UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA DA LITERATURA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA LITERATURA A FRAGMENTAÇÃO DO EU NO OCIDENTE APÓS O SÉCULO XIX E SUAS EXPRESSÕES EM CONTOS DE MACHADO E LOBATO Joel Theodoro da Fonseca Júnior Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Ciência da Literatura, do Departamento de Teoria Literária da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, para obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Ronaldo Lima Lins Rio de Janeiro 2007 EXAME DE DISSERTAÇÃO FONSECA JUNIOR, Joel Theodoro da. Título: A fragmentação do eu no Ocidente após o século XIX e suas expressões em contos de Machado e Lobato/ Joel Theodoro da Fonseca Junior. - Rio de Janeiro: UFRJ/ 2007. Orientador: Ronaldo Pereira Lima Lins UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, 2007. Banca examinadora: Prof. Dr. Ronaldo Pereira Lima Lins/ UFRJ - Orientador Prof. Dr. André Luiz de Lima Bueno/ UFRJ Prof. Dr. Raimundo Nonato Gurgel/ UFRJ Suplentes: Profª. Drª. Marta Alckim/ UFRJ Prof. Dr. José Carlos Pinheiro Prioste/ UFRJ Rio de Janeiro 2007 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA DA LITERATURA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA LITERATURA A FRAGMENTAÇÃO DO EU NO OCIDENTE APÓS O SÉCULO XIX E SUAS EXPRESSÕES EM CONTOS DE MACHADO E LOBATO Joel Theodoro da Fonseca Júnior Rio de Janeiro 2007 3 FICHA CATALOGRÁFICA FONSECA JUNIOR, Joel Theodoro da. A fragmentação do eu no Ocidente após o século XIX e suas expressões em contos de Machado e Lobato/ Joel Theodoro da Fonseca Junior. - Rio de Janeiro: UFRJ/ 2007. xi, 181f.; 30 cm. Orientador: Ronaldo Pereira Lima Lins Dissertação (mestrado) - UFRJ/ Programa de PósGraduação em Ciência da Literatura, 2007. Referências Bibliográficas: f. 153-157. 1. Fragmentação do Eu. 2. Fin-de-Siècle. 3. Machado de Assis. 4. Monteiro Lobato. 5. Contos. 6. Pós-Modernidade. I. Lins, Ronaldo Pereira Lima. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Departamento de Teoria Literária. III. Título. 4 “Por sua vez, Lobato nos fala mais à alma brasileira no sentido interiorano da palavra. Seu Jeca Tatu, suas notificações de cidadezinhas do interior, suas narrativas de elementos folclóricos, mais tarde resgatadas em seus textos infantis e juvenis: tudo era meio de expressar suas idéias. Falava muitas vezes por parábolas e personificações. Outras vezes, utilizando lendas e fatos de criação animal ou do universo natural, trazia à baila situações das sociedades humanas, notadamente a do Brasil. Num trecho de Sorte grande, que está no livro Negrinha, Lobato, usando a figura animal, diz que nos galinheiros também é assim. Quando aparece uma ave doente, ou ferida, as sãs correm-na a bicadas – e bicam até destruí-la”. Antonio Candido 5 Dedico este trabalho a minha esposa Roberta e a meus filhos Gabriel e Rafaela, que acompanharam e estimularam meus estudos em todas as etapas. A meu mestre Professor Doutor Ronaldo Lima Lins, orientador, educador e incentivador de meu crescimento acadêmico. 6 AGRADECIMENTOS Ao Professor Doutor Luis Alberto Alves por toda atenção e estímulos dispensados. Aos Professores Doutores Eduardo Coutinho, Vera Lins e André Bueno, cuja capacidade e gestão de conhecimento me permitiram construir estes pensamentos. A minha esposa e filhos pela compreensão e pelo estímulo. A meus pais, pela torcida e pelos primeiros tempos de estudos em minha vida. A minhas irmãs Raquel e Margareth, pelo apoio inconteste. A vultos brasileiros como Machado e Lobato, que provocam em nós o orgulho de sermos brasileiros enquanto lemos suas obras. A Deus que, em meio a todos os movimentos humanos, continua sendo o mesmo. 7 RESUMO O objetivo desta dissertação é analisar os episódios centrais e periféricos do período que se convencionou denominar Fin-de-Siècle. Como ponto de maior interesse, vamos estudar os efeitos diretos sobre as pessoas que viveram naqueles dias e nas que vieram depois delas. O ponto central desta dissertação é a notada fragmentação do Eu que se percebe no homem ocidental desde os anos 50 do século XIX até os anos 20 do século XX. Como elemento literário, foram escolhidos dois importantes autores brasileiros, Machado de Assis e Monteiro Lobato e, de suas vastas obras, foram escolhidos alguns contos para demonstrar como a influência dos episódios em questão permeou a literatura como vínculo de narrativa do homem e seu tempo. 8 ABSTRACT The objective of this thesis is to analyze the central and peripheral facts of the period of time named as Fin-de-Siècle. As the most important topic, we will study some of direct and non-direct effects over the people who lived these days and after them. The central point of this thesis is the well known Ego fragmentation that can be noted and studied in the Western man after those days from the 50s of XIXth Century until the 20s of XXth Century As a literary study, two important Brazilian authors were chosen: Machado de Assis and Monteiro Lobato. From their vast work, some of their short stories were also chosen in order to demonstrate how could all the studied themes of this thesis be visible through literature as a connection between the man and his era. 9 SUMÁRIO RESUMO................................................................................................................ 8 ABSTRACT............................................................................................................ 9 SUMÁRIO ............................................................................................................ 10 Introdução ................................................................................................................. 12 Capítulo 1 - O século XIX - O tempo em que o homem mudou .............................. 22 1.1. Quando os absolutos deixaram de ser absolutos............................................ 24 1.2. O homem que não tinha mais certeza de nada: o Eu no Fin-de-Siècle.......... 28 1.3. Mudanças na esfera dos pressupostos............................................................ 30 Capítulo 2 - Breve resumo do pensamento ocidental em direção ao Fin-de-Siècle . 35 2.1. Liberalismo .................................................................................................... 37 2.2. Fé ................................................................................................................... 40 2.3. Cultura ........................................................................................................... 42 2.4. Política ........................................................................................................... 46 Capítulo 3 - O Fin-de-Siècle: um marco temporal e espacial................................... 53 3.1. O Fin-de-Siècle e o início do século XX ....................................................... 54 3.2. Ambiente Fin-de-Siècle ................................................................................. 58 3.3. Problemas de preconceito, exclusão e extermínio racial ............................... 61 3.4. A porta aberta para o capitalismo avançado de fins do século XX ............... 67 Capítulo 4 - A Literatura - esboço teórico e prático - de fins de século XIX e início de século XX............................................................................................................. 74 10 4.1. A formação da leitura no Brasil - a partir do século XVIII ........................... 74 4.2. O início da literatura e da leitura no Brasil .................................................... 80 4.3. O pensamento brasileiro no início do século XX .......................................... 83 4.4. Conceitos gerais e brasileiros de literatura .................................................... 90 Capítulo 5 - Machado e Lobato. Vidas e expressões ................................................ 96 5.1. Relação entre Machado e Lobato................................................................... 97 5.2. Machado, seu mundo e suas percepções do homem fragmentado................. 99 5.3. A leitura de mundo e do Eu fragmentado de Lobato ................................... 122 Considerações Finais .............................................................................................. 146 Referências bibliográficas....................................................................................... 155 Textos impressos................................................................................................. 155 Textos eletrônicos ............................................................................................... 157 Textos adicionais recomendados ........................................................................ 159 Anexos .................................................................................................................... 160 Anexo 1: Paranóia ou mistificação? ................................................................... 160 Anexo 2: Tabela de comparação simplificada entre os fatos do mundo e os fatos biográficos de Machado e Lobato, incluindo as bibliografias de ambos............ 164 11 Introdução “Não será na forma que conseguiremos localizar os elementos de uma ruptura profunda, a não ser se utilizarmos o conceito sob uma ótica ampla. Até certo ponto, assumir a indiferença, quando nenhuma alternativa parece trazer resultados, significa incomodar-se”. (Ronaldo L. Lins. In: A indiferença pós-moderna) Podemos afirmar que o homem passou por profundas modificações em sua forma de ver o mundo e, sobretudo, em sua maneira de ver a si mesmo. A começar por eventos de grande interesse para tais transformações ocorridos com maior intensidade a partir de meados do século XIX, temos que, a literatura, bem como as demais expressões humanas, tornou-se portadora dos novos modelos nos quais o homem se viu inserido. Especialmente interessa-me para este estudo o período que se convencionou denominar de Fin-de-Siècle, no qual os pressupostos da expressão fragmentada do Eu foram sistematizados mais que em todos os outros tempos da história humana. Nesse período vemos os momentos de questionamento se abrirem de maneira ostensiva. Muitas reflexões sociológicas, antropológicas e filosóficas foram então absorvidas pelo homem comum em sua vida prática. As respostas também 12 começaram a ser buscadas de forma mais intensa a partir de então, com notadas modificações nas Ciências, além da criação de novas modalidades científicas de estudo do interior humano, como o que se deu com a Psicanálise. Como não poderia deixar de ser, as artes e a literatura desse tempo e dos tempos que se seguiram estão permeadas de todas essas questões. Especificamente no caso da literatura, personagens, dramas, narrativas inteiras se fazem questionar sob a égide de referenciais menos objetivos – ou sem referenciais quaisquer – na busca de respostas que antes encontravam eco em pensamentos inquestionáveis, como os da religião. As respostas que antes satisfaziam, mesmo sem comprovação da lógica prática, agora não mais valiam para o homem, pois para tudo passava a haver a necessidade de comprovação sistemática, ou, no passo seguinte a essa evolução, múltiplas respostas poderiam apresentar várias verdades possíveis. Como nossas atenções estão voltadas para uma época determinada na trajetória do homem ocidental, é natural constatarmos que, no espaço de tempo que vai da segunda metade do século XIX às primeiras décadas do século XX, o Brasil teve expoentes ímpares em sua literatura. Nessa transição de épocas, destaco Machado de Assis nos primeiros tempos e Monteiro Lobato nos últimos. Ambos os autores têm seu valor inquestionado entre críticos e pensadores brasileiros e estrangeiros. Eles não foram contemporâneos em suas expressões, mas sucederam-se no tempo. Machado, (1839 – 1908), viveu o exato período em que as evoluções do pensamento liberal e as convulsões que apontam para a fragmentação do Eu estavam em curso. Ele foi testemunha viva, na sociedade brasileira, de todas as influências recebidas 13 diretamente da Europa, que significava para nossa terra o pólo de orquestração social, política, filosófica e, também, artística e literária. Machado representa a geração que testemunhou os episódios e deixou sua marca de observador registrada através de seus textos literários. Lobato, (1882 - 1948), vive a situação imediatamente seguida à de Machado. Ele viveu a convulsão do início do século XX, com duas grandes guerras, o redesenhar das fronteiras de antigos impérios europeus, o grande avanço tecnológico que se iniciava, mas também viveu o mundo que tornava maior o abismo existente entre as classes sociais no Ocidente. Tal abismo se tornava mais contundente em seus significados, já que os movimentos humanos do período Fin-de-Siècle tinham tornado aquele mesmo homem meio descaracterizado e com o Eu fragmentado em um ser, paradoxalmente, mais esperançoso com relação à vida comum. Viveu também o realinhamento das questões levantadas no século anterior, sendo que, em seus dias, com algo de amadurecimento nas ações propostas. Machado era perspicaz, humorado, por vezes cínico e constantemente irônico em suas expressões. Lobato era direto, contestador e, interessante notar, conseguia falar a crianças e interioranos da mesma forma como falava a eruditos. Mesmo assim, não deixava de ser também irônico e mordaz em suas colocações. Da monumental obra que ambos deixaram, interessam-me em particular alguns dentre os muitos contos que ambos escreveram magistralmente. Textos mais curtos e mais objetivos, os contos nos permitem ver de maneira mais rápida o que o autor quer dizer sobre a 14 tese e sobre a alma de seus personagens. Isso não diminui o valor literário do gênero, pois é também verdade que a concisão é arte complexa. Como elementos exemplificadores, temos que Machado nos deixou o conto O espelho: esboço de uma nova teoria da alma humana, no qual retrata passagens em que o Eu se acha de fato em fragmentos, bem à moda realista. “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro...”, diz Jacobina, personagem do conto, para o qual uma era a essência interior, ou seja, como o próprio ser via a si mesmo, e outra era a percepção exterior, ou seja, como as demais pessoas o viam. Concorda com isso Richard Sennett em O declínio do homem público, ao entender que, em dado momento, após o Fin-de-Siècle e após a crise do Liberalismo, as diversas classes de homens com vida aberta ao seu semelhante passaram a viver de maneira ambivalente, com graves preocupações em atuar diante das pessoas e dos grupos de interesse, em detrimento até mesmo de suas convicções. Machado, mesmo em meio a sua grande forma de escrita, permite-nos identificar objetivamente seus intentos em bem nos informar através de seus textos. Era, assim, bastante didático no que queria mostrar ao leitor. Lobato, por seu lado, fala mais à essência interior do brasileiro. O Jeca Tatu, as cidadezinhas do interior que aparecem em seus escritos, os elementos folclóricos, e, tudo isso junto em seus textos infantis e juvenis formavam o meio de expressar suas idéias. Parábolas e personificações, em paralelo a lendas e fatos de criação animal ou do universo real, traziam à baila situações das sociedades humanas, principalmente a brasileira. Num trecho de Sorte grande, que está no livro 15 Negrinha, Lobato, usando a figura animal, diz que “nos galinheiros também é assim. Quando aparece uma ave doente, ou ferida, as sãs correm-na a bicadas – e bicam até destruí-la”. Completa depois, sem rodeios, dizendo que “em matéria de maldade o homem é galináceo”. (Lobato, 1982, 171). A determinação em perceber o Eu fragmentado em obras desses dois vultos da literatura brasileira, particularmente nos contos, vem apoiada na percepção de que, por trás da expressão literária, tanto de Machado quanto de Lobato, havia nítida preocupação em deixar mensagens diretas ao brasileiro. Machado, cosmopolita, amante do Rio de Janeiro, falou do que viu e viveu por aqui e do que leu de outras partes. Lobato, empreendedor, homem vivido e viajado, falou de e para o interior e para as crianças do Brasil, sendo que devemos entender que por detrás de caipiras e crianças havia a fala ao adulto comum das grandes cidades brasileiras. Ambos tocaram na ética e na eqüidade, cada um ao seu estilo. Ambos teceram críticas aos desmandos e às mazelas de uma terra que ainda não olhava para si mesma com olhos de quem poderia crescer não apenas em número, mas também em qualidade. Aliás, diz Lobato que “um país não vale pelo tamanho, nem pela quantidade de habitantes. Vale pelo trabalho que realiza e pela qualidade da sua gente”. Assim registra num texto com o personagem Jeca Tatu, cuja aplicação seria comercial, dando vigor ao lançamento de um produto farmacêutico, o Biotônico Fontoura. (Disponível em: http://lobato.globo.com/misc_jeca.asp). No caso dos dois autores, creio, há três influências fundamentais sofridas por eles. A primeira é quanto ao tema: O Eu fragmentado passou a ser preocupação genuína de 16 todo ser humano após o Fin-de-Siècle. A maneira pela qual isso se demonstra varia de autor a autor, no caso da literatura, mas o fato é que nunca mais se deixou de perceber abertamente que havia algo além do que se expunha até então. Os autores externam dessa maneira aquilo que sofrem como partícipes de uma sociedade em transformação e ebulição, sendo que estão bem em meio ao processo em curso: primeiro, Machado, contemporâneo dos movimentos europeus com reflexos diretos no Brasil e, em seguida, Lobato, contemporâneo das alterações dos pólos de dominação ocidental, ele mesmo entusiasta de seguir modelos mais evoluídos, principalmente o americano. O homem, em meio a tudo isso, sofria bastante. A sociedade enfermava e carecia de remédios. Os autores disso falavam em seus escritos. Afastavam-se por vezes dos centros em que receberiam mais louros e adentravam campos de questionamento nos quais seriam combatidos ou refutados. Mesmo assim resolveram cumprir seus desejos de quase missão. Talvez não lhes interessasse medir a ética ou o caráter do indivíduo, mas tratar do problema em si, através de seus personagens, e chegar ao conhecimento do próprio indivíduo e à educação da coletividade. A segunda diz respeito ao modelo estrutural que seguiram por influência. Ambos, Machado e Lobato, tinham referenciais de leitura européia e ocidental em geral, em especial autores franceses e ingleses. Como diferencial em relação a outros grandes autores de nossa literatura, embora não tenham sido os únicos a fazê-lo, encontra-se o fato de eles terem trazido técnicas e conhecimentos de outras partes e de outras literaturas nacionais para o ambiente de nossa literatura e, assim, terem sido mais 17 que capazes de falar aos seus compatriotas, os quais os entendiam perfeitamente. Faziam literatura de alto nível, comparável à de qualquer outra parte, aos maiores autores e às maiores obras. Utilizaram a versatilidade e a grande capacidade criativa para falar coisa séria e profunda, sempre travestida de humor e agradabilidade. A terceira influência notada, de certa maneira já mencionada anteriormente, é o misto de nacionalidade, no sentido de apego ao que é brasileiro, com a observação de vazio de sentimento de brasilidade aliado ao fato de ambos saberem que o homem ocidental atravessava episódios críticos para sua formação. Falavam do que viam e percebiam a pessoas que passavam pelos mesmos torvelinhos de identidade e a pessoas que ainda viriam, que precisavam saber dos fatos e se precaver num futuro que poderia ser melhor ou mais sombrio, dependendo das respostas alcançadas. A menção e a leitura discriminada das três influências levam diretamente à hipótese de que os contos de Machado e de Lobato tinham deliberadamente uma preocupação com o indivíduo leitor e com o processo de cidadania brasileira que estava em discussão. A fragmentação do Eu era elemento de percepção de ambos e, de certa maneira, suas críticas e preocupações passavam por esse elemento então recentemente observado. Um dos enfoques deste trabalho é perceber ainda que, a partir disso, tanto em Machado quanto em Lobato, há uma leitura que vai além da criação literária despretensiosa e sem atributos que não sejam apenas os literários. Eles não o disseram abertamente, mas através de seus textos, seus contos e seus personagens. 18 Basicamente, o objetivo é evidenciar que há uma nítida relação entre o estado do homem cujo Eu se vê fragmentado e a expressão literária nos contos de Machado e Lobato, cada um a seu modo e com sua particular habilidade. A literatura é voz ativa de uma sociedade e, como tal, proclama fatos, anseios, esperança e dor. O autor é a voz que se perpetua linhagens afora, sendo que, ao registrar sua observação e sua opinião, ele o faz de modo particular, embora sob a influência de sua comunidade, e referenciado por inúmeros fatos periféricos da sociedade, muito embora tenha liberdade de expressão pela arte. Procuro demonstrar neste trabalho que os autores em questão quiseram ir além de seus trabalhos com as letras. Como parte integrante de seus tempos na história brasileira, ambos utilizaram a arte literária para expressar aquilo que nem sempre se nota em primeiras leituras. Nos contos, tanto de Machado como de Lobato, vejo uma síntese possível daquilo que permeava seus pensamentos e suas preocupações. Suas esperanças aparecem mescladas a constatações práticas do dia-a-dia de seu tempo. Personagens comuns, extraídos da inspiração de vidas comuns que os cercavam representam toda uma geração e seu comportamento. O trabalho terá como objetivos principais: primeiramente, situar historicamente os eventos que culminaram no que se convencionou denominar Fin-de-Siècle, evidenciando os movimentos sucessivos ou paralelos que eclodiram naquele período, seus resultados práticos no indivíduo e na coletividade e o rastro que permanece até os nossos dias. Para tal, privilegio a leitura de textos como Viena Fin-de-Siècle, de Carl Schorske; Amor líquido, de Zygmunt Bauman; Tudo que é 19 sólido desmancha no ar, de Marshall Berman; Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, de Fredric Jameson; O declínio do homem público e A corrosão do caráter, de Richard Sennett; Ao vencedor as batatas, Que horas são? e Um mestre na periferia do capitalismo, de Roberto Schwarz; As ilusões do pósmodernismo, de Terry Eagleton; A formação da leitura no Brasil, de Lajolo e Zilberman e A indiferença pós-moderna, de Ronaldo Lima Lins. Em segundo lugar, será objetivo inserir Machado de Assis e Monteiro Lobato no contexto das mudanças do Fin-de-Siècle e como as opiniões expressas em seus contos apontam para indivíduos centrados e atentos a esses episódios. Para isso, utilizarei principalmente A educação pela noite e os dois volumes de Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido; Presença da literatura brasileira, de Antonio Candido e J. Aderaldo Castello; Introdução à literatura no Brasil, de Afrânio Coutinho; O espírito e a letra, de Sérgio Buarque de Holanda; textos esparsos (ensaios, artigos e outros) desses e de outros autores. No contexto do segundo objetivo, utilizarei os textos literários evidenciados neste trabalho. De Machado de Assis, contos extraídos das obras Histórias da meia-noite, Histórias sem data, Várias histórias, Páginas recolhidas, Contos fluminenses, Papéis avulsos e Relíquias da casa velha. De Monteiro Lobato, contos extraídos das obras Urupês, Cidades Mortas e Negrinha, além do livro Idéias de Jeca Tatu. A análise aponta para a resposta à seguinte questão, que é a problematização deste estudo: Os contos de Machado e Lobato indicam a percepção que ambos tiveram 20 desse homem cujo Eu era fragmentado. O que escreveram, no entanto, é meramente descritivo ou prescritivo de soluções futuras? Acredito numa contribuição aos estudos e à compreensão dos eventos que cercaram a nossa história no período entre meados do século XIX e primeiras décadas do século XX. Da mesma forma, acredito numa contribuição a uma releitura de alguns dos contos de Machado de Assis e Monteiro Lobato. Ambos os autores são muito visitados não apenas no Brasil, mas em muitas partes do mundo. Eles são, ainda assim, fontes inesgotáveis de novas pesquisas, novos olhares. Esta é uma perspectiva em que os coloco como porta-vozes de seu tempo, o que muito me interessa, visto que, como escritores, são fotógrafos literários da sua época, sua sociedade, suas crenças, sua visão de mundo e tudo mais. Minha expectativa é de que este trabalho possa estimular novas pesquisas em áreas diretamente ligadas aos temas tratados ou afins. O que disseram escritores desse porte deve ser fator de constante leitura em múltiplas visões entre nós. Nas palavras de Machado em O Espelho: “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluído, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. (...) Está claro que o ofício desta segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência (...) Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma... - Não? - Não, senhor; muda de natureza e de estado.” 21 Capítulo 1 - O século XIX - O tempo em que o homem mudou “A vida é pura e severa, mas o caráter tem uma ou duas cordas fraudulentas, a que só faltou a mão do artista; nas coisas mínimas, mente com facilidade”. (Machado, In: Galeria Póstuma). Ao fazermos uma leitura ávida por compreensão e referência no texto de Schorske (1988), é preciso lembrar sempre que o momento retratado por ele - ou seja, o período que foi de meados do século XIX a início do século XX - era de grande efervescência e muitos princípios de transformação que corriam em paralelo, geralmente com alguma interligação. Muitos movimentos nacionalistas começavam a se expandir por toda a Europa, modificando conceitos e reformando idéias, bem como redefinindo paradigmas e fronteiras. O Liberalismo, por exemplo, estava em crise conceitual e prática, com nuances que não deixavam dúvida de que as mudanças eram por demais ríspidas, com parcas possibilidades de alguém contemporâneo a elas poder perceber na totalidade o que estava ocorrendo ao seu redor. As diversas expressões de arte entravam, por um lado, em tempos de produção fértil, como nunca antes imaginada, e, por outro, em crise intensa de sua produção. A Ciência em geral sofria alterações também tremendamente significativas, com rompimento de conceitos e princípios até pouco tempo antes aceitos como 22 axiomáticos. As idéias estavam sendo fragmentadas e as velhas categorias de classificação de pensamento pareciam não mais se adequar de maneira a satisfazer aos anseios populares e acadêmicos naquela virada de século. Schorske (1988), em seu Viena Fin-de-Siècle, vem nos mostrar que em meio ao que parecia uma tremenda desordem havia uma certa ordem que servia de elemento de unificação, e isso se dava a partir de dois pontos básicos: a política e a cultura. O Eu, a despeito de tudo o que ocorria, em meio ao caos organizado de idéias que ainda buscavam caminho seguro a trilhar, era o ponto alto do desequilíbrio e da fragmentação que vem até os nossos dias bater à porta do interior do ser humano pós Fin-de-Siècle. É claro que ele trata de um universo social delimitado, que é a cidade de Viena antes e durante a virada para o século XX. Mas a Viena tratada por Schorske (1988) reúne em si todos os elementos que ocorreram de modo semelhante no resto da Europa. Na maioria dos episódios, em Viena, os fatos se deram de maneira concentrada e mais intensa, servindo-nos de referencial para uma boa compreensão dos acontecimentos mais gerais do Velho Continente. Ao dizermos que o século XIX foi a época da história humana em que o homem mudou, não queremos deixar transparecer que o mesmo jamais tinha mudado antes disso. Queremos, sim, afirmar que as mudanças ocorridas ao longo daquele século e com as seqüências de nosso interesse nas primeiras décadas do século XX - foram substancialmente profundas e de marcas que, cremos, não desaparecerão mais de nossa história. 23 Pela agilidade de nossas empreitadas, é certo que voltaremos a experimentar transformações profundas e penetrantes, mas todas elas terão obrigatoriamente de passar pelos conceitos que absorvemos a partir do século XIX. Muito do que foi consolidado desde então em nosso interior e em nossa sociedade é a seqüência natural de nossa vida, sofrendo inequívoca influência daquilo que nos sobreveio no passado. Mesmo que alguém possa particularmente discordar, dificilmente poderíamos conceituar novos postulados sem nossos referenciais. Mais cem ou cento e cinqüenta anos e alguém poderá escrever sobre o século XXI, o tempo em que o homem mudou, sem a idéia de plágio sobre o que hoje se escreve de nosso passado recente, mas tendo a firme convicção de que as próximas transformações serão ainda muito mais intensas que as anteriores. 1.1. Quando os absolutos deixaram de ser absolutos Até os dias que antecederam o século XIX não se pensava formalmente em questões relativas. A verdade era verdade; a mentira era mentira. Os princípios do que era relativo já existiam, mas os absolutos imperavam sem que coubesse a qualquer um desafiar os seus postulados. Talvez a grande diferença entre o que se vivia então e os nossos tempos é que a mentira podia existir e, talvez, até coexistir pacificamente com a verdade. Mas uma continuaria sendo mentira, e outra, verdade. A mistura conceitual não era algo que se buscasse, ocorrendo furtivamente nas mentes. Os conceitos eram mais rígidos e, por conseguinte, mais definitivos. Para os nossos dias, tal rigidez não faz sentido, 24 haja vista a relatividade com que se espera sejam analisadas todas as questões que se nos deparam. Sobre a mentira a partir desse ponto de vista, diz-nos Lins: A mentira funciona de tal maneira na gangorra das interpretações que, com freqüência, a impressão inicial, frente à experiência, não ganha conotações de delírio, o próprio delírio, com efeito, significando a verdade assumida e reconhecida pela maioria. Isso explica a cegueira que, eventualmente, toma conta das consciências, determinando convicções que, tempos depois, parecem inconsistentes, quando não absurdas e desprovidas de sentido. (Lins, 2006, 10). A mentira nos serve apenas como exemplo, não sendo o foco deste trabalho. Da mesma forma que se deu com ela, deu-se com as demais relações de interioridade, de afetividade, de ética e tudo o mais que cerca e dá vida ao ser humano como ser social que é. Parece-nos lógico e bom convencer-nos de algo que surgiu dentro em nós sem que saibamos exatamente como ou por quais razões. Somente quando nos aproximamos do século XIX - e de maneira mais intensa a partir do século XVII - as idéias fora de um contexto mais ortodoxo começaram a fluir com mais liberdade, numa espécie de preparação dos meios de reflexão para o que viria em seguida. Mesmo com as diferenças entre teoria e prática, o homem até esses dias encontrava um ponto de refúgio singular ao qual retornava todas as vezes que seus pensamentos e as respostas deles decorrentes não o satisfizessem em suas dúvidas e em seus anseios. Esse esteio era a religião, que no Ocidente, principalmente a partir da Europa, tinha as cores do cristianismo, que apontava sempre para um caminho seguro às indagações humanas. 25 No século XIX, o homem queria ter comprovações práticas das teorias que se propagavam. A razão determinava que não bastava apenas dizer que o certo era o certo, mas era preciso provar que assim o era. Com o passar dos anos, o que parece ter sido mais rápido do que em outros séculos, até mesmo essa comprovação passou a ser objeto de novos questionamentos, pois o que se comprovava para alguns poderia não se comprovar para outros. A verdade, enquanto conceito, sofria graves combates: eram dias em que a relatividade no pensamento ocidental tomava corpo e começava a ser amplamente vivida de maneira geral na sociedade. Não apenas pensadores, cientistas e filósofos, mas todo o montante da sociedade foi se adequando a não mais viver com base em conceitos absolutos não comprovados, em absolutos para os quais não se atestasse tecnicamente uma comprovação plausível. Por esse tempo, o homem ocidental começa a dialogar com o fim dos absolutos, com o fim das respostas previamente existentes. A partir de então, esse homem corre contra si mesmo na expectativa de defender-se. Descobre-se um por dentro e outro por fora. Pergunta sem saber a resposta, mas não cessa mais de buscá-la. O racional cedia lugar a algo mais denso, mais psicológico, como entendemos ao ler que a cultura liberal tradicional tinha se concentrado sobre o homem racional, cujo domínio científico sobre a natureza e controle moral sobre si deveriam criar a boa sociedade. No nosso século, o homem racional teve de dar lugar àquela criatura mais rica, mas mais perigosa e inconsistente, que é o homem psicológico. Esse novo homem não é simplesmente um animal racional, mas uma criatura de sentimentos e instintos. (Schorske, 1988, 26). 26 O Ocidente estava sendo preparado para o evento que se convencionou chamar Finde-Siècle. Como o termo francês nos mostra, tal evento trata dos passos que culminaram com a passagem do século XIX para o XX. Não é apenas a virada de um século para outro, mas alguns anos que a antecederam e outros tantos que a sucederam. Como interesse de nosso estudo, esse período se estende de meados do século XIX às primeiras décadas do século XX. Esse homem estava se preparando a partir dali para uma nova etapa de sua existência, uma etapa que continuava sendo gregária e social, mas que abandonava paradoxalmente alguns dos pontos de destaque dessas características. Ele passava a se descobrir sozinho consigo mesmo e com suas angústias, ainda que se encontrasse imerso em verdadeira turba urbana. Só e totalmente só. Sofrendo de um isolamento que o afunda em novas formas e novos tons de solidão. Ele não mais encontraria a razão do compartilhamento, fechado em si mesmo e em suas dúvidas, conforme nos relata Lins ao tratar da questão num dos mais interessantes trechos de sua obra citada, a segunda parte do capítulo O tríptico da identidade moderna: Uma nova solidão tomou seu lugar na sociedade dos homens, diferente do que se vira antes, porque decidida a arcar com o seu peso, convencida da impossibilidade de romper-se em direção à exterioridade. Trata-se, por conseguinte, de uma solidão que leva à solidão, restringindo, cada vez mais, a comunidade capaz de acompanhá-la. (Lins, 2006, 44). Dessa forma, absolutamente certo de não mais ter certeza de nada, o homem chegou ao Fin-de-Siècle. 27 1.2. O homem que não tinha mais certeza de nada: o Eu no Fin-de-Siècle Estamos falando de um período de nossa história em que o homem estava por encontrar novos rumos, mesmo que conscientemente nenhum desses rumos fosse mais uma luz perene para seu caminho, pois o mesmo homem sabia haver optado por não querer mais pressupostos permanentes em suas reflexões e em sua vida. O Fin-de-Siècle estava por chegar. As idéias se mostravam generalizadas, sem foco definido e, com as certezas desaparecidas, a fragmentação se mostrava como a única coisa certa e concreta, por paradoxal que pareça. Os rompimentos não se deram apenas em relação a axiomas de religiosidade ou comportamento, mas em todas as áreas da humanidade ocidental foram percebidas rupturas profundas nos antigos modelos. A Ciência não foi exceção a essa regra, bem como as artes, a vida em coletividade e tudo mais que diga respeito ao homem simples e comum. Nesse período, as caracterizações que dessem mais certeza sobre fatos do que as incertezas apregoadas eram simplesmente contestadas, mesmo as definições mais comuns, como Romantismo ou Iluminismo, por exemplo. Mas foi também nesse mesmo ponto que algumas das mais importantes ciências para o melhor entendimento do interior humano foram sistematizadas ou adequadas à nova razão. Falamos das ciências da área psicológica, como Psicologia, Psiquiatria e sua irmã mais nova, a Psicanálise. O intenso ambiente de agitação e transformação aliado ao caos da transição entre o certo e não-certo formaram o esteio adequado para os estudos de Sigmund Freud que, partindo de nova ótica, estabeleceu os estudos que deram origem à moderna Psicanálise. 28 Esse homem sem mais certezas, cujo Eu se sentia inquieto e em processo de fragmentação chegava à encruzilhada da história. No Fin-de-Siècle esse era o homem: alguém sem certezas, alguém cujo Eu aguardava olhando para frente, embora soubesse não poder parar e simplesmente aguardar o futuro. Fragmentado, o Eu sentia-se agora na iminente missão de escrever a história de maneira inédita, sem conhecimento prévio que lhe permitisse antever o que seria de si algumas décadas a seguir. Ele estava no momento em que tentava descobrir quem era de fato, ou se isso realmente era importante. Um outro Eu parecia pulsar dentro dele. “Afirmar a alteridade do Eu, (...) implicava multiplicar as possibilidades. Nada a ver com enfermidade mental do dilaceramento de personalidade, estudada pela psiquiatria”. (Lins, 2006, 29). Como vemos hoje mais claramente, era um ser que precisava não apenas se descobrir, mas precisava e ainda precisa -, sendo descoberto, ser tratado para melhor viver e conviver consigo mesmo e com os demais a sua volta. Sua resposta parece ter sido uma pragmática relação de indiferença que, se num primeiro momento parecia se direcionar apenas ao outro, ao externo, depois se viu que também se voltava contra si. Um indivíduo indiferente não sairia de seus embaraços para olhar e interferir no exterior. Voltando para um "eu" que só se dobraria ao peso da angústia, não possuiria disposição para mergulhar nas dificuldades alheias, por mais agudas que se mostrassem. A tal ponto permaneceria anestesiado que não perceberia aquilo que o ameaça em família, na pracinha ou no meio da multidão, partindo de um conhecido ou de um estranho. Estaria incapaz de amor, de solidariedade, de paixão. (Idem, 8). 29 Lins coloca essa relação como verdadeira anomalia, dizendo que, “nesse caso, é como se uma rebelião das células tomasse conta do espírito” (Idem, 9). E completa, ainda sobre o mesmo tema, dizendo que a “perturbação rouba a vontade de viver” (Idem, 9). Este era, portanto, um homem abalado, um ser em reconfiguração. E muito do que começou a lhe ocorrer por ocasião do Fin-de-Siècle faz parte do que consolida hoje em nós. Talvez a primeira das providências para minimizar seus esforços e tranqüilizar esse homem sem certezas fosse uma mudança na base de suas reflexões, exatamente nos seus pressupostos. A forma como o homem via o que se dava ao seu redor, ou seja, a sua cosmovisão, já abalada pelas sucessivas alterações, precisava agora ser redefinida, a fim de que os choques externos se tornassem menos intensos interiormente. Com a anulação dos velhos pressupostos das categorias de classificação até então conhecidas, cabia ao homem do Fin-de-Siècle buscá-los novos sobre os quais pudesse se apoiar em busca de suas novas respostas. 1.3. Mudanças na esfera dos pressupostos Entendemos os pressupostos como o conjunto de idéias que compõem a visão de mundo pela qual o indivíduo ou a coletividade se guiam. Há aqueles que o são apenas em nível particular, que podem diferir dos que são comuns a uma coletividade. Por exemplo, um cidadão muçulmano inserido numa determinada coletividade cristã terá pressupostos diferentes, que certamente influenciarão suas 30 decisões e comportamentos, mesmo que conviva pacificamente e que tenha muitas coisas em comum com as demais pessoas. Este trabalho não tem por objeto maior o aprofundamento no que tange aos pressupostos, mas trataremos aqui de alguns daqueles que foram alterados a partir dos eventos que envolveram o período de nosso maior interesse de estudos. Creio que reside na desestruturação dos pressupostos que norteavam o homem do século XIX o ponto chave da também desestruturação e conseqüente fragmentação do Eu, conforme vemos no seguir da história. Ora, o homem comum tinha as bases sobre as quais pautava seu pensamento, mesmo quando não fosse imprescindível recorrer ao intelecto. Havia uma gama de respostas disponíveis a partir dos processuais religiosos, políticos, culturais, artísticos, intelectuais e em diversas outras áreas da civilização ocidental que ofereciam franco atendimento às necessidades de respostas imediatas. Essas áreas deveriam ser comungantes entre si, ou seja, elas não deveriam funcionar de maneira estanque, mas a vida do indivíduo, com reflexos evidentes na vida comunitária, deveria ter lastro de várias dessas áreas para que a vida fizesse mais sentido. Dessa forma, era de se esperar que a ética proposta por uma de suas esferas de vida tivesse reflexos claros e evidentes nas demais. Era o caso aberto de um político que não poderia sê-lo de forma autêntica se sua moral e ética individuais e privadas não correspondessem ao que ele apregoava às vésperas de sua candidatura. No Ocidente, até pouco antes dos eventos da crise do Liberalismo e da ida em direção ao Fin-deSiècle, a cosmovisão, ou os pressupostos que governavam vidas e consciências eram 31 os do cristianismo na maior parte da Europa. Esses mesmos reflexos também foram bem percebidos nas Américas colonizadas ou recém-libertas de suas matrizes por causa da forte e sistemática presença européia no continente, ora como colonizador e povoador por imposição direta, ora pela imposição social e econômica. Os pressupostos individuais ou coletivos, e é bom percebermos que em muito eles se encontram no íntimo do próprio indivíduo, migraram em direção a um processo no qual as esferas de ação passaram a se manifestar de maneira estanque sem que isso representasse mais problemas na ordem de consciência. Resultados esperados poderiam justificar ações intermediárias sem riscos maiores a uma carreira parlamentar com horário fixo de funcionamento, a uma campanha militar justificada, sem que se levassem em conta outros pontos de reflexão ou mesmo a uma perseguição étnica, sem que isso causasse nenhum dano a outras esferas de pensamento ou de consciência, fosse ela individual ou coletiva. A vida privada estava a partir de agora totalmente despida das responsabilidades públicas, enquanto a vida pública estava desnudada do Eu privado e familiar. A alma tornava-se endurecida e sem calor de sentimentos ou de pequenas doses de resistência frente a tamanha indiferença relacional. Esses parecem ser amparos de sobrevivência para aqueles que se encontravam em meio ao fogo cruzado das alterações de pressupostos, conforme bem nos diz Lins (2006). As pessoas envolvidas têm dois caminhos: endurecer a alma, fingir que são o que não são, ou resistir, minar com pequenas bombas caseiras o universo de calma determinado pela sociedade. Logo se perceberiam os traços de hipocrisia no quadro familiar do século XIX. (Idem, 156). 32 Aparentemente, tudo o que percebemos ao ler a respeito do homem de meados e fim do século XIX parece haver se potencializado no homem dito pós-moderno. Talvez a cimentação de passos seguidos automaticamente e sem tempo nem espaço para reflexões mais profundas não lhe permitam pensar de modo mais detalhado sobre sua realidade atual. Não temos qualquer estímulo interior para buscar o reparo do Eu que se encontra fragmentado em nós, o que nos torna insensíveis com relação ao outro e adormecidos, anestesiados, com relação a nós mesmos. Perceber a realidade não tem sido capaz de nos fortalecer a ponto de buscar alternativa transformadora que dinamize nossos sentimentos de humanidade. Nas percepções que convergem para nós, ressalta a consciência da fragmentação como um dado cada vez mais presente pelas formas assumidas pela realidade. Os princípios da identidade, esgarçados pela dinâmica da indiferenciação em escala internacional, comprometendo até mesmo as tradições de pátria e de nacionalidade, transmitem uma sensação de desarmonia com os outros e consigo mesmo. A única defesa contra isso implica um recuo para um eu desgarrado no qual, sem outros pontos de contato, a pessoa se imagina mais ou menos segura. (Idem, 225). Assim, é difícil perceber se a vida com pressupostos estanques fragmentou o Eu do homem do século XIX, se foi a fragmentação desse mesmo Eu que tornou tais pressupostos algo diferente do que eram, ou se ambos se auxiliaram mutuamente, por pura necessidade de equalização das percepções e das ações. Foi nesse trânsito de pressupostos que o homem ocidental começou a definir novas linhas de ações que correspondem a eventos e idéias que perduram até aos nossos dias, já em inícios do século XXI. Aliás, a nova base de pressupostos, com esferas estanques, parece 33 acompanhar nossa existência até aqui, sem que percebamos claramente se - e quando - isso sofrerá novas transformações substanciais. Com a noção de alterações de pressupostos mais clara em nossas mentes, entenderemos melhor a linha de pensamentos que governou a nova mentalidade humana na segunda metade do século XIX e início do século XX, no ápice do Finde-Siècle. No entanto, nosso pensamento não pode nem deve ser o de castigar o homem do passado por ter construído a História conforme lhe vieram os meios para a construir. É o que nos diz mais uma vez Lins: O passado não guarda apenas revelações esquecidas; guarda valores, muitos deles úteis, se fosse possível trazê-los à modernidade para esquentar, com um cobertor de fraternidade, a frieza das nossas relações. (...) Deixaremos de culpar os grandes e irreverentes criadores da segunda metade do século XIX e do século XX, como se houvessem abusado da paciência em vez de cumprir um papel histórico. (Idem, 20). 34 Capítulo 2 - Breve resumo do pensamento ocidental em direção ao Fin-de-Siècle “Nos galinheiros também é assim. Quando aparece uma ave doente, ou ferida, as sãs correm-na a bicadas - e bicam-na até destruí-la. Em matéria de maldade o homem é galináceo”. (Lobato, In: Sorte grande). A Europa do século XIX foi de uma incrível efervescência política, cultural, científica, intelectual e de muitas outras áreas. As fronteiras ainda seriam redefinidas algumas vezes, mas muito do que hoje tratamos por Europa, com seus conceitos, a sua História e a sua contribuição à humanidade já estavam presentes e visíveis naqueles dias. Quando queremos a melhor maneira de pensar a Europa de maneira condensada e sintetizada para melhor compreendermos aqueles dias, podemos recorrer a Carl Schorske (1988) e sua escolha de fazer de Viena de Áustria a melhor amostra de tudo que ocorria em termos continentais. Política e cultura andaram de mãos dadas nesse período de Fin-de-Siècle. Muitas ações e realizações no campo das artes e do academicismo tiveram influência aberta das estruturas políticas que regiam os momentos pelos quais atravessavam as sociedades ocidentais mais desenvolvidas. 35 A influência, ou a mutualidade de interesses, ia desde uma obra de arte, como uma tela, até um conglomerado arquitetônico que denunciava a presença de traços mais afeitos a esta ou aquela tendência de pensamento. Em A esperança, no capítulo O tríptico da aventura pós-moderna, Lins (2006) trata do tema que lhe dá nome. Ora, o que nós, vivendo no que se convenciona chamar pós-moderno, vemos ao olhar para dentro de nós? Conseguimos ver razão, esperança, calor? Neste ponto, o autor questiona e traz experiências de outros autores ao seu texto, a partir do qual temos uma visão sobre o reflexo de tudo o que se dava em nível interior refletido em áreas exteriores, como música e artes em geral. Chega a dizer que “o futuro, como um fantasma, insinua-se carregado de possibilidades”. Mas, continua, “sem saber o que nos aguarda, sabemos, no entanto, o que não queremos”. (Lins, 2006, 196). O mundo seguia o seu percurso decepcionante, e era assim era retratado, a despeito das luzes de diversas cores que porventura o iluminavam, de acordo com quem segurava o foco, se de direita, se de esquerda. Pouco importava. O importante, vê-se hoje, era que a vida se insinuava cheia de curiosidades e valores. A resistência se mantinha, engajada nas formas de expressão e responsável pela capacidade de retocar até o mais extremo desenho da tradição, renovando-o e submetendo-o às discussões da atualidade. (Idem, 196,197). Os tempos de Fin-de-Siècle eram de total inconstância de valores e conceituações, o que fortaleceu imensamente o surgimento ou o reforço das ciências que estudam a parte psicológica do ser humano, como a Psicanálise, conforme anteriormente mencionado. A instabilidade no que crer ou em que postulados se basear fez do homem do Fin-de-Siècle um homem solitário, mesmo quando em meio a multidões. 36 Repentinamente, cada qual parecia ter ganhado a liberdade ou, pelo menos, a possibilidade de formular suas próprias crenças e sua própria fé, mesmo sem saber exatamente como fazê-lo. Vimos estabelecendo a idéia que o homem do Fin-de-Siècle era um homem com seu Eu fragmentado. Seu pensamento, da mesma forma, encontrava-se em franco processo de fragmentação. No entanto, isso não significa ausência de pensamento. Pelo contrário, a fragmentação do Eu empurrou o homem a uma nova ordenação de sua razão, de suas reflexões, agora com novos pressupostos e com uma nova visão de esperança em relação a seu futuro. 2.1. Liberalismo O Liberalismo não era um movimento recém-nascido quando o século XIX apontou no horizonte. Podemos dizer que remonta ao século XVI e tinha por princípios fundamentais assegurar as liberdades e direitos do indivíduo, além de ter em seu bojo alguns processos de alerta contra possíveis abusos de poder. Isso se devia ao fato de o Liberalismo ter surgido principalmente como reação de defesa social e política contra uma seqüência de guerras sangrentas em que a Europa do século XVI havia se envolvido, com destaque para a Guerra dos 30 Anos. Thomas Hobbes, John Locke e Adam Smith são leituras indispensáveis para aquele que quiser se aprofundar nesse período. Quando chegamos ao século XIX, ou seja, 300 anos após o que acima foi mencionado, o Liberalismo se depara com uma sociedade em ebulição, com 37 desmandos e confrontações políticas, além do que não se imaginava três séculos antes: a revolução industrial e o conseqüente avanço da presença humana em centros cada vez mais populosos. O Estado era freqüentemente instado a se afastar cada vez mais das intervenções sociais e a deixar que o primitivo enfoque laissezfaire do Liberalismo se tornasse sua mola mestra. Roberto Schwarz no capítulo Nacional por Subtração, de sua obra Que horas são? (1989) dá-nos interessante posição sobre o Brasil da época, quando diz que, “no século XIX comentava-se o abismo entre a fachada liberal do Império, calcada no parlamentarismo inglês, e o regime de trabalho efetivo, que era escravo” (Schwarz, 1989, 29). Com isso vemos claramente algumas das posições defendidas neste trabalho, quais sejam, sobretudo, a relativização dos preceitos de coerência, e o Liberalismo sendo tratado como uma mera expressão de fachada, sabendo nós que por interesses peculiares à geopolítica da época. Vemos a perfeita convivência de um esquema de dualidades que muito se aproxima do que hoje é o comum de determinadas esferas da vida pública. Esse Liberalismo já repleto de remendos, mas que mantinha historicamente em si algumas figuras doutrinárias axiomáticas não suportou viver mais que meio século XIX. Ele jamais desapareceu em sua totalidade. A história mostra que suas bases estão vivas quando vemos os modernos movimentos de Neoliberalismo que se implantam - no todo ou em parte - em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil. O Liberalismo não conseguiu avançar muito. Dizendo que a razão refrearia os abusos, não encontrou mais eco numa nova conjuntura que havia retirado a base da 38 razão como era conhecida até então. Poderíamos perguntar em pleno século XIX o que seria razão, o que seriam os excessos, o que representaria invadir o espaço alheio sem demonstrar peso de consciência nem frear os impulsos. Lins (2006, 29) nos alerta, ao falar dos problemas relativos à interioridade, que a realidade, a despeito de tudo, continua a existir, e que “uma vez de posse da verdade, a lógica determinava que o caminho em direção a ela conduzisse a uma individualidade mais forte e, desta, a uma sociedade melhor e mais aceitável”. Com isso, esperava-se, o ser humano migraria a uma situação de equilíbrio interior e exterior em seguida à descoberta de suas próprias dificuldades e limitações. Mas, como saber delimitar os papéis se os mesmos não mais poderiam ser delimitados numa visão ampla, mas apenas no âmbito das liberdades individuais e relativas? Como contribuir com o outro se o indivíduo ainda não descobriu como ajudar a si mesmo? Esse mesmo Liberalismo, a partir de certo ponto, não encontrou mais veio de navegação entre os Estados europeus. Os governos queriam manter-se liberais, por tradição ou interesses governamentais e partidários, mas ideologicamente isso não era mais uma realidade assim tão ampla. O Liberalismo, portanto, definhou progressivamente na primeira metade do século e agonizou ao longo da segunda metade. Novas teorias para o Estado, para a política e para a economia foram estabelecidas exatamente nesse último período, enfraquecendo ainda mais a combalida doutrina liberal. O Socialismo, enquanto pensamento sistematizado, surge nesse ponto da história e se mostra publicamente 39 de modo mais amplamente sistematizado através da escrita de Karl Marx. Via de regra, o homem como o do Fin-de-Siècle não era mais um liberal, no sentido político do termo, mas isso também estava por ser revisto no Ocidente. Fruto disso e para permear a política, a economia e a sociologia, duas grandes correntes foram ali consolidadas e serviram de disputas universais futuras: o Socialismo e o Capitalismo. 2.2. Fé O pensamento básico encontrado na Europa do século XIX e início do século XX ainda é o cristianismo. E por esse tempo, os olhares das duas maiores correntes cristãs do continente estavam voltados para além-mar, a fim de aproveitar o caminho aberto pelas navegações e esforços coloniais de suas próprias nações em novos locais dominados. Dessa forma, as missões cristãs encontraram novo fôlego por mais de cem anos. Internamente, a teologia cristã estava também inserida nos contextos do século XIX e, como todo o demais da sociedade, estava rumando abertamente em direção ao Fin-de-Siècle. Notadamente, os pensamentos reinantes no Ocidente influenciaram não apenas artes, filosofias, culturas e modelos práticos da sociedade, mas também tocaram profundamente no que era até então o ponto de base inflexível do pensamento do homem ocidental. Embora as doutrinas ortodoxas do cristianismo não tenham sido alteradas nem revistas, é fato que novas correntes de interpretação surgiram, algumas delas dando 40 cores totalmente novas ao que era a idéia central de sua reflexão. O Liberalismo, que tanto influenciou o homem até esse ponto da história, também tocou fundo na Teologia. Com a fragmentação do Eu no Ocidente, o que era axiomático tendia a desaparecer, cedendo lugar à relatividade e à pluralidade. Na Teologia, o processo foi muito semelhante, passando a se expandir rapidamente o conceito de não uniformidade teológica, com múltiplas possibilidades interpretativas e com a relativização quase total dos elementos doutrinais. Na prática, o que se deu foi uma invasão da esfera cristã pela esfera cultural e filosófica que estava em ebulição no Ocidente. Isso se tornou possível graças à alteração de conduta e de pressupostos, em que o homem podia agir em esferas estanques, sem interligações entre elas. Por não mais ser o centro das ações humanas, o que permeava todas as demais, o homem ocidental isolou as ações e o contrário se notou posteriormente, quando a fé passou a ser influenciada pelas outras esferas. Podemos notar o que diz Lins: “É certo que, como observa Marx e mais recentemente Marshall Berman, nos últimos séculos, tudo o que era sólido se desmanchou no ar, tudo o que era sagrado se dessacralizou.” (Lins, 2006,18). Assim era o pensamento religioso do homem ocidental cujo Eu se via desfigurado e fragmentado. Um homem que agora não ouvia mais, porém dizia como gostaria de crer. Mesmo que sua fé fosse depositada no transcendente e no sobrenatural, ele agora a relativizava e se permitia crer ainda, mas em novos moldes. 41 2.3. Cultura A Europa do século XIX era uma verdadeira fábrica de cultura que trabalhava todo o tempo e a todo vapor. As mais diversas personalidades dos mais variados espectros das expressões artística e cultural humanas habitavam o Velho Continente e dali propagavam suas inquietações e suas esperanças através de suas manifestações culturais. Muitos pensadores europeus estavam em plena atividade de reformular as próprias tradições nas artes e na cultura em geral, chegando a estabelecer escolas de expressão e de pensamento em muitas delas, como História da Arte, Literatura e Música, num intervalo de tempo muito curto. A ascensão e queda do Liberalismo parece ter sido de grande auxílio para o desenrolar de todo esse processo. Schorske (1988) analisa as ligações entre política e cultura que se estendiam através da arquitetura modernista dos suntuosos edifícios vienenses onde percebia forte influência dos projetos liberais, das obras de artistas influentes como Klimt, Schönberg e Kokochka. Vemos que, para esse pensador, política e cultura condensaram o veio de coerência e unidade reflexiva em meio a um processo caótico de vazios e ausências. Vemos também que aquilo que ele percebia em Viena poderia ser transposto para o restante da Europa, haja vista a condensação que se viu na capital austríaca naqueles dias. O Fin-de-Siècle foi um período atípico para várias razões e muitos postulados humanos. Cremos ser realmente estranho englobar numa mesma praça de análise questões tão afastadas quanto religião e racismo, por exemplo, mas elementos assim 42 poderiam aparecer bastante integrados com a cultura que entrava em colapso, pois ela estava por sofrer alterações permanentes e irreversíveis, a partir das quais os moldes modernos e pós-modernos encontraram vincos de sustentação. Entendo aqui por cultura todo o conjunto de códigos que podem reinar sobre os procedimentos humanos numa sociedade como, por exemplo, a que vislumbramos no Fin-de-Siècle. Em todos os momentos das sociedades podemos perceber sua cultura, seja na forma de trabalho, no comportamento das pessoas, nas suas crenças, em seus valores metafísicos (ou na ausência dos mesmos), nas suas formas de expressão, etc. Uma das mais objetivas formas de expressar a cultura de uma sociedade talvez seja a expressão pictórica ou expressões que consigam aliar elementos visuais. Isso por ser a visão o mais intenso dos sentidos humano e a busca por interpretações ou simples contemplações representar um papel muito profundo no homem. Por essa razão, fazemos uma relação entre cultura e artes visuais, o que leva de volta ao ambiente Fin-de-Siècle e a explosão de artes plásticas e arquitetônicas que se viu em toda a Europa e particularmente na Viena daqueles dias. Uma interessante leitura sobre alguns estudos freudianos é feita por Codina (2005) quando ela faz uma análise de ilusão e mal-estar passando por nossa busca interior de identidade em meio à quase utopia de se encontrar uma. A autora do ensaio trabalha aplicando tais conceitos no filme Clube da Luta (Estados Unidos, 1999, direção de David Fincher). Lembremo-nos que a base desse tipo de raciocínio foi extraída de Freud, que pensava seu tempo e o homem nele inserido exatamente sob 43 a premissa de que a identidade estava fragmentada e que algo poderia ser buscado a fim de solucionar ou explicar tal questão. Diz ela em determinado trecho de seu artigo: “para o ser humano e sua cultura existem duas saídas básicas: a sublimação ou o recalque”. Continua dizendo que “o recalque é patológico e paralisa. O neurótico experimenta a infelicidade de não conseguir conciliar seu desejo com a cultura. Quanto à sublimação, seu alcance permanece ambíguo”. Diz mais: Esse quadro agrava-se quando se compreende que o Eu não cumpre adequadamente sua tarefa de harmonizar as diversas forças que nele agem, na tentativa de superar os conflitos entre indivíduo e civilização. O trabalho de sublimação e a identificação fracassam, a hostilidade aumenta. O mal-estar insuperável na cultura obriga-nos a concluir que a aspiração de identidade e a tentativa de fortalecer e de reconciliar o Eu consigo mesmo manifesta a mesma insuficiência de qualquer outro desejo, já que o Eu se apresenta como modelo inatingível. A própria psicanálise mostra um Eu fragmentado, que fracassa constantemente, e parece pressupor a ilusão de atingir um Eu por meio de outro Eu igualmente ilusório. A reconciliação consigo mesmo e, portanto, com a cultura, apresenta-se assim como aquilo que sempre procuramos, sempre atingível, mas que permanentemente foge de nós. (Codina, 2005, 79). A crise nas esferas política, social e interior do homem que viveu em tempos tão dramáticos certamente contribuiu para que ele desenvolvesse meios de expressão que deixassem à posteridade os sentimentos que trazia dentro de si. Uma onda exploradora avassalou a Europa e deu conta de novos movimentos que surgiram em várias áreas da expressão humana. Tudo buscava encontrar respostas e demonstrar a crise vivida. Em muitos casos, a crise pessoal de autores, cientistas e artistas foi a mola propulsora para suas expressões. É bem verdade que, inseridos num amplo contexto, todos eles, invariavelmente, tinham reflexos interiores do que estava acontecendo ao seu redor. 44 A busca e a instabilidade vividas refletiam, por exemplo, a forma de expressão. Era bastante comum ver manifestações artísticas e culturais nas quais o moderno se aliava ao antigo, numa busca por identidade atual com apego ao passado, numa expressão que nem sempre refletia a realidade, posto que muitas das manifestações clássicas utilizadas não tinham respaldo histórico com aquela sociedade específica. Na Áustria, por exemplo, as estruturas oficiais, quando os trabalhos de reformulação do centro da cidade, no Rinsgstrasse, geralmente tinham motivos históricos clássicos, ligados à mitologia, sem relação alguma com o passado da sociedade austríaca, mas evocativas de símbolos que dessem sentido à sensação de vazio que o Eu fragmentado deixava ao largo da sociedade. Fachadas falsas com interiores diferentes da expressão externa eram mais uma confirmação dessas motivações: representavam um homem reembaralhado dentro de si mesmo, sem conseguir ainda concatenar o Eu de dentro com o Eu de fora. Ainda em Viena, a Casa de Secessão, uma espécie de museu misturado a uma casa de exposições culturais, foi uma resposta às pressões da vida moderna, oferecendo a alternativa de se tornar um oásis para o homem inquieto. Em meio a todas essas novidades, alternativas modernizadoras eram postas em prática. Além disso, nas artes plásticas, a expressão já era mais afeita ao moderno, com o surgimento de arte menos convencional. Talvez não se tenha visto em outra época da história uma tamanha efervescência de manifestações nas artes e na cultura em geral: ao que tudo indica, o desassossego e a fragmentação do Eu motivaram intensas amostras de expressão humana. 45 Schorske (1988, 248), por exemplo, transcreve uma sentença presente num painel que representa a realização e que expressa tudo isso de forma sintética, falando de poesia e arte: “O desejo de felicidade se consuma na poesia” e segue completando que a arte “nos conduz ao reino ideal, o único onde podemos encontrar a alegria pura, a felicidade pura, o amor puro”. As artes, notadamente as artes plásticas, não eram mais a representação, mas a apresentação de um ser humano em nova realidade, embora ainda em processo de descoberta. Lemos que O artista, embora seja um “homem sem regras” no oceano inexplorado da vida, pode, portanto, dar forma a uma parcela do ilimitado através da sua consciência dos rostos e visões. Essa consciência é simultaneamente dinâmica e estática: “deixando fluir a corrente e existir as visões”. Ela não “representa” a realidade humana ou natural, tal como fizeram os pintores até agora, mas a “apresenta” como a criação deliberada de uma consciência formada dentro dela. (Idem, 318). Era o tempo de personagens como Klimt, Kokoschka, Schönberg, Loos e Mahler. Este último, sendo também um musicista, influenciou profundamente artistas plásticos, inspirando principalmente Klimt e boa parte de sua obra. Todos eles foram exemplos de expressões nas artes: arquitetura, música e artes plásticas. Em paralelo, expressões das letras e psicanalíticas fecharam um circuito em que o ser humano se conduzia em direção a suas novas fronteiras culturais. 2.4. Política A Europa era um teatro em cujo palco inúmeros movimentos nacionalistas proliferavam por toda parte. O Liberalismo político entrava em crise aberta e já se 46 mostrava desfigurado. Foi em meio a essa evolução política européia que Schorske (1988) observou detalhadamente o que ocorreu na Áustria entre 1848 e 1897, ou seja, no período que vai de meados do século XIX ao auge do Fin-de-Siècle, em particular, o processo de queda dos liberais. Ele nos mostra como as investidas dos liberais contra as tradições da classe aristocrática que ocupava o governo até então, bem como as reações e desdobramentos dessas investidas, influenciaram nos rumos das artes, da arquitetura urbana, da política e dos movimentos sociais vienenses. Muitos setores da sociedade sentiram-se estimulados à oposição dos processos apresentados pelas reformas políticas e sociais do Liberalismo que, em síntese, pareciam não corresponder aos anseios de maior fluidez, mas de reformas aparentes que visavam apenas à manutenção das classes detentoras de poder em seus pontos de domínio. Entre esses setores encontravam-se alguns que inicialmente poderiam parecer opostos, ou pelo menos não coadjuvantes, mas que agora uniam forças contra o mal comum, como setores insatisfeitos com os rumos de mudanças propostas e aqueles reprimidos pelo antigo Liberalismo e que viam naquele momento a chance de exigir uma mudança radical que consolidasse seus direitos. Voltando-nos para a realidade brasileira de então, apenas a título de confirmação, há uma interessante ponderação quando lemos que “o estatuto brasileiro da lei burguesa, que vale e não vale, é o referente remoto desta relativização do escrúpulo - encantadora ou detestável segundo o caso” (Schwarz, 1990, 130). Poucas afirmativas quanto ao substrato social visto no século XIX brasileiro poderiam ser mais ambíguas. Valer e não valer ou ser encantadora ou detestável pareciam 47 antíteses que conviviam lado a lado sem maiores problemas conceituais. Podemos entender isso a partir do que temos estudado a respeito do Fin-de-Siècle e suas circunstâncias. Lembremo-nos, no entanto, que o Brasil apenas o espelhava a realidade de centros mais desenvolvidos que nos serviam de referência. O meio político europeu, por sua vez, ia desde a nova maneira de pensar a ética aos anseios expansionistas que chegavam a contradizer os recém-estabelecidos postulados de respeito ao outro Eu, mesmo quando diferente do próprio Eu. O cenário político europeu era vasto, rico e com muitos atores. Sionistas, anti-semitas, nacionalistas, pan-nacionalistas, representantes da velha tradição política, radicais, aristocratas, camponeses, artesãos, imperialistas, centralizadores, velhos liberais e antiliberais: eis alguns dos muitos focos possíveis de pensamento político encontrados facilmente na Europa. Em fins do século XIX e no ápice do Fin-deSiècle, sem dúvida, foram essas forças, que agiam centrifugamente, as grandes ocasionadoras das derrocadas de impérios e tradicionais casas de governo europeus. A tensão constante e progressiva dos muitos movimentos retrógrados e progressistas aliada aos retrocessos sofridos pelos liberais que insistiam na manutenção do poder não lhes permitiu suportar a velocidade institucional das mudanças e os fez ruir velozmente. Conforme lemos em relatos sobre a Áustria, Os novos movimentos de massa antiliberais - o nacionalismo tcheco, o pangermanismo, o socialismo cristão, a social-democracia e o sionismo - surgiram de baixo para desafiar a tutela da classe média cultivada, paralisar seu sistema político e minar sua confiança na estrutura nacional da história. (Schorske, 1988, 127). 48 Embora a Europa pudesse viver experiências utópicas, os liberais austríacos não penderam para a utopia e não criam abertamente nos princípios da perfectibilidade, o que os tornava, num primeiro olhar, menos suscetíveis às instabilidades comuns e generalizadas em todo o continente. De certa forma, eles demonstravam entender melhor o que estava acontecendo nas camadas intelectuais, talvez por sistematizarem seus pensamentos liberais em comparação com as mudanças sociais. Os tempos eram de construções e substituições que muitas vezes se manifestavam de maneira arbitrária, como a seqüência em que o credo liberal substituiu os preceitos feudais que, àquela altura dos fatos, eram pejorativamente colocados sob a alcunha aristocrata. Num outro viés, a monarquia constitucional veio substituir o esteio formado pelo absolutismo aristocrático. Na seqüência dos fatos, o centralismo parlamentar também veio para ficar no espaço deixado pela derrocada do federalismo aristocrático. Nos meios civis em toda a Europa, mas com especial vigor em Viena, ao se somarem estas mudanças com as alterações éticas e de pressupostos gerais, temos que a base de reconhecimento a partir do mérito passava a substituir a base anterior que era pautada nos princípios do privilégio. Com esse pano de fundo, no qual as mudanças se dão a partir de elementos que a própria sociedade não era capaz de perceber com a mesma acuidade que seria preciso para acompanhá-las com a necessária rapidez, chega um dado momento em que todos se voltam contra os liberais, cada segmento político ou social tendo em mente suas próprias razões para fazê-lo. 49 Como exemplo, diz Schorske (1988, 126) que “a sociedade austríaca não conseguiu respeitar essas coordenadas liberais de ordem e progresso” e que, mais para fins do século XIX, “a petite bourgeoisie alemã antiliberal” se colocou frontalmente contra os liberais após estes terem atenuado de maneira aberta e ostensiva a sua antiga retórica germanista, que em muito favorecia o espírito germânico na Europa e, de maneira especialmente eficaz, em toda a parte da Áustria em que havia histórica influência germânica. Em outra frente, o laissez-faire, ao invés de gerar princípios de libertação da economia em relação às amarras do passado, findou por levantar e fortalecer os marxistas de um tempo não muito distante de seus dias, olhando para um futuro muito próximo. O catolicismo, antes inquestionável, agora perdia definitivamente a vez entre a aristocracia, mas ressurgia com força sob a forma de ideologia de camponeses e artesãos, que tinham um pensamento obstinado que os levava a crer que Liberalismo era Capitalismo, e que Liberalismo era, portanto, coisa de judeu. Quando chegamos ao final do século, até mesmo os judeus se voltaram contra o Liberalismo, já que a sua derrota os deixou vitimados e perseguidos na sociedade. A resposta dos judeus para estes últimos fatos foi a sedimentação do sionismo como a derradeira possibilidade de sobrevivência, tendo como matiz a fervorosa pregação de uma então hipotética volta à terra que seria o sonhado lar nacional para os judeus dispersos por várias partes do mundo, mas que, na Europa de Fin-de-Siècle, precisavam de alguma forma de escape a curto prazo. Três importantes expoentes são citados como tendo começado suas vidas públicas e sua pregação ideológica como liberais políticos e terminaram em vias diferentes, 50 fazendo de suas ideologias a prática formadora das massas que queriam atingir: São os já mencionados Schönerer, Lueger e Herlz. Os dois primeiros foram os esteios inspiradores de Adolf Hitler e o último foi o responsável por responder sistematicamente às vítimas deste contra o levante do terror que se instauraria contra os judeus na Europa. Resume Schorske (1988): Schönerer e Lueger, cada um à sua maneira, tinham conseguido defender a democracia contra o liberalismo. Ambos compuseram sistemas ideológicos que unificavam os inimigos do liberalismo. Cada qual à sua maneira empregou estilos, atitudes ou pretensões aristocráticas para mobilizar uma massa de seguidores ainda ávidos por uma liderança (...). Entre os dois líderes, Schönerer foi o mais impiedoso e o pioneiro mais ousado no desencadeamento de instintos destrutivos. Rompeu os muros co seu poderoso apelo anti-semita, mas Lueger organizou as tropas que ganhariam a vitória e os despojos. Lueger era menos alienado e mais tradicional que o cavaleiro-burguês frustrado de Rosenau. Mesmo em seu anti-semitismo, Lueger carecia do rancor, da convicção e da coerência de Schönerer. Enquanto Schönerer explorou o caráter supranacional da comunidade judaica (...), Lueger revitalizou o anti-semitismo em seu ataque ao liberalismo e ao capitalismo. (Idem, 151, 152) O poder carismático de Herzl como rei-messias redivivus não deve nos fazer negligenciar os elementos modernos de classe média que permeavam seus objetivos e métodos. O Estado judaico, tal como ele o concebera num panfleto de mesmo nome, não tinha nenhum traço de caráter judaico. Não existiria uma língua comum - certamente não o hebraico. (...). Em todas as suas características, a terra prometida de Herzl, de fato, não era uma utopia judaica, mas liberal. Os sonhos de assimilação que não poderiam se realizar na Europa seriam realizados no Sião, onde os judeus teriam a nobreza e a honra com que Herzl sonhara desde a juventude. (Idem, 175) Falando de Schönerer, Lueger e Herlz, diz Schorske (1988, 177) que eles conduziram “seus seguidores para fora do mundo liberal em colapso, recorrendo às fontes de um passado reverente para satisfazer aos anseios de um futuro 51 comunitário” e os classifica como “filhos rebeldes da cultura austro-liberal, uma cultura que podia satisfazer os intelectos, mas matava a fome as almas de uma população ainda apegada à memória de uma ordem social paternalista”. Para melhor entender algumas questões, é importante termos sempre em mente que a Áustria era uma nação multiétnica, que dentro de suas fronteiras abrigava diversas etnias, sendo que as duas de maior projeção eram a germânica e a magiar, de origem húngara. Interessante notar que o pensamento político, bem como suas ações na Europa do século XIX, marcadamente no Fin-de-Siècle, deixou forte rastro que em muito ultrapassou seu espaço e seu tempo, atingindo-nos ainda hoje com suas ações e seus pensamentos. Capitalismo, Liberalismo, Socialismo, sionismo, antisemitismo, racismo, exclusão, inclusão, tolerância e tantas outras sistematizações práticas e políticas daquele período ainda hoje assustam ou confortam o homem ocidental. 52 Capítulo 3 - O Fin-de-Siècle: um marco temporal e espacial “Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e à cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezessete meses, no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada. Alguns chegam ao ponto de conjeturar que nunca houve outro louco, além dele, em Itaguaí”. (Machado, In: O alienista). O Fin-de-Siècle não foi um fato isolado na história sobre o qual não saibamos marcar períodos e acontecimentos. Como o nome diz claramente, Fin-de-Siècle fala do final do século XIX e início do século XX. Mais que isso, fala de eventos relacionados às transformações de toda a Europa, do Ocidente, dos momentos críticos em que o homem dessa metade do planeta descobriu-se sem identidade, com seu Eu fragmentado pelas sucessivas dissoluções de seus pressupostos anteriores e pela luta individual e coletiva em estabelecer seus novos modelos de visão de mundo. Não é sem razão que vemos uma preocupação latente com aquilo em que estávamos nos tornando a partir de então. O Eu, nesse tempo de alterações profundas, buscava um novo espaço e novas cores através das quais se relacionar com o indivíduo que o portava e com o mundo que o cercava. Para Lins, até hoje nos é difícil compreender 53 todos os ângulos da visão que temos do Eu, seja ele o nosso próprio, seja ele o alheio. Isso por termos entrado num contexto de sociedade de massa, com tudo macrodimensionado, enquanto o nosso Eu, esse sim, faz-se diminuto e fragmentado dentro em nós, com notados reflexos por toda parte, inclusive na coletividade massificada. O eu, que começou sensível ao sofrimento, para transformá-lo por dentro, apropriar-se dele e quem sabe vencê-lo, aceitaria de bom grado a abandonar o projeto como se houvesse chegado a ele. Uma das dificuldades dos nossos contemporâneos consiste na grandeza dos números e das estatísticas. Tudo assumiu um aspecto gigantesco; tudo, tirando o eu, reduzido, ao contrário, a proporções microscópicas e condenáveis como se, ao mencioná-lo, quiséssemos sustentar o egoísmo. Não se pode agir com a sociedade de massa como se agia com a sociedade do século XVIII. Lins, 2006, 71,72 Os eventos que antecipavam o final do século XIX e mostravam os primeiros anos do século XX não foram de pouca importância, mas significaram um verdadeiro sinal no tempo e no espaço, que marcariam permanentemente a figura humana. Fosse em sociedade ou em solitária reclusão, o homem deveria seguir seu novo rumo, traçado por ele próprio. Restava adequar-se e sobreviver a ele. 3.1. O Fin-de-Siècle e o início do século XX Sennett (1998) nos mostra que até bem perto de meados do século XIX, o homem aparentemente desejava ser indivisível, transparecendo ao máximo ao mundo exterior e às demais pessoas o que ele realmente era. A partir daí, ele era uma pessoa em determinados planos, mas começava a ser outra em outras cenas, principalmente nas que envolviam o jogo público. Assim, na esfera pública, as 54 pessoas tendiam cada vez mais a serem diferentes daquilo que eram em sua vida privada. Surgiam, a partir de então, os atores da vida pública, que tinham por necessário desempenhar papéis específicos para o exterior de suas vidas, esperando preservar ao máximo o que eram apenas para a sua privacidade. Surgia o homem público que vem até hoje, visível e com projeção pessoal ostensiva, mas que tenta se esconder dos olhares coletivos em sua vida privada. Dependendo do seu momento, esse mesmo homem público desempenha dois papéis diferentes: um papel passivo, de mero observador, ao fitar os demais; e um outro, ativo, de ator, ao protagonizar o seu próprio jogo de cena. Voltando-nos para a vida cotidiana prática, o que vemos de uma personalidade pública no exercício de seu papel é apenas a exteriorização de seu jogo. Não sondamos verdadeiramente a pessoa e seu caráter. Isso se fez axiomático e perdura até nossos dias, nos quais vemos os jogos que se desenrolam à nossa vista, com discursos de simulação e atuação objetiva, principalmente por parte da classe política, hoje a maior expressão dessa característica. Aqueles eram tempos em que a personalidade migrava de sua intimidade para o público e, por isso, precisava ter defesas. Tempos de mudanças bruscas nos sentimentos das pessoas, nos códigos de conduta coletiva, nas personalidades variadas, nos discursos múltiplos, nas expressões individuais, do falar e do silenciar: tudo poderia ser um jogo, com papéis definidos e por vezes conhecidos de todos. Mas era necessário abrir a cena. 55 De certa forma, o homem moderno, e com isso quero dizer o homem que se moldou no Fin-de-Siècle, passa a ser alguém que vive pelo menos dois “Eus”. Ele vive seu Eu dividido em um Eu real e um Eu circunstancial. O Eu real é ativo e tem por base as motivações e impulsos individuais, enquanto o Eu passivo é aquele que aparece para a sociedade que cerca o indivíduo. O autor chama esses dois “Eus” de Eu (o ativo) e mim (o passivo). (Sennett, 1998, 403). Há algo mais a ver que apenas reações aparentes. O que estamos vendo no homem que migrava de um século a outro, particularmente do XIX ao XX, era um verdadeiro drama interior que, por essa mesma razão, se permitia mostrar no seu exterior. Para Lins (2006) isso representava algo insuportável, dramático, a ponto de tocar os ossos do ser humano. E é exatamente por causa das características assumidas a partir de então por esse novo perfil que o homem se solta de suas relações, inclusive daquelas que lhe dariam as bases para a seqüência de sua vida. O que antes era trazido dos antepassados, dos pais, era agora renegado, mesmo que o fosse inconscientemente. Alguma coisa no século XIX, dramático nas suas dores, chegava aos ossos e se mostrava insuportável. Para um cidadão dos dias que correm, os outros, nos Novecentos ou Oitocentos, para não falar daqueles anteriores ainda, apresentam um perfil tão distante que já não se afiguram antepassados. Cabe perguntar o que deles conservamos que nos torna a um só tempo iguais e dessemelhantes. (Lins, 2006, 29) Esse homem cujo Eu está fragmentado e dividido é um homem que se sente só, mesmo em meio a uma polis completamente povoada. As multidões circundantes 56 não mais representam companhia, mas podem ser canal simples e aceito de uma intensa solidão. Máspoli (2001) diz que Todas as relações com outros são, em última instância, meras estações ao longo do caminho através do qual o ego chega a si próprio. (...) Em termos sociológicos, a solidão é um subproduto da construção social do indivíduo. Ao afirmar a sua individualidade, o homem afirma também a fragmentação do universo social e o isolamento do outro. Este isolamento, porém, pode se tornar insuportável, gerando a tentativa de superá-lo por meio da relação interpessoal. (Máspoli, 2001, 5). A adequação a esses valores pode representar sobrevida do Eu que aparece, sendo ele apenas plástico, enquanto o verdadeiro Eu, ativo, se dá em oculto, o que também o faz sobreviver. Cada um a sua forma, os dois modelos do Eu contemporâneo parecem continuar sua corrida por adaptação. Muito do exposto e defendido por Sennett foi buscado nos princípios psicanalíticos do narcisismo. Sobre seus postulados, pode-se ler com detalhamento no capítulo 14, O ator privado de sua arte. (Sennett, 1998, 243-314; 381-409). Na literatura, que via de regra mostra o que se passa em determinados contextos e tempos da sociedade, vemos uma interessante nota de Antonio Candido: Quando a atividade dos escritores de um dado período se integra em tal sistema, ocorre outro elemento decisivo: a formação da continuidade literária, - espécie de transmissão da tocha entre corredores, que assegura no tempo o movimento conjunto, definindo os lineamentos de um todo. “É uma tradição, no sentido completo do termo, isto é, transmissão de algo entre os homens, e o conjunto de elementos transmitidos, formando padrões que se impõem ao pensamento ou ao comportamento, e aos quais somos obrigados a nos referir, para aceitar ou rejeitar.” Sem esta tradição não há literatura, como fenômeno de civilização. (Candido, 2000, Vol I, 24). 57 No ápice do Fin-de-Siècle, o homem estava por completar o processo de transformações que iam muito além do que ele talvez tivesse pensado quando os movimentos de meados do século XIX tinham sido deflagrados. Muitas alterações foram sentidas; novos marcos foram fixados no caminho do homem; as sociedades ocidentais não eram mais as mesmas. E o Fin-de-Siècle foi o elemento demarcador de tudo isso. 3.2. Ambiente Fin-de-Siècle Fin-de-Siècle, como já sabemos, é termo aplicado não apenas a alguns pontos geográficos determinados, como Viena, mas a todo um tempo, ou processo, durante o qual o mundo, principalmente o Ocidental, com maior destaque ainda para o europeu, teve uma verdadeira metamorfose social, política e cultural, com raios atingindo todas as esferas da vida humana a partir de então. Uma enorme massa de pensadores, artistas, psicólogos e historiadores estava empenhada em responder perguntas eternas ao ser humano, mas que agora se tornavam cruciais. O momento levava à discussão do problema da natureza do indivíduo numa sociedade em crise de desintegração. Foi essa leva de questionamentos que elevou Viena a um lugar de destaque no cenário em que se buscava uma nova concepção para o ser humano. Até havia pouco tempo, o homem tinha por boas e satisfatórias as respostas metafísicas a suas incógnitas, mesmo as mais profundas. Quando não encontrava respostas plausíveis, o transcendente 58 atendia perfeitamente o seu silêncio e a paz aparentemente continuava a reinar nos seres humanos. A partir do desmonte da idéia mais universal desses pressupostos, as idéias mais antropocêntricas ganham muito vigor e passam a governar a razão de modo objetivo e direto. Nesse ambiente, toma força a idéia do homem psicológico (onipresente), sendo que Schorske (1988) defende que ele surge a partir da crise política e cultural de Viena. O declínio, ou o incremento, da crise do Liberalismo gerou um severo clima de ansiedade, inconstância, percepção nua da brutalidade da sociedade. O desaparecimento da boa esperança, talvez um tanto ingênua, no homem, parece ter se dado, ou, pelo menos, se evidenciado, exatamente por esses dias. Os traços humanistas e cada vez menos metafísicos passaram a ser centrais nos temas e discussões entre a intelectualidade. Com isso, o passo alcançado foi o do homem que pensa e tem em si a resposta para suas mazelas, para seus vazios e para seus questionamentos permanentes. O olhar do homem passou a ser posto dentro de si ao invés de numa esperança externa, como acontecia tempos antes, no auge da religiosidade ocidental européia. A alta burguesia de então tinha bases simples e modelares: no aspecto da moralidade, ela era convicta, virtuosa e repressora; no campo político, ela era voltada para a lei e para seu império, que estava invariavelmente acima do indivíduo e da ordem social; no aspecto intelectual, ela defendia a supremacia da mente sobre o corpo, com progresso social advindo de trabalho duro, ciência e educação. 59 Talvez pairasse no ar uma idéia de que havia normalidade imperando sobre as pessoas, mesmo quando ainda não a entendessem como deveriam. Difícil, talvez, fosse alcançar intelectualmente o que poderia ser normal quando os paradigmas não mais se mostravam tão claros. Como diz Lins (2006), a normalidade aparente, aquela que engana, ou engoda, pode emascarar períodos de intensa crise interior. Em suas palavras: A ilusão de normalidade sugere um estado de calmaria que condiz mal, ou não condiz, com o tumulto subterrâneo responsável pela anomalia. De fato, a humanidade, apesar de irrequieta e não-conformista (caráter que, com inteligência, valeu-lhe como trunfo para sobrepor-se, ganhando a disputa no meio animal), atravessa períodos de estagnação nos quais a economia não manda, a sociedade dá provas de involução e a história, retrocesso. Fala-se em decadência dos costumes, das formas de organização, da qualidade de vida. (Lins, 2006, 9,10). Notamos que a normalidade, quando apenas ilusória, é um mal latente que se abate sobre o ser humano que, por não se aperceber de sua real situação, acomoda-se ao que crê ser bom para si. Seu interior, no entanto, pode viver verdadeiras e duras conturbações que não encontram rota de fuga alguma para aliviar o mesmo ser. Uma série de eventos periféricos e circundantes aparecem como resultado imediato dessa forma descompensada de ver a si mesmo e de perceber seus próprios sentimentos. A reação se vê no que cerca o indivíduo, com claros reflexos sobre a própria sociedade que o acolhe. Assim, em meio a tão rica gama de mudanças, o burguês interiorizava a cultura estética que ele absorvia, e dessa forma cultivava o seu Eu, sua unicidade pessoal, o que lhe gerou inevitável preocupação com a vida psíquica individual. A fertilidade 60 de reflexões e postulados científicos e acadêmicos advindos desse período só nos fazem comprovar tal realidade. No entanto, por razões óbvias, uma problemática constante para os pensadores e para os formadores de opinião no Fin-de-Siècle era a visão clara da dissolução do postulado liberal em meio à política moderna da Europa e da Áustria de seu tempo. (Schorske, 1988, 25-42). Assim como em todas as grandes fases da história em que o homem sofreu alterações em sua sociedade ou em sua própria constituição, o homem do Fin-de-Siècle, antes de auferir os benefícios advindos de seu novo momento, passou por períodos de inquietação e ansiedade muito grandes. Muitos problemas, o que é natural, também foram percebidos ao longo dos anos e décadas em que o esteio da nova realidade se apresentava diante de sua vida. No entanto, talvez o maior de todos os benefícios não esteja no campo dos elementos concretos, mas na área do interior do homem: a esperança. Cansado de uma série de fatores alienadores, opressores, aniquiladores de liberdade e de possibilidade de igualdade, o homem do Fin-de-Siècle tinha agora diante de si uma das mais belas sensações que o diferenciam de outros seres vivos e, em muitos níveis, até entre homem e homem. 3.3. Problemas de preconceito, exclusão e extermínio racial O problema relacionado ao poder e às conseqüências imediatas que dele podem advir, quando mal estruturado e mal intencionado, jamais desapareceu de entre o ser humano. Massacres, perseguições, exclusões, limpezas étnicas e todas as formas de 61 aberração originadas pelo poder mal coordenado foram vistas largamente durante todo o século XIX e o Fin-de-Siècle. Lins diz que “na ânsia de varrer o mapa, de limpar o terreno, de retirar espinhos, dissolvem-se valores” (Lins, 2006, 33), o que pode perfeitamente ser aplicado aos esforços da geopolítica e da estrutura de poder, tanto do Estado quanto de universos mais restritos dentro da sociedade. Seguindo reflexões do mesmo autor, podemos entender que uma das problemáticas de ordem política e social tenha se dado na sistematização que se fazia de uma democracia moderna que coloriria o Ocidente a partir daqueles dias. Ele nos recorda que há uma razão de ser da democracia e que a perda de seus pressupostos pode acarretar males que não desejávamos para nós e nossa raça. Pensamento subjacente a esse é que talvez tenhamos percorrido um círculo completo para cair no abismo do qual queríamos nos livrar originalmente. A utilidade da democracia consiste em não permitir que a exacerbação do eu até a anomalia (ou da loucura), ou eu já não mais dividido, mas único, exclusivo, perca a noção da realidade e nos arraste para a miséria, de onde, quando começamos, desejamos sair. (Idem, 38). Não nos é muito fácil imaginar que o homem que tinha acabado de lutar por um vasto leque de libertações individuais e comunitárias, cujo centro mais importante estava fixado na relatividade e na aceitação da alteridade, ainda praticasse exatamente as mesmas aberrações que sempre foram marca de uma espécie que não se respeita. Paradoxalmente, o homem aproveitava seu novo espaço de liberdade, mesmo em meio às dúvidas que ainda o assaltavam, para subtrair a liberdade do outro. E diz 62 ainda “A formação do ser dilacerado, capaz de extrair riqueza do sofrimento, como se, enquanto campo de observação, num universo já de todo conhecido, restassem regiões não desbravadas a reconhecer e a explorar” (Idem, 25). Um novo imperialismo estava se fortalecendo com muito vigor. Bases científicas que traziam novas possibilidades também podiam sugerir novas opressões. A mesma teoria evolucionista que poderia representar uma resposta nova à existência humana sem o apego ao religioso serviria também de base para que os mais fortes indivíduos ou nações - sentissem que tinham liberdade e direito de dominar os mais fracos, mesmo que por força. Foi exatamente por esse tempo que ciganos e judeus começaram a ser duramente perseguidos em quase toda a Europa, sendo período que viu o surgimento de líderes que deixaram rastros para que seus seguidores concluíssem posteriormente suas aberrações, conforme trataremos mais adiante. Ainda nesse tempo, na França, viu-se um notável erro acontecer contra um oficial do exército francês chamado Dreyfus, o que até hoje é considerado uma vergonha para a política e as cortes daquele país. Seu crime foi ter nascido filho de judeus - um judeu, portanto - mesmo em solo francês. Há um texto disponível na Internet, da Ordem dos Advogados do Brasil, Sessão Rio de Janeiro, (OAB-RJ), do qual extraímos alguns trechos: O mais famoso erro judiciário de todos os tempos, sobre o qual talvez se tenha escrito mais que sobre o processo de Jesus ou de Sócrates. Alfredo Dreyfus, capitão israelita do exército francês, foi acusado de ser o autor de uma carta oferecendo documentos militares aos alemães, encontrada pelo serviço de contraespionagem da França. Condenado em 1894 como traidor, sofreu a deportação para a Ilha do Diabo e a degradação militar. Começou então uma campanha de enormes proporções pela 63 revisão do processo e que dividiu famílias, amigos e toda a França em dois partidos, tal como o havia feito a Revolução Francesa. Os mais diversos interesses coligaram-se a favor ou contra o acusado, fazendo dele uma bandeira de luta. A nobreza, o clero, os anti-semitas, os reacionários de todo tipo, os militares, eram contra a revisão, achando que ela colocava em jogo a honra do exército francês caso as autoridades reconhecessem ter errado na condenação de Dreyfus, que fora julgado por um conselho de guerra, de cuja seriedade não se podia duvidar. A esquerda, os liberais, os progressistas, eram pela revisão e conseguiram levar a julgamento o verdadeiro culpado, o comandante Esterhazy, que foi absolvido. (...) Em 1902, novo pedido de revisão é feito e em 1906 a Corte de Cassação reconhece definitivamente a inocência de Dreyfus, sem enviá-lo a novo julgamento. Ele foi reintegrado no exército, lutou na guerra de 1914 e morreu em 1935. Na luta a favor do acusado salientaram-se grandemente Clemenceau e os advogados Labori e Demange. O processo revelou o grande senso de justiça do povo francês e ficou conhecido como “l’affaire” (o caso) por excelência. (Caso Dreyfus, http://www.elfez.com.br/elfez/Dreyfus.html) Nesse episódio que movimentou a opinião pública na Europa e até no Brasil (Émile Zola na França e Rui Barbosa no Brasil) houve muita comoção, mas o que de fato se via era a idéia de segregação aberta com base nos méritos de herança étnica. Ora, na Europa e na Áustria havia movimentos de contendas étnicas acontecendo em várias partes. Na Áustria, era longa a questão que envolvia os magiares e os germânicos, por exemplo. No entanto, talvez a mais intensa questão nesse aspecto seja relacionada aos movimentos envolvendo os judeus, tanto dentro quanto fora da Áustria. Como bem sabemos, até meados do século XX esse povo não tinha região determinada como sendo geograficamente sua nação. Assim, a exemplo de povos como os ciganos e, mais atualmente, comunidades palestinas, os judeus eram dispersos entre outras comunidades nacionais. 64 Os judeus, desde a Idade Média, vinham sofrendo no Ocidente perseguições sistemáticas baseadas em diversos preceitos. Anteriormente mais religiosa, a perseguição que vimos no período Fin-de-Siècle tomou aspectos mais políticos com forte dose de questões econômicas. Um movimento anti-semita estava em curso, em meio a todas as alterações vividas na Europa. Muitos dos eventos posteriores, como os da Alemanha de Hitler, tiveram seus embriões desenvolvidos no período que vai de meados do século XIX ao início do século XX. Os postulados alicerçados nesse tempo deixaram as bases para argumentações de perseguições e desmandos generalizados, a ponto de dois homens públicos, políticos austríacos do Fin-deSiècle, Schönerer e Lueger, serem declaradamente inspiradores de Hitler. Ainda em fins do século XIX, as bases de uma política anti-semita aberta e declarada foram bem consolidadas e estabelecidas como sendo não apenas comuns, mas necessárias. Uma das razões apregoadas para legitimar tudo isso era o nacionalismo. Em tempos de crises, dúvidas e necessidades de definir questões importantes, a nacionalidade, seja ela geográfica ou conceitual, também estava em pauta. A abertura que se deu para as perseguições chegou a assustar homens como Herlz, que, sendo enviado como correspondente à França, viu, em Paris, atrocidades cometidas por um regime que já estava bem amoldado ao anti-semitismo. Isso o constrangeu por crer ele que algo assim jamais aconteceria numa terra que era o berço do Liberalismo, que declarava liberdade, igualdade e fraternidade, ao mesmo tempo em que estabelecia modelos de perseguição racial. 65 Tudo ocorria em meio ao declínio da confiança no Liberalismo enquanto opção política possível para a posteridade. A condição de povo que os judeus tinham nos países europeus incomodava a muitos. Eles constituíam na Áustria, como em outros lugares da Europa, uma nação dentro de outra nação. Tinham direitos restringidos por lei, mas gozavam de certos privilégios, como o de estarem isentos de responsabilidades que só cabiam aos austríacos de fato. É bom lembrarmos que na Europa do Fin-de-Siècle só eram considerados naturais os filhos de pais naturais, ou seja, filhos de estrangeiros seriam sempre estrangeiros, o que perpetuaria os judeus e demais etnias perseguidas como estrangeiros, mesmo várias gerações após a sua chegada aos países em que se estabelecessem. A necessidade de afirmação nacional pode ser um dos elementos importantes nesse contexto conturbado, o que, de forma alguma, justifica atrocidades. O ápice na Áustria parece ter sido a ascensão de Lueger ao governo municipal de Viena, eleito duas vezes para o cargo, em 1895 e em 1897, sendo que somente da segunda vez foi empossado, posto que, na primeira, teve sua posse embargada pelo imperador. A seguida aprovação popular de Lueger, anti-semita declarado e devotado, evidencia que o povo ansiava por algo naquele sentido. A resposta à querela étnica foi a razão sionista, quase que encarnada por Herlz e mais tarde afirmada em movimentos que se espalharam por toda a Europa e Estados Unidos, possibilitando seu feito maior, o retorno da Diáspora à terra que reclamavam como sendo milenarmente sua. Inicialmente, Herlz começou por disseminar idéias assimilacionistas, segundo as quais os judeus não deveriam ser 66 excluídos das comunidades européias, mas assimilados por elas, à custa de estes abrirem mão de suas tradições e de sua religiosidade. Mesmo assim não logrou êxito em sua empreitada, o que o levou à pregação sionista. Buscou dois setores dos judeus para fortalecer sua posição: os judeus menos ricos, que seriam a mão-de-obra para a reconstrução da nova nação quando de seu retorno, e os mais abastados, que seriam os supridores de recursos para tais realizações. As bases para o que se veria desenvolver nas primeiras décadas do século XX, culminando com a repatriação de judeus no Oriente Médio, estavam lançadas. Analisando hoje, passados mais de cem anos, os dois aspectos, o anti-semita e o sionista, parecem ter sido originados na mesma necessidade múltipla: afirmação e sobrevivência. É claro que agora se sabe que a História poderia ter deixado outras possibilidades, mas os homens do Fin-de-Siècle, com a formação e conformação que tinham naqueles tempos, agiram daquela forma. Interessante notar que todos os atores desses movimentos geraram suas ações combinando elementos clássicos e historicamente consolidados de suas culturas com bases filosóficas e políticas modernas para seus dias. O resgate do que tinham sido, somado ao que queriam ser, ajudou a modelar o que passaram a ser. 3.4. A porta aberta para o capitalismo avançado de fins do século XX Richard Sennett (2005) trata de questões como o tempo e a linearidade e como pessoas de apenas uma geração atrás viviam com relação a esses pontos. Suas vidas eram planejadas sobre a estabilidade e a possibilidade de rotinização de afetos e 67 trabalhos, o que, aos olhos do autor, eram coisas boas ou, pelo menos, de melhor tom que aquelas acenadas pelo capitalismo mais selvagem de nossos dias. O tempo ainda era gratuito para essas pessoas, que conseguiam viver sob processos hierárquicos variáveis de acordo com o nível em que se encontravam e isso lhes era natural. A prosperidade como busca desenfreada e que rouba os escrúpulos dos homens após a geração anterior é observada por Sennett, que vê as ações dessa natureza como altamente nefastas e corrosivas nas relações entre as pessoas, inclusive de uma mesma família. Para o autor, os trabalhos independentes e “terceirizados” são o substituto natural da relação trabalhista mais convencional, desagregando o homem de seu bem maior, que é a segurança pessoal e familiar. Não há mais o longo prazo no qual as pessoas possam se equilibrar e planejar suas vidas e seus futuros. A carreira está desaparecendo, bem como os laços fortes de antigas associações e o que sobra hoje em dia são os laços fracos, mais modernos das associações a curto prazo ou, mesmo, da ausência de associações. Encerra parte de seu discurso dizendo-nos: O que é singular na incerteza hoje é que ela existe sem qualquer desastre histórico iminente; ao contrário, está entremeada nas práticas cotidianas de um vigoroso capitalismo. A instabilidade pretende ser normal (...) Talvez a corrosão de caracteres seja uma conseqüência inevitável. (Sennett, 2005, 33). Em fins do século XX e início do XXI vemos um estrondoso retorno do trabalho à casa, com o já familiar nome de home-office, talvez prenunciado pelo isolamento do Eu fragmentado ainda do período Fin-de-Siècle. Esse movimento é contrário aos tempos em que o homem, de forma oposta, migrou de sua casa para os ambientes 68 externos, o que permitiu dar grande impulso ao início da industrialização. O homem, como se vê, e dependendo do modelo em que se insira, precisa ser flexível para sobreviver. Ao tratar de flexibilidade, somos lembrados que essa é a capacidade que tem a árvore de se curvar ao vento e depois se endireitar sem se quebrar. O comportamento humano flexível deveria ter essas características face à vida e às dificuldades, o que compunha compreensão e busca por liberdade nos conceitos mais antigos. Segue dizendo “Em nossa época (...) trai esse desejo pessoal de liberdade. A repulsa à rotina burocrática e a busca da flexibilidade produziram novas estruturas de poder e controle, em vez de criarem as condições que nos libertam” (Idem, 54). Interessante notar a opinião de Virgínia Drummond (2001), já sob um ponto de vista da Psicologia, que põe a realidade atual do ser humano num retorno a um franco processo de fragmentação, como se ele tivesse tido um momento no qual isso sugerisse de alguma forma sinais de assentamento interior passageiro. O problema, segundo ela, é que o ser humano, em face aos processos de fragmentação, colocouse como um autômato nas circunstâncias ao seu redor. O comportamento humano, com isso, por uma questão de sobrevivência, deixa-se levar para “o que é mecânico, automático, fisiológico, o que é inumano” (Drummond, 2001). As dificuldades que ela aponta são muito próximas às de Sennett, autor que ela cita sistematicamente em seu texto. O processo instalado no ser humano a partir do Finde-Siècle não apenas se prolonga até os dias atuais, como ganha contornos de 69 perenidade sobre os quais não antevemos mudanças significativas. Drummond vê um ressurgimento da fragmentação, só que agora com outras características, “roupagens”, em sua fala. Essa fragmentação, para ela, não representa apenas um dado de perturbação do indivíduo, mas de todos os processos que o cercam, como o próprio trabalho, pois a fragmentação é, acima de tudo, algo desorientador, desagregador, deixando reflexos diretos e facilmente perceptíveis em todos os grupos sociais, a começar do indivíduo. Diz ela: O que se pode com clareza identificar é o ressurgimento, sob outra roupagem, do “fantasma” da fragmentação, que tantas críticas propiciou às teorias fundadoras no campo dos estudos organizacionais. O que hoje se observa é a fragilização de todos os empreendimentos humanos pela fragmentação desorientadora, pela excessiva flexibilização que produz desagregação. Indivíduo, família, grupos sociais ou profissionais, e mesmo países tornam-se indefesos pela extrema permeabilidade de suas fronteiras, através da queda de barreiras protetoras de suas características mais constitutivas e singulares. (Idem) Retornando a Sennett (2005), entre as páginas 123 e 126, na maior referência seguida que faz a outro autor, Sennett abre um parêntese para resgatar e explicar princípios de Max Weber e sua obra clássica A ética protestante e o espírito do capitalismo. Discorre sobre o que Weber registrou de amparo teológico, histórico e sociológico de fatos que não eram necessariamente do Capitalismo enquanto doutrina econômica, mas que serviram de apoio aberto a muitas das suas práticas. As modernas formas de trabalho em equipe levam a formas veladas de engano, como as que fazem os trabalhadores, hipocritamente chamados de “colaboradores”, pensarem que a sua equipe de trabalho faz parte de algo maior, uma grande equipe de trabalho que compreende toda a corporação. Dela fazem parte os altos 70 executivos, os gerentes, etc. Na verdade, as equipes menores são induzidas a esse pensamento por conta da intenção que as corporações têm de iludir seus funcionários. Falando sobre Weber, por exemplo, vemos que ele entende a vida social como a conduta individual. Em sua obra já citada, Weber ressalta que as representações sociais são juízos de valor que os indivíduos possuem e pelos quais eles se orientam. Weber não é tão cético em relação à autonomia do indivíduo quanto outros autores, mas é muito objetivo em suas considerações. Chama também a nossa atenção para a importância de compreendermos bem as representações sociais para entendermos melhor o desenvolvimento histórico. O fracasso tornou-se a maior ameaça do homem moderno. Prova disso são as volumosas apresentações sobre como vencer na vida, no trabalho, na família, etc. Costumamos chamar tudo isso de auto-ajuda, na melhor das hipóteses. No mercado competitivo, uma pequena minoria joga na derrota uma enorme maioria de gente educada e preparada (Sennett, 2005, 141). No começo do século XX, uma das maneiras encontradas, em tempos de crise, para se superar o fracasso era trilhar uma carreira a ponto de fazer com que o sucesso recobrado findasse com o fracasso. Mas, em tempos em que o capitalismo se tornou flexível e que as carreiras não mais representam alternativa viável, o que aplicar como antídoto? Em termos de capitalismo antigo, as empresas ofereciam modelos nos quais os trabalhadores tinham a sensação de serem parte de algo muito maior, de algo que era semelhante a uma enorme família. Tinham segurança e tinham 71 demonstrativos de suas habilidades para lhes garantir a possibilidade de driblar um eventual fracasso. No Capitalismo tardio o que há é uma enorme instabilidade individual, sem mais haver a possibilidade de expressar qualidades pessoais - por conta, em parte, do trabalho em equipe - legando os trabalhadores à possibilidade do fracasso e à depressão que a ele se segue. Nasce, pela própria fragmentação das relações, um senso de dependência mútua que gera um problema para o moderno Capitalismo, pois ele encara a dependência como algo vergonhoso e desprovido de sucesso. Tornou-se comum pensar automaticamente na oposição entre um Eu fraco e dependente e um Eu forte e independente. Na verdade, estamos invertendo os valores, pois é este Eu supostamente independente que se torna o mais fraco de todos, por sua inabilidade em gerenciar os fracassos sofridos e as derrotas iminentes. O uso indiscriminado do “nós” para esvaziar de conteúdo esse “Eu” leva a problemas tais como falta de confiança, ineficiência relacional, etc. Para Sennett, no caso específico da confiança, ela toma dois aspectos possíveis: a simples falta de confiança e o excesso de desconfiança ativa nos outros. Esses problemas éticos ainda sugerem mais uma face da problemática geral, que é a apropriação indevida por parte de movimentos como o “comunitarismo” de termos com novo significado técnico, como confiança, responsabilidade mútua, compromisso, etc. Ao final de tudo, o que se quer de fato é o retorno à comunidade. A busca individual está seriamente dificultada pelos pressupostos do capitalismo tardio, enquanto o 72 sistema em si não consegue mostrar saída plausível para suas crises e suas falhas de modelo. 73 Capítulo 4 - A Literatura - esboço teórico e prático - de fins de século XIX e início de século XX “Nesse dia o infeliz engraçado chorou. Compreendeu que não se desfaz do pé pra mão o que levou anos a cristalizar-se”. (Lobato, In: O engraçado arrependido). 4.1. A formação da leitura no Brasil - a partir do século XVIII O Brasil, sabemos nós, juntamente com muitas outras nações, faz parte dos esforços coloniais europeus que redesenharam o mundo a partir da Idade Média. Como terra colonizada, a literatura que se conhece hoje nesses locais percorreu um caminho que vai do seu surgimento com inegáveis influências diretas da metrópole ao que hoje podemos ler e identificar como sendo a nossa literatura. É período das mudanças decisivas, no qual as transformações que se viam em progresso, mesmo que não se percebesse à época, redundariam, sim, na formação de uma literatura nova, com crescente acréscimo de elementos genuínos. Isso tampouco quer dizer que essa nova forma de fazer e perceber literatura não tenha guardado referenciais de sua matriz que começava a perder tônus por essa ocasião. As informações referentes à formação da leitura no Brasil, fator preponderante para que pessoas como Machado de Assis e Monteiro Lobato tivessem leitores mais 74 tarde, servem para ilustrar o pavimento dos caminhos para a literatura que se praticaria no Brasil, como aquela que ambos produziram. “O ambiente para a produção literária nos meados do século XVIII era, no Brasil, o mais pobre e menos estimulante que se possa imaginar, permanecendo a literatura (...) um subproduto da vida religiosa e da sociabilidade das classes dirigentes”. (Candido, 2000, Vol. I, 73). Assim começa o capítulo intitulado Literatura congregada, no qual Candido trata de mostrar que o fato nu e cru do século XVIII na literatura feita no Brasil apontava para direções que não eram a formação objetiva de uma literatura nacional, mesmo sendo feita em terras brasileiras. Candido nos diz que esse foi um período no qual se viu a formação de grupos de interesses culturais, agremiações formadas nos moldes associativos, como academias, que primavam pelas letras. Com o passar do tempo, os seus integrantes desenvolviam seus textos, que ficavam sem leitura abrangente, pois este era um país com alguma produção literária, mas sem público que a lesse. Mesmo assim, esse modelo de agremiações foi importante, pois começou a formatar um pequeno, porém importante público leitor, composto dos próprios agremiados, que passaram a exercer o duplo papel de autor e leitor, com leituras retroalimentadas e canalizadas para a fraternidade dos escritores e apreciadores das letras. “Foi, portanto, um autopúblico, num país sem públicos”. (Idem, 74). De certa forma, este elemento foi o propulsor da formação de um público que é sócio em suas atividades: autor e leitor. 75 Enquanto isso, Lajolo e Zilberman (1996) colocam, em acréscimo a essas informações de Candido, algo que pode explicar interesses de entrelinhas da ocasião. Segundo seu relato, foi nesse mesmo período que o texto, cuja consolidação de elemento independente pós-Gutenberg se verifica como irreversível por várias questões, inclusive as comerciais. O autor adquire status até então desconhecido, passando a ter importância não apenas intelectual ou fraternal, mas importância de mercado, com normas e valores sendo aplicados ao seu trabalho. Dizem elas que foi necessária a postulação do “reconhecimento da autoria, fundamento da noção de propriedade literária, que adquire força de lei na passagem do século XVIII para o XIX” (Idem, 61). Elas concluem que os primeiros beneficiados foram os autores românticos. É bem verdade que as autoras mencionam a Europa, mas Candido trata de uma nação em formação que se espelha na Europa para várias coisas, inclusive para estabelecer os embriões de sua própria literatura. No capítulo intitulado Musa industrial, as autoras falam da mudança provocada por um outro importante detalhe da época, que até nossos dias gera análises variadas e discussões acaloradas. Se, por um lado, o autor começa a ser respeitado em alguma forma, por outro, o seu texto parece ganhar mais importância que ele, pois, transformado em produto industrializável e comercializável, cujo acabamento seria o livro enquanto objeto, passa a valer mais dinheiro que a produção intelectual em si. 76 A discussão não teve fim nos séculos XVIII e XIX, mas prossegue viva até hoje. Essa forma de contradição conceitual, quando retornamos a Candido, parece servir de base de entendimento das razões que levavam as agremiações, por exemplo, a buscarem tenazmente um novo público que pudesse ser despertado para a leitura, mesmo que, inicialmente, o mesmo fosse cíclico e restrito. De certa maneira, Candido aponta para o fato de que o mercado literário brasileiro precisava começar a funcionar. A vinda de D. João VI para o Brasil, onde teve de, em pouco tempo, instalar a sede de seu governo, fez com que determinados elementos importantes ao estabelecimento de uma cultura nacional de leitura e constituição de literatura daí surgissem. Formas mais abertas que as anteriores davam novos ares à imprensa, à literatura, à divulgação de idéias, em paralelo ao surgimento e fortalecimento de escolas superiores e debates que se davam em meio à intelectualidade da época. Antonio Candido chama esse período de “nossa Época das Luzes” (Candido, 2000, Vol. I, 215), deixando claro em sua seqüência de idéias que, para ele, isso despertou a cultura intelectual e as artes, das quais ele destaca a literatura em particular. A tudo isso se seguiu o primeiro público verdadeiramente consumidor de artes e de produções literárias, que se consolida e progride até praticamente os dias atuais, com poucas variantes. Mesmo assim, com tudo de importante que representou, essa fase inicial foi ainda marcada pela aliança entre artes e literatura com o aparato do Estado que, invariavelmente, era o grande fomentador de sua produção. 77 Contudo, o evento da abertura dos portos representou enorme passo ao desenvolvimento da cultura dos livros no Brasil. Até então, Candido nos lembra que a entrada dos mesmos era quase sempre clandestina. Com as facilidades de acesso desse evento, o número de compradores e leitores aumentou gradativamente. De início, nas primeiras décadas do século XIX, as livrarias eram ainda muito escassas e os preços dos livros, muito elevados. Os livros encontrados, em muitos casos, eram de má qualidade editorial ou de cunho estritamente religioso. Mesmo assim, deu-se o início da comercialização dos livros, numa terra ainda sem maiores públicos leitores. Ações paralelas começavam a acontecer no sentido de formar bibliotecas que dessem acesso ao público leitor em geral. A Biblioteca Real foi aberta no Rio em 1814 e, em 1820, já contava com nada menos que 60 mil títulos. Outras bibliotecas, como a de Spix e Martius, evoluíram, do ostracismo por volta de 1817, à grande freqüência em 1825. Para Candido, que fornece essas informações, isso representa a evolução do hábito da leitura no Brasil. Logo de início, há uma constatação do que pareceria óbvio, mas que de fato pode ser verificado em nossa história: o escritor brasileiro não seria capaz de sobreviver da literatura num Brasil do século XIX. Isso não é difícil de se entender, posto que até nossos dias essa realidade teima em ser verdadeira para a enorme maioria dos que se aventuram no mundo da criação literária em nossa terra. Mesmo constatando que a imprensa trouxe enorme avanço ao universo literário, precisamos entender que, para o mundo como um todo, mormente o ocidental, 78 estávamos com um enorme atraso. Aliado a esse dado evolutivo de nossa sociedade, temos mais: os habitantes do Brasil do século XIX eram, na sua maioria, escravos e, em cerca de 70%, analfabetos. Ora, escravos não compram por não terem dinheiro e analfabetos não lêem por não saberem fazê-lo. Voltamos então à posição anteriormente mencionada de autopúblico para as sociedades de interesse específico em literatura e leitura em geral. Junte-se a tudo isso que, com um mercado exíguo, tendo em vista a lei da oferta e da procura, afora os problemas técnicos de confecção ou importação, o livro ainda era preciosidade para poucos abastados. Numa realidade assim como a descrita, restavam poucos caminhos aos escritores que se aventuravam naqueles tempos. Um deles era o tradicional caminho político ou dos apadrinhamentos somente possíveis em sociedades ainda pouco sustentadas por seus próprios recursos. Tais caminhos foram muito comuns para viabilizar as primeiras obras e suas edições de alguns dos maiores expoentes de nossa literatura. Finalmente com relação a esse período temos algumas informações de como se deram as primeiras vendas dos livros então editados. Enquanto os livreiros eram escassos e, quando existentes, de poucos produtos e muito preço, a venda direta aos possíveis consumidores tomou bastante importância. Nesse exato contexto, o livro era mercadoria como outra qualquer, vendável como frutas, legumes ou mesmo escravos. Enfim, nesse método de comercialização, o livro não tinha o sentido de cultura ou literatura que mais tarde se arraigou, mas apenas de mais um produto comercializável por encomenda ou de porta em porta. 79 4.2. O início da literatura e da leitura no Brasil Sobre este tema, Candido é mais rico, embora Lajolo e Zilberman também tragam contribuições importantes. Candido faz a defesa de suas idéias da maneira que lhe é peculiar, direta e objetivamente, em seu capítulo Teoria da literatura brasileira (Candido, 2000, Vol. II, 293). Começa por dizer que “a crítica brasileira do tempo do Romantismo é quase toda muito medíocre, girando em torno das mesmas idéias básicas, segundo os mesmos recursos de expressão” (Idem). No entanto, mesmo se posicionando dessa maneira, Candido faz diversas ressalvas, agregando real importância a fatos de contribuição encontrados na crítica de então. A primeira das críticas que faz é a de que, mesmo considerando a crítica algo pobre e sem variantes, ele entende que a mesma reconhecia os momentos pelos quais atravessava a literatura brasileira naquele momento. De igual modo, ele entende que o amparo histórico que a crítica ofereceu aos escritores e estudiosos foi de enorme valia, pois deu base e confirmou escritores a partir de conceituações sem as quais seria impossível estabelecer caminhos acadêmicos, retóricos, críticos ou literários. Como é de se esperar numa sociedade sem vínculos históricos de peso, a estruturação de nossa crítica foi, em grande parte, fruto de uma apreciação nacional que, com apelos internos, buscou amparo nas academias externas. O que de fato se deu foi o apanhado de informações críticas junto às matrizes culturais de maior peso. A busca por modelos é inegável em tempos de formação. A da literatura brasileira e de sua crítica não fogem a essa regra. Problema novo a ser resolvido era 80 a definição do que seria o caminho adotado por uma literatura nacional, que, até então, seguia estritos modelos externos. Candido enumera a retomada das posições de Denis feita por Sílvio Romero, e que seria, em suas próprias palavras, “o que se pode chamar de ‘teoria geral da literatura brasileira’”: “1) o Brasil precisa ter uma literatura independente; 2) esta literatura recebe suas características do meio, das raças e dos costumes próprios do país; 3) os índios são os brasileiros mais lídimos, devendo-se investigar as suas características poéticas e tomá-los como tema; 4) além do índio, são critérios de identificação nacional, a descrição da natureza e dos costumes; 5) a religião não é característica nacional mas é elemento indispensável da nova literatura; 6) é preciso reconhecer a existência de uma literatura brasileira no passado e determinar quais os escritores que anunciam as correntes atuais”. (Idem, 294). Talvez o mais ardoroso debate daqueles dias não tenha se dado no campo técnico da crítica literária, mas, antes, tenha avançado pelas linhas das discussões políticas. Muito se discutiu das questões nacionais, o que fez com que o debate da crítica migrasse da área mais cultural e literária para questões como: a literatura deve ser nacional(ista) ou não, e a partir de que tempo ou de que autorias podemos definir a literatura brasileira como verdadeiramente nacional? Talvez esse nível de discussão tenha enfraquecido durante tempos a real importância da crítica literária e as contribuições mais amplas que poderia ter trazido. Mas devemos entender que o momento era difícil e com pouco favorecimento a discussões amplas, conforme já se mencionou anteriormente. Lajolo e Zilberman, por sua vez, recorrem aos textos de alguns dos autores românticos brasileiros com a finalidade de interpretar em sua forma de contato 81 quase didática uma necessidade de condução factual do leitor diante do texto. Com isso, mostra-se que os autores românticos tinham a clara noção de escrever para que um público ainda frágil em sua leitura tivesse acesso às suas linhas. Sugerem que, para o autor daqueles tempos, parecia haver a clara noção de que o público ainda era pouco capaz de compreender a sua obra. Como forma de atestar esse princípio, elas afirmam ainda que era muito comum os autores românticos simularem reações dos leitores, aprovando-as em seguida no texto, como se o leitor mesmo ainda não fosse capaz de chegar a tais conclusões por si próprio. Para realçar a importância desse momento da leitura no Brasil, voltamos a lembrar dos episódios da instalação da Biblioteca Real no Rio de Janeiro a partir das doações de D. João quando de sua estada como monarca sediado nesta cidade. Num período de escassos meios literários, essa foi uma fórmula bastante eficaz de fincar raízes num solo ainda pouco semeado como era o do Brasil oitocentista. Destacavam-se, em certo tempo, duas bibliotecas públicas no Rio de Janeiro: uma era a Imperial e a outra ficava no Convento de São Bento. Interessante relato no deixou Thomas Ewbank que, de visita ao Rio entre 1844 e 1845, declara: “A Biblioteca [Nacional] honra a cidade. Cada pessoa decentemente vestida, branca ou preta, tem acesso livre à consulta e se quiser fazer extratos, ser-lhe-ão fornecidos penas, tinta e papel” (Lajolo e Zilberman, 1996, 180). É difícil percebermos de hoje como teria sido essa percepção de Ewbank de um acesso tão liberado naqueles tempos. Como esperar, por exemplo, que um negro de então estivesse “decentemente vestido” ou, mesmo, querendo “fazer extratos?” Os negros eram, via 82 de regra, escravos, logo, mal vestidos e analfabetos (ou semi-alfabetizados). No entanto, mesmo assim, pela investigação desse autor, parece que havia a liberdade de fato; talvez só não houvesse condições de fazê-la valer amplamente. 4.3. O pensamento brasileiro no início do século XX De onde nos viria a idéia de conjugar os eventos dos anos difíceis, embora prolíficos, do século XIX e seus desdobramentos a partir daí? Ora, os eventos que conjugam os fatos das diversas expressões humanas de nossa sociedade parecem apontar para dois pontos que, se bem observados, parecem se estabelecer como paradoxais. Por um lado, o homem que se cria moderno e pós-liberal muitas vezes parece ser o mesmo homem que passava a buscar pressupostos e parâmetros havia pouco perdidos pela humanização social. Cremos que esse imbricado procedimento tinha a ver com a definição de parâmetros perdidos em meados do século anterior e que, naquele início de século, precisavam ser restabelecidos, mesmo que com novas roupagens. O homem precisava se encontrar novamente, ou, quem sabe, pela primeira vez. Em 1920, por exemplo, o mundo ocidental ainda respirava freneticamente todas as descobertas e alterações sugeridas pelos novos movimentos de fins do século XIX. Na política não foi diferente. Na cultura, muito menos ainda. No Brasil, como em muitos outros países semelhantes ao nosso, houve tempo em que política e cultura pareciam não haver se divorciado. 83 Política e cultura andaram de mãos dadas por muito tempo no Brasil. Muitas ações e realizações no campo das artes e do academicismo tiveram influência aberta das estruturas políticas que regiam os momentos pelos quais o Brasil atravessava. Muitos dos nossos maiores autores e intelectuais foram funcionários públicos e conviveram harmonicamente oscilando entre o servir burocraticamente a sociedade e a servir com suas reflexões e sua arte. A influência ia desde uma obra de arte, fosse uma tela, até um conglomerado arquitetônico que denunciava os traços dos governos ou do Estado mesmo. Através do universo político, a intelectualidade no Brasil se viu muito próxima do poder público. Como não poderia deixar de ser, as formatações políticas também influenciaram em muito as contratações e convocações para cargos de confiança. Muitos outros intelectuais eram simplesmente funcionários públicos de carreira que prestavam seus serviços à comunidade em geral. Muito apropriadamente, o que se viu no Brasil foi uma forte influência políticopartidária na formação do intelectual no Brasil, até por considerarmos real a proximidade com o poder público (Miceli, 1979, 2). Isso tornava, de certa maneira, intelectualidade e classe política um mesmo e coeso público-alvo de diversas ações públicas e de imprensa especializada. “A Revista do Brasil se propunha a suscitar uma tomada de consciência por parte da nova geração de intelectuais e políticos da oligarquia” (Idem, 3). A Revista do Brasil era uma publicação que tinha alvos comerciais que conviviam harmoniosamente com vultos expressivos da intelectualidade brasileira e disputava o espaço comercial com diversas outras 84 publicações de porte expressivo. Chegou mesmo a se criar uma editora com o mesmo nome que teve em seu catálogo os maiores expoentes da intelectualidade da época. Surge uma característica que se tornou praxe no Brasil, exatamente no período em que se buscava estabelecer uma identidade intelectual e política. As questões da Política começam a ser permeadas pelas questões das diversas políticas, inclusive as de grupos e partidos que compunham as bases governistas. A intelectualidade que servia publicamente foi tocada por essas questões em maior ou menor grau. O chamado grupo do Estado (em referência ao jornal Estado de São Paulo) buscava desanimar seus concorrentes fazendo “constantes referências às épocas em que os órgãos de imprensa ‘viviam dos partidos e para os partidos e cada um para o seu’, em denunciar a venalidade, o suborno e as subvenções oficiais de que dependia a imprensa” (Idem, 5). As ações públicas e as ações intelectuais tinham grande visibilidade da mídia da época e dela sofriam muitas influências. Aquele mesmo ser humano tendo em algo seu Eu desvalorizado e fragmentado, buscava por esses meios fazer com que se tornasse menos vulnerável a sua instabilidade. Umas das práticas foi a criação e o fortalecimento de grupos de interesse, hermeticamente estabelecidos, a fim de propiciar aos seus integrantes uma idéia de hegemonia, força e integralidade. Círculos do poder e do saber se formaram nas principais rodas de debate no Brasil. Para Miceli, a ascensão no Brasil era cada vez mais dificultada, pois havia um verdadeiro protetorado interno nesses grupos de afinidade e cuidados mútuos. 85 Após os anos 30, nota-se com mais freqüência a aproximação cada vez maior entre intelectuais e classes de domínio de poder. Uma das ações que denunciam esse processo é a mudança mais notada de partidos políticos, deixando em segundo plano os objetivos do pragmatismo partidário e dando maior ênfase à continuidade dos laços políticos estabelecidos. Muitos intelectuais da época desempenharam papel de liderança e direção em órgãos públicos proeminentes, devendo, para manter estável uma carreira política, se manterem fiéis muito mais a legendas pessoais e condicionais que a princípios de ética partidária. Continuamos a ver que enquanto esses intelectuais “assumiam diversas tarefas políticas e ideológicas, também se lançaram a fundo nas lutas do campo literário, no intuito de impor os princípios e modelos estéticos da arte ‘moderna’” (Idem, 12-13). Nesse mesmo ambiente de políticas de enlaces, um outro fenômeno que muito influenciou a formação intelectual na época foi o modelo de ensino. A formação religiosa era a alternativa única para as pessoas oriundas de classes sociais menos favorecidas, as quais não tinham meios para suprir seu crescer acadêmico por outras formas. Esse modelo lhes passava formação intelectual humanista e clássica, o que fazia delas pessoas mais preparadas para o exercício de futuras profissões, geralmente aquelas ligadas ao serviço público. Muitas famílias deixavam para os primogênitos a seqüência dos negócios familiares, enquanto que os demais filhos eram endereçados a estudos acadêmicos. Ao final, em geral eles findavam por pleitear cargos de direção em atividades políticas ou acadêmicas. 86 Isso começou a mudar com a proliferação de instituições de ensino superior livres, fossem particulares ou públicas, que “afetou diretamente as reservas do mercado de postos até então monopolizadas pelos detentores de diplomas concedidos pelos cursos superiores oficiais” (Idem, 38). Diferentemente de tempos anteriores, o diploma superior não mais representava apenas elo distintivo entre pessoas, mas agora poderia também representar possibilidade real de colocação e disputa de níveis diferentes de influência. Todas essas caracterizações e peculiaridades ainda sofreram um outro movimento de tensão, que deixava a disputa pela consolidação desse Eu em questão. A disputa entre as questões da matéria, que pareciam mais afeitas aos novos rumos da humanidade após o Fin-de-Siècle, e as questões do espírito, paradoxalmente retornando com muito vigor em alguns círculos. Para Miceli, o que realmente estava em jogo continuava a ser a estruturação e manutenção/ retomada de poder. No campo político que geria a vida brasileira, voltamos um pouco no tempo, quando da formação das estruturas que serviram de base ao período de virada de século. O Brasil era terra em que os movimentos internacionais definiam muita coisa, mesmo em âmbito interno, o que, como sabemos, continua sendo realidade até nossos dias. Na ótica de Schwarz, a passagem do Brasil de uma condição de colônia para uma nação independente não cumpriu todos os seus papéis, tudo aquilo que poderia se esperar, principalmente porque a bandeira levantada era a do Liberalismo, empunhada abertamente pelos partidários dos movimentos de independência nacional. 87 O modelo adotado não atingiu os problemas mais profundos, passando-nos de uma dependência formal de um pólo colonizador a uma dependência econômica em relação a outros pólos colonizadores, desta feita com a utilização dos processos sócio-econômicos. O autor mostra que a realidade que atingia o modus vivendi de uma terra explorada continuava exatamente da mesma forma, citando exemplos bem conhecidos sobre como isso se deu: enquanto a estrutura se transforma na esfera local e na internacional, a base prática continua estagnada e sem qualquer alteração que merecesse destaque. Isso representa fazer uma diferenciação entre pessoas e entre possibilidades em seu tempo e em tempos futuros. É sabido que a emancipação política do Brasil, embora integrasse a transição para a nova ordem do capital, teve caráter conservador. As conquistas liberais da Independência alteravam o processo político de cúpula e redefiniam as relações estrangeiras, mas não chegavam ao complexo sócio-econômico gerado pela exploração colonial, que ficava intacto, como que devendo uma revolução. Noutras palavras: o senhor e o escravo, o latifúndio e os dependentes, o tráfico negreiro e a monocultura de exportação permaneciam iguais, em contexto local e mundial transformado. (Schwarz, 1990, 36). No âmbito mais intelectual do processo, as mesmas pessoas e os mesmos círculos de poder que davam continuidade aos processos arraigados na sociedade e na política brasileira eram obrigadas a pensar com mentes que olhassem com certo cuidado os novos movimentos, o que representa dizer que, de alguma forma, repensava-se a condição sócio-econômica brasileira. No tocante às idéias caíam em descrédito as justificações que a colonização e o Absolutismo haviam criado, substituídas agora pelas perspectivas oitocentistas do estado nacional, do trabalho livre, da liberdade de expressão, da igualdade perante a lei etc., incompatíveis com as outras, em particular com a dominação pessoal direta. No plano econômico-político afirmava-se o sistema internacional 88 polarizado pela industrialização capitalista, especialmente inglesa, cujo lado liberal pautaria a consciência do século. O que significava nestas circunstâncias a persistência do sistema produtivo montado no período anterior? (Idem, 36). A vida nacional vivia um processo de ambivalência, numa interessante sugestão à própria fragmentação do Eu experimentada pelo indivíduo no Fin-de-Siècle. E essa característica, em que o avançado e retrógrado parecem conviver amigavelmente, o Brasil consolidou muitas de suas estruturas de ação, o que persiste até hoje, assim como persistiam os modelos de produção montados com base numa sociedade servil e escravocrata, mesmo encharcados por idéias liberais. O Brasil, sendo nação independente, era, no entanto, nação criminosa. A situação em que se via o país era muito peculiar, senão estranha, como narra Schwarz, que demonstra que, diante de uma estrutura legal, mesmo do ponto de vista internacional, o Brasil vivia na contravenção às leis e acordos vigentes à época: A face drástica da situação encontrava-se no tráfico negreiro, proscrito como “pirataria” em Direito Internacional, condenado do ponto de vista religioso, moral, político e econômico, privado dos antigos patrocínios governamentais, transformado enfim num imenso empreendimento ilícito e - como a que entretanto se prendia o andamento normal dos negócios brasileiros, que ficavam de estruturalmente associados à contravenção. (Idem, 39). Como conseqüência, e por inferência, deduzimos que os movimentos na sociedade, nas artes e nas esferas do poder tinham também como alvos as descobertas de princípios de centralização ideológica e de explicação do mundo ao redor dos homens da época. Além disso, tais pessoas, que tinham seu interior desvalorizado e fragmentado a partir de pressupostos que as esvaziavam de suas crenças, tinham 89 gerado um estado de coisas, inclusive no poder público, que agora precisava encontrar novos rumos. Daí a importância de que, nesse momento, a intelectualidade brasileira devia de fato ter se aproximado dessas esferas da sociedade. A industrialização iniciada na Europa de forma acelerada e sem retorno, cujos efeitos se faziam perceber também na arte e na cultura em geral, parecia apontar uma alternativa possível ao futuro humano. Isso foi mais bem percebido no período entre as duas grandes guerras mundiais que assolaram a Europa, exatamente o mesmo palco de todas as novas e intensas reflexões da humanidade. No entanto, como temos visto, todo esse mover remonta ao período intermediário do século XIX, época de formação de novos pressupostos que agora eram consolidados. No Brasil, tudo isso era refletido de maneira direta, principalmente pelas peculiares relações de dependência que tínhamos - e continuamos a ter - de centros europeus e, posteriormente, do norte-americano. 4.4. Conceitos gerais e brasileiros de literatura Antes de explicar os porquês da obra de sua autoria que aborda exatamente a formação da literatura no Brasil, Antonio Candido trata de resgatar alguns pressupostos de sua percepção da literatura enquanto sistema. Interessante notar que desde esse primeiro instante, o autor pretende abarcar vários itens que vez por outra são desprezados ou menosprezados nas análises, tais como o objeto livro, o mercado editorial, os autores, os editores, enfim, a completa organização de um sistema 90 encadeado e que é retroalimentado a partir de sua própria necessidade de progredir e crescer. Quando faz a sua introdução ao tema dessa maneira, Candido se despe de evocações mais clássicas e bem consolidadas no meio da crítica, que geralmente vê a literatura não como um todo, mas em partes de seu interesse particular ou de específico estudo. Em geral, tem-se o conteúdo, mas rejeita-se tocar em pormenores, como o meio pelo qual o conteúdo é difundido e perpetuado, bem como aqueles que trabalham para a construção desse meio. Quebrar paradigmas parece ser uma forma de estudar divertidamente de Candido. Nesta sua obra, ele o faz com maestria e bom humor, mesmo sendo um humor por vezes irônico, algo mais penetrante que o humor machadiano, já que Candido, como crítico, dá nomes e aponta problemas; e o faz de modo direto. A formação de todo um sistema não é algo que se dê de uma hora a outra, mas carece de todo um processual histórico, sociológico, metodológico e de inúmeras facetas de valor imponderável no todo. Por isso é tão importante a declaração de Candido sobre os elementos da literatura de forma tão abrangente. Diferentemente da maioria, ele, de modo precoce, defende esse status macro da literatura. A partir de sua apropriação de todos os elementos como sendo importantes, Candido aponta para o ângulo maior de seu trabalho, que é a discussão do que vem a ser literatura brasileira e trabalha sob a perspectiva de que ela seja, de fato, literatura nacional brasileira somente a partir do Arcadismo e do Romantismo. Encaixam-se a partir daí tanto Machado quanto, posteriormente, Lobato. 91 Para Candido, havia um vazio a ser preenchido na literatura brasileira e este só o foi a partir do período que nos interessa, ou seja, o mesmo que temos para observar quanto a muitos modelos de formação no Brasil. A literatura também enfrentava um vazio de postulados, como ele mesmo assegura ainda em seu texto de introdução à obra em destaque. Mais adiante veremos como a questão de poder e política andou de mãos dadas com a intelectualidade brasileira ao longo de décadas a fio, mostrando, talvez, que todas as frentes estavam envolvidas com a configuração elementar de um Brasil que buscava sua identidade por ser nação recente e jovem, tanto como o homem daquele tempo, que tinha havia pouco se descoberto sem seus parâmetros clássicos. Diz ele sobre a atividade literária: Depois da Independência o pendor se acentuou, levando a considerar a atividade literária como parte do esforço de construção do país livre, em cumprimento a um programa, bem cedo estabelecido, que visava à diferenciação e particularização dos temas e modos de exprimi-los. Isto explica a importância atribuída, neste livro, à “tomada de consciência” dos autores quanto ao seu papel, e à intenção mais ou menos declarada de escrever para a sua terra, mesmo quando não a descreviam. (Candido, 2000, Vol I, 26). E: Ao mesmo tempo, esta imaturidade, por vezes provinciana, deu à literatura sentido histórico e excepcional poder comunicativo, tornando-a língua geral duma sociedade à busca de autoconhecimento. Sempre que se particularizou, como manifestação afetiva e descrição local, adquiriu, para nós, a expressividade que estabelece comunicação entre autores e leitores, sem a qual a arte não passa de experimentação dos recursos técnicos. (Idem, 27). A sociedade e a literatura estavam, ambas, em processo de descoberta de quem eram de fato. Muitas coisas que ocorriam eram experimentais e iam em direção a uma 92 busca por identidade e complementação das necessidades básicas de (auto)conhecimento. Assim como Sennett fala de classe política num contexto mais amplo e sociológico, Miceli nos faz interessante estudo sobre como, no Brasil, a intelectualidade e essa classe estiveram intimamente ligadas em período de consolidação mútua. É Candido mesmo quem nos faz pensar sobre como a literatura é de fato a demonstração artística daquilo que se passa na sociedade. A construção de uma consciência nacional, o levantar e apresentar continuado dos fatos que montam a estrutura temporal de uma sociedade e tudo o que compõe a formatação sociológica e antropológica dos indivíduos parece ser de fato função de suma importância da literatura. A industrialização iniciada na Europa de forma acelerada e sem retorno, cujos efeitos se faziam perceber também na arte e na cultura em geral, parecia apontar uma alternativa possível ao futuro humano. Isso foi mais bem percebido no período entre as duas grandes guerras mundiais que assolaram a Europa, exatamente o mesmo palco de todas as novas e intensas reflexões da humanidade. No entanto, como temos visto, todo esse mover remonta ao período intermediário do século XIX, época de formação de novos pressupostos que agora eram consolidados. A literatura e as artes em geral são expressões do ser humano. Neste caso, um ser humano cujas emoções haviam sido tocadas no seu âmago. Dilacerado por dentro, ele não conseguia mais se relacionar por fora, o que tornou viável um só caminho, o qual o levaria a posições inesperadas para ele anteriormente. Incapacitado de se 93 resolver por dentro, o homem agora via-se incapacitado também para agir através de seus afetos para fora de si mesmo. Sobre isso, diz-nos Lins: No plano das emoções, também, o dilaceramento parece inevitável. Espera-se muito e se obtém pouco das relações afetivas. Tanta expectativa depositada sobre o outro resulta em decepção. Teria sido melhor, talvez, permanecer no território das interdições do século XVIII do que descobrir que a liberdade de ações não se mostra suficiente para saciar os desejos. (Lins, 2006, 160). Fazendo uma ligação entre as últimas descrições de Candido e Lins e as demais observações gerais deste trabalho, percebemos que a fragmentação percebida dentro do homem correspondia a algo semelhante do lado de fora do mesmo. O tempo, as sensações, as emoções, as crenças, os pressupostos e até a verdade eram coisas agora relativas, passíveis de se constatarem diferentes, inclusive em planos semelhantes, mesmo quando aparentemente não havia razão para não ser uma das verdades igual à outra. As sensações e sentimentos que permeavam o homem de todo esse período o levavam cada vez mais próximo do se sentir vazio, quase nada, sem amparo, de futuro incerto. O que está por se evidenciar neste caso é a idéia concreta, se assim a podemos nominar, de que ele de fato encontra-se sob intensa fragmentação interior. Voltando a Lins, o que ele nos mostra é que vivemos um verdadeiro dilema interior que tem um claro espelhamento exterior. Sós com relação a nós mesmos, tornamonos solitários também nas metrópoles e nas concentrações humanas, deixando de conviver naturalmente entre semelhantes para sobreviver entre dessemelhantes. Mais uma vez, em suas palavras: 94 Caímos num dilema: por um lado, evitando os contatos pessoais (os estranhos insinuando-se como arredios e ameaçadores ou derrotados), agindo como dessemelhantes; e, por outro, no programa da uniformização, evitamos nos destacar no nível do gosto e das opiniões ou dos hábitos. Sublinhe-se que a identidade colocada em termos absolutos por um sistema de fundamentos comerciais, na sociedade de massa, não condiz com identidade individual, o reconhecimento do eu por si mesmo. (Idem, 173). Em seu Tratado do desespero, Sören Kierkegaard escreve sobre o Eu fragmentado, que ele chama de Eu-dividido como a doença mortal do desespero em que a vida é vivida em estado de separação e de solidão. Para ele, é a partir do desespero que se pode entender a esquizofrenia. O existente, só se sente existir se a sua existência for confirmada pelo outro. Ele nos dá o seu rigoroso retrato em O Diário de um sedutor, definindo-o como aquele que pede repetidamente um estímulo à realidade e que se sente desarmado quando o perde, pois só é sensível ao prazer que cada situação lhe traz. 95 Capítulo 5 - Machado e Lobato. Vidas e expressões Até este ponto muito foi dito a fim de fortalecer a idéia de que ambos os autores de interesse, Machado de Assis e Monteiro Lobato, cada um a seu tempo e ambos em suas obras, foram influenciados pelos eventos específicos do Fin-de-Siècle e tiveram a exposição do Eu fragmentado em seus contos. As idéias que cercavam os autores foram, conscientemente ou não, externadas através de seus textos. Entendemos que autores são expoentes de seu tempo e verdadeiras testemunhas daquilo que viram e experimentaram. É interessante notarmos a distância entre eles em paralelo aos fatos comuns que os cercam. Procedências, famílias, genética e tempo: tudo pode ter sido diferente entre eles, mas o fato é que são testemunhas e herdeiros de um mesmo processo. Um viveu o ápice das transformações e o outro viveu o tempo em que elas se consolidaram na sociedade. Foram pessoas marcantes e marcadas em seu tempo. E também se propuseram a marcar os que viriam depois deles através de suas obras. Nesta parte do estudo, migramos para a leitura mais objetiva da figura do Eu fragmentado que aparece em alguns contos escolhidos de Machado e Lobato. O pano de fundo da sociedade, da Filosofia, das artes e da geopolítica já foi apresentado, servindo de base de compreensão de que há de fato representações desse Eu fragmentado, desse homem sem mais verdades tão absolutas. 96 É importante também para este momento destacar trechos de suas falas, relacionando seus ditos numa literatura ficcional com os episódios extraídos da trama real que viveram individual e coletivamente. Mais uma vez, creditamos o papel de testemunha de seu tempo aos autores das literaturas nacionais, o que é confirmado pela opinião de Schwarz, citando o próprio Machado, ao dizer que “numa fórmula célebre, que lhe serviria de programa de trabalho, Machado afirma que o escritor pode ser ‘o homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço’”. (Schwarz, 1990, 9). 5.1. Relação entre Machado e Lobato Machado de Assis e Monteiro Lobato, bem o sabemos, não foram contemporâneos na maior parte do tempo. Viveram parte de suas vidas num mesmo período, mas em fases diferentes, tanto no que tange à evolução e maturidade pessoal, quanto a suas produções intelectuais. Machado nasceu em 1839 e morreu em 1908. Quando Lobato nasceu, em 1882, Machado já estava entrando na meia idade, com seus 43 anos. A morte de Lobato se deu em 1948, 40 anos após a morte de Machado. A primeira publicação de Lobato deu-se em 1914, ou seja, começou a publicar sistematicamente cerca de seis anos após a morte de Machado. Machado viveu as transformações do Fin-de-Siècle e todas as questões que vimos até aqui. Não apenas as viveu como testemunha de seu tempo, mas como intelectual que percebia as mudanças e esperava por ver o que se daria a partir delas. Não viu 97 tudo, mas o que viu e experimentou foi o suficiente para uma das mais mordazes manifestações literárias de nossa literatura nacional. A ética, a politicagem e as fragilidades relacionais seriam meros casos do dia a dia, não fossem os dramas que o homem vivia com a fragmentação do seu Eu. Lobato foi da geração que não testemunhou as transformações diretas do Fin-deSiècle da mesma forma que Machado. Mas ele foi da geração que viu a consolidação dos traços desse fenômeno quando o mesmo se tornou o ponto comum entre nós. A derrocada do valor humano, a baixa estima por si e pelo outro e a luta exacerbada por benefícios e ganhos - nem sempre obtidos de maneira ética - são apenas alguns dos elementos que compuseram o que Lobato vivenciou desde seus primeiros anos. E, ao se tornar maduro, foi o que percebeu na sociedade e o que deixou gravado em seus contos. Ambos eram brasileiros, filhos de brasileiros. Foram bem educados, cada um segundo as posses dos seus tutores, mas é fato que tinham nível intelectual muito bom para seu tempo. Machado fez parte de uma leva de gente que tinha poucas opções na vida nacional: o homem para prosperar poderia ser sacerdote, militar, político ou funcionário público. Em todas as possibilidades, inegavelmente havia uma produção de favores em larga escala, mas essas eram as regras de seus dias. Infelizmente, parte delas continua vigorando nos porões brasileiros em muitas áreas da vida, principalmente aquelas que envolvem interesses públicos diretos. Machado, portanto, segundo consta, entregou-se ao jornalismo e ao funcionalismo público, dos quais obteve sustento para si e sua família. 98 Mais tarde, com algumas mudanças tendo se operado na sociedade brasileira, Lobato já chegou a ver uma outra realidade que, se não anulava a anterior, pelo menos passava a lhe apresentar outras opções como paralelas. O empreendedorismo estava se fixando de maneira mais ostensiva no Brasil, deixando para pessoas comuns, e não mais apenas para alguém como o Barão de Mauá, a possibilidade de investimentos em diversas áreas de produção e serviços e a conseqüente colheita dos frutos desse investimento mais tarde. Bastava que dispusessem de recursos e boas relações. Lobato estava inserido nesse contexto, e assim o fez. Foi homem de negócios, inaugurando fases, como o mercado editorial e a prospecção petrolífera em terras brasileiras. Era homem que imaginava, acreditava e, de certa forma, estava disposto a arriscar até obter sucesso em suas empreitadas. 5.2. Machado, seu mundo e suas percepções do homem fragmentado “- Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro...” (Machado, In: O espelho). É de Alfredo Bosi (2006) um interessante texto cuja centralidade é a obra de Machado a partir da re-leitura de outros críticos. Embora trate essencialmente de 99 romance, principalmente o Memórias póstumas de Brás Cubas, as análises nos auxiliam a entender determinados pontos que eram comuns ao ser de Machado e que, portanto, se faziam refletir em sua obra como um todo. Na terceira parte do livro, cujo título é Raymundo Faoro leitor de Machado, encontramos que, o Brasil, à época em que Machado desenvolveu sua percepção social e política, era ainda o de transição do Segundo Império para a República, com fortes traços de influência liberal, exatamente a mesma força que se via em descenso conceitual em muitas partes da Europa, pelo menos no que tange ao modelo clássico. A política, até pouco mais da metade do século XIX, era muito conservadora e baseada em “influências”, as quais em geral orbitavam em torno de fazendeiros ricos, do clero, da magistratura e do exército. Na literatura, os textos nativistas de Alencar pareciam corroborar a escravidão que dominava o cenário operacional, enquanto outros autores já ousavam defender a libertação de homens escravizados, mesmo sob riscos financeiros para as classes dominantes, o que era nítida influência através da política liberal. O autor relaciona os eventos da política brasileira de então como uma espécie de corruptela do modelo liberal, taxando-o de excludente numa posição em que ele, na verdade, tentava se impor. Uma espécie de contra-senso, o que ele alcunha de modelo confuso e fragmentário e que interessava diretamente à burguesia daqueles tempos. Concluindo esse pensamento, o autor crê que, de fato, o Brasil viveu dois liberalismos, um econômico e outro político. Machado, por ser contemporâneo a ambos, viveu as crises de identidade que a sociedade experimentou enquanto ambos 100 os modelos denominados de igual forma coexistiram. A inconsistência ideológica do poder no Brasil, particularmente dos defensores do liberalismo mais pragmático, parece ter sido a causa maior para que Machado se mostrasse em movimento intelectual e político, indo da militância liberal dos primeiros tempos de sua vida pública a uma quase indiferença irônica sobre as questões da política nacional. Por que Machado maduro, pessoalmente simpático aos novos liberais, acabou distanciando-se de uns e de outros? Por que não propôs, nem excogitou, nem ao menos entreviu o caminho de uma alternativa, uma terceira via? O fato a ser interpretado é que Machado de Assis, enquanto cronista (sua face visível de homem público), não militou em nenhuma das novas correntes nem sustentou nostalgicamente as antigas, porque, a certa altura, passou a descrer de toda e qualquer ideologia que pretendesse transformar o “barro humano” e a sociedade que nele se fundara. O seu desencanto profundo tê-lo-ia impedido de engajar-se animosamente na luta reformista dos companheiros de juventude e dos que os sucederam. Monarquista e liberal, em senso lato, e abertamente simpático aos abolicionistas, mas estranhamente cético, preferiu fixar o lado sombrio ou apenas risível dos que usavam o velho nome “liberal” para defender seus direitos à propriedade e aos cargos públicos. (Bosi, 2006, 114). E, é exatamente nessa encruzilhada de idéias e pareceres de Machado, que mais uma vez nos vêm à lembrança muitos de seus contos. Imagens fortuitas ou recorrentes, como luzes, espelhos, insanidades e alterações constantes da capacidade perceptiva de muitos personagens machadianos parecem querer apontar para o reflexo pessoal do autor, sendo que ele mesmo talvez se percebesse fragmentado interiormente. É por isso que Bosi coloca que Apesar da remissão última à Natureza, a construção machadiana das personagens não será naturalista, em senso estrito, pois o mesmo desejo “natural” enfrenta o desafio das normas sociais. Daí a necessidade da máscara, do negaceio, da hipocrisia e, às vezes, da mentira. (Idem, 123). 101 Além disso, O moralismo, universalizando os desejos e os interesses do eu (ainda que os considere, na origem, detestáveis, enquanto vaidade e ambição), irá, no limite, compreender a sede de igualdade que a nova sociedade liberal-individualista desperta no agregado e no independente. (Idem, 124). É esse Machado fragmentado de certa maneira e optante por se manter fiel, antes a um processo de sua mores interna que aos apelos de elementos externos, que é visto como alguém moralista, no sentido pejorativo do termo, mas que, de fato o era, no bom sentido da palavra. Sua moral era baseada em pressupostos que ele parece haver vislumbrado e defendido aberta ou sutilmente através de seus textos. A fragmentação exposta de e por Machado em seus contos está refletida em suas atitudes, inclusive as de seu discurso literário. Schwarz (1989) trata de considerar que ele apresenta traços de volubilidade quando se apresenta como o narrador de suas obras. Sobre Machado, diz ele que Este não permanece igual a si mesmo por mais de um curto parágrafo, ou melhor, muda de opinião, de assunto ou de estilo quase que a cada frase. Há um elemento de complacência nesta disposição mercurial, bem como no virtuosismo retórico de que ela depende para se realizar. São viravoltas sobre viravoltas, que invariavelmente se acompanham de uma satisfação de amor-próprio para o narrador. Esta tem a ver com o desejo de atenção que sublinhávamos atrás, ao analisar o texto, desejo decisivo para o nosso raciocínio. Uma vez que este movimento subordina tudo o mais, pode-se ver nele o princípio formal do livro. (Schwarz, 1989, 118-119). O espelho, por exemplo, lembra claramente esse Machado em ebulição, querendo falar de suas próprias metáforas quando expunha as metáforas da língua que utilizava como veículo de idéias. As duas almas desse conto podem nos remeter a 102 um autor que gritava que as almas com as quais se relacionava em seu tempo eram ambivalentes, incertas, voláteis e talvez inconstantes, tudo rumando a uma fragmentação interior que, talvez ainda, fosse a expressão de si próprio na sombra dos personagens modelados por Machado. “A lição última do conto é a vitória indefectível do papel social que estrutura o eu”. (Bosi, 2006, 125). E segue dizendo que “‘O espelho’ lembra, ainda uma vez, a fragilidade da alma, sendo mais um dramático exemplo da precariedade da pessoa humana”. (Idem). O Brasil, embora ainda em fase insípida de seu desenvolvimento social, havia recebido por parte do Império inegável estímulo às ciências e às artes. Aquilo que se fazia novo e recém-descoberto na Europa era abertamente aceito por aqui. Na literatura, por exemplo, algo que chegava ao Brasil nos tempos de Machado com maior força era o personagem com fortes traços psicológicos, fazendo coro ao que a própria realidade humana apresentava naqueles dias. O Brasil de Machado era aquele mesmo anteriormente citado, que vivia a ambivalência de ser uma nação com base liberal, ao mesmo tempo em que insistia em não abrir mão de sua realidade escravista. Nesse ponto, e com suas idéias que migravam ao liberalismo e ao pensamento relativamente independente, Machado deixava por vezes transparecer seus pensamentos de ordem social de maneira mais aberta. No entanto, nos textos de Machado isso não necessariamente representa falar diretamente ao leitor, mas apenas registrar sua posição, à sua maneira, como nos diz Schwarz: 103 A presença de escravismo é determinante, conforme tratei de mostrar, embora as figuras de escravo sejam raras. Umas poucas anedotas esparsas bastam para fixar as perspectivas essenciais. A parcimônia nas alusões, calculada para repercutir, é enfática à sua maneira: um recurso caro ao o humorismo machadiano, mais amigo da insinuação venenosa que da denúncia. (Schwarz, 1990, 106). Continua o autor mostrando que Machado teve condições de expor seu pensamento, não poupando nenhum dos lados, nem mesmo o do ex-escravo que por qualquer razão se tornava brutal após sua alforria, que, de forma geral, tenderia a ser desconsiderado pelas circunstâncias anteriores de sua vida. Em conclusão, as cenas onde entram escravos condenam a ordem social do país, fixam traços de caráter perniciosos, em que é patente a impregnação escravista da classe alta, e fazem ver o cativo segundo esquemas de psicologia universalista, estritamente os mesmos da humanidade em geral. Para apreciar o valor crítico deste universalismo, basta considerar que à sua luz as brutalidades de um escravo forro não são menos complexas e espirituais que os divinos caprichos de uma senhora elegante, contrariamente ao que pensariam o preconceito comum, ou também o racismo científico então em voga. (Idem, 107). É o mesmo autor quem nos indica, em outra de suas obras, a continuidade desse raciocínio, asseverando mais uma vez “que a independência brasileira não foi uma revolução” (Schwarz, 1989, 42), em clara alusão ao estado de coisas que vivíamos naqueles tempos. Explica isso dizendo que a única coisa que de fato mudou foram “o relacionamento externo e a reorganização administrativa no topo” (Idem), deixando dessa forma intacta “a estrutura econômico-social criada pela exploração colonial (...), agora em benefício das classes dominantes locais” (Idem, 42-43). O aspecto fragmentado da sociedade brasileira dos tempos de Machado é exposto, assim, numa literatura pungente que não deixou de marcar seus dias. 104 Nesse mesmo pressuposto, e fazendo referência aos mesmos problemas e questões em outras considerações suas, Schwarz segue seus comentários, citando como notável o texto O abolicionismo de Joaquim Nabuco, datado de 1883. A inconstância e as dificuldades de ter idéias referenciadas em algo equilibrado são nitidamente percebidas no trecho selecionado. Vejo como algo interessante que a diversidade de atitudes e a fragmentação de pressupostos, de certa forma, são concordes com o período em que nos encontrávamos em termos de posicionamento humano. Por essa razão, chega a ser aceitável a instabilidade e a fragmentação social que Machado notava e transcrevia, a mesma observada por outros pensadores. Uma forma paradoxal de se ver a realidade de então: criticamos hoje a sociedade brasileira da mesma forma que criticamos a ambigüidade das relações humanas consigo mesmo e as interpessoais, mas não devemos nos esquecer que tanto as relações quanto as sociedades são formadas por pessoas, exatamente as pessoas que se encontravam fragmentadas no período Fin-de-Siècle. Por isso, talvez, as notadas dificuldades da “situação ideológica e moral” dos dirigentes do Brasil. Embora sejam conhecidas, as dificuldades da situação ideológica e moral da camada dirigente brasileira, e especialmente da Coroa, não costumam ser levadas em muita conta. O assunto pode ser visto no livro notável de Joaquim Nabuco sobre O abolicionismo (1883). Obrigados pelo seu papel de representação externa, esses dirigentes liberais de um país de economia escrava diariamente tinham de pedir para a sua pátria e para si mesmos o reconhecimento do “mundo civilizado”, cujos princípios elementares, entretanto, dada a realidade social, eles tinham de infringir com igual constância. (Schwarz, 1989, 124). 105 Finalizando neste ponto as considerações de Schwarz sobre questões dessa natureza, temos a sua opinião de que o período e os processos eram, de fato, assimétricos, instáveis e, como era de esperar para a época, fragmentados em seus pressupostos. De um lado, tráfico negreiro, latifúndio, escravidão e mandonismo, um complexo de relações com regra própria, firmado durante a Colônia e ao qual o universalismo da civilização burguesa não chegava; de outro, sendo posto em xeque pelo primeiro, mas pondo-o em xeque também, a Lei (igual para todos), a separação entre o público e privado, as liberdades civis, o parlamento, o patriotismo, o romântico etc. A convivência familiar e estabilizada entre estas concepções em princípio incompatíveis esteve no centro da inquietação ideológico-moral do Brasil oitocentista. A uns, a herança colonial parecia um resíduo que logo seria superado pela marcha do progresso. Outros viam nela o país autêntico, a ser preservado contra imitações absurdas. Outros ainda desejavam harmonizar progresso e trabalho escravo, para não abrir mão de nenhum dos dois, e outros mais consideravam que esta conciliação já existia e era desmoralizante. (Idem, 43). Esse Machado que viveu intensamente o seu tempo tornou-se mais conhecido por causa de suas grandes obras em formato de romance, como Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1889). Porém pode-se dizer que, por seu estilo, Machado permanece essencialmente um criador de contos, mesmo em pleno desenvolvimento de seus romances, o que o torna inserido tanto na tradição do conto francês quanto na geração de autores nacionais cujos primeiros modelos talvez fossem vultos como José de Alencar e Joaquim Manuel de Macedo. Muitos textos de Machado, entre os quais O alienista, poderiam ser tidos por romances pequenos ou por contos grandes, dadas as características híbridas de sua escrita e de seu volume. Assim, podemos afirmar que ganham força os contos de Machado de Assis, tão conhecidos e apreciados em toda parte. Contos fluminenses 106 (1869), Histórias da meia-noite (1873), Papéis avulsos (1877-82), Histórias sem data (1884), Várias histórias (1896), Páginas recolhidas (1899) e Relíquias da casa velha (1906) que nos mostram, sobretudo, a evolução do Machado narrador. Machado vive intensamente as convulsões culturais de seu tempo, com todas as experiências intelectuais daqueles tempos de transição de um Romantismo mais clássico a um Realismo quase nu. No Brasil, assim como na Europa, isso é característico da segunda metade do século XIX, exatamente o tempo em que Machado estava em franca produção intelectual. Daí percebermos a posição crítica ou a menção sistemática à religiosidade, ao evolucionismo, ao naturalismo e ao cientificismo encontrados nos textos de Machado em toda a sua vasta produção. Com tais pressupostos, torna-se possível fazer uma leitura integral dos contos de Machado de Assis. O primeiro e mais significativo para uma leitura de cunho psicanalítico no qual podemos detectar traços de um Eu fragmentado é, sem dúvida, O alienista. Os paradoxos e instabilidades humanas, além da crítica aos modelos psicanalíticos que começavam a vigorar no Fin-de-Siècle, talvez por não ter havido tempo suficiente para deles se perceber a real valia. Logo as primeiras letras do texto mostram as inconseqüências que queria registrar, quando nos diz: As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da monarquia. 107 — A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo. (Machado, 2004, 253). Ora, o que era a Itaguaí daqueles dias senão uma vila provinciana, mas que representasse o “universo”, disputando as atenções com todo o resto do Brasil, com Portugal e Espanha? Nem mesmo o rei tinha sido capaz de demover de Bacamarte a idéia de se meter de volta a Itaguaí, numa alusão possível ao claustro que antes abrigava a religião e que, então, passava a abrigar a ciência. Sendo este seu “emprego único”, entendem-se ao longo do conto as motivações para o descuido com as demais pessoas e com a própria família, na tradicional e utópica postura de cientista asséptico de seu tempo. O alienista aparece exatamente quando surge a dúvida sobre a infalibilidade da ciência. Surge no momento em que cresce a incerteza sobre ser a ciência a única resposta ansiada pela humanidade para suas questões interiores, bem em meio à transição do Positivismo Fin-de-Siècle ao Neo-Realismo. O conto é malicioso, mordaz, irônico, satírico como, aliás, costumava se mostrar Machado. Ele retoma de maneira inquietante o velho tema da loucura, mas, desta vez, tendo como pano de fundo a realidade que todos viviam, que era a sistematização de uma doutrina científica que estudava de maneira diferente a mente humana: em paralelo, Machado parece propor a reescritura da Psiquiatria. É possível que Machado de Assis tivesse conhecimento dos muitos estudos e das publicações notadas em todo o século XIX a respeito dos avanços da Psiquiatria desde o século XVII. Machado nos propõe uma leitura às avessas dos conceitos de 108 normalidade e insanidade. Os habitantes de Itaguaí estão diante da estranha situação de verem os loucos tidos por sãos e os normais tidos por insanos. Foi adotada, sem debate, uma postura autorizando o alienista a agasalhar na Casa Verde as pessoas que se achassem no gozo do perfeito equilíbrio das faculdades mentais. E porque a experiência da câmara tivesse sido dolorosa, estabeleceu ela a cláusula de que a autorização era provisória, limitada a um ano, para o fim de ser experimentada a nova teoria psicológica, podendo a câmara, antes mesmo daquele prazo mandar fechar a Casa Verde, se a isso fosse aconselhada por motivos de ordem pública. (Idem, 282). Os habitantes da vila ficaram realmente assombrados, a ponto de se revoltarem, quando descobriram que a todos os loucos da Casa Verde seria dada liberdade e que ali seriam alojadas as pessoas tidas por normais. Ao ler o conto, até hoje em dia o leitor costuma ficar extasiado diante da análise feita por Machado de Assis sobre o conceito de normalidade. E a própria Casa Verde, conceituada como o templo da sanidade, sofria com as oscilações da verdade relativa e da loucura. Imagine-se a situação dos vereadores; urgia obstar ao ajuntamento, à rebelião, à luta, ao sangue. Para acrescentar ao mal, um dos vereadores que apoiara o presidente, ouvindo agora a denominação dada pelo barbeiro à Casa Verde, — "Bastilha da razão humana", — achou-a tão elegante, que mudou de parecer. Disse que entendia de bom aviso decretar alguma medida que reduzisse a Casa Verde; e porque o presidente, indignado, manifestasse em termos enérgicos o seu pasmo, o vereador fez esta reflexão: — Nada tenho que ver com a ciência; mas se tantos homens em quem supomos juízo, são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista? (Idem, 270). Machado utiliza-se de um realismo duro e mordaz, cheio de tons de bom humor, mas que deixam vir à tona aquilo que ele de fato cria ser a verdade dos fatos que o cercavam. De fato, Machado “incluía em sua narrativa um elemento de pessimismo 109 e tensão social, que não chega a ser dominante, mas ao qual está ligada a sua parcela realista” (Schwarz, 1992, 92). A loucura é um excelente modo de demonstrar a fragmentação conceitual e social a partir do aspecto interior, psicológico. Percebemos que não é somente no conto O alienista que ele se utiliza da parábola da loucura, mas também o vemos com o mesmo artifício em outros contos muito importantes, como A segunda vida, O enfermeiro e A causa secreta. Quando retornamos a uma nova leitura de O espelho, percebemos que Machado propositadamente quer falar ao interior desse indivíduo cujo Eu está fragmentado. A começar de seu subtítulo Esboço de uma nova teoria da alma humana, Machado nos deixa a todos pensativos e com olhares para dentro de nós mesmos ao enunciar a multiplicidade ou fragmentação daquilo que carregamos dentro de nós e que costumamos entender como nosso Eu. — Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... Espantemse à vontade; podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo: não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira: as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. Shylock, por exemplo. A alma exterior daquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer. “Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração”. Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele. Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma... — Não? 110 — Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela minha parte, conheço uma senhora, — na verdade, gentilíssima, — que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. (Machado, 2004, 346). Se entendermos que o autor comumente se recria de forma constante em suas obras a partir de seus personagens, poderemos ver um Machado de fato pensativo sobre seu tempo, sobre o Fin-de-Siècle que avassaladoramente invadia a vida privada de todo o Ocidente. Ele próprio, epiléptico, talvez se visse como um sujeito inconstante, cujo equilíbrio fosse abruptamente interrompido sem qualquer controle pessoal pelo distúrbio que, por séculos a fio na Europa, se entendia como algo psíquico ou espiritual. A dualidade entre equilíbrio e desequilíbrio parece voltar com força ao relermos que a Casa Verde era essa “bastilha da razão humana” (Idem, 270) quando a vemos exatamente de modo inverso. Lembrando o que diz Lins, “cumpre amparar os sonhos numa base, e a base oferecida pela cultura pressupõe a suspeita de uma essência suposta, emprestada ao terreno das coisas e das idéias na confusão da alma dividida” (Lins, 2006, 52), vemos que a essência, a alma do homem, parece de fato estar confusa em toda sua extensão. Fala nesse momento não necessariamente de literatura, mas nela tocando enquanto expressão dessa mesma confusa e fragmentada alma humana. Dois termos centralizam o trecho destacado em seguida: inquietação e confusão. As revoluções citadas como exemplos antecessores das convulsões interiores, por atingirem 111 também as mentes e os costumes, são o movimento de implantação de algo profundo que se reflete no próprio indivíduo. O estado da alma dos personagens refletia no texto aquilo que era o tornado comum entre as pessoas daquele Fin-deSiècle. Ainda refletindo sobre O espelho, podemos notar um volume considerável de elementos que nos remetem às incertezas do Eu, à fragmentação do ser interior. A natureza da alma é o ponto de desequilíbrio e discordância entre os amigos reunidos para o debate. Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em seus meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos. Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão tornou-se difícil, senão impossível, pela multiplicidade das questões que se deduziram do tronco principal e um pouco, talvez, pela inconsistência dos pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião, — uma conjetura, ao menos. — Nem conjetura, nem opinião, redargüiu ele; uma ou outra pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas... (Machado, 2004, 346). A relativização conceitual aparece espontaneamente no texto, quando Machado, ou melhor, seu personagem, sugere que as opiniões podem divergir porque a verdade pode divergir. Isso ele o afirma ao dizer “cada cabeça; cada sentença”. As incertezas do Eu continuam dando seus ares a partir da inconsistência dos argumentos dos amigos. Sob o pretexto de não provocar celeumas, Jacobina nega-se a demonstrar sua real opinião, ao que ele cede, contanto que não tenha oposições. Em outras palavras, ele demonstraria sua verdade, a partir do gesto de omissão das demais 112 verdades. Sua opinião não poderia ser, portanto, contraposta por outras opiniões. A relativização apregoada exteriormente é refutada em gestos mais simples, demonstrando a instabilidade e a inconsistência do Eu do homem ali exposto. A necessidade de aceitar opiniões divergentes era uma espécie de pacto social e relacional, mas o momento de verificação da real aceitação disso seria revestido de negações desse mesmo pacto. O texto não nos leva a quais certezas um Eu assim fragmentado poderia chegar, mas sugere que os pactos possíveis o deixariam tão estável quanto possível aos olhos de todos, mesmo nas instabilidades reais vividas pelo Eu interior. Ele segue sua saga por denunciar interior do homem com perspicácia e perícia. Há um trecho do conto em destaque que salienta enfaticamente o ponto central desta discussão, ou seja, a fragmentação do Eu. Um homem estonteado entre duas realidades possíveis: uma exterior, do Eu que vivia do lado de fora, e outra interior, a do Eu que vivia dentro dele. Mas ele confessa não ter controle sobre as manifestações desses dois Eus que ele chama de almas. O total descontrole, que se abatia sobre ele a partir do sono, era, na verdade, o momento em que o Eu não fragmentado, coeso, onírico e esperançoso, surgia diante dele. Mas não havia como acessá-lo, se estava além de suas condições normais e humanas entrar nos sonhos enquanto dormia. Da mesma forma, e paradoxalmente ao primeiro fato, ele acessava facilmente os episódios físicos e naturais, exatamente os que ele gostaria de não vivenciar, exatamente os que eram fragmentados. Vivia, portanto, em constante 113 dissabor, experimentando o que não gostaria e apenas sonhando com o que gostaria de experimentar de fato. Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico. Dormindo, era outra coisa. O sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse fenômeno: — o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único —porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar... Não tornava. Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se descobria algum sinal de regresso. (Machado, 2004, 349-350). Os exemplos mais graves dessa relação fragmentada surgem quando percebemos sua denúncia contra a situação que vivia. O que o fazia viver era a verdade extraída dos sonhos, da noite escura que lhe aclarava a mente. Ao amanhecer, quando o dia se fazia claro, escureciam-se nele as idéias e as circunstâncias interiores se embaçavam. A alma interior, o Eu que ele gostaria de viver, perdia a batalha mais uma vez contra a alma exterior, o Eu que ele não gostaria de ser nem viver. Essa constante alternância, a rotina de uma vida, demonstrava a profunda fragmentação daquele Eu. E ele, acordado da realidade que não era a sua verdade objetiva, punhase a procurar por toda parte a sua verdade subjetiva, mas sem mais a encontrar até novo momento de sono aliviador, de fuga da realidade prática de sua vida. Fatos assim, que discutiam a interioridade humana, apareceram ao longo das narrativas machadianas. Isso, de certa forma, conectava o homem de seu tempo aos seus sentimentos. Haveria grande chance de perceber a si mesmo em textos nos 114 quais o leitor pudesse ver a representação de sensações que ele também tinha, como se estivesse se olhando num espelho, mesmo que não pudesse notar isso de maneira tão clara. A falta de referenciais também era algo intensificado pelos eventos do Fin-deSiècle, conforme já tivemos oportunidade de analisar. Um Eu sem referenciais parecia ser um problema para D. Camila. Ela simplesmente não sabia o melhor caminho a seguir por falta de exemplos aos quais se apegar. Não tinha absolutos para seguir. A inconstância de seus pensamentos se refletia nos seus passos práticos. Um dia, poucos meses depois, apontou no horizonte o primeiro namorado. D. Camila pensara vagamente nessa calamidade, sem encará-la, sem aparelhar-se para a defesa. Quando menos esperava, achou um pretendente à porta. Interrogou a filha; descobriu-lhe um alvoroço indefinível, a inclinação dos vinte anos, e ficou prostrada. Casá-la era o menos; mas, se os seres são como as águas da Escritura, que não voltam mais, é porque atrás deles vêm outros, como atrás das águas outras águas; e, para definir essas ondas sucessivas é que os homens inventaram este nome de netos. D. Camila viu iminente o primeiro neto, e determinou adiá-lo. Está claro que não formulou a resolução, como não formulara a idéia do perigo. A alma entende-se a si mesma; uma sensação vale um raciocínio. As que ela teve foram rápidas, obscuras, no mais íntimo do seu ser, donde não as extraiu para não ser obrigada a encará-las. (Machado, 2004, 425). Casar ou não a filha não tinha qualquer relação com os sentimentos ou com as posições almejadas pela moça. Ela preferia pensar em si mesma, extraindo de dentro de si as razões para fazer isto ou aquilo, mas sem qualquer forma de ponderação de lógica. Os motivos para não permitir o casamento da filha passavam pelos conceitos pessoais que ela construía das pessoas que, segundo esses mesmos conceitos, são “como as águas (...) que não voltam mais” que andam atrás de outras pessoas, “como atrás das águas outras águas”. As qualidades do líquido mais importante para 115 nós mostram a razão do pensamento de D. Camila: fluido e sem gosto. Anteviu um futuro em que o casamento daria a seqüência lógica do neto e este, quem sabe, simbolizava enfado e cansaço. Era melhor não o ter a ter mais trabalho. Como ela fez isso? Como tomou as decisões? Machado nos diz no conto que D. Camila usou de suas sensações que valiam como raciocínio ao invés de pensar e formular as resoluções que tomaria a partir daquele momento. Ela não arrazoou, simplesmente se permitiu ser levada pelos sentimentos e pelos impulsos. Os seus lhe serviram, mas não os de sua filha, pois mesmo ao lhe descobrir “um alvoroço indefinível”, preferiu não atender aos seus anseios. Mais uma vez, temos os princípios de um Eu fragmentado trabalhando no ser humano com as ferramentas de um indivíduo confuso em si mesmo e em seus sentimentos, além de ter uma visível ausência de referenciais aos quais poderia se apegar para a seqüência de suas atitudes. Por muitos episódios durante sua longa jornada como contista, Machado toca fundo nas dúvidas e questionamentos da alma humana. Quando lemos o conto em Uns braços, vemos um Machado que joga com a instabilidade dos conceitos conforme o texto progride. Os princípios parecem se alterar sem que os personagens entendam exatamente quais seriam seus papéis ou suas reações. As boas e as más reações causam a mesma estranheza nos personagens centrais. D. Severina tratava-o desde alguns dias com benignidade. A rudeza da voz parecia acabada, e havia mais do que brandura havia desvelo e carinho. Um dia recomendava-lhe que não apanhasse ar, outro que não bebesse água fria depois do café quente, conselhos, lembranças, cuidados de amiga e mãe, que lhe lançaram na alma ainda maior inquietação e confusão. Inácio chegou ao extremo de 116 confiança de rir um dia à mesa, cousa que jamais fizera; e o solicitador não o tratou mal dessa vez, porque era ele que contava um caso engraçado, e ninguém pune a outro pelo aplauso que recebe. Foi então que D. Severina viu que a boca do mocinho, graciosa estando calada, não o era menos quando ria. (Machado, 2004, 494). Quais seriam as possibilidades reais de vida equilibrada de alguém cuja reação frente ao mais simples bem pessoal, como o cuidado amoroso de sua própria mãe, lhe causasse conturbação? Há uma aparente indicação de que o personagem buscava a sua felicidade, a calma e a paz, mesmo em meio a seu desespero pessoal. Como fazê-lo passa a ser a grande incógnita deixada para que cada um resolva seu próprio dilema com base no individualismo que se firmava. Agora, como já vimos anteriormente, cabe a cada um absorver a fragmentação de seu Eu e sobreviver a ela da melhor maneira possível. Machado não trata apenas de questões tão interiores e particulares quanto as da citação anterior. O caráter humano, por exemplo, que mesmo brotando no interior dá seus ares nas relações exteriores. A preocupação com o caráter aparece em diversos momentos na obra machadiana, o que deixa evidente que ele de fato se importava com os movimentos sociais que se ambientavam ao seu redor. Em Luiz Soares, num pequeno trecho destacado, Machado levanta um homem cujo caráter passa por desconcertado e instável, sem equilíbrio e sem afeto nem por si mesmo. Os leitores terão visto que, apesar de certa argúcia da parte de Soares, não tinha ele a perfeita compreensão das cousas, e por outro lado o seu caráter era indeciso e vário. Hesitara em casar com Adelaide quando o tio lhe falou nisso, quando era certo que viria a obter mais tarde a fortuna do major. Dizia então que não tinha vocação de papagaio. A situação agora era a mesma; aceitava uma fortuna mediante uma 117 prisão. É verdade que se esta resolução era contrária à primeira, podia ter por causa o cansaço que lhe ia produzindo a vida que levava. Além de que, desta vez, a riqueza não se fazia esperar; era entregue logo depois do consórcio. (Idem, 56). Precisamos ter o cuidado permanente de não confundirmos as reações humanas naturais de todos os tempos com aquelas que queremos identificar como sendo resultantes do momento de fragmentação em que se via mergulhado o homem. A fragmentação interior sempre existiu, mas após o Fin-de-Siècle ela se tornou desvelada e reconhecida de todos nós. A instabilidade de caráter do ser humano, ou sua corrosão, para utilizar o mesmo termo que Sennett (2005) utiliza no título de sua obra, não passa ao largo no trecho acima. Luiz Soares parecia não ter perfeita compreensão dos fatos que o cercavam, mas, alie-se a isso o fato de ele ter um caráter “indeciso e vário”. Machado nos aponta duas circunstâncias que ele parece diferenciar e distanciar: a circunstância natural, cuja culpa não deve recair sobre Luiz Soares, já que ele não teve como optar por sua condição intelectual. Mas ele parece nos indicar um outro caminho, esse sim lançado na conta de Luiz Soares: aquele de seu caráter, no qual ele seria co-gestor de sua formação. Separa, portanto, a capacidade intelectual inata do que é fruto de formação posterior. E o separa, literalmente, pela expressão “e por outro lado”, o que deixa os gestos isolados entre si. Luiz Soares era arguto, mas não conseguiu perceber que se tornava alguém fragmentado e deformado. Machado de Assis era um mestre em dizer nas entrelinhas o que gostaria de dizer abertamente, o que lhe rende até hoje multidões de estudos e pesquisas. Quando Roberto Schwarz fala de Machado em seu Um mestre na periferia do capitalismo, 118 ele faz análise não de contos, mas de romances machadianos. No entanto, não é possível dissociar o autor de um e outro gênero, restando muitos fatos de semelhança entre suas diversas obras. Parece então interessante lembrar que o pesquisador diz que: Em linha análoga, observe-se que a vivacidade das frases depende sem exceção da presença de algum pecadilho, que lhes dá o picante. Contar absurdos como se fossem verdade, desconsiderar o homem comum, sacrificar o eterno à novidade, desacatar a religião etc., são condutas ditas erradas, de que Brás faz praça enquanto tais. Como não julgar, ainda que para desculpá-lo? Nem o leitor atrabiliário, simpático aos abusos da personagem, esquece a norma que está sendo desrespeitada. (Schwarz, 1991, 23). O Braz citado e estudado por Schwarz faz coro com Luiz Soares ao pilhar sobre instituições consagradas e tidas por colunatas sociais. O caráter de muitos dos personagens de Machado era sofrível, mas algo que nem sempre merecesse castigo imediato. Aliás, propor algo assim tão severo seria contrário às perspectivas de relativização conceitual que se instalava após o Fin-de-Siècle. Há um outro conto de Machado, cujo título já nos motiva a perceber as oscilações de caráter e equilíbrio que serão não apenas tratadas, mas enfaticamente sugeridas como sendo corretas ao longo do texto. Trata-se de A Igreja do diabo, do qual um interessante trecho é destacado: Um casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no absurdo e no contraditório. Pois não há mulheres que 119 vendem os cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrado assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente. (Machado, 2004, 372-373). Notamos uma divertida narrativa na qual o Diabo, dentro de uma lógica estabelecida, sugere que o incorreto é, de fato, o correto. Um silogismo se estabelece quando ele interpreta as questões de moralidade que somente podem ser interpretadas à luz de uma noção diferenciada de moral e de caráter, como seria o do próprio Diabo. Há pontos que certamente nos apontam o caminho de discussão de um Eu absolutamente fragmentado em seus parâmetros e em suas concepções. O Diabo percorre um caminho que vai do exterior, dos bens materiais possuídos licitamente, ao bem interior, que também é lícito. Ambos, de certa forma, são exeqüíveis, mas de maneiras diferentes. O bem material é ponderável objetivamente, enquanto o bem interior só o é subjetivamente. O que o Diabo faz é sugerir que o senso de pertencimento de ambos desconstrói a noção de bem e mal subjacentes. Em outras palavras, o direito de posse é maior que a razão moral por trás de tudo. Com isso, o Eu fragmentado por inúmeras noções relativas e conceitos arbitrados por valores também relativizadores passa a suportar pressões antes não sofridas. A proposta dada acima é a da inversão de valores, o que somente pode ser aceito abertamente por um Eu sem pressupostos claros e bem definidos. 120 O Diabo mistura determinadas ações iniciadas apenas para o bem mas que rumaram para o negócio a outras puramente comerciais, mas que em todos os casos, não apresentavam ilegalidades, mas apenas pequenas nuances de interpretação moral, estas já absorvidas completamente pela sociedade dos dias de Machado, ao que tudo indica. Vejamos: vender cabelo é o mesmo que vender sangue para transfusão. Parece que sim, se não nos afigurar que o comércio de sangue para salvar a vida é menos moral que simplesmente doá-lo, já que o maior bem em jogo é a vida que periga findar. É a mesma linha de raciocínio quando de sua proposta para que a opinião, o voto, a palavra, a fé e a própria consciência fossem livremente manuseadas e comercializadas, segundo os interesses e as necessidades do momento. A sociedade fragmentada parece ter absorvido bem a argumentação diabólica, principalmente algumas classes específicas de dirigentes e políticos. Um texto interessante, que de certa forma traça um paralelo com o de Machado, é Cartas de um diabo ao seu aprendiz (Lewis, 2005), composto de uma série de cartas de Fitafuso, um diabo velho e sagaz, em seus trabalhos de orientação a um outro diabo, seu sobrinho mais jovem, chamado Vermebile, ainda aprendendo melhor o seu ofício. Fitafuso se dispõe a dar ao seu sobrinho instruções e conselhos sobre como executar bem seus afazeres, haja vista a pouca experiência que o jovem tinha então. A completa inversão dos valores éticos, morais e espirituais nos mostra muita semelhança com a linha de raciocínio do conto de Machado. A diferença é que no exemplo de Lewis, por mais que se ache graça, o autor escolheu ambos os personagens sendo não humanos, trazendo-nos a percepção de 121 que seria possível uma correspondência dessa natureza a partir de quem eram os personagens centrais do texto. Machado, por seu turno, alia um ser não humano que influencia diretamente um ser humano com sua perspicácia e motivações dúbias. Ao final do trecho em destaque, o Diabo sugere que o homem dissimule seus atos, não por serem indevidos ou amorais, mas porque a sociedade seria preconceituosa. Ou seja, o bem é algo relativo e a oposição ao desvio é tida como preconceito. Daí a sugestão de agir com hipocrisia, o que lhe facultaria lucrar duplamente com seus gestos. 5.3. A leitura de mundo e do Eu fragmentado de Lobato “É honra penetrar na falange gorda dos carrapatos orçamentívoros que pacientemente devoram o país: é negocio lambiscar ao termo de cada mês um ordenado fixo, tendo arrumadinha, no futuro, a cama fofa da aposentadoria”. (Lobato, In: Um suplício moderno). Monteiro Lobato é personagem ímpar em nossa sociedade literária, com produção intensa e farta atuação no cenário financeiro, econômico e político. Destaca-se 122 também como um dos gigantes de um Brasil que escreve, ao lado de muitos outros, inclusive do próprio Machado de Assis. Lobato via o Brasil como uma terra que poderia se tornar próspera, embora fosse mal trabalhada. Foi defensor ferrenho das coisas nacionais, mesmo com um ponto de vista essencialmente americanizado. Sua opção era pela luta de mercado, com ênfase no trabalho e no risco badalados pelas sociedades capitalistas. É bem verdade que a ética do capitalismo de seus dias era muito diferente do que vemos hoje. Como pontos de separação do Capitalismo dos tempos de Lobato e dos atuais, poderíamos destacar, de acordo com Sennett (2005), a perda dos laços de confiança, o abalo do sentido de longo prazo, a troca da liderança focada pelas redes de prestação de serviço interligadas através de projetos e a diferente percepção de tempo individual. A continuada fragmentação do Eu parece ter sido fator de importante ação para esse fenômeno, como nos faz refletir o pensamento do autor ao dizer que “o distanciamento e a cooperatividade superficial são uma blindagem melhor para lidar com as atuais realidades que o comportamento baseado em valores de lealdade e serviço”. (Sennett, 2005, 25). Ora, isso equivale a dizer que o Eu precisa se defender de ofensas constantes e que a melhor defesa é a superficialidade nas relações e não mais os bons valores possíveis do íntimo do ser humano. Em Lobato vemos a evolução de um cidadão de país subdesenvolvido, mas gerado em berço abastado, com excelentes traços culturais para seu tempo, com possibilidades de perpetuar a herança da família. No entanto, os tempos eram de difícil economia, com o período entre as duas guerras mundiais modificando 123 totalmente as realidades econômicas em toda parte, o que se refletiu de maneira intensa também no Brasil. Era um Brasil que começava a abandonar sua política apenas agrícola e iniciava sua carreira industrial, que tinha sonhos e líderes carismáticos, embora questionáveis com relação à liberdade e à legalidade de seus atos. Um Brasil que via perspectivas por um lado e barreiras de impedimento por outro, como era o caso da energia não renovável, o petróleo, que foi uma de suas mais intensas bandeiras como cidadão e empreendedor. Num cenário como esse, Lobato é escritor ao mesmo tempo que é empresário, articulador político, empreendedor financeiro, investidor de capitais, industrial, etc. É nesse contexto múltiplo que ele chega com sua linha de textos do Sítio do Picapau Amarelo, depois de já haver estreado como contista. Muito do que ele passa em seus textos é a entrelinha do que ele quis deixar para as análises futuras, de suas gerações ou das nossas. Ele denunciava um Brasil quase feudal e gritava por uma possibilidade de mudança que ele, se não a via na prática, parecia pelo menos sonhar com ela. Lobato teve sua expressão literária cunhada na primeira metade do século XX. No entanto, nota-se em sua obra uma indiscutível iniciativa por demonstrar seu apreço pela cosmovisão de fins do século XIX, expondo sistematicamente os pontos de vista atinentes ao período imediatamente anterior na cronologia de sua própria vida. Aquilo que representasse evolução comportamental não era necessariamente bem aceito por Lobato, como é o caso de sua manifestação pública contra as obras de 124 Anita Malfatti numa exposição que, de maneira histórica, antecedeu a Semana de Arte Moderna de 1922. Vide Anexo 1, à página 159, para a leitura da íntegra do texto Paranóia ou Mistificação? A expressão de Lobato era a de um homem racionalista e pragmático, para a qual muito colaboravam os pontos de vista do cientificismo do qual também era partidário e defensor. Na opinião de Neto (2004), ao analisar tais pontos no autor, temos que: Lobato era um assíduo leitor e admirador confesso dos ideólogos e propagandistas da “forma mentis” objetivante do século XIX. Isto contribuiu para que ele mantivesse sua postura cientificista, em meio a um mundo fragmentado pela visão relativista da arte moderna e da filosofia da primeira metade do presente século. (Idem, 3). Paradoxalmente a algumas posições tidas por retrógradas, Lobato demonstrou ao longo de sua vida uma incansável busca pelo novo, pela tomada de decisões que levam as pessoas e as instituições a alcançarem novos patamares de sucesso. A própria expressão intelectual de Lobato o comprova quando ele se atira à literatura voltada a crianças e adolescentes em tempos em que isso era incomum no Brasil. Além disso, ele foi altamente competitivo nos processos comerciais de vendagem de sua produção, o que até nossos dias continua sendo fator de dificuldade ou impedimento das novas gerações de autores nacionais. Monteiro Lobato foi inovador em diversos aspectos. Diferindo da maioria dos demais autores, ele não foi apenas autor de sucesso ainda em seu tempo, mas foi profissional do livro, editor e dono de editora. 125 A que realidade Lobato teria se prendido ao escrever seus contos ainda no início do século XX, logo após o auge do Fin-de-Siècle? Haveria uma verdade à qual se prender? A impressão que nos fica é que, enquanto Machado se despedia de certezas que estavam por ser abandonadas, Lobato já não as tinha, e delas mantinha apenas as sombras que serviriam de novos batentes para uma outra realidade, essa sim em formação ainda. Muitas das declarações, claras ou sutis, soam como o estar preso a conceitos passados, como a questão da inferioridade de determinadas raças, a minoração de classes sociais menos favorecidas, a idéia de orbitar em torno de nações mais desenvolvidas como fator de crescimento econômico, e outros procedimentos comuns à época. Por outro lado, apresenta a visão quase paternalista e de piedade com relação aos pobres, aos negros ex-escravos, aos caipiras e aos menos esclarecidos. Para tais posicionamentos, certamente o pensamento cientificista contribuiu bastante. O tom era um misto de compaixão, resignação, compreensão e ironia sarcástica quanto ao destino dos infelizes. Mesmo assim, quando lemos Lobato hoje em dia, temos sentimento que aflora, temos sentimento de repulsa por certos conceitos e temos algo remexendo em nós por causa dos miseráveis que ele descreveu e que, infelizmente, ainda nos cercam. Lins (2006) num trecho em que fala não de um início de século XX, mas no qual trata de questões atinentes ao que convencionamos denominar de pós-modernidade, ou seja, de fins do século XX e início do XXI, diz-nos algo que parece ter sido vivenciado pelo próprio Lobato em suas atitudes. O individualismo e a 126 fragmentação, quando comparamos as posturas assumidas por Lobato e algumas falas de Lins, parecem fugir de um período determinado e aplicarem-se a quaisquer momentos das relações humanas. Num panorama de dominações embutidas nos costumes, postas de súbito na condição de escolha da cidadania, o patrão e empregado se assemelham, quase idênticos, apesar das diferenças de posição antes consideradas como fundamentais. Opressor e oprimido, colonizador e colonizado, tudo se mistura, sabendo-se que os comportamentos se repetem e se reproduzem por processos de imitação. Para vencê-los, cumpriria proceder a uma reviravolta no caráter das atitudes. (Idem, 211). Ora, esse trecho de Lins parece nos remeter diretamente às questões de dubiedade expostas por Lobato, frutos possíveis da fragmentação experimentada pelo homem do Fin-de-Siècle. Poderíamos afirmar que se trata de analisar Lobato e parte de seus contos, se não soubéssemos que se trata de analisar outro ponto da História. Por qual razão se dá a semelhança? Provavelmente o que Lobato experimentava em termos de instabilidade e fragmentação é o que nós, na pós-modernidade, ainda estamos a experimentar. Nossas dúvidas, conceitos e pré-conceitos ainda são muito parecidos. Em todo o tempo parece haver antagonismo explícito em Lobato. Quando fala de religião e virtude, seu exemplo é degradador. Quando trata de bondade, podemos ver a prática da maldade. E assim segue o texto em muitos casos, o que pode ser reflexo da percepção que tinha o autor sobre um ser humano que se encontrava em frangalhos por dentro, sem estabilidade, com seu Eu fragmentado por completo. Esse ser humano, talvez externo ao livro na figura do leitor, via-se sempre na 127 iminente busca pela identidade. Enquanto dizia uma coisa e fazia outra, buscava algo e indicava o avesso. Bons exemplos disso encontramos em Negrinha. Logo de início, surge algo diferente: o narrador posta-se ao lado de Negrinha, a desvalida do conto. Ela apresentava todos os “problemas” que o autor quis apontar na sociedade que o cercava: era negra, mulher, criança, pobre, ex-escrava e órfã. Trata da psicologia de Negrinha com dura descrição, quase pondo o leitor como co-algoz por não haver interferido na situação. A protagonista é o retrato do sofrimento feito gente, alguém que nasceu para ser infeliz e para morrer sem marcar a vida, apenas para alimentar os vermes da terra no dia de sua morte. O vai-e-vem de informações demonstra as contradições da fragmentação interior dos seres sociais. Dona Inácia era “excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu” (Lobato, 1982, 3). Segundo o padre que constantemente a visitava para conversas, ela, além de caridosa e piedosa, era “dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral” (Idem), o que a tornava, entendamos, uma quase-santa nesta terra. No entanto, ela, que assim aparentava e assim se via, era a grande tortura da pobre menina. Tratava-a por adjetivos os mais variados, um pior que o outro, como peste, diabo, epidemia, mosca morta, pinto gorado, coisa ruim, trapo. Além, é claro, de infligir à menina toda sorte de torturas física, sempre constantes, com cascudos, surras ou pondo-lhe ovo cozido saído da fervura na pequena boca que impedida de gritar a sua dor. 128 A mulher, tratada sempre de excelente e bondosa, que tinha sido senhora de escravos no tempo da escravidão, ressentia-se de não mais poder tê-los oficialmente, mas o texto nos mostra que os serviçais, na verdade, continuavam em grande medida, a desempenhar o mesmo papel de antes da abolição. Não os tinha oficialmente, mas tinha-os na prática, como sabemos ter sido a sorte de milhares de ex-escravos no Brasil que, após a sua libertação, tornaram-se serviçais semiescravizados de seus ex-donos, agora feitos senhores absolutos de suas vidas. Lobato assim narra o episódio: O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Inocente derivativo: - Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados… Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade. Cocres: mão fechada com raiva e nós de dedos que cantam no coco do paciente. Puxões de orelha: o torcido, de despegar a concha (bom! bom! gostoso de dar) e a duas mãos, o sacudido. A gama inteira de beliscões: do miudinho, com a ponta da agulha, à torcida do umbigo, equivalente ao puxão de orelha. A esfregadela: roda de tapas, cascudos, pontapés e safanões a uma - divertidíssimo! A vara de marmelo, flexível, cortante: para “doer fino” nada melhor! Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá de vez em quando vinha um castigo maior para desobstruir o fígado e matar as saudades do bom tempo. (Lobato, 1982, 5). A mesma D. Inácia que era o alvo dos maiores louvores do padre - leia-se de uma religiosidade apenas aparente - era a que oferecia diariamente o suplício à pobre menina. A dicotomia, esse Eu incomum que funcionava como dois Eus diferentes, um público diante do padre e outro privado em sua intimidade do lar, são demonstrativos da fragmentação em que se via mergulhada a senhora em questão. 129 Um Eu tinha deixado o azorrague que antes estava em mãos; outro Eu jamais tinha perdido a gana alimentada na alma. Os Eus conviviam e se retroalimentavam com soluções que os mantivessem vivos mesmo que não abertamente em todos os pontos almejados, mesmo que fosse com coisa miúda, com meros níqueis. Ela sabia os valores de sua fé e os valores da lei. Mas o que ela queria mesmo era a sensação do bem estar advindo da liberação do seu estado de agitação. Isso era alcançado com pelo menos um remédio que ela conhecia bem: o castigo alheio, mesmo a troco de nada. “Como alivia a gente uma boa rodada de cocres bem fincados”. Com essa sentença vemos que o remédio de um era o mal do outro. Há a completa descrição do receituário para se sentir melhor, com cascudos, beliscões, puxões de orelha, varadas e esfregadelas: tudo aplicado como bom remédio ao dispor da senhora da casa. E Negrinha, nas palavras de Lobato, era “conservada em casa como remédio para os frenesis”. Ela era, assim, o meio de desafogo dos problemas pessoais de D. Inácia. Do outro lado havia outra pessoa, ainda em formação, mas sem qualquer chance de superar seu destino, numa quase evocação à resignação que finalmente a levaria à morte tranqüila de um passarinho triste. Negrinha não tinha nem nome nem alma. Pelo menos era o que ela cria, ou pensava crer, até que em dado momento percebeu que tinha sim uma alma dentro de si. Foi em meio a brincadeiras permitidas com as sobrinhas da patroa que a visitavam, após ficar deslumbrada com as brincadeiras de boneca, que “Negrinha, coisa humana, percebeu (…) que tinha uma alma”. Ela ainda “sentiu-se elevada à altura de ente humano”. E veio o perigo que, para ela foi 130 fatal, pois descobriu empiricamente sua fragmentação interior e jamais, depois disso, foi a mesma pessoa: “Cessara de ser coisa - e doravante ser-lhe-ia impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava!” (Idem, 8). Os paradoxos não param nem mesmo na descrição da morte de Negrinha, que “morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Jamais, entretanto, ninguém morreu com maior beleza”. (Idem, 8-9). O texto deixa marcas no leitor, que fica com sentimento de pesar ao lê-lo e, certamente, não haverá de o esquecer. Mas o conto finda por dizer o oposto, dando a entender que apenas más lembranças ficaram da pobre menina. Depois, vala comum. A terra papou com indiferença aquela carnezinha de terceira - uma miséria, trinta quilos mal pesados… E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica, na memória das meninas ricas. - “Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca?” Outra de saudade, no nó dos dedos de dona Inácia. - “Como era boa para um cocre!…” (Idem, 9). Interessante em Negrinha que Lobato trabalha a questão da fragmentação do Eu dos personagens de maneira intensa, mesmo em meio ao humor negro do conto. D. Inácia tinha tudo para ser equilibrada e bondosa, dadas a formação e a posição que tinha em casa e na sociedade. Mas era insensível, relativizando suas posturas de acordo com o objeto de seus afetos. Fica evidente que não se posicionava da mesma forma com relação a todos os seres humanos, sendo uma com Negrinha e outra, oposta à primeira, com suas netas. D. Inácia, com tudo ao seu dispor, parece ter vivido sem alma todo o tempo. 131 Negrinha era o contrário. Não sabia ao certo se era gente ou coisa. Não tinha nenhuma razão para ter sentimentos bons, mas desenvolveu lampejos de candura e amor que são expressos ao longo do texto. Poderia ser iracunda, mas era calma e quieta, mesmo que a poder de surras e maus-tratos. Negrinha, sofrendo toda a curta vida e não tendo condições aparentes para isso, descobriu-se como alguém, não mais como algo, que tinha alma dentro de si. Dava-se o caminho inverso ao da patroa, fechando o círculo de demonstrativos da ambigüidade e duplicidade relacionados a um Eu fragmentado. Se D. Inácia era boa para os de fora e má para os serviçais e tinha alma que ansiava por maldade, Negrinha era boa por dentro e mesmo para os da casa, mas tida por má por sua senhora. O dentro e o fora da experiência humana mais uma vez se mostravam paradoxais. Que idéia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata-choca, pinto gorado, mosca-morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa-ruim, lixo — não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam. Tempo houve em que foi a bubônica. A epidemia andava na berra, como a grande novidade, e Negrinha viuse logo apelidada assim — por sinal que achou linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista. Estava escrito que não teria um gostinho só na vida — nem esse de personalizar a peste... (1982, 4). Parece que a “alma de criança” que Lobato viu em Negrinha não era percebida em adultos. Talvez daí venha o futuro interesse que o autor demonstrou em escrever sobre fantasias e mundos mágicos, falando de crianças que não viviam neste mundo fragmentado. Falava dessas crianças e falava às crianças, fossem elas crianças por fora, por dentro ou por ambos os lados. Esse mundo pueril, sim, era estável, pois a fantasia e a magia não precisam ser explicados com base nas convenções sociais. 132 A ambivalência e a instabilidade das relações humanas fica muito evidente no texto acima. Características de um tempo e de uma era de transformações interiores de intensidade agigantada. Não que o homem nunca tenha experimentado ambivalências e antagonismos de atitudes antes, mas após o Fin-de-Siècle isso se tornava padrão, dados os postulados da relativização que foi se estruturando melhor ao longo do século XX. Um outro conto destacado é Quero ajudar o Brasil, que, se bem atentarmos ao estilo do texto, mais se parece a uma crônica que a um conto. Mais parece uma declaração do que andava nos corações brasileiros naqueles primeiros anos de século XX. Não é criação com base em percepções, mas é a própria narrativa de um fato ocorrido com Lobato e seus sócios no andamento da campanha da nova Companhia Petróleos do Brasil e, segundo ele, era luta deles contra todos: “Tudo contra. O governo contra. Os homens de dinheiro contra. Os bancos contra. A ‘sensatez’ contra”. (Idem, 164). As inconsistências mostradas nesse texto, se por crer nelas Lobato ou se por crítica indireta, passam sempre pelos ambientes do abismo social e da segregação de raças. O sucesso das vendas das ações no projeto de alto risco não era dos mais estrondosos, mas o senso de nacionalismo parecia falar alto em alguns corações. “Certo dia entrou-nos pela sala um preto modestamente vestido, de ar humilde. Recado de alguém, certamente” (Idem, 165). Com essa fala, Lobato confessa como era a primeira análise feita sobre uma pessoa negra e modesta. O homem, na verdade, apenas tinha visto no projeto da Companhia a possibilidade de ajudar o 133 Brasil. “Ficamos a olhar uns para os outros, sem palavras. Que palavras comentariam aquilo? Essa coisa chamada Brasil, que é de vender, que até os ministros vendem, ele queria ajudar…” (Idem, 167). O que se crê, o que se vê e o que mostra de fato ser a realidade torna-se uma constante nos contos de Lobato. A instabilidade de um Eu fragmentado emerge em textos como esses, nos quais a essência humana aflora sem pudor e, se ela anda inconstante e relativizada, nada poderá ser condenado, apenas em níveis interpessoais. Essa é uma leitura possível dos contos de Lobato. Não é tanto a estética crua do exterior, mas a estética moral que importa. O difícil será, após o Fin-de-Siècle, definir o que é essa estética moral. Diferentemente de Machado, os textos de Lobato são por vezes mais difusos enquanto avançam, tornando-se necessário ler trechos um pouco maiores para a boa compreensão de seu contexto. Em Bugio Moqueado, ele faz uso sistemático de representar um indivíduo sem referenciais claros e objetivamente demonstrados. Lembrou-me logo o célebre Panfilo do Rio Verde, um de “doze galões”, que “resistiu” ao tenente Galinha e, graças a esse benemérito “escumador de sertões”, purga a esta hora no tacho de Pedro Botelho os crimes cometidos. Mas, importava-me lá a fera! — eu queria gado, pertencesse a Belzebu ou a São Gabriel. Expus-lhe o negócio e partimos para o que ele chamava a invernada de fora. Lá, escolhi o lote que me convinha. Apartamo-lo e ficou tudo assentado. De volta do rodeio, caía a tarde e eu, almoçado às oito da manhã e sem café de permeio até aquel’hora, chiava numa das boas fomes da minha vida. Assim foi que, apesar da repulsão inspirada pelo urutu humano, não lhe rejeitei o jantar oferecido. (Lobato, 1982, 23). 134 O personagem narrador do episódio não tem qualquer tipo de referencial claro, bastando-lhe satisfazer necessidades imediatas para tomar suas decisões, que tampouco são duradouras. Apenas circunstanciais e para o momento. Assim é que ele diz e repete que não se importava em absoluto com quem estivesse se relacionando, bastando apenas que atingisse seus intentos. Diz não querer saber, por exemplo, quem seria seu interlocutor nos negócios que queria fazer, se Belzebu ou São Gabriel, se o mal ou o bem que ambos simbolizam e personificam. Trata de meio e resultados, fala de ética e equilíbrio. Já noite, o dono do gado em negociação o convida para jantar e ele, apenas com um café da manhã das oito horas, aceita, mesmo sem se agradar do cicerone. Nova situação em que a alma humana entra em crise e o Eu fica em desequilíbrio. Alimentar o corpo que chia de fome ou manter sã a alma que reclama o afastamento daquela situação? Como a morta-viva permanecesse imóvel, o urutu repetiu o convite em voz baixa, num tom cortante de ferocidade glacial. - “Sirva-se, faça o favor!” - E fisgando ele mesmo a nojenta coisa, colocou-a gentilmente no prato da mulher. Novas tremuras agitaram a mártir. Seu rosto macilento contorceu-se em esgares e repuxos nervosos, como se o tocasse a corrente elétrica. Ergueu a cabeça, dilatou para mim as pupilas vítreas e ficou assim uns instantes, como à espera dum milagre impossível. E naqueles olhos de desvario li o mais pungente grito de socorro que jamais a aflição humana calou... O milagre não veio - infame que fui! - e aquele lampejo de esperança, o derradeiro talvez - que lhe brilhou nos olhos, apagou-se num lancinante cerrar de pálpebras. Os tiques nervosos diminuíram de freqüência, cessaram. A cabeça descaiu-lhe de novo para o seio; e a morta-viva, revivida um momento, reentrou na morte lenta do seu marasmo sonambúlico. 135 Enquanto isso, o urutu espiava-nos de esguelha, e ria-se por dentro venenosamente... Que jantar! Verdadeira cerimônia fúnebre transcorrida num escuro cárcere da Inquisição. Nem sei como digeri aqueles feijões! (Idem, 25). Os paradoxos são constantes. A mulher que sofre devia algo, depois se lê no texto. Mas aqui é como que mártir diante da situação, o que não deixa de induzir o leitor a uma piedade mórbida e desconhecedora de pormenores: apenas nosso emocional é tocado quando lemos algo assim. O homem, por sua vez, sistematicamente chamado de urutu, uma cobra temida no interior, “ria-se por dentro”, o que só pode ser conhecido de um narrador onisciente, que quer nos informar e nos educar em seus sentimentos com respeito aos personagens. A religiosidade e a malignidade andam como luz e sombra todo o tempo do texto selecionado, assim como a ambivalência de um ser humano que vive em constante alternância de bem e mal, reflexão e sentimentalismo. O jantar, por fim, compara-se a um funeral. E a mulher é chamada de morta-viva, o que podemos entender como a forma pela qual Lobato nos informa de sua duplicidade. Morta por fora, sem mais valores e sentimentos, sem vontade própria e sem qualificações para definir seu futuro. Viva por dentro, onde ainda poderia haver alguma esperança de sobrevida e de milagre, como o que não aconteceu naquele momento do jantar. Mas a vida não parava ali, como a vida do homem daqueles tempos não parava por ele ser alguém cujo Eu estava fragmentado. 136 Do ser sem referenciais, Lobato também extrai exemplos em seus contos de um homem de seu tempo que não tinha mais suas certezas. As dúvidas eram a forma de seguir vivendo de algumas das pessoas retratadas por ele. Era assim com um tal João Teodoro, surgido como personagem central em Um homem de consciência. Chamava-se João Teodoro, só. O mais pacato e modesto dos homens. Honestíssimo e lealíssimo, com um defeito apenas: não dar o mínimo valor a si próprio. Para João Teodoro a coisa de menos importância no mundo era João Teodoro. Nunca fora nada na vida, nem admitia a hipótese de vir a ser alguma coisa. E por muito tempo não quis nem sequer o que todos ali queriam: mudar-se para terra melhor. (Lobato, 1955, Vol. II, 185). O mais impressionante é que no caso de João Teodoro, a menor valia de si partia de dentro de si. Seu nome era curto, como que mostrando pouca origem, pouca informação de suas origens. Tinha alguns valores interiores que permitia que saíssem ao mundo exterior quando eles se voltassem a sua relação com o outro. O superlativo para honesto e leal não deixam dúvida na preocupação de João para com o próximo. É bem verdade que o texto não explica as reais motivações de sua lealdade e honestidade, mas o fato é que assim vivia. Pecava, no entanto contra si mesmo. Sua autodesvalorização era exacerbada e demonstrava que havia algo bastante anormal com relação a sua autoestima. Havia um João por dentro, que quase se menosprezava e mutilava as possibilidades apresentadas ao longo da vida. Havia um outro João por fora, honesto e leal, que fazia de tudo para manter tais adjetivos. Esse mesmo João era dois em um. Sua lealdade para fora mostrava verdadeira traição para dentro e sua honestidade para 137 com os demais mostrava ainda mais claramente o quão desonesto era consigo mesmo. A vida, no entanto, parecia querer testar João e lhe dar novas possibilidades de ser aprovado também por seu Eu interior. Uma nomeação inesperada para delegado o deixou em verdadeira crise de sentimentos. Um dia aconteceu a grande novidade: a nomeação de João Teodoro para delegado. Nosso homem recebeu a notícia como se fosse uma porretada no crânio. Delegado, ele! Ele que não era nada, nunca fora nada, não queria ser nada, não se julgava capaz de nada... (Idem, 186). O novo delegado tinha uma só coisa em mente: fugir da realidade que o convidava a ser alguém além do que sempre tinha sido. O ser e o nada eram aqui uma só pessoa, um só homem. Um lutava com o outro por conta de sua falta de consistência. O desenrolar do conto é interessante, pois João Teodoro continuou até o final sendo coerente com seu pensamento desde o início. O texto nos diz: João Teodoro caiu em meditação profunda. Passou a noite em claro, pensando e arrumando as malas. Pela madrugada botou-as num burro, montou no seu cavalinho magro e partiu. Antes de deixar a cidade foi visto por um amigo madrugador. - Que é isso João? Para onde se atira tão cedo, assim de armas e bagagens? - Vou-me embora - respondeu o retirante. - Verifiquei que Itaóca chegou mesmo ao fim. - Mas, como? Agora que você está delegado? - Justamente por isso. Terra em que João Teodoro chega a delegado eu não moro. Adeus. E sumiu. (Idem, 186). 138 Notemos que João meditou profundamente antes de tomar sua decisão. Interessante notar que, diferentemente de outros fragmentados que serviram de personagens para Lobato, João pensou. Ele queria ser o que tinha decidido ser, mesmo que isso lhe custasse a viabilidade de melhorar seu projeto de vida. E ele resolve fugir da realidade de ser delegado, como não podendo reagir face a eleição da cidadezinha. Talvez pela primeira vez ele estivesse demonstrando honestidade e lealdade para com seus sentimentos, embora isso representasse ser desonesto e desleal com outra parte de sua vida. Um Eu mantinha cativo o homem honesto e leal; o outro Eu o via indo embora. Talvez, por isso, seu amigo tenha lhe dito com espanto, diante da notícia de sua partida: “agora que você está delegado?” - para o que utilizou o estar em lugar do ser, denotando a fugacidade de suas ações. O bom marido é outro de seus contos com bons exemplos desse homem de início de século XX, com seus pressupostos abalados e a sua premente necessidade de exercitar suas novas convicções. A fama do bom marido correu mundo. Todas as mulheres apontavam-no como exemplo a seguir. Os homens exemplares, porém, enfureciam-se. — Um vagabundo daqueles! Um miserável chopim! — Que tem isso? disse uma. Eu, franqueza, preferia que fosses também chopim, mas que me desses o carinho que ele dá a Isabel. — É o cúmulo! Pois não vês que aquilo é da profissão? Tipo asqueroso!... Agrada à mulher porque vive dela. É o seu negócio. (Lobato, 1982, 138). Percebemos o ressalto de algumas questões interiores do Eu fragmentado que aparecem destacando-se no trecho. No entanto, o que mais se torna aparente é o fato 139 de todo o conto passar a idéia de que um malandro como era o marido da narrativa era alguém adulado pela esposa. Esta, por sua vez, cegada pelo marido aproveitador que lhe comprava o coração com algumas palavras bem encaixadas e com promessas que nunca eram cumpridas, era o motivo de inveja conjugal das demais mulheres. Os maridos normais, se assim os podemos chamar, não eram alvo dos suspiros de suas mulheres, não satisfeitas com a vida de família e sustento. Ele era estranhamente o alvo dos desejos de outras, mesmo quando ele era o típico malandro que faz tudo a descoberto, mas que nunca é incriminado por nada do que faz. Os pais da moça e os maridos das demais mulheres falaram em vão. Até que a exploração em múltiplos sentidos a levou à morte. Morte sofrida por fora e feliz por dentro. Exaurida e acabada, mas fiel ao seu marido até o fim. E ele, sem nenhum problema de consciência, seguiu depois a sua jornada. Enquanto para a mulher a relação conjugal era afetiva e responsável, para o bom marido era apenas o exercício de sua profissão. Este homem nos faz lembrar de Sennett (2005) e seus postulados sobre o homem cujo caráter foi transformado por conta dos processos de tempo e trabalho. Em meio a contextos que fogem ao controle do indivíduo, este se torna capaz de se amoldar às mudanças que se operam ao seu redor, capaz de não ter qualquer apego ao que edifica com seu trabalho, que faz emergir mais um elemento da flexibilidade do seu caráter: torna-se tolerante, senão receptivo, a sua própria fragmentação. A aceitação 140 resignada da fragmentação do seu Eu torna-se um dos pontos essenciais do caráter que é formado dentro de um mundo absolutamente flexibilizado. Na mesma linha vemos que Lobato também trata do caráter de seus personagens, sempre afeitos ao discurso desse homem que se via fragmentado. Terminado o jantar, saímos em direção ao Triângulo, e lá nos abancamos num sórdido café. O meu amigo voltou ao assunto. – Caso notável, o daquele homem! Caso merecedor de novela ou conto, já que a justiça não tem forças para metê-lo na cadeia. (...) Pequetita! Bem posto apelido, que não era bem mulher aquela isca de gente. Miudinha, magrinha, sequinha, sem cadeiras, sem ombros, sem seios, Pequetita não passava de um desses restolhos enfermiços que aparecem ao lado das espigas viçosas – sabuguinho débil, um grão aqui, outro ali. Apesar dos seus vinte e cinco anos, representava treze, e ao escolhê-la Pânfilo – chama-se Pânfilo Novais o meu facínora – espantou a todos, a começar pela moça. Como, porém, era ele pobre e ela arranjada, explicou-se financeiramente a união. (Lobato, 1982, 77). A questão do caráter foi magistralmente trabalhada por Lobato no texto Barba azul. Nesse conto surge um homem com formação na área médica que utiliza seus conhecimentos para proveito próprio, mesmo que para isso as vidas de suas esposas sejam sistematicamente subtraídas. Sim, esposas, pois o conto mostra um homem que planeja como se beneficiar com as mortes das mesmas. E de tal modo o faz que, no fundo, não as matava, mas as conduzia à morte. – ...até que os separou a morte. Pequetita não resistiu ao primeiro parto; faleceu após cruel intervenção cirúrgica. Pânfilo, dizem, chorou amargamente a morte da esposa, embora viessem consolálo os trinta contos de um seguro por ela constituído em seu favor. A meu ver é daqui por diante que surge o criminoso. O desastre do primeiro casamento criou-lhe no cérebro um pensamento sinistro – pensamento que o iria nortear pela vida afora e que o fez, como te disse, rico e poderoso. A morte de 141 Pequetita ensinou-lhe um crime inédito, não previsto pelas leis humanas. (Idem, 77). A ética e a razão são exaustivamente abordadas no conto. Tenhamos em vista, mesmo assim, que Lobato não se dispôs a escrever um tratado filosófico, mas uma obra literária. Pessoas assim podem existir, principalmente se o berço de sua cultura for desregrado e sem parâmetros éticos absolutos. O início do século XX foi, em seqüência aos eventos de Fin-de-Siècle, um tempo sem maiores equilíbrios éticos, coisa que vemos perdurar até hoje. O benefício pessoal que se desenvolve por parte do marido é avesso a qualquer relação ética, em qualquer que seja a cultura, a menos que tratemos de algum tema patológico ou insanamente criminoso. Isto posto, no entanto, não confere com o texto, em cujas linhas é apresentado um vilão consciente do que faz e sem nenhuma forma aparente de arrependimento ou de tentativa de subtrair de sua vida atos tão hediondos. Escolhia uma mulher previamente identificada como inapta ao parto, casava-se com ela, engravidava-a, gerava algum tipo de benefício para uso após a morte da mulher - como um seguro - e pacientemente aguardava a morte da infeliz. E o gesto se repetia em outra parte, com outra mulher, como se fosse outro homem começando tal prática escusa. Depois, imagina o sadismo dessa alma ao ver desenvolver-se no ventre da vitima, não o filho que ela docemente esperava, mas a bolada gorda que viria acrescentar os seus cabedais. Afez-se a tal caçada e nela aperfeiçoou-se de maneira a nunca errar o bote. 142 A quarta, soube-o logo depois, fora pelo mesmo caminho das outras em seguida a uma nova intervenção cirúrgica. E entraram os duzentos contos. Vês tu que monstro?... No outro dia lá estava na mesma mesa o doutor Pânfilo. Entraram na sala várias moças, e pela força do hábito, o seu olhar mortiço mediu num relance as ancas de cada uma. Bem feitas de corpo que eram, nenhuma o interessou – e seu olhar desceu calmamente para o jornal que lia. – Está viúvo – pensei comigo. – Anda evidentemente tocaiando a quinta mal conformada... (Idem, 77). E o homem, fragmentado em si mesmo, prosseguia em suas exemplificações e aparições nos textos lobatianos. Esse é o mesmo ser que busca freneticamente a felicidade, mas, de fato, parece não saber como obtê-la. Num outro conto, Fatia de vida, Lobato exemplifica tal situação. Não era homem querido o doutor Bonifácio Torres. Não era querido pela ponderosa razão de pensar com sua própria cabeça. Para ser querido, é força pensar como toda gente. “Toda gente?!” Moloch social cujos mandamentos havemos de seguir de cabecinha baixa, sob pena dos mais engenhosos castigos. Um deles: incidir na pecha de esquisitice. (Lobato, 1982, 154). Chama a atenção que Lobato trata o dr. Bonifácio de “Moloch1 social” e depois, mais à frente na mesma página, volta a dizer que ele tinha “a mentalidade do Moloch”. O conto narra as desventuras que Isaura, uma lavadeira, sofre por causa de 1 Moloc ou Moloch Entregar as crianças a Moloc (Melek) era queimá-las em sacrifício ao deus cananeano. (...) Crianças vivas eram queimadas sobre o altar do deus ou nos flancos da estátua de bronze que lhe era consagrada, enquanto os sacerdotes encobriam os gritos das vítimas com o barulho de clamores e tambores. (...) Sem dúvida, deve-se ter em Moloc a velha imagem do tirano, ciumento, vingativo, sem pena, que exige de seus súditos obediência até à morte e confisca todos os seus bens, até mesmo os filhos, destinados à morte na guerra ou no sacrifício. (...).Nos tempos modernos, Moloc tornou-se o símbolo do Estado tirânico e devorador. (Chevalier, 1993, 614). 143 “bondades” que lhe são feitas em seguidos momentos de sua vida e, por causa das caridades que lhe foram feitas, a senhora padece tremendamente. Com isso, surge a justificativa do dr. Bonifácio em não fazer caridade a fim de evitar o mal alheio. Mais à frente, Lobato migra o codinome para o cônego Eusébio, chamando-o de “conspícuo representante legal do Moloch” (Idem, 155). O dr. Bonifácio sorrira e o padre olhara-o de revés, com saudades, quem sabe, do bem-aventurado tempo em que sorrisos assim recebiam a réplica do fogo pio. - Sorri-se o hereje (sic)? - interpelou o padre. Nega até a caridade? - Não nego - respondeu mansamente o filósofo - porque não nego nem afirmo coisa nenhuma. Negam e afirmam os atores, os que se agitam no palco da vida. Eu tenho meu lugar na platéia e, como não represento, observo. E como observo, sorrio - sorrio para não chorar... - Seja mais claro. - Serei. Quando o reverendo se abriu em louvores à caridade, não desfiz nessa cristianíssima virtude. Apenas me lembrei de certo drama a que assisti - e, repito, sorri para não chorar... Depois de breve pausa de interrogativa expectação, o dr. Bonifácio principiou. - Isaura a minha lavadeira... (Idem, 155). Isaura sofre muito ao longo de toda a narrativa. Sua pobre vida se desfaz como que por encanto sem que nada seja feito em seu favor. Na verdade, tudo lhe ocorre por causa dos favores recebidos. Favores indesejados e não buscados, mas favores mesmos assim. A busca da felicidade encontra dois aspectos neste conto. O de quem outorga a felicidade e de quem apenas a busca, seja em terceiros, seja nas circunstâncias da vida. Moloc parece surgir como elemento mitológico evocado por Lobato para nos informar que ser feliz em geral não é possível. Pelo menos não em sua totalidade. 144 Algo veio devorar a felicidade da pobre mulher que, mesmo sem grandes posses, tinha para si seu bem maior, seus filhos. Estes lhe foram arrebatados por esse Moloch da vida que se levantou ferozmente e lhe tirou dois dos filhos, além de deixar os outros dois em situação muito ruim. Ela própria, depois dos episódios, integra um trio com os dois filhos aos quais Lobato chama de “três miseráveis molambos” (Idem, 159). Assim como o ente mitológico, este do conto também veio reclamar os filhos dos seres humanos para si. - “Depois? Depois a gripe declinou, a normalidade foi se restabelecendo e os dois filhos restantes voltaram à casa materna. Em que estado! O menino, semimorto, cadavérico e a Inês (só ao vê-la chegar soube Isaura qual das duas morrera) e a Inês com uma tosse de tuberculosa. E ali ficaram, destroços de horrível naufrágio, aqueles três miseráveis molambos de vida, sob a assistência da negra enfermeira a Fome. Continuaram a viver sem saber como, por instinto - num desvario, numa alucinação... Da última vez que vi a pobre Isaura, disse-me ela, entre dois acessos de tosse: -Tudo porque me levaram de casa os filhos. Se ficassem, nada lhes teria acontecido. A nossa vizinha, tão boa, coitada, quis fazer o bem e fez a nossa desgraça. É um perigo ser muito bom. (Idem, 159). A busca pela felicidade parece não ter fim em nós. Sabemos que jamais a atingiremos, compondo tal estado um sonho permanente em nós. No entanto, a desventura exacerbada parece roubar até mesmo o sonho que Isaura poderia ter de, em sua simplicidade, viver momentos felizes junto a seus filhos. 145 Considerações Finais Após este trabalho a respeito do Eu e suas caracterizações básicas a partir do Finde-Siècle é possível perceber com mais clareza a importância real do papel que temos a desenvolver em meio à sociedade na qual estamos inseridos. Quem sou? De onde vim? Para onde vou? Questões assim acompanham o homem e povoam suas idéias e conceitos desde tempos imemoriais. As respostas, essas são inúmeras e inexistentes ao mesmo tempo. Mas o homem não desiste de as buscar permanentemente. Como análise final deste estudo, proponho a resposta à questão que gerou a problematização, a qual me serviu como incentivo de pesquisa. Os contos de Machado e Lobato realmente indicam uma percepção refinada e externada de modo particular que cada um teve desse homem cujo Eu era fragmentado. Não o fazem, talvez, por gesto premeditado, mas o fato é que seus textos indicam uma percepção fina às questões sociais e humanas que os cercavam. E ao fazê-lo, deixaram para nós uma indelével marca que nos é muito útil para a percepção do mundo de seus dias. Como foi devidamente exposto ao longo do trabalho, Machado e Lobato foram contemporâneos, por certo espaço de tempo, mas não o foram no que tange à criação e à vida produtiva, pois Machado já declinava a vida quando Lobato começava a viver a sua. Esse paralelo e esse quase-encontro despertaram a atenção para o fato de ambos terem recebido fortes influências dos processos de Fin-deSiècle a partir dos quais tiveram suas próprias visões de mundo formadas. Assim, 146 Machado viveu os períodos de transformação diretamente enquanto Lobato representa a geração seguinte, a que realmente começou a experimentar os primeiros resultados práticos das conquistas e dos problemas decorrentes de seus tempos. Tenho, portanto, algumas conclusões após a elaboração destes estudos, a começar pela afirmação objetiva de que a leitura feita nos contos de Machado de Assis e de Monteiro Lobato realmente deixa à mostra toda a influência que sofreram como pessoas que viveram durante os anos que representam nosso alvo de estudos, o Finde-Siècle. É claro, também, que não teria sido diferente com outros bons autores e outros modelos de transformação sofrida pela humanidade. Refiro-me ao fato de os autores serem intérpretes de seu tempo e da História que viveram e ajudaram a construir. Quero dizer com isso que eles não foram mais espetaculares que nenhum outro autor por representarem em seus textos o que viveram. Mas poderiam também ter sido pífios a ponto de pouco transparecerem em seus textos todos os movimentos e episódios que os cercavam e findaram por influenciar suas vidas particulares e seus postulados intelectuais e filosóficos. O fato, o qual certamente é de nosso interesse particular, é que o Fin-de-Siècle e seus modelos transformadores, com a fragmentação do Eu, com as verdades tornando-se mais relativas a cada momento, com as inconstâncias e incertezas que lhe foram peculiares, de fato, aparecem de forma clara nos contos de Machado de Assis e Monteiro Lobato. Personagens, relações interpessoais, pressupostos, temas filosóficos, tramas, tudo - com seus sucessos e revezes - tem um ponto de convecção ao Fin-de-Siècle. O que poderia destacar nesta conclusão como pontos recorrentes 147 que, se devidamente acondicionados, poderiam ser considerados como confirmação das influências do Fin-de-Siècle e de um Eu fragmentado nos contos de ambos? De modo direto, podemos listar as seguintes características que são vistas em seus textos: instabilidade de opiniões e de caráter, demonstrando um ser humano absolutamente sem referenciais, com seu Eu fragmentado; uma intensa dose de baixa auto-estima, a partir da qual muitos personagens deixam passar a vida diante de si numa estranha resignação; por outro lado, demonstrando oscilações de comportamento, um elevado índice de busca por benefícios e ganhos pessoais, mesmo em detrimento de outras pessoas ou da felicidade delas; uma dificuldade em demonstrar ou em ter referências objetivas de relacionamentos com base em ética e moral; um intenso movimento de clientelismo e favorecimentos sociais; a relativização de conceitos, deixando-os ao sabor do momento; a Ciência e o cientificismo como desculpas ou pontos de apoio para a perpetuação da diferenciação interpessoal; uma exagerada dose de individualismo; um verdadeiro menosprezo, ou derrocada do ser humano da posição que lhe seria devida; um possível choque entre a moral e a ética interiores dos autores e as que exteriorizavam em seus personagens. Tanto Machado quanto Lobato foram pessoas ativas em seus tempos de vida, deixando claras marcas do que viviam como funcionário público e empresário enquanto labutavam nas letras e na cultura nacional. Isso lhes propiciava inigualável condição de testemunhar fatos e atestar evidências que estavam à vista de todos, 148 mas que somente pessoas de grande sensibilidade poderiam tê-los registrado da forma que o fizeram. Percebemos ao longo das análises que as influências sofridas por eles e, portanto, salientadas em suas obras, foram preponderantes para a formatação de seu caráter literário. O Eu fragmentado parecia de fato incomodar ambos os autores. Machado, primeiro com atitudes liberais e depois com atitudes mais independentes, faz do humor, muitas vezes cínico e até mordaz, uma porta aberta para a entrada num mundo de perguntas para as quais não necessariamente haveria respostas adequadas. A impressão constantemente deixada é a de não mais se importar com as coisas, como o crítico do folhetim, que tece o comentário duro e frio apenas por força do ofício. Dirigia-se em paralelo a pessoas comuns, que poderiam também ser pessoas de caráter duvidoso, de gestos pouco éticos, de crises estranhas consigo e com os demais. Ou seria isso uma forma de mexer com os falsos moralistas e com os hipócritas de sua época, que, por conta de começarem a apreciar os efeitos da fragmentação do Eu, abandonavam as regras mínimas de civilidade e de relacionamento interpessoal? Lobato, empreendedor, filho bem-nascido e bem situado, nacionalista, defensor do Brasil e da brasilidade, embora adotasse o modelo americano para o fazer, com fala e discurso fácil entre adultos e crianças, parece ter entendido que as pessoas tinham sentimentos. Pelo menos, parece que isso é verdadeiro em seus textos. Estranhamente a isso, a formação cientificista sugere ter deixado nele a idéia clara de uma separação ideal entre castas sociais, origens ou raças, o que notamos quando 149 fala de Negrinha ou do negro Timóteo, por exemplo. Ou será isso uma perturbação proposital provocada no seu leitor, tanto o de ontem quanto o de hoje? Ou quem sabe Lobato pretendia com isso estabelecer um desconforto no leitor a tal ponto que, assim, ele poderia reverter a mente de pelo menos mais um ser-leitor ao qual pudesse atingir com seus textos? Machado e Lobato parecem inseridos num contexto em que, para falar do mundo, precisaram sair do mesmo. Precisavam sentir de outra forma, não a forma prática e corriqueira apenas, mas a forma universal, antropológica, aquela que poderia ser sentida depois deles, simplesmente pelo acesso aos seus textos, os quais representavam não o que se via com os olhos da razão comum, mas os do coração. Não havia melhor meio de nos deixar sua mensagem que através de um legado que fosse extemporâneo, que sobrevivesse aos tempos e aos homens. Assim trabalharam outros antes e depois deles, e, graças aos seus esforços, até hoje nos deleitamos com os textos dos grandes vultos da literatura de todos os tempos, sociedades e circunstâncias humanas. Cada vez que temos acesso a Machado e Lobato queremos chegar mais e mais perto do que eles foram e viveram. Se não os compreendemos bem numa primeira leitura, temos para nos ajudar uma possível radiografia estética e psicológica de autores de seu nível, muito bem trabalhada por Pessoa em seu poema Isto: Dizem que finjo ou minto Tudo que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto Com a imaginação. Não uso o coração. 150 Tudo o que sonho ou passo, O que me falha ou finda, É como um terraço Sobre outra coisa ainda. Essa coisa é que é linda. Por isso escrevo em meio Do que não está ao pé, Livre do meu enleio, Sério do que não é. Sentir? Sinta quem lê (Pessoa, 2006, 43) O modelo e a estrutura em que Machado e Lobato se viam mergulhados certamente não lhes permitiu ver de fora o que sofriam. Experimentaram e souberam conviver com as transformações a que se submeteram. Como todos nós, eles tinham diversos referenciais, quase todos de culturas diversificadas, como a européia e a norteamericana. Souberam, contudo, apreciar a arte e a literatura de fora e conseguir falar delas em português e em brasileiro. Ou seja, falaram ao brasileiro em cultura e em língua que eles entenderam. E continuamos a entendê-los até hoje. É comum, num confronto entre culturas, vermos abertamente as perguntas sobre qual modelo ou paradigma é o melhor. Como sociedade colonizada, geralmente pensamos que o que vem de fora, da estranja, para utilizar uma boa nomenclatura lobatiana, é o melhor, o mais correto, o mais saudável. Mas, nesse aspecto, a própria discussão dos paradigmas ocorrida durante o Fin-de-Siècle nos é salutar, haja vista a abertura de possibilidades de se reconsiderar as verdades e os axiomas. Um outro elemento que salta aos olhos nas leituras dos contos de Machado e Lobato é um sentimento de indefinição ou de mistura de sentimentos. Por um lado, o que é 151 brasileiro, a terra, as pessoas, as instituições, a nação, o brio e tudo que cerca um povo saltam como possibilidades a serem perseguidas. Ao mesmo tempo, e em paralelo, a pequena relação de boa vontade e de brasilidade notada nas estruturas maiores do país deixa claro nas obras que o Brasil enfrentava naqueles tempos - e continuaria a enfrentar depois, até chegar aos nossos dias - tempos severos e difíceis. A corrupção, a má vontade com as questões públicas, o clientelismo, o charlatanismo político e toda sorte de males éticos e morais acanhavam de certa forma a esperança que por vezes vislumbrava em seus textos. Com tudo o que foi pesquisado e exposto, posso dizer que tanto Machado de Assis quanto Monteiro Lobato descreveram de maneira ostensiva o que viveram, conforme já descrito no início desta conclusão. Fizeram-no cada qual a seu modo e a seu tempo. Deixaram-nos um farto legado de narrativas de ricos detalhes e enorme valia. Por outro lado, parece-me que nenhum dos dois teve a intenção de deixar receituários para que as gerações futuras às suas tivessem menos problemas ou tivessem prontas as soluções para tudo aquilo que eles próprios tinham vivido e experimentado. Tudo o que nos deixaram nos serve de base de reflexão e parâmetros de experimentação que, como referenciais, poderão nos ajudar. No entanto, a cada geração e a cada tempo da História o homem precisa aprender a lidar com seus próprios meios os problemas que enfrenta, seus vazios, suas fragmentações interiores e suas sociedades - muitas vezes, falta de ética e estética. Afinal de contas, como poderiam eles, que se sentiram fragmentados e sem parâmetros concretos, em franca definição de pressupostos, dizer para alguém o que 152 fazer? Puderam, no entanto, deixar seus registros e deles podemos avaliar os benefícios e malefícios vividos e, quem sabe, extraindo boas considerações, amadurecer nossas atitudes futuras. É bem verdade que ainda não alcançamos a maturidade em alguns pontos de nossa carreira humana, mas certamente já crescemos em algo. Hoje vivemos a realidade de uma sociedade pós-moderna, que se globaliza - ou mundializa, como diriam alguns - a passos rápidos. Pudemos observar ao longo deste trabalho que boa parte da estrutura social e interior que vivemos em nossos dias tem seu ponto de partida nos tempos do Fin-de-Siècle. Ali, as coisas se mostraram mais claras, pois o homem conseguiu tomar para si a responsabilidade de muitos elementos que antes eram simplesmente tidos por transcendentes. Que as amostras desse passado recente do Fin-de-Siècle nos sirvam de exemplo e modelo e que, a partir de nós, enquanto indivíduos que somos, possamos tomar como nossa a parte que nos toca encenar nesse grande teatro que é a vida. Creio que o Fin-de-Siècle ainda não terminou. Não em sua essência mais profunda, motivadora. Sua evolução continua e suas perspectivas ainda batem à nossa porta. Cabe agora a cada um descobrir e assumir seu papel, sabendo que toda a sociedade é um modelo vivo do qual fazemos parte. O Eu que vivemos está desvalorizado, fragmentado. Seria tolo e singelo afirmar que toda essa desvalorização se deu isoladamente a partir dos eventos do Fin-de-Siècle, mas foi nesse período que se percebeu o maior índice concentrado de alterações do Eu de que temos conhecimento. Na razão humana, a sistematização, quer seja 153 científica, artística, jornalística ou a do senso comum, parece ter sido algo que ressaltou a desvalorização do Eu e nos permitiu acesso a fatos documentais que nos ajudaram a entender melhor o que se deu com as pessoas a partir de então. Talvez o Eu do homem sempre tenha sido desvalorizado e fragmentado, mas o saber consciente disso é o ponto principal para esta leitura e do que pode vir a partir de seu entendimento. Talvez algumas das respostas mais primitivas voltem a satisfazer esse homem de Eu desfigurado. 154 Referências bibliográficas Textos impressos AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Trad. Daniel Heller-Roazen. Stanford: Stanford University Press, 1998. ________ Estado de exceção. São Paulo, Boitempo, 2004. ANDRÈS, Bernard. Coerção e Subversão: O Quebec e a América Latina – Ensaios sobre a constituição das letras. Porto Alegre, Ed. Universidade/ UFRGS, 1999. ASSIS, Machado. 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Uma composta dos que vêem normalmente as coisas e em conseqüência disso fazem arte pura, guardando os eternos ritmos da vida, e adotados para a concretização das emoções estéticas, os processos clássicos dos grandes mestres. Quem trilha por esta senda, se tem gênio, é Praxíteles na Grécia, é Rafael na Itália, é Rembrandt na Holanda, é Rubens na Flandres, é Reynolds na Inglaterra, é Leubach na Alemanha, é Iorn na Suécia, é Rodin na França, é Zuloaga na Espanha. Se tem apenas talento, vai engrossar a plêiade de satélites que gravitam em torno daqueles sóis imorredouros. A outra espécie é formada pelos que vêem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência: são frutos de fins de estação, bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um instante, as mais das vezes com a luz do escândalo, e somem-se logo nas trevas do esquecimento. Embora eles se dêem como novos precursores duma arte a vir, nada é mais velho do que a arte anormal ou teratológica: nasceu com a paranóia e com a mistificação. De há muito já que a estudam os psiquiatras em seus tratados, documentando-se nos inúmeros desenhos que ornam as paredes internas dos 1 Texto de Monteiro Lobato publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo em dezembro de 1917. Texto completo disponível em http://www.jayrus.art.br/LitBrasil_Simbol_Premoderno.htm> 160 manicômios. A única diferença reside em que nos manicômios esta arte é sincera, produto ilógico de cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses; e fora deles, nas exposições públicas, zabumbadas pela imprensa e absorvidas por americanos malucos, não há sinceridade nenhuma, nem nenhuma lógica, sendo mistificação pura. Todas as artes são regidas por princípios imutáveis, leis fundamentais que não dependem do tempo nem da latitude. As medidas de proporção e equilíbrio, na forma ou na cor, decorrem do que chamamos sentir. Quando as sensações do mundo externo transformam-se em impressões cerebrais, nós “sentimos”; para que sintamos de maneira diversa, cúbica ou futurista, é forçoso ou que a harmonia do universo sofra completa alteração, ou que o nosso cérebro esteja em “pane” por virtude de alguma grave lesão. Enquanto a percepção sensorial se fizer normalmente no homem, através da porta comum dos cinco sentidos, um artista diante de um gato não poderá “sentir” senão um gato, e é falsa a “interpretação” que do bichano fizer um “totó”, um escaravelho, um amontoado de cubos transparentes. Estas considerações são provocadas pela exposição da Sra. Malfatti, onde se notam acentuadíssimas tendências para uma atitude estética forçada no sentido das extravagâncias de Picasso e companhia. Essa artista possui um talento vigoroso, fora do comum. Poucas vezes, através de uma obra torcida para má direção, se notam tantas e tão preciosas qualidades latentes. Percebe-se de qualquer daqueles quadrinhos como a sua autora é independente, como é original, como é inventiva, em que alto grau possui um sem-número de qualidades inatas e adquiridas das mais 161 fecundas para construir uma sólida individualidade artística. Entretanto, seduzida pelas teorias do que ela chama arte moderna, penetrou nos domínios dum impressionismo discutibilíssimo, e põe todo o seu talento a serviço duma nova espécie de caricatura. Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não passam de outros tantos ramos da arte caricatural. É a extensão da caricatura a regiões onde não havia até agora penetrado. Caricatura da cor, caricatura da forma - caricatura que não visa, como a primitiva, ressaltar uma idéia cômica, mas sim desnortear, aparvalhar o espectador. A fisionomia de quem sai de uma dessas exposições é das mais sugestivas. Nenhuma impressão de prazer, ou de beleza, denunciam as caras; em todas, porém, se lê o desapontamento de quem está incerto, duvidoso de si próprio e dos outros, incapaz de raciocinar, e muito desconfiado de que o mistificam habilmente. Outros, certos críticos sobretudo, aproveitam a vaza para épater les bourgeois. Teorizam aquilo com grande dispêndio de palavrório técnico, descobrem nas telas intenções e sub-intenções inacessíveis ao vulgo, justificam-nas com a independência de interpretação do artista e concluem que o público é uma cavalgadura e eles, os entendidos, um pugilo genial de iniciados da Estética Oculta. No fundo, riem-se uns dos outros, o artista do crítico, o crítico do pintor, e o público de ambos. Há de ter essa artista ouvido numerosos elogios à sua nova atitude estética. Há de irritar-lhe os ouvidos, como descortês impertinência, esta voz sincera que vem quebrar a harmonia de um coro de lisonjas. Entretanto, se refletir um bocado, verá 162 que a lisonja mata e a sinceridade salva. O verdadeiro amigo de um artista não é aquele que o entontece de louvores e sim o que lhe dá uma opinião sincera, embora dura, e lhe traduz chãmente, sem reservas, o que todos pensam dele por detrás. Os homens têm o vezo de não tomar a sério as mulheres. Essa é a razão de lhes darem sempre amabilidades quando pedem opiniões. Tal cavalheirismo é falso, e sobre falso, nocivo. Quantos talentos de primeira água se não transviaram arrastados por maus caminhos pelo elogio incondicional e mentiroso? Se víssemos na Sra. Malfatti apenas “uma moça que pinta”, como há centenas por aí, sem denunciar centelha de talento, calar-nos-íamos, ou talvez lhe déssemos meia dúzia desses adjetivos “bombons”, que a crítica açucarada tem sempre à mão em se tratando de moças. Julgamo-la, porém, merecedora da alta homenagem que é tomar a sério o seu talento dando a respeito da sua arte uma opinião sinceríssima, e valiosa pelo fato de ser o reflexo da opinião do público sensato, dos críticos, dos amadores, dos artistas seus colegas e... dos seus apologistas. Dos seus apologistas sim, porque também eles pensam deste modo... por trás. 163 Anexo 2: Tabela de comparação simplificada entre os fatos do mundo e os fatos biográficos de Machado e Lobato, incluindo as bibliografias de ambos. Tema e Período Interesse Geral Décadas 18501860 Interesse Cultural Machado Lobato Anos 1839 - Teoria celular de Scheiden e Schucann 1850 - Inauguração da linha de vapores do Rio de Janeiro para a Europa. - Lei Eusébio de Queiroz sobre a proibição de tráfico de escravos. - Guerra do Prata (Brasil, Argentina e Uruguai). 1851 Nasce a 21 de junho, no Rio de Janeiro, Joaquim Maria Machado de Assis, filho legítimo de Francisco José de Assis e Maria Leopoldina Machado de Assis. Pouco se sabe de sua infância: cedo perdeu a mãe e a única irmã; foi amparado, até o segundo casamento do pai, pela madrinha, senhora abastada. Após a morte do pai, ficou em companhia da madrasta, Maria Inês. Talvez tenha sido auxiliar do culto na igreja da Lampadosa. - Fundação da Sociedade Acadêmica Ensaio Filosófico, em São Paulo. 164 1852 - Inauguração do telégrafo. - Voa o primeiro dirigível na França, com Gifford. - Relatório de Gonçalves Dias sobre a situação da instrução. 1854 - Criação e inauguração da primeira estrada de ferro do Brasil. 1855 - Hughes cria o telégrafo impressor. - Abertura de livro de registro de solicitações à Biblioteca Nacional. - Abertura de loja de livros de Garnier (Rio de Janeiro). - Abertura da Livraria Clássica, filiada a Bertrand e a Aillaud. - Loteria de livros na Garnier. - Criação no Rio de Janeiro da escola de Emílio Zaluar. 1856 Publica seu primeiro poema, Ela. Até 1861, colabora na Marmota Fluminense. Aprendiz de tipógrafo na Tipografia Nacional até 1858. 1857 - Pouncy: Dorsetshire photographically illustrated (primeiro livro ilustrado por fotolitografia). 1858 - Inauguração da estrada de ferro D. Pedro II. - Criadas as cadeiras de História e Geografia do Brasil e a de História da Literatura Portuguesa e Nacional (esta no 7º ano) no Pedro II. - Fundação da Associação Culto à Ciência. - Fundação do Instituto Acadêmico Instituto Científico - Clube Literário. - Catálogo do Gabinete Português de Leitura organizado por Silva Ramalho. Até 1859 escreve em O Paraíba, de Petrópolis. Auxilia o escritor francês Charles de Ribeyrolles na tradução de O Brasil Pitoresco. Colabora no Correio Mercantil. 165 1859 1860 18611870 1861 - Charles Darwin publica A Origem das Espécies - Primeiro poço de petróleo é perfurado, nos EUA. - Kirchhoff e Bunsen lançam a análise espectral. - Monturiol lança o 1º submarino. - Eleição de Abraham Lincoln (Estados Unidos da América). - Invenção da fotografia colorida por James Clerk Maxwell. - Primeiro motor a explosão - Levoir. - Fundação da Sociedade Ensaios Literários. - Frei Francisco de Mont'Alverne: Compêndio de filosofia (Rio de Janeiro). Estréia como crítico teatral na revista O Espelho até 1860. - Fundação da Academia Pedagógica. Convidado para redator do Diário do Rio de Janeiro até 1867. Escreve ainda no Diário até 1869. Até 1875, atua como redator de A Semana Ilustrada. - Início da Guerra da Secessão (Estados Unidos). - Rompimento de relações entre Brasil e Inglaterra (Questão Christie). 1862 1863 - Máquina frigorífica Tellier. 1864 - Declaração de guerra do Paraguai ao Brasil. Publica Desencantos e Queda que as Mulheres têm para os Tolos. - Lançamento da Biblioteca Brasileira organizada por Quintino Bocaiúva. Sócio do Conservatório Dramático Brasileiro, como auxiliar da censura. Até 1863 aparece em todos os números da revista O Futuro. - Fundação do Instituto dos Bacharéis em Letras. - Projeto de uma Associação de Homens de Letras. Publica o Teatro de Machado de Assis, (duas comédias, O Protocolo e O Caminho da Porta). Até 1878, com interrupção em 1867 e 1868, colabora no Jornal das Famílias. Publica seu primeiro livro de versos, Crisálidas. 166 1865 Estados Unidos: - Assassinato de Abraham Lincoln. Fim da Guerra da Secessão. Libertação dos escravos. - Mendell lança estudos sobre as leis da hereditariedade. 1866 - Relatório relativo à instrução e à Biblioteca Nacional (Almanaque Laemmert). - Propriedade sobre a obra literária pelos herdeiros do autor: 50 anos após sua morte. Depois torna-se de domínio público. 1867 - Nobel apresenta a Dinamite. - Máquina de escrever - Sholer e Soule. 1868 - Inauguração de bondes de tração (Rio de Janeiro). 1869 - Classificação periódica dos elementos Mendeleev. 1870 - Criação do Partido Republicano (São Paulo). - Fim da Guerra do Paraguai. Publica Os Deuses de Casaca. Publica a sua tradução do romance Os Trabalhadores do Mar, de Victor Hugo. Casa-se com Carolina Augusta Xavier de Novais, moça portuguesa havia pouco chegada ao Brasil. - Inauguração das corridas de cavalos, às quais o bibliófilo Martius atribuía o desaparecimento do gosto pela leitura. Começa a publicar no Jornal da Tarde uma tradução do romance Olivier Twist, de Dickens. Publica Falenas e Contos Fluminenses. 167 18711880 1871 - Lei do ventre livre. - Organização, no antigo Hospital da Ordem Terceira do Carmo (Rio de Janeiro), dos livros trazidos na bagagem da Família Real. - Criada a Escola Americana Mackenzie. - Criada a Biblioteca Pública de Porto Alegre. - Aberto ao público o Gabinete de Leitura de Pernambuco. 1872 - Autorização ao Visconde de Mauá para construção de cabo submarino entre Brasil e Portugal. - Primeiro recenseamento no Brasil 1873 - Fundação da Tipografia FrancoAmericana de Batista Luís Garnier (curta duração). - Centrais hidrelétricas Berger. - Chegada ao Brasil de Francisco Alves de Oliveira, sobrinho de Nicolau Alves, da Livraria Clássica. - Novas instruções para o despacho alfandegário de livros impressos. - Lançamento da Biblioteca Universal e da Biblioteca de Algibeira que publica Musset, Droz, Gauthier, Sardou,Verne, Montepin, Gaboriau até 1875. 1874 - Inauguração da iluminação a gás (Rio de Janeiro). - Inauguração do cabo submarino entre Brasil e Europa. - União por telégrafo das províncias do norte com a Corte. - Início da comercialização da máquina de escrever por E. Remington. - Plágio teatral de O Guarany por Vicente Coaracy e Pereira da Silva, com música de Carlos Gomes e sob protestos de Alencar. Publica Ressurreição (romance). Faz parte da Comissão do Dicionário Marítimo Brasileiro Publica Histórias da Meia-Noite e a tradução de Higiene para uso dos MestresEscolas, do Dr. Gallard. Nomeado primeiro-oficial da Secretaria de Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Publica, em O Globo, o romance A Mão e a Luva. 168 1875 - Cromossomos Strosburger e Fleming. 1876 - Alexander Graham Bell inventa o telefone. 1877 - Thomas Edison inventa o microfone e o fonógrafo. - Otto lança o motor de quatro tempos. - Iluminação elétrica - Thomas Edison. 1878 1879 1880 - 15º aniversário da Sociedade Brasileira de Ensaio Literários, comemorado com a oferta de A mão e a Luva, de Machado, e discurso de Fagundes Varela. Publica Americanas. Até 1878, escreve em todos os números da revista Ilustração Brasileira. Publica em O Globo o romance Helena. É promovido a chefe de seção da Secretaria de Agricultura. Publica, em O Cruzeiro, o romance Iaiá Garcia. Escreve na Revista Brasileira onde publica o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas. Escreve na revista A Estação onde publica o romance Quincas Borba. - Revolta do vintém (Rio de Janeiro). - Fundação da Sociedade Brasileira contra a Escravidão. - Fundação da Associação Central Abolicionista. 169 18811890 1881 1882 - Reforma Saraiva: estabelecimento do voto universal. - Fundação da Sociedade Central de Imigração. - Congrès Pèdagogique em Paris (após a guerra de 70, que a França perde, a vitória alemã é creditada à Educação alemã). - A Gazeta de Notícias oferece a seus assinantes de 6 meses ou o Almanaque do jornal ou livros de autores contemporâneos: França Jr., Araripe, Júlio Verne, José do Patrocínio. - abril e setembro: Rui Barbosa dá pareceres sobre a Instrução Pública à Câmara. Publica em volume as Memórias Póstumas de Brás Cubas. Publica Papéis Avulsos. 18 de Abril: nasce numa chácara de Taubaté, zona rural do rio Paraíba, São Paulo, José Renato Monteiro Lobato, filho primogênito de José Bento Marcondes Lobato e Olímpia Augusta Monteiro Lobato, e neto de José Francisco Monteiro, “Visconde de Tremembé” herdeiro da Fazenda Buquira. Desde pequeno é chamado pela mãe e familiares por “Juca”. É criado entre a fazenda Santa Maria, em Ribeirão das Almas, e a residência, em Taubaté. 170 1883 - Início da Questão militar. - Organização da Confederação Abolicionista. - Congresso da Instrução Pública no Rio de Janeiro sob presidência do Conde d’Eu. - Fundação da Associação dos Homens de Letras. 1884 - Libertação dos escravos no Ceará e Amazonas. 1885 - Emancipação dos escravos de mais de 60 anos através da Lei de SaraivaCotegipe (Lei dos Sexagenários). - Gottlieb e Daimler produzem o primeiro carro movido a gasolina 1886 - Fundação da Sociedade Promotora da Imigração. - Estabelecimento na convenção de Berna da proteção internacional dos direitos de autor. 1887 - Recusa do Exército em ser utilizado para captura de escravos fugidos. - Ondas eletromagnéticas Herth. 1888 - Abolição da escravatura. - Eastman lança o filme fotográfico. - Vinda de Ramalho Ortigão ao Brasil para inaugurar a nova sede do Gabinete Português de Leitura. - Abertura do Colégio Sion do Rio de Janeiro. 1889 - Proclamação da República. - Transformação da Editora Corazzi em Companhia Nacional Editora. Publica Histórias sem Data. - Representante de Aliança Francesa no Brasil. - Invenção do linotipo por Ottmar Mergenthaler. Sai o volume Terras, Compilação para Estudo. 171 18911900 1890 - Crise do encilhamento. - Convocação e eleição da Constituinte. - Criação da Sociedade dos Homens de Letras. - Suprime-se o ensino religioso nas escolas públicas - São Paulo. 1891 - Promulgação da Constituição. Deodoro da Fonseca: - Eleito com Floriano Peixoto. - Fecha o Congresso - Renuncia - Floriano Peixoto toma posse. Publica em volume o Quincas Borba. 1892 - Grande greve ferroviária na Central do Brasil. Passa a diretorgeral do Ministério da Viação. 1893 - Revolta da armada. - Revolução federalista no sul. - Elster e Geitel lançam a célula fotoelétrica. - Diesel lança o motor que leva seu nome. 1894 - Eleição e posse de Prudente de Morais. - Invasão do Rio Grande do Sul pelas forças federalistas: capitulação dos rebeldes. 172 1895 1896 1897 - Primeiras expedições contra Canudos. - Röentgen descobre o raio-X. - Os Lumière constroem o aparelho cinematográfico. - Popov e Marconi apresentam o telégrafo sem fio. - Criação do Nobel da Paz. - Novas expedições contra Canudos. - Primeiros Jogos Olímpicos modernos, em Atenas. - Becquerel: a radioatividade do Urânio. - Destruição de Canudos. 1899 1900 19011910 Até 1898, escreve na Revista Brasileira. - A Lei No 489, de 29 de dezembro de 1896 “torna obrigatório o ensino da língua nacional”. Publica Várias Histórias. Aclamado para dirigir a primeira sessão preparatória da fundação da Academia Brasileira de Letras, tem importante papel em sua criação e o preside até morrer. - Fundação da Academia Brasileira de Letras. Publica Dom Casmurro e Páginas Recolhidas. - Início da política dos governadores no Brasil. 1901 Publica Poesias Completas. 1902 - Eleição de Rodrigues Alves. - Radiofonia Stubbefield. 1903 - Transmissão de imagens por telégrafo - Korn. Passa a diretorgeral de Contabilidade do Ministério da Viação. 173 1904 - Revolta popular contra medidas sanitárias (Rio de Janeiro). 1905 - Queda nos preços internacionais do café. - Einstein: Teoria da Relatividade. - Marconi lança a antena de rádio. - Conferência Interamericana (Rio de Janeiro). - Santos Dumont voa com o 14 Bis. 1906 1907 1908 1909 - Impressão offset. Publica Esaú e Jacó. Morre Carolina dias antes de completarem 35 anos de casados. Publica Relíquias de Casa Velha. - Aprovação de lei que permite expulsão de estrangeiros acusados de agitação. - Irmãos Lumière inventam a fotografia colorida. - Aprovação de lei do Serviço Militar Obrigatório. - Teoria dos vôos interplanetários Tsiolkovsky. - Picasso e Braque inventam o cubismo. - Disputa da presidência por Hermes da Fonseca e Rui Barbosa na campanha civilista. - Marinetti publica o Manifesto Futurista Publica Memorial de Aires. Entra em licença para tratamento de saúde. Na madrugada de 29 de setembro, às 3h20min, morre em sua casa, à Rua Cosme Velho, 18. É sepultado como tinha pedido, na sepultura de Carolina, jazigo perpétuo 1359, Cemitério de São João Batista. 174 1910 19111920 1911 1912 1913 1914 - Vitória de Hermes da Fonseca. - Início dos governos das salvações nacionais. - Revolta da Chibata no Rio de Janeiro. - Francisco Alves compra a massa falida da Laemmert. - Estrutura planetária do átomo Rutherford. - Teoria cromossômica da hereditariedade Morgan. - Paralisação de 10 mil trabalhadores em greves operárias (São Paulo). - Decreto de Estado de sítio. - Ford desenvolve a linha de produção nas suas fábricas. - Eleição e posse de Venceslau Brás. 1915 - Protestos operários contra a Primeira Guerra Mundial. 1916 - Criação da Liga de Defesa Nacional. Publica Velha Praga e Urupês em O Estado de São Paulo. - Griffith filma O Nascimento de Uma Nação, primeiro longametragem com tons modernos. Colabora na Revista Brasil. 175 1917 1918 1919 - Grandes greves operárias (São Paulo). - Bombardeio de navio brasileiro na costa francesa, resultando em declaração de guerra à Alemanha. - Começa a Revolução Russa. - Fim da Primeira Guerra Mundial. - Eleição de Rodrigues Alves. - Estudos sobre os elétrons Thomson. Funda, em Caçapava, a revista Paraíba. Organiza para O Estado de S. Paulo uma pesquisa sobre o Saci. Publica crítica desfavorável à exposição de pintura de Anita Malfati. Compra a Revista Brasil. Publica em volume Urupês. Funda a Editora Monteiro Lobato & Cia. com o título O Problema Vital. Publica O Saci-Pererê. - Eleição de Epitácio Pessoa e derrota de Rui Barbosa. - Assinatura do Tratado de Versalhes. - Fundada a Liga das Nações. Rui Barbosa evoca a figura do Jeca Tatu. Publica Cidades Mortas e Idéias do Jeca Tatu. 1920 19211930 Publica Narizinho Arrebitado e Negrinha. 1921 - Grandes greves (Rio de Janeiro e São Paulo). - Telefotografia Belin. 1922 - Posse de Arthur Bernardes. - Motim no Forte de Copacabana. - Criação do Partido Comunista (Rio de Janeiro). 1923 - Revolução libertadora (Rio Grande do Sul). Publica O Saci, Fábulas de Narizinho e A Onda Verde. - Semana de Arte Moderna (São Paulo) Publica O Marquês de Rabicó e Fábulas. 176 1924 - São Paulo sofre bombardeamento aéreo durante a revolta tenentista. - Começa a Coluna Prestes. 1926 - Posse de Washington Luís (Getúlio Vargas é Ministro da Fazenda). 1927 - Lindenberg realiza a primeira travessia aérea do Atlântico. - Cinema sonoro é apresentado. 1928 - Eleição de Getúlio Vargas para governo do Rio Grande do Sul. - Stálin assume o poder na União Soviética. 1929 - Quebra da Bolsa de Valores de Nova York - Disputa da Presidência por Getúlio Vargas e Júlio Prestes. 1930 - Vitória de Júlio Prestes. - Assassinato de João Pessoa. - Revolução e golpe de Getúlio Vargas. - Dissolução do Congresso. Incorpora à sua editora uma moderna gráfica. Publica A Caçada da Onça, Jeca Tatu, O Garimpeiro do Rio das Garças e Mundo da Lua. Publica em folhetim O Presidente Negro e How Henry Ford is regarded in Brazil. Nomeado adido comercial brasileiro em Nova York para onde se muda. Planeja a fundação da Tupy Publishing Company. Publica As Aventuiras de Hans Staden e Mr. Slang e o Brasil. Organiza uma empresa brasileira para produzir aço. Publica O Noivado de Narizinho, Aventuras do Príncipe, O Gato Félix e Cara de Coruja. Perde tudo o que tem na quebra da Bolsa de Nova York. Publica O Irmão de Pinóquio e O circo de Escavalinho. Vende suas ações da Companhia Editora Nacional para cobrir perdas com a Bolsa. Publica A Pena do Papagaio e Peter Pan. 177 19311940 1931 - Queima de café para manutenção de preço. Funda a Companhia de Petróleo do Brasil. Organiza a publicação de várias histórias infantis no volume Reinações de Narizinho. Sai O Pó de Pirlipimpim. 1932 - Promulgação de leis trabalhistas pelo Governo Federal. - Revolução Constitucionalista (São Paulo). - Conquista do direito de voto pelas mulheres brasileiras. - Microscópio eletrônico - Knoll e Ruska. Publica Viagem ao Céu e América. 1933 - Início do New Deal nos EUA. - Hitler torna-se o 1o ministro alemão. Publica História do Mundo para Crianças, Caçadas de Pedrinho e Na Antevéspera. 1934 - Eleição de Getúlio Vargas pela Assembléia Constituinte. - Promulgação da nova Constituição. - Fundação da Universidade de São Paulo. História do Mundo para Crianças sofre críticas e censura da Igreja Católica. Publica Emília no País da Gramática. 1935 - Aprovação da Lei de Segurança Nacional. - Insurreição comunista (Natal e Recife). - Prisão dos militares revoltosos. - Invenção do radar - WattsonWatt. Publica Aritmética da Emília, Geografia de Dona Benta, História das Invenções. 178 1936 - Criação do Tribunal de Segurança Nacional. - Guerra Civil Espanhola. - Primeira transmissão televisiva, na Inglaterra. 1937 - Golpe de Getúlio Vargas. - Nova Constituição. - Estado Novo. - Criação do Instituto Nacional do Livro 1938 - Tentativa de golpe integralista. - Início da legislação sobre livro didático. Cria a União Jornalística Brasileira. Publica O Museu de Emília. 1939 - Início da Segunda Guerra Mundial: ocupação alemã da Polônia. - Fim da Guerra Civil Espanhola. - Fissão do Urânio - Hahn e Meitner. - Segunda Guerra Mundial: invasão alemã da Noruega, Dinamarca, Holanda, Bélgica e França. - Assassinato de Leon Trotsky no México. - Instituição do Salário Mínimo no Brasil. Publica: O Picapau Amarelo e O Minotauro. 1940 Ingressa na Academia Paulista de Letras. O governo proíbe e recolhe o recémpublicado O Escândalo do Petróleo. Publica Dom Quixote das Crianças e Memórias de Emília. - Conferência sobre Evaristo da Veiga, no Instituto Histórico (12 de maio). - Charles J. Fox Bunbury: Narrativa de viagem de um naturalista inglês ao Rio de Janeiro e Minas Gerais (1833-1835) (Anais da Biblioteca Nacional). Publica O Poço do Visconde, Serões de Dona Benta e Histórias de Tia Nastácia. Recusa convite de Vargas para dirigir o Ministério de Propaganda. Pelo teor de sua cartaresposta, é tido por subversivo e desrespeitoso. 179 19411950 1941 - Fundação da Companhia Siderúrgica Brasileira. - Ataque japonês a Pearl Harbour: entrada dos EUA na Guerra. - Primeiro avião de turborreator Wittle. Preso pelo Estado Novo. Publica O Espanto das Gentes e A Reforma da Natureza. 1942 - Declaração de guerra do Brasil à Alemanha e Itália. Publica A Chave do Tamanho. 1943 - Visita de Franklin D. Roosevelt ao Brasil. - Instituição da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). - Desembarque aliado na Normandia - Dia D. É realizada uma grande comemoração pelos 25 anos de publicação de Urupês. 1944 1945 - Fundação dos partidos políticos. - Deposição de Getúlio Vargas. - Eleição de Gaspar Dutra. - Fim da Segunda Guerra Mundial (Europa). - EUA lançam bombas atômicas no Japão. Fim da Guerra na Ásia. Recusa indicação para a Academia Brasileira de Letras. Publica Um Sonho na Caverna, Os Doze Trabalhos de Hércules e 2 volumes de A Barca de Gleyre. Convidado pelo PCB para integrar a bancada de candidatos. Recusa, mas saúda Prestes. Integra a delegação de escritores paulistas no Congresso Brasileiro de Escritores. Fica famosa a entrevista em que exige a democracia no país. 180 1946 - Posse Gaspar Dutra. - Instalação da Assembléia Nacional Constituinte. - Promulgação da nova Constituição. Contrário à fundação do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Publica Prefácios e Entrevistas. 1947 - Eleições estaduais em todo o Brasil. - Proibição do Partido Comunista Brasileiro (PCB). - Rompimento das relações RússiaBrasil. - Proibição da CGT. - Avião supersônico - Ind. Bell. - Cassado o mandato dos parlamentares eleitos pelo PCB. - Criado o Clube do Livro. - Criação do Estado de Israel. Criação do transistor - Barden e Brattain. Publica Zé Brasil e La Nueva Argentina. 1948 Sofre, em abril, um primeiro espasmo vascular que afeta sua motricidade. Na madrugada de 5 de julho, morre. Seu corpo é velado na Biblioteca Municipal SP) e o sepultamento realiza-se no Cemitério da Consolação. Postumamente foram publicados os textos inéditos: Literatura de Minarete; Conferências, Artigos e Crônicas; Cartas Escolhidas (em 2 volumes); Crítica e Outras Notas; Uma Fada Moderna; A Lampréia; No Tempo de Nero; A Casa de Emília e O Centaurinho. 181 1949 - Candidatura de Getúlio Vargas. - Soviéticos explodem sua primeira bomba atômica. - China torna-se comunista. - Assinado o Tratado do Atlântico Norte (Otan). 1950 - Inauguração do Maracanã (Rio de Janeiro). - Começa a Guerra da Coréia. - Vargas é eleito presidente. - Inauguração da TV Tupi (São Paulo). Exclusivamente para este quadro: http://www1.uol.com.br/bibliot/linhadotempo/index5.htm http://www1.uol.com.br/bibliot/linhadotempo/index6.htm 182