forma clara nos contos de Machado de
Assis e Monteiro Lobato. Personagens, relações interpessoais, pressupostos, temas
filosóficos, tramas, tudo - com seus sucessos e revezes - tem um ponto de convecção
ao Fin-de-Siècle. O que poderia destacar nesta conclusão como pontos recorrentes
147
que, se devidamente acondicionados, poderiam ser considerados como confirmação
das influências do Fin-de-Siècle e de um Eu fragmentado nos contos de ambos?
De modo direto, podemos listar as seguintes características que são vistas em seus
textos: instabilidade de opiniões e de caráter, demonstrando um ser humano
absolutamente sem referenciais, com seu Eu fragmentado; uma intensa dose de
baixa auto-estima, a partir da qual muitos personagens deixam passar a vida diante
de si numa estranha resignação; por outro lado, demonstrando oscilações de
comportamento, um elevado índice de busca por benefícios e ganhos pessoais,
mesmo em detrimento de outras pessoas ou da felicidade delas; uma dificuldade em
demonstrar ou em ter referências objetivas de relacionamentos com base em ética e
moral; um intenso movimento de clientelismo e favorecimentos sociais; a
relativização de conceitos, deixando-os ao sabor do momento; a Ciência e o
cientificismo como desculpas ou pontos de apoio para a perpetuação da
diferenciação interpessoal; uma exagerada dose de individualismo; um verdadeiro
menosprezo, ou derrocada do ser humano da posição que lhe seria devida; um
possível choque entre a moral e a ética interiores dos autores e as que
exteriorizavam em seus personagens.
Tanto Machado quanto Lobato foram pessoas ativas em seus tempos de vida,
deixando claras marcas do que viviam como funcionário público e empresário
enquanto labutavam nas letras e na cultura nacional. Isso lhes propiciava inigualável
condição de testemunhar fatos e atestar evidências que estavam à vista de todos,
148
mas que somente pessoas de grande sensibilidade poderiam tê-los registrado da
forma que o fizeram.
Percebemos ao longo das análises que as influências sofridas por eles e, portanto,
salientadas em suas obras, foram preponderantes para a formatação de seu caráter
literário. O Eu fragmentado parecia de fato incomodar ambos os autores. Machado,
primeiro com atitudes liberais e depois com atitudes mais independentes, faz do
humor, muitas vezes cínico e até mordaz, uma porta aberta para a entrada num
mundo de perguntas para as quais não necessariamente haveria respostas adequadas.
A impressão constantemente deixada é a de não mais se importar com as coisas,
como o crítico do folhetim, que tece o comentário duro e frio apenas por força do
ofício. Dirigia-se em paralelo a pessoas comuns, que poderiam também ser pessoas
de caráter duvidoso, de gestos pouco éticos, de crises estranhas consigo e com os
demais. Ou seria isso uma forma de mexer com os falsos moralistas e com os
hipócritas de sua época, que, por conta de começarem a apreciar os efeitos da
fragmentação do Eu, abandonavam as regras mínimas de civilidade e de
relacionamento interpessoal?
Lobato, empreendedor, filho bem-nascido e bem situado, nacionalista, defensor do
Brasil e da brasilidade, embora adotasse o modelo americano para o fazer, com fala
e discurso fácil entre adultos e crianças, parece ter entendido que as pessoas tinham
sentimentos. Pelo menos, parece que isso é verdadeiro em seus textos.
Estranhamente a isso, a formação cientificista sugere ter deixado nele a idéia clara
de uma separação ideal entre castas sociais, origens ou raças, o que notamos quando
149
fala de Negrinha ou do negro Timóteo, por exemplo. Ou será isso uma perturbação
proposital provocada no seu leitor, tanto o de ontem quanto o de hoje? Ou quem
sabe Lobato pretendia com isso estabelecer um desconforto no leitor a tal ponto que,
assim, ele poderia reverter a mente de pelo menos mais um ser-leitor ao qual
pudesse atingir com seus textos?
Machado e Lobato parecem inseridos num contexto em que, para falar do mundo,
precisaram sair do mesmo. Precisavam sentir de outra forma, não a forma prática e
corriqueira apenas, mas a forma universal, antropológica, aquela que poderia ser
sentida depois deles, simplesmente pelo acesso aos seus textos, os quais
representavam não o que se via com os olhos da razão comum, mas os do coração.
Não havia melhor meio de nos deixar sua mensagem que através de um legado que
fosse extemporâneo, que sobrevivesse aos tempos e aos homens. Assim trabalharam
outros antes e depois deles, e, graças aos seus esforços, até hoje nos deleitamos com
os textos dos grandes vultos da literatura de todos os tempos, sociedades e
circunstâncias humanas.
Cada vez que temos acesso a Machado e Lobato queremos chegar mais e mais perto
do que eles foram e viveram. Se não os compreendemos bem numa primeira leitura,
temos para nos ajudar uma possível radiografia estética e psicológica de autores de
seu nível, muito bem trabalhada por Pessoa em seu poema Isto:
Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
150
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê
(Pessoa, 2006, 43)
O modelo e a estrutura em que Machado e Lobato se viam mergulhados certamente
não lhes permitiu ver de fora o que sofriam. Experimentaram e souberam conviver
com as transformações a que se submeteram. Como todos nós, eles tinham diversos
referenciais, quase todos de culturas diversificadas, como a européia e a norteamericana. Souberam, contudo, apreciar a arte e a literatura de fora e conseguir falar
delas em português e em brasileiro. Ou seja, falaram ao brasileiro em cultura e em
língua que eles entenderam. E continuamos a entendê-los até hoje.
É comum, num confronto entre culturas, vermos abertamente as perguntas sobre
qual modelo ou paradigma é o melhor. Como sociedade colonizada, geralmente
pensamos que o que vem de fora, da estranja, para utilizar uma boa nomenclatura
lobatiana, é o melhor, o mais correto, o mais saudável. Mas, nesse aspecto, a própria
discussão dos paradigmas ocorrida durante o Fin-de-Siècle nos é salutar, haja vista a
abertura de possibilidades de se reconsiderar as verdades e os axiomas.
Um outro elemento que salta aos olhos nas leituras dos contos de Machado e Lobato
é um sentimento de indefinição ou de mistura de sentimentos. Por um lado, o que é
151
brasileiro, a terra, as pessoas, as instituições, a nação, o brio e tudo que cerca um
povo saltam como possibilidades a serem perseguidas. Ao mesmo tempo, e em
paralelo, a pequena relação de boa vontade e de brasilidade notada nas estruturas
maiores do país deixa claro nas obras que o Brasil enfrentava naqueles tempos - e
continuaria a enfrentar depois, até chegar aos nossos dias - tempos severos e
difíceis. A corrupção, a má vontade com as questões públicas, o clientelismo, o
charlatanismo político e toda sorte de males éticos e morais acanhavam de certa
forma a esperança que por vezes vislumbrava em seus textos.
Com tudo o que foi pesquisado e exposto, posso dizer que tanto Machado de Assis
quanto Monteiro Lobato descreveram de maneira ostensiva o que viveram,
conforme já descrito no início desta conclusão. Fizeram-no cada qual a seu modo e
a seu tempo. Deixaram-nos um farto legado de narrativas de ricos detalhes e enorme
valia. Por outro lado, parece-me que nenhum dos dois teve a intenção de deixar
receituários para que as gerações futuras às suas tivessem menos problemas ou
tivessem prontas as soluções para tudo aquilo que eles próprios tinham vivido e
experimentado. Tudo o que nos deixaram nos serve de base de reflexão e
parâmetros de experimentação que, como referenciais, poderão nos ajudar. No
entanto, a cada geração e a cada tempo da História o homem precisa aprender a lidar
com seus próprios meios os problemas que enfrenta, seus vazios, suas
fragmentações interiores e suas sociedades - muitas vezes, falta de ética e estética.
Afinal de contas, como poderiam eles, que se sentiram fragmentados e sem
parâmetros concretos, em franca definição de pressupostos, dizer para alguém o que
152
fazer? Puderam, no entanto, deixar seus registros e deles podemos avaliar os
benefícios e malefícios vividos e, quem sabe, extraindo boas considerações,
amadurecer nossas atitudes futuras.
É bem verdade que ainda não alcançamos a maturidade em alguns pontos de nossa
carreira humana, mas certamente já crescemos em algo. Hoje vivemos a realidade
de uma sociedade pós-moderna, que se globaliza - ou mundializa, como diriam
alguns - a passos rápidos. Pudemos observar ao longo deste trabalho que boa parte
da estrutura social e interior que vivemos em nossos dias tem seu ponto de partida
nos tempos do Fin-de-Siècle. Ali, as coisas se mostraram mais claras, pois o homem
conseguiu tomar para si a responsabilidade de muitos elementos que antes eram
simplesmente tidos por transcendentes.
Que as amostras desse passado recente do Fin-de-Siècle nos sirvam de exemplo e
modelo e que, a partir de nós, enquanto indivíduos que somos, possamos tomar
como nossa a parte que nos toca encenar nesse grande teatro que é a vida. Creio que
o Fin-de-Siècle ainda não terminou. Não em sua essência mais profunda,
motivadora. Sua evolução continua e suas perspectivas ainda batem à nossa porta.
Cabe agora a cada um descobrir e assumir seu papel, sabendo que toda a sociedade é
um modelo vivo do qual fazemos parte.
O Eu que vivemos está desvalorizado, fragmentado. Seria tolo e singelo afirmar que
toda essa desvalorização se deu isoladamente a partir dos eventos do Fin-de-Siècle,
mas foi nesse período que se percebeu o maior índice concentrado de alterações do
Eu de que temos conhecimento. Na razão humana, a sistematização, quer seja
153
científica, artística, jornalística ou a do senso comum, parece ter sido algo que
ressaltou a desvalorização do Eu e nos permitiu acesso a fatos documentais que nos
ajudaram a entender melhor o que se deu com as pessoas a partir de então.
Talvez o Eu do homem sempre tenha sido desvalorizado e fragmentado, mas o saber
consciente disso é o ponto principal para esta leitura e do que pode vir a partir de
seu entendimento. Talvez algumas das respostas mais primitivas voltem a satisfazer
esse homem de Eu desfigurado.
154
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MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São Paulo/ Rio de
Janeiro, Difel, 1979.
PESSOA, Fernando. Poesias. Org.: Sueli Tomazini Cassal. Porto Alegre, L&PM, 2006.
SCHORSKE, Carl E.. Viena Fin-de-Siècle: política e cultura. Trad.: Denise Bottmann. São
Paulo, Companhia da Letras/ Ed. Unicamp, 1988.
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo, Duas Cidades, 1992.
________ Que horas são? São Paulo, Companhia das Letras, 1989.
________ Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo, Duas Cidades, 1991.
SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: as conseqüências pessoais do trabalho no
novo capitalismo. Trad.: Marcos Santarrita. 9.ed. Rio de Janeiro, Record, 2005.
________ O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. Trad.: Lygia Araújo
Watanabe. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.
VEITH JR, Gene Edward. Tempos pós-modernos. Trad.: Hope Gordon Silva. São Paulo,
Cultura Cristã, 1999.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Trad.: Pietro Nassetti. São
Paulo, Martin Claret, 2004.
156
Textos eletrônicos
As referências a seguir tiveram a última verificação de acesso na Rede Mundial de Computadores
(Internet) no dia 20 de julho de 2007.
BELISÁRIO, Roberto. Viena Fin-de-Siècle: política e cultura. Carl E. Schorske. Cia das
Letras/Ed. Unicamp, 1988. Resenha. s.l.; s.d. Disponível em
<http://www.comciencia.br/resenhas/viena.htm>.
Caso Dreyfus. Enciclopédia Jurídica Soibelman. Disponível em
<http://www.elfez.com.br/elfez/Dreyfus.html >
CODINA, Graciela Deri de. Ilusão e mal-estar: um retrato de nós mesmos. In: Revista
Mack. Arte - Edição de agosto de 2005, páginas 75 a 79. São Paulo, 2005. Disponível em
<http://www.mackenzie.br/editoramackenzie/revistas/eahc/Revista%20Mack.%20Arte%20
graciela%20deri%2007.pdf>
DIAS, Edson dos Santos. Resgatando o movimento modernista urbano: a expressão de uma
conjuntura histórica que marcou as cidades do Século XX. In: Revista GeoNotas,
Universidade Estadual de Maringá, Número 4, Vol. 4. Maringá, 2000. Disponível em
<http://www.dge.uem.br//geonotas/vol4-4/dias.shtml>.
DRUMMOND, Virgínia S. O Capital Humano como elemento estratégico para as
organizações. 2001. (Palestra em Jornada de Psicologia).
GOMES, Antonio Máspoli de Araújo. Solidão: uma abordagem interdisciplinar pela ótica
da Teologia bíblica reformada. In: Revista Fides Reformata 6/1, São Paulo, 2001.
Disponível em <http://www.mackenzie.br/teologia/fides/vol06/num01/Maspoli.pdf>
MAGALHÃES, Josiane. O que é consciência crítica? In: Urutágua - revista acadêmica
multidisciplinar do Departamento de Ciências Sociais. Ano 1. Número 2. Maringá, UEM,
2001. Disponível em <http://www.uem.br/~urutagua/02_consciencia.htm>
MUNK, Leonardo. Paris, Viena: dois espectros de uma sociedade em crise. Rio de Janeiro,
UFRJ, s.d. Disponível em <http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/ensaios/munk.doc>.
NASCIMENTO, Maria Ercília. Linguagem literária e o Rio de Janeiro fin-de-siècle:
Trajetos da cidade, trajetos da exclusão. s.l. s.d. Disponível em < http://www.lppuerj.net/olped/documentos/ppcor/0253.pdf.>
157
NETO, José Apóstolo. O Discurso Cientificista no Livro a Chave do Tamanho de Monteiro
Lobato. In: Revista Digital Art&. Ano II. Número 01. s.l. 2004. Disponível em
<http://www.revista.art.br/site-numero-01/trabalhos/pagina/20.htm>
ROCHA, João Cezar de Castro. A formação da leitura no Brasil: esboço de releitura de
Antonio Candido. Rio de Janeiro: UFRJ, s.d. Disponível em
<http://www.calem.hpg.ig.com.br/leituranobr.htm>.
SILVA, Lorena Dantas da. Caráter e flexibilidade. In: Par’a’iwa – revista de pós-graduação
de Sociologia da UFPB. Número 1. João Pessoa, UFPB, 2001. Disponível em
<http://chip.cchla.ufpb.br/paraiwa/01-dantasdasilva.html>
158
Textos adicionais recomendados
ANDRADE, Mário de - Aspectos da Literatura Brasileira. São Paulo, Livraria Martins
Editora/INL, 1972.
BENJAMIN, Walter. O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão. Trad. Márcio
Seligmann-Silva. São Paulo, Edusp, 1993.
BÍBLIA. Sociedade Bíblica Brasileira.
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos,
gestos, formas, figuras, cores e números. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora,
1993.
GRUNBECHT, Hans Ulrich. Space reemerging. Five short reflections on the concepts
“Postmodernity” and “Globalization”. In: MATRAGA: Revista do Programa de Pósgraduação em Letras/ Universidade do Estado do Rio de Janeiro. - ano 9, n. 14 - Rio de
Janeiro, Caetés, 2002.
HOLANDA, Sérgio Buarque. O espírito e a letra. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
________ Raízes do Brasil, 9a edição. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1976.
LEWIS C. S. Cartas de um diabo a seu aprendiz. Trad. Juliana Lemos. São Paulo, Martins
Fontes, 2005.
MENDES, Candido. (org.). Hégémonie et civilisation de la peur. Rio de Janeiro, EdUCAM,
2003.
SAID, Edward W. Cultura e imperialismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995.
159
Anexos
Anexo 1: Paranóia ou mistificação?1
Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que vêem normalmente as coisas e
em conseqüência disso fazem arte pura, guardando os eternos ritmos da vida, e
adotados para a concretização das emoções estéticas, os processos clássicos dos
grandes mestres. Quem trilha por esta senda, se tem gênio, é Praxíteles na Grécia, é
Rafael na Itália, é Rembrandt na Holanda, é Rubens na Flandres, é Reynolds na
Inglaterra, é Leubach na Alemanha, é Iorn na Suécia, é Rodin na França, é Zuloaga
na Espanha. Se tem apenas talento, vai engrossar a plêiade de satélites que gravitam
em torno daqueles sóis imorredouros. A outra espécie é formada pelos que vêem
anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão
estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva.
São produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência: são
frutos de fins de estação, bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um
instante, as mais das vezes com a luz do escândalo, e somem-se logo nas trevas do
esquecimento. Embora eles se dêem como novos precursores duma arte a vir, nada é
mais velho do que a arte anormal ou teratológica: nasceu com a paranóia e com a
mistificação. De há muito já que a estudam os psiquiatras em seus tratados,
documentando-se nos inúmeros desenhos que ornam as paredes internas dos
1
Texto de Monteiro Lobato publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo em dezembro de 1917. Texto completo
disponível em http://www.jayrus.art.br/LitBrasil_Simbol_Premoderno.htm>
160
manicômios. A única diferença reside em que nos manicômios esta arte é sincera,
produto ilógico de cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses; e fora
deles, nas exposições públicas, zabumbadas pela imprensa e absorvidas por
americanos malucos, não há sinceridade nenhuma, nem nenhuma lógica, sendo
mistificação pura.
Todas as artes são regidas por princípios imutáveis, leis fundamentais que não
dependem do tempo nem da latitude. As medidas de proporção e equilíbrio, na
forma ou na cor, decorrem do que chamamos sentir. Quando as sensações do mundo
externo transformam-se em impressões cerebrais, nós “sentimos”; para que sintamos
de maneira diversa, cúbica ou futurista, é forçoso ou que a harmonia do universo
sofra completa alteração, ou que o nosso cérebro esteja em “pane” por virtude de
alguma grave lesão. Enquanto a percepção sensorial se fizer normalmente no
homem, através da porta comum dos cinco sentidos, um artista diante de um gato
não poderá “sentir” senão um gato, e é falsa a “interpretação” que do bichano fizer
um “totó”, um escaravelho, um amontoado de cubos transparentes.
Estas considerações são provocadas pela exposição da Sra. Malfatti, onde se notam
acentuadíssimas tendências para uma atitude estética forçada no sentido das
extravagâncias de Picasso e companhia. Essa artista possui um talento vigoroso,
fora do comum. Poucas vezes, através de uma obra torcida para má direção, se
notam tantas e tão preciosas qualidades latentes. Percebe-se de qualquer daqueles
quadrinhos como a sua autora é independente, como é original, como é inventiva,
em que alto grau possui um sem-número de qualidades inatas e adquiridas das mais
161
fecundas para construir uma sólida individualidade artística. Entretanto, seduzida
pelas teorias do que ela chama arte moderna, penetrou nos domínios dum
impressionismo discutibilíssimo, e põe todo o seu talento a serviço duma nova
espécie de caricatura.
Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não passam de
outros tantos ramos da arte caricatural. É a extensão da caricatura a regiões onde não
havia até agora penetrado. Caricatura da cor, caricatura da forma - caricatura que
não visa, como a primitiva, ressaltar uma idéia cômica, mas sim desnortear,
aparvalhar o espectador. A fisionomia de quem sai de uma dessas exposições é das
mais sugestivas. Nenhuma impressão de prazer, ou de beleza, denunciam as caras;
em todas, porém, se lê o desapontamento de quem está incerto, duvidoso de si
próprio e dos outros, incapaz de raciocinar, e muito desconfiado de que o mistificam
habilmente. Outros, certos críticos sobretudo, aproveitam a vaza para épater les
bourgeois. Teorizam aquilo com grande dispêndio de palavrório técnico, descobrem
nas telas intenções e sub-intenções inacessíveis ao vulgo, justificam-nas com a
independência de interpretação do artista e concluem que o público é uma
cavalgadura e eles, os entendidos, um pugilo genial de iniciados da Estética Oculta.
No fundo, riem-se uns dos outros, o artista do crítico, o crítico do pintor, e o público
de ambos.
Há de ter essa artista ouvido numerosos elogios à sua nova atitude estética. Há de
irritar-lhe os ouvidos, como descortês impertinência, esta voz sincera que vem
quebrar a harmonia de um coro de lisonjas. Entretanto, se refletir um bocado, verá
162
que a lisonja mata e a sinceridade salva. O verdadeiro amigo de um artista não é
aquele que o entontece de louvores e sim o que lhe dá uma opinião sincera, embora
dura, e lhe traduz chãmente, sem reservas, o que todos pensam dele por detrás. Os
homens têm o vezo de não tomar a sério as mulheres. Essa é a razão de lhes darem
sempre amabilidades quando pedem opiniões. Tal cavalheirismo é falso, e sobre
falso, nocivo. Quantos talentos de primeira água se não transviaram arrastados por
maus caminhos pelo elogio incondicional e mentiroso? Se víssemos na Sra. Malfatti
apenas “uma moça que pinta”, como há centenas por aí, sem denunciar centelha de
talento, calar-nos-íamos, ou talvez lhe déssemos meia dúzia desses adjetivos
“bombons”, que a crítica açucarada tem sempre à mão em se tratando de moças.
Julgamo-la, porém, merecedora da alta homenagem que é tomar a sério o seu talento
dando a respeito da sua arte uma opinião sinceríssima, e valiosa pelo fato de ser o
reflexo da opinião do público sensato, dos críticos, dos amadores, dos artistas seus
colegas e... dos seus apologistas.
Dos seus apologistas sim, porque também eles pensam deste modo... por trás.
163
Anexo 2: Tabela de comparação simplificada entre os fatos do mundo e os fatos
biográficos de Machado e Lobato, incluindo as bibliografias de ambos.
Tema e Período
Interesse Geral
Décadas
18501860
Interesse Cultural
Machado
Lobato
Anos
1839
- Teoria celular de
Scheiden e
Schucann
1850
- Inauguração da
linha de vapores
do Rio de Janeiro
para a Europa.
- Lei Eusébio de
Queiroz sobre a
proibição de
tráfico de
escravos.
- Guerra do Prata
(Brasil, Argentina
e Uruguai).
1851
Nasce a 21 de
junho, no Rio de
Janeiro, Joaquim
Maria Machado de
Assis, filho
legítimo de
Francisco José de
Assis e Maria
Leopoldina
Machado de Assis.
Pouco se sabe de
sua infância: cedo
perdeu a mãe e a
única irmã; foi
amparado, até o
segundo
casamento do pai,
pela madrinha,
senhora abastada.
Após a morte do
pai, ficou em
companhia da
madrasta, Maria
Inês. Talvez tenha
sido auxiliar do
culto na igreja da
Lampadosa.
- Fundação da
Sociedade
Acadêmica Ensaio
Filosófico, em São
Paulo.
164
1852
- Inauguração do
telégrafo.
- Voa o primeiro
dirigível na
França, com
Gifford.
- Relatório de
Gonçalves Dias
sobre a situação da
instrução.
1854
- Criação e
inauguração da
primeira estrada
de ferro do Brasil.
1855
- Hughes cria o
telégrafo
impressor.
- Abertura de livro
de registro de
solicitações à
Biblioteca
Nacional.
- Abertura de loja
de livros de
Garnier (Rio de
Janeiro).
- Abertura da
Livraria Clássica,
filiada a Bertrand
e a Aillaud.
- Loteria de livros
na Garnier.
- Criação no Rio
de Janeiro da
escola de Emílio
Zaluar.
1856
Publica seu
primeiro poema,
Ela. Até 1861,
colabora na
Marmota
Fluminense.
Aprendiz de
tipógrafo na
Tipografia
Nacional até 1858.
1857
- Pouncy:
Dorsetshire
photographically
illustrated
(primeiro livro
ilustrado por
fotolitografia).
1858
- Inauguração da
estrada de ferro D.
Pedro II.
- Criadas as
cadeiras de
História e
Geografia do
Brasil e a de
História da
Literatura
Portuguesa e
Nacional (esta no
7º ano) no Pedro
II.
- Fundação da
Associação Culto
à Ciência.
- Fundação do
Instituto
Acadêmico Instituto Científico
- Clube Literário.
- Catálogo do
Gabinete
Português de
Leitura organizado
por Silva
Ramalho.
Até 1859 escreve
em O Paraíba, de
Petrópolis. Auxilia
o escritor francês
Charles de
Ribeyrolles na
tradução de O
Brasil Pitoresco.
Colabora no
Correio Mercantil.
165
1859
1860
18611870
1861
- Charles Darwin
publica A Origem
das Espécies
- Primeiro poço de
petróleo é
perfurado, nos
EUA.
- Kirchhoff e
Bunsen lançam a
análise espectral.
- Monturiol lança
o 1º submarino.
- Eleição de
Abraham Lincoln
(Estados Unidos
da América).
- Invenção da
fotografia colorida
por James Clerk
Maxwell.
- Primeiro motor a
explosão - Levoir.
- Fundação da
Sociedade Ensaios
Literários.
- Frei Francisco de
Mont'Alverne:
Compêndio de
filosofia (Rio de
Janeiro).
Estréia como
crítico teatral na
revista O Espelho
até 1860.
- Fundação da
Academia
Pedagógica.
Convidado para
redator do Diário
do Rio de Janeiro
até 1867. Escreve
ainda no Diário
até 1869. Até
1875, atua como
redator de A
Semana Ilustrada.
- Início da Guerra
da Secessão
(Estados Unidos).
- Rompimento de
relações entre
Brasil e Inglaterra
(Questão Christie).
1862
1863
- Máquina
frigorífica Tellier.
1864
- Declaração de
guerra do Paraguai
ao Brasil.
Publica
Desencantos e
Queda que as
Mulheres têm para
os Tolos.
- Lançamento da
Biblioteca
Brasileira
organizada por
Quintino
Bocaiúva.
Sócio do
Conservatório
Dramático
Brasileiro, como
auxiliar da
censura. Até 1863
aparece em todos
os números da
revista O Futuro.
- Fundação do
Instituto dos
Bacharéis em
Letras.
- Projeto de uma
Associação de
Homens de Letras.
Publica o Teatro
de Machado de
Assis, (duas
comédias, O
Protocolo e O
Caminho da
Porta). Até 1878,
com interrupção
em 1867 e 1868,
colabora no Jornal
das Famílias.
Publica seu
primeiro livro de
versos, Crisálidas.
166
1865
Estados Unidos:
- Assassinato de
Abraham Lincoln.
Fim da Guerra da
Secessão.
Libertação dos
escravos.
- Mendell lança
estudos sobre as
leis da
hereditariedade.
1866
- Relatório relativo
à instrução e à
Biblioteca
Nacional
(Almanaque
Laemmert).
- Propriedade
sobre a obra
literária pelos
herdeiros do autor:
50 anos após sua
morte. Depois
torna-se de
domínio público.
1867
- Nobel apresenta
a Dinamite.
- Máquina de
escrever - Sholer e
Soule.
1868
- Inauguração de
bondes de tração
(Rio de Janeiro).
1869
- Classificação
periódica dos
elementos Mendeleev.
1870
- Criação do
Partido
Republicano (São
Paulo).
- Fim da Guerra
do Paraguai.
Publica Os Deuses
de Casaca. Publica
a sua tradução do
romance Os
Trabalhadores do
Mar, de Victor
Hugo.
Casa-se com
Carolina Augusta
Xavier de Novais,
moça portuguesa
havia pouco
chegada ao Brasil.
- Inauguração das
corridas de
cavalos, às quais o
bibliófilo Martius
atribuía o
desaparecimento
do gosto pela
leitura.
Começa a publicar
no Jornal da Tarde
uma tradução do
romance Olivier
Twist, de Dickens.
Publica Falenas e
Contos
Fluminenses.
167
18711880
1871
- Lei do ventre
livre.
- Organização, no
antigo Hospital da
Ordem Terceira do
Carmo (Rio de
Janeiro), dos livros
trazidos na
bagagem da
Família Real.
- Criada a Escola
Americana Mackenzie.
- Criada a
Biblioteca Pública
de Porto Alegre.
- Aberto ao
público o Gabinete
de Leitura de
Pernambuco.
1872
- Autorização ao
Visconde de Mauá
para construção de
cabo submarino
entre Brasil e
Portugal.
- Primeiro
recenseamento no
Brasil
1873
- Fundação da
Tipografia FrancoAmericana de
Batista Luís
Garnier (curta
duração).
- Centrais
hidrelétricas Berger.
- Chegada ao
Brasil de
Francisco Alves
de Oliveira,
sobrinho de
Nicolau Alves, da
Livraria Clássica.
- Novas instruções
para o despacho
alfandegário de
livros impressos.
- Lançamento da
Biblioteca
Universal e da
Biblioteca de
Algibeira que
publica Musset,
Droz, Gauthier,
Sardou,Verne,
Montepin,
Gaboriau até
1875.
1874
- Inauguração da
iluminação a gás
(Rio de Janeiro).
- Inauguração do
cabo submarino
entre Brasil e
Europa.
- União por
telégrafo das
províncias do
norte com a Corte.
- Início da
comercialização
da máquina de
escrever por E.
Remington.
- Plágio teatral de
O Guarany por
Vicente Coaracy e
Pereira da Silva,
com música de
Carlos Gomes e
sob protestos de
Alencar.
Publica
Ressurreição
(romance). Faz
parte da Comissão
do Dicionário
Marítimo
Brasileiro
Publica Histórias
da Meia-Noite e a
tradução de
Higiene para uso
dos MestresEscolas, do Dr.
Gallard. Nomeado
primeiro-oficial da
Secretaria de
Agricultura,
Comércio e Obras
Públicas.
Publica, em O
Globo, o romance
A Mão e a Luva.
168
1875
- Cromossomos Strosburger e
Fleming.
1876
- Alexander
Graham Bell
inventa o telefone.
1877
- Thomas Edison
inventa o
microfone e o
fonógrafo.
- Otto lança o
motor de quatro
tempos.
- Iluminação
elétrica - Thomas
Edison.
1878
1879
1880
- 15º aniversário
da Sociedade
Brasileira de
Ensaio Literários,
comemorado com
a oferta de A mão
e a Luva, de
Machado, e
discurso de
Fagundes Varela.
Publica
Americanas.
Até 1878, escreve
em todos os
números da revista
Ilustração
Brasileira. Publica
em O Globo o
romance Helena. É
promovido a chefe
de seção da
Secretaria de
Agricultura.
Publica, em O
Cruzeiro, o
romance Iaiá
Garcia.
Escreve na Revista
Brasileira onde
publica o romance
Memórias
Póstumas de Brás
Cubas. Escreve na
revista A Estação
onde publica o
romance Quincas
Borba.
- Revolta do
vintém (Rio de
Janeiro).
- Fundação da
Sociedade
Brasileira contra a
Escravidão.
- Fundação da
Associação
Central
Abolicionista.
169
18811890
1881
1882
- Reforma Saraiva:
estabelecimento
do voto universal.
- Fundação da
Sociedade Central
de Imigração.
- Congrès
Pèdagogique em
Paris (após a
guerra de 70, que
a França perde, a
vitória alemã é
creditada à
Educação alemã).
- A Gazeta de
Notícias oferece a
seus assinantes de
6 meses ou o
Almanaque do
jornal ou livros de
autores
contemporâneos:
França Jr.,
Araripe, Júlio
Verne, José do
Patrocínio.
- abril e setembro:
Rui Barbosa dá
pareceres sobre a
Instrução Pública
à Câmara.
Publica em
volume as
Memórias
Póstumas de Brás
Cubas.
Publica Papéis
Avulsos.
18 de Abril: nasce
numa chácara de
Taubaté, zona
rural do rio
Paraíba, São
Paulo, José Renato
Monteiro Lobato,
filho primogênito
de José Bento
Marcondes Lobato
e Olímpia Augusta
Monteiro Lobato,
e neto de José
Francisco
Monteiro,
“Visconde de
Tremembé”
herdeiro da
Fazenda Buquira.
Desde pequeno é
chamado pela mãe
e familiares por
“Juca”. É criado
entre a fazenda
Santa Maria, em
Ribeirão das
Almas, e a
residência, em
Taubaté.
170
1883
- Início da Questão
militar.
- Organização da
Confederação
Abolicionista.
- Congresso da
Instrução Pública
no Rio de Janeiro
sob presidência do
Conde d’Eu.
- Fundação da
Associação dos
Homens de Letras.
1884
- Libertação dos
escravos no Ceará
e Amazonas.
1885
- Emancipação dos
escravos de mais
de 60 anos através
da Lei de SaraivaCotegipe (Lei dos
Sexagenários).
- Gottlieb e
Daimler produzem
o primeiro carro
movido a gasolina
1886
- Fundação da
Sociedade
Promotora da
Imigração.
- Estabelecimento
na convenção de
Berna da proteção
internacional dos
direitos de autor.
1887
- Recusa do
Exército em ser
utilizado para
captura de
escravos fugidos.
- Ondas
eletromagnéticas Herth.
1888
- Abolição da
escravatura.
- Eastman lança o
filme fotográfico.
- Vinda de
Ramalho Ortigão
ao Brasil para
inaugurar a nova
sede do Gabinete
Português de
Leitura.
- Abertura do
Colégio Sion do
Rio de Janeiro.
1889
- Proclamação da
República.
- Transformação
da Editora Corazzi
em Companhia
Nacional Editora.
Publica Histórias
sem Data.
- Representante de
Aliança Francesa
no Brasil.
- Invenção do
linotipo por
Ottmar
Mergenthaler.
Sai o volume
Terras,
Compilação para
Estudo.
171
18911900
1890
- Crise do
encilhamento.
- Convocação e
eleição da
Constituinte.
- Criação da
Sociedade dos
Homens de Letras.
- Suprime-se o
ensino religioso
nas escolas
públicas - São
Paulo.
1891
- Promulgação da
Constituição.
Deodoro da
Fonseca:
- Eleito com
Floriano Peixoto.
- Fecha o
Congresso
- Renuncia
- Floriano Peixoto
toma posse.
Publica em
volume o Quincas
Borba.
1892
- Grande greve
ferroviária na
Central do Brasil.
Passa a diretorgeral do
Ministério da
Viação.
1893
- Revolta da
armada.
- Revolução
federalista no sul.
- Elster e Geitel
lançam a célula
fotoelétrica.
- Diesel lança o
motor que leva seu
nome.
1894
- Eleição e posse
de Prudente de
Morais.
- Invasão do Rio
Grande do Sul
pelas forças
federalistas:
capitulação dos
rebeldes.
172
1895
1896
1897
- Primeiras
expedições contra
Canudos.
- Röentgen
descobre o raio-X.
- Os Lumière
constroem o
aparelho
cinematográfico.
- Popov e Marconi
apresentam o
telégrafo sem fio.
- Criação do Nobel
da Paz.
- Novas
expedições contra
Canudos.
- Primeiros Jogos
Olímpicos
modernos, em
Atenas.
- Becquerel: a
radioatividade do
Urânio.
- Destruição de
Canudos.
1899
1900
19011910
Até 1898, escreve
na Revista
Brasileira.
- A Lei No 489, de
29 de dezembro de
1896 “torna
obrigatório o
ensino da língua
nacional”.
Publica Várias
Histórias.
Aclamado para
dirigir a primeira
sessão
preparatória da
fundação da
Academia
Brasileira de
Letras, tem
importante papel
em sua criação e o
preside até morrer.
- Fundação da
Academia
Brasileira de
Letras.
Publica Dom
Casmurro e
Páginas
Recolhidas.
- Início da política
dos governadores
no Brasil.
1901
Publica Poesias
Completas.
1902
- Eleição de
Rodrigues Alves.
- Radiofonia Stubbefield.
1903
- Transmissão de
imagens por
telégrafo - Korn.
Passa a diretorgeral de
Contabilidade do
Ministério da
Viação.
173
1904
- Revolta popular
contra medidas
sanitárias (Rio de
Janeiro).
1905
- Queda nos
preços
internacionais do
café.
- Einstein: Teoria
da Relatividade.
- Marconi lança a
antena de rádio.
- Conferência
Interamericana
(Rio de Janeiro).
- Santos Dumont
voa com o 14 Bis.
1906
1907
1908
1909
- Impressão offset.
Publica Esaú e
Jacó. Morre
Carolina dias antes
de completarem
35 anos de
casados.
Publica Relíquias
de Casa Velha.
- Aprovação de lei
que permite
expulsão de
estrangeiros
acusados de
agitação.
- Irmãos Lumière
inventam a
fotografia
colorida.
- Aprovação de lei
do Serviço Militar
Obrigatório.
- Teoria dos vôos
interplanetários Tsiolkovsky.
- Picasso e Braque
inventam o
cubismo.
- Disputa da
presidência por
Hermes da
Fonseca e Rui
Barbosa na
campanha
civilista.
- Marinetti publica
o Manifesto
Futurista
Publica Memorial
de Aires. Entra em
licença para
tratamento de
saúde. Na
madrugada de 29
de setembro, às
3h20min, morre
em sua casa, à Rua
Cosme Velho, 18.
É sepultado como
tinha pedido, na
sepultura de
Carolina, jazigo
perpétuo 1359,
Cemitério de São
João Batista.
174
1910
19111920
1911
1912
1913
1914
- Vitória de
Hermes da
Fonseca.
- Início dos
governos das
salvações
nacionais.
- Revolta da
Chibata no Rio de
Janeiro.
- Francisco Alves
compra a massa
falida da
Laemmert.
- Estrutura
planetária do
átomo Rutherford.
- Teoria
cromossômica da
hereditariedade Morgan.
- Paralisação de 10
mil trabalhadores
em greves
operárias (São
Paulo).
- Decreto de
Estado de sítio.
- Ford desenvolve
a linha de
produção nas suas
fábricas.
- Eleição e posse
de Venceslau
Brás.
1915
- Protestos
operários contra a
Primeira Guerra
Mundial.
1916
- Criação da Liga
de Defesa
Nacional.
Publica Velha
Praga e Urupês em
O Estado de São
Paulo.
- Griffith filma O
Nascimento de
Uma Nação,
primeiro longametragem com
tons modernos.
Colabora na
Revista Brasil.
175
1917
1918
1919
- Grandes greves
operárias (São
Paulo).
- Bombardeio de
navio brasileiro na
costa francesa,
resultando em
declaração de
guerra à
Alemanha.
- Começa a
Revolução Russa.
- Fim da Primeira
Guerra Mundial.
- Eleição de
Rodrigues Alves.
- Estudos sobre os
elétrons Thomson.
Funda, em
Caçapava, a
revista Paraíba.
Organiza para O
Estado de S. Paulo
uma pesquisa
sobre o Saci.
Publica crítica
desfavorável à
exposição de
pintura de Anita
Malfati.
Compra a Revista
Brasil. Publica em
volume Urupês.
Funda a Editora
Monteiro Lobato
& Cia. com o
título O Problema
Vital. Publica O
Saci-Pererê.
- Eleição de
Epitácio Pessoa e
derrota de Rui
Barbosa.
- Assinatura do
Tratado de
Versalhes.
- Fundada a Liga
das Nações.
Rui Barbosa evoca
a figura do Jeca
Tatu. Publica
Cidades Mortas e
Idéias do Jeca
Tatu.
1920
19211930
Publica Narizinho
Arrebitado e
Negrinha.
1921
- Grandes greves
(Rio de Janeiro e
São Paulo).
- Telefotografia Belin.
1922
- Posse de Arthur
Bernardes.
- Motim no Forte
de Copacabana.
- Criação do
Partido Comunista
(Rio de Janeiro).
1923
- Revolução
libertadora (Rio
Grande do Sul).
Publica O Saci,
Fábulas de
Narizinho e A
Onda Verde.
- Semana de Arte
Moderna (São
Paulo)
Publica O
Marquês de
Rabicó e Fábulas.
176
1924
- São Paulo sofre
bombardeamento
aéreo durante a
revolta tenentista.
- Começa a
Coluna Prestes.
1926
- Posse de
Washington Luís
(Getúlio Vargas é
Ministro da
Fazenda).
1927
- Lindenberg
realiza a primeira
travessia aérea do
Atlântico.
- Cinema sonoro é
apresentado.
1928
- Eleição de
Getúlio Vargas
para governo do
Rio Grande do
Sul.
- Stálin assume o
poder na União
Soviética.
1929
- Quebra da Bolsa
de Valores de
Nova York
- Disputa da
Presidência por
Getúlio Vargas e
Júlio Prestes.
1930
- Vitória de Júlio
Prestes.
- Assassinato de
João Pessoa.
- Revolução e
golpe de Getúlio
Vargas.
- Dissolução do
Congresso.
Incorpora à sua
editora uma
moderna gráfica.
Publica A Caçada
da Onça, Jeca
Tatu, O
Garimpeiro do Rio
das Garças e
Mundo da Lua.
Publica em
folhetim O
Presidente Negro e
How Henry Ford
is regarded in
Brazil.
Nomeado adido
comercial
brasileiro em
Nova York para
onde se muda.
Planeja a fundação
da Tupy
Publishing
Company. Publica
As Aventuiras de
Hans Staden e Mr.
Slang e o Brasil.
Organiza uma
empresa brasileira
para produzir aço.
Publica O
Noivado de
Narizinho,
Aventuras do
Príncipe, O Gato
Félix e Cara de
Coruja.
Perde tudo o que
tem na quebra da
Bolsa de Nova
York. Publica O
Irmão de Pinóquio
e O circo de
Escavalinho.
Vende suas ações
da Companhia
Editora Nacional
para cobrir perdas
com a Bolsa.
Publica A Pena do
Papagaio e Peter
Pan.
177
19311940
1931
- Queima de café
para manutenção
de preço.
Funda a
Companhia de
Petróleo do Brasil.
Organiza a
publicação de
várias histórias
infantis no volume
Reinações de
Narizinho. Sai O
Pó de Pirlipimpim.
1932
- Promulgação de
leis trabalhistas
pelo Governo
Federal.
- Revolução
Constitucionalista
(São Paulo).
- Conquista do
direito de voto
pelas mulheres
brasileiras.
- Microscópio
eletrônico - Knoll
e Ruska.
Publica Viagem ao
Céu e América.
1933
- Início do New
Deal nos EUA.
- Hitler torna-se o
1o ministro
alemão.
Publica História
do Mundo para
Crianças, Caçadas
de Pedrinho e Na
Antevéspera.
1934
- Eleição de
Getúlio Vargas
pela Assembléia
Constituinte.
- Promulgação da
nova Constituição.
- Fundação da
Universidade de
São Paulo.
História do Mundo
para Crianças
sofre críticas e
censura da Igreja
Católica. Publica
Emília no País da
Gramática.
1935
- Aprovação da
Lei de Segurança
Nacional.
- Insurreição
comunista (Natal e
Recife).
- Prisão dos
militares
revoltosos.
- Invenção do
radar - WattsonWatt.
Publica Aritmética
da Emília,
Geografia de Dona
Benta, História das
Invenções.
178
1936
- Criação do
Tribunal de
Segurança
Nacional.
- Guerra Civil
Espanhola.
- Primeira
transmissão
televisiva, na
Inglaterra.
1937
- Golpe de Getúlio
Vargas.
- Nova
Constituição.
- Estado Novo.
- Criação do
Instituto Nacional
do Livro
1938
- Tentativa de
golpe integralista.
- Início da
legislação sobre
livro didático.
Cria a União
Jornalística
Brasileira. Publica
O Museu de
Emília.
1939
- Início da
Segunda Guerra
Mundial:
ocupação alemã da
Polônia.
- Fim da Guerra
Civil Espanhola.
- Fissão do Urânio
- Hahn e Meitner.
- Segunda Guerra
Mundial: invasão
alemã da Noruega,
Dinamarca,
Holanda, Bélgica e
França.
- Assassinato de
Leon Trotsky no
México.
- Instituição do
Salário Mínimo no
Brasil.
Publica: O
Picapau Amarelo e
O Minotauro.
1940
Ingressa na
Academia Paulista
de Letras. O
governo proíbe e
recolhe o recémpublicado O
Escândalo do
Petróleo. Publica
Dom Quixote das
Crianças e
Memórias de
Emília.
- Conferência
sobre Evaristo da
Veiga, no Instituto
Histórico (12 de
maio).
- Charles J. Fox
Bunbury:
Narrativa de
viagem de um
naturalista inglês
ao Rio de Janeiro
e Minas Gerais
(1833-1835)
(Anais da
Biblioteca
Nacional).
Publica O Poço do
Visconde, Serões
de Dona Benta e
Histórias de Tia
Nastácia.
Recusa convite de
Vargas para dirigir
o Ministério de
Propaganda. Pelo
teor de sua cartaresposta, é tido por
subversivo e
desrespeitoso.
179
19411950
1941
- Fundação da
Companhia
Siderúrgica
Brasileira.
- Ataque japonês a
Pearl Harbour:
entrada dos EUA
na Guerra.
- Primeiro avião
de turborreator Wittle.
Preso pelo Estado
Novo. Publica O
Espanto das
Gentes e A
Reforma da
Natureza.
1942
- Declaração de
guerra do Brasil à
Alemanha e Itália.
Publica A Chave
do Tamanho.
1943
- Visita de
Franklin D.
Roosevelt ao
Brasil.
- Instituição da
Consolidação das
Leis do Trabalho
(CLT).
- Desembarque
aliado na
Normandia - Dia
D.
É realizada uma
grande
comemoração
pelos 25 anos de
publicação de
Urupês.
1944
1945
- Fundação dos
partidos políticos.
- Deposição de
Getúlio Vargas.
- Eleição de
Gaspar Dutra.
- Fim da Segunda
Guerra Mundial
(Europa).
- EUA lançam
bombas atômicas
no Japão. Fim da
Guerra na Ásia.
Recusa indicação
para a Academia
Brasileira de
Letras. Publica
Um Sonho na
Caverna, Os Doze
Trabalhos de
Hércules e 2
volumes de A
Barca de Gleyre.
Convidado pelo
PCB para integrar
a bancada de
candidatos.
Recusa, mas saúda
Prestes. Integra a
delegação de
escritores paulistas
no Congresso
Brasileiro de
Escritores. Fica
famosa a
entrevista em que
exige a
democracia no
país.
180
1946
- Posse Gaspar
Dutra.
- Instalação da
Assembléia
Nacional
Constituinte.
- Promulgação da
nova Constituição.
Contrário à
fundação do
Museu de Arte
Moderna de São
Paulo. Publica
Prefácios e
Entrevistas.
1947
- Eleições
estaduais em todo
o Brasil.
- Proibição do
Partido Comunista
Brasileiro (PCB).
- Rompimento das
relações RússiaBrasil.
- Proibição da
CGT.
- Avião
supersônico - Ind.
Bell.
- Cassado o
mandato dos
parlamentares
eleitos pelo PCB.
- Criado o Clube
do Livro.
- Criação do
Estado de Israel.
Criação do
transistor - Barden
e Brattain.
Publica Zé Brasil e
La Nueva
Argentina.
1948
Sofre, em abril,
um primeiro
espasmo vascular
que afeta sua
motricidade. Na
madrugada de 5 de
julho, morre. Seu
corpo é velado na
Biblioteca
Municipal SP) e o
sepultamento
realiza-se no
Cemitério da
Consolação.
Postumamente
foram publicados
os textos inéditos:
Literatura de
Minarete;
Conferências,
Artigos e
Crônicas; Cartas
Escolhidas (em 2
volumes); Crítica
e Outras Notas;
Uma Fada
Moderna; A
Lampréia; No
Tempo de Nero; A
Casa de Emília e
O Centaurinho.
181
1949
- Candidatura de
Getúlio Vargas.
- Soviéticos
explodem sua
primeira bomba
atômica.
- China torna-se
comunista.
- Assinado o
Tratado do
Atlântico Norte
(Otan).
1950
- Inauguração do
Maracanã (Rio de
Janeiro).
- Começa a Guerra
da Coréia.
- Vargas é eleito
presidente.
- Inauguração da
TV Tupi (São
Paulo).
Exclusivamente para este quadro:
http://www1.uol.com.br/bibliot/linhadotempo/index5.htm
http://www1.uol.com.br/bibliot/linhadotempo/index6.htm
182
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Joel Theodoro da Fonseca Junior - Programa de Pós