revista
v. 2 | n.2 | out. 2012/mar. 2013 | ISSN 2236-3424
Sociedade,
Comunicação
e Linguagem
Célio J. Losnak
Dorival Campos Rossi
Francisco Pinheiro
Javier Marzal-Felici
Jefferson Agostini Mello
Luiz Henrique de Toledo
Marcel Verrumo
Patrícia Porchat
Ricardo Souza de Carvalho
Samanta Aline Teixeira
revista
ISSN 2236-3424
revista faac | publicação semestral | Bauru | v. 2, n.2 | p. 111-212 | out. 2012/mar. 2013
revista
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publicar estudos relevantes e inéditos, na forma de artigos, ensaios, resenhas e
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à excelência acadêmica e científica de sua produção e diversidade temática,
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Revista FAAC / FAAC - Faculdade de Arquitetura, Artes e
Comunicação - v.1, n.1, abr. 2011. – Bauru, SP: a Instituição,
2011- .
Semestral
ISSN 2236-3424
1. Ciências Humanas - periódico I. Revista FAAC. II. FAAC Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação.
CDD: 070
CDD: 370
CDD: 720
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Capa e Diagramação
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Revisão
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Esta edição foi copatrocinada pela Pró-Reitoria de Extensão Universitária da
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Sumário
115
117
Sociedade, Comunicação e Linguagem
Chamada de Artigos
Cultura e Imagem
DOSSIÊ TEMÁTICO
Sociedade, Comunicação e Linguagem
121
131
145
151
165
La convergencia mediática como ideología – algunas reflexiones sobre la evolución de la
narrativa audiovisual en la era digital
Javier Marzal-Felici
Duplicidades e contradições em Bernardo Carvalho: o estético e o político;
o universal e o particular
Jefferson Agostini Mello
Os heróis do ensaio de Euclides da Cunha
Ricardo Souza de Carvalho
Jornalismo Narrativo em tempos de Belle Époque
Marcel Verrumo
Origami científico: a linguagem das dobraduras dentro do design contemporâneo
Dorival Campos Rossi; Samanta Aline Teixeira
ARTIGOS LIVRES
181
195
Portugal de calções – para uma gênese do desporto enquanto fenômeno mediático
Francisco Pinheiro
Psicanálise, gênero e singularidade
Patrícia Porchat
RESENHAS
205
209
Memórias de um criminoso
Célio J. Losnak
Futebol, política e religião: a vingança do reacionário
Luiz Henrique de Toledo
Sociedade,
Comunicação e Linguagem
A contemporaneidade reservou um lugar privilegiado a algumas áreas do conhecimento e, dentre
elas, a Comunicação ocupa um espaço singular. A
constatação parece óbvia: como dizíamos na chamada desta edição, “a velocidade e a profundidade
das mudanças contemporâneas têm desafiado diversas disciplinas a interpretá-las adequadamente,
esforço nem sempre bem-sucedido em razão da
complexidade desses fenômenos cujos sentidos e
significações ainda estão por serem desvendados”.
Nesses tempos desafiadores, expressões incorporadas à rotina (“sociedade global”, “mundo sem barreiras”, “terceira revolução industrial”, “novas tecnologias da informação e comunicação”, “mundo
digital”, etc.) muitas vezes carecem de fundamento
e conceituação, sob pena de soarem ocas.
O esforço aqui empregado consistiu em absorver a reflexão de pesquisadores de diferentes áreas
com o propósito de melhor equacionar a diferença
existente entre o conhecimento que se produz e as
desafiadoras demandas advindas dos novos fenômenos sociais, comunicacionais e tecnológicos que
marcam o tempo presente.
Evidentemente, desafio dessa monta não se esgota em uma edição, mesmo porque as engrenagens
sociais, além de complexas, lançam mão de múltiplas linguagens e discursos que se transformam em
conteúdos e significados igualmente diversos.
Nossa edição é aberta justamente com o dossiê Sociedade, Comunicação e Linguagem. Em La
convergencia mediática como ideología – algunas
reflexiones sobre la evolución de la narrativa audio-
visual en la era digital, o pesquisador espanhol Javier Marzal-Felici faz uma revisão do conceito de
re-mediación, por meio do qual examina algumas
práticas transmedia e crossmedia no cinema contemporâneo e analisa hibridizações e discursos
de interdependências. No plano da estética e da
semiótica, Marzal-Felici observa a clara hegemonia
do discurso e da linguagem da publicidade. De
forma complementar, sob a abordagem da economia política da comunicação, a ampliação das
hibridizações discursivas e o fenômeno da convergência midiática se mostram claramente subordinados à ideologia dominante, o neoliberalismo de
escala global. Para manter a fidelidade ao artigo, o
texto foi mantido no original, em espanhol.
Na sequência, em Duplicidades e contradições
em Bernardo Carvalho: o estético e o político; o universal e o particular, Jefferson A. Mello analisa o
lugar de Bernardo Carvalho na literatura brasileira
e no espaço literário mundial. Síntese de pesquisas realizadas no Brasil e no exterior desde 2006,
o ponto de partida é a análise de um dos romances
de Carvalho, O sol se põe em São Paulo, buscando
relacioná-lo com os textos de crítica do romancista
e, assim, lançar elementos para uma compreensão
mais substancial do suposto projeto literário deste
autor. Para Mello, a construção do romance e as referências adotadas por Carvalho explicitam a perspectiva cosmopolita deste autor.
Em Os heróis do ensaio de Euclides da Cunha,
Ricardo Souza de Carvalho faz a releitura de um
autor e de uma obra clássica da literatura nacional.
115
revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, out. 2012/mar. 2013.
Apresentação
Embora tenha absorvido a representação histórica
proposta por Carlyle, argumenta Carvalho, Euclides teria modificado essa matriz em razão do contexto nacional em torno do emblemático estudo do
herói. Entre outras coisas, Carvalho ainda constata
que o autor de Os sertões viu na imprensa um modo
para o ensaio de suas ideias, espécie de esboço para
uma obra mais acabada e, portanto, duradoura.
Seguindo essa senda de estudos literários em
sua relação com a cultura e os fenômenos da vida
social moderna, Marcel Verrumo analisa a obra do
repórter Benjamim Costallat em Jornalismo narrativo em tempos de Belle Époque. O contexto do registro jornalístico se dá por ocasião do processo de
modernização da então capital do Brasil, o Rio de
Janeiro dos anos 1920. Nota-se que a observação
arguta de Costallat é multissocial, lança sua lupa
tanto às elites quanto aos estratos mais baixos. A
linguagem erótica e o jornalismo sensacionalista
são analisados com fina perspicácia no contexto da
Belle Époque.
Origami científico: a linguagem das dobraduras
no design contemporâneo, de Dorival Rossi e Samanta Teixeira, analisa as funções mais abrangentes assumidas pelo origami, ou seja, como este se
expressa enquanto linguagem contemporânea aplicada aos processos projetuais. A conclusão dos autores é que o origami é dotado de uma funcionalidade tangível intrínseca que favorece o pensamento
criativo.
Já na seção de Artigos livres, o pesquisador lusitano Francisco Pinheiro percorre o caminho da
historiografia para interpretar o futebol como fenômeno midiático em Portugal de calções – para uma
génese do desporto enquanto fenómeno mediático.
O autor analisa a emergência do futebol como fenômeno de massas e o comportamento da mídia
desde sua formação, em meados do século 20, interpretando a proliferação de periódicos esportivos
e futebolísticos daquele período. Em respeito à fidelidade ao original, o texto foi mantido sob a forma do português europeu.
Fechando essa seção, Psicanálise, gênero e singularidade, de Patrícia Porchat, percorre o panta-
noso terreno da sexualidade e do preconceito sob
o olhar da psicologia e da psicanálise. O texto assinala que, cada vez, mais a psicologia em geral e
a psicanálise em particular têm sido desafiadas a
se manifestarem sobre as questões de gênero e de
sexualidade. Normativo, o texto constata que a atuação desses profissionais carece de reflexão e explicitação sobre a concepção de sujeito que adotam,
base a partir da qual a autora contesta as tendências
à patologização e ao caráter reducionista da concepção binária de gênero.
Por fim, na seção de resenhas, Célio Losnak revisita o espinhoso tema da tortura em Memórias de
um criminoso. O livro resenhado, Memórias de uma
guerra suja, dos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros, traz depoimento de Cláudio Guerra,
um ex-agente dos serviços de repressão durante a
ditadura militar (1964-1985). O resenhista destaca
que há um farto material histórico sobre o tema,
mas destaca a singularidade do relato de Guerra
pela riqueza de detalhes e pelo indigesto tema do
apoio que o regime autoritário recebeu de diversos
segmentos da sociedade civil.
Finalmente, em Futebol, política e religião: a
vingança do reacionário, Luiz Henrique de Toledo
analisa o livro O futebol em Nelson Rodrigues. O
óbvio ululante, o Sobrenatural de Almeida e outros
temas, de José Carlos Marques. O universo rodrigueano e seus recursos hiperbólicos servem como
referência para uma tentativa mais ousada que a
“simples” interpretação do futebol, ou seja, na verdade haveria nesse empreendimento um esforço
mais ousado de compreender a própria sociedade
brasileira. Toledo observa que o trabalho de Marques, ao invocar a tradição barroca presente na crônica de Nelson Rodrigues, percebe que o futebol
transcende qualquer definição reducionista e empobrecedora, instituição da mesma estatura que a
religião ou a política.
Os Editores
116
Chamada de artigos
Cultura e Imagem
Revista Faac convida pesquisadores de diversas
áreas do conhecimento a colaborarem com textos
inéditos para sua próxima edição (v.3, n.1), cujo
dossiê temático versará sobre Cultura e Imagem.
Ao longo de nossa história moderna, impulsionados por um espectro amplo de práticas sociais, os
termos cultura e imagem obtiveram diferentes sentidos e os seus desdobramentos são ainda motivo
para uma reflexão permeada de complexidades e
debates intelectuais intensas. Cultura, como alertou
Raymond Williams, um dos grandes teóricos culturalistas do século XX, tornou-se, após o processo
de modernização do mundo ocidental, uma palavra
que passou a ser utilizada para se referir a conceitos
basilares ambientados em contextos disciplinares
diferentes e em sistemas de pensamento diametralmente opostos, quando não incompatíveis. Imagem,
por sua vez, apresenta o mesmo grau de complexidade no tocante às suas acepções e aos seus usos. Ao
seu conceito mais geral, gênese de outros sentidos
modernos, pode-se notar tanto a relação com sua
raiz latina imago, ligando-se à ideia e visão, como
uma possível conexão à raiz arcaica imitate, de onde
se podem extrair os sentidos de cópia, imitação,
imaginação e imaginário. No atual estágio de modernização, independente da formas metodológicas
e das perspectivas teóricas adotadas, o alcance dos
dois termos, quando postos lado a lado, propõe ao
campo mais geral das Humanidades uma equação
de múltiplas respostas. Não é exagero dizer que,
no mundo contemporâneo – com suas performances sociais e constantes estímulos visuais – cultura
e imagem caminham pari passu e, cotidianamente,
este binômio se redefine, trazendo à tona novas práticas sociais de interação e novos usos de linguagem
para a vida social em transformação. Nesse horizonte reflexivo de peculiar intervenção intelectual,
tendo em vista o seu caráter interdisciplinar e multidisciplinar, Revista Faac quer estimular o debate sobre os significados assumidos por cultura e imagem
em múltiplos âmbitos científicos, tanto nos dias de
hoje, quanto em formas do passado ou ainda no que
se refere às tendências futuras. O convite encoraja a
reflexão sob três eixos gerais: (1) contribuições metodológicas e de caráter teórico que formulem uma
conceituação e uma ampliada discussão dos termos
imagem e cultura, considerando os seus possíveis
desdobramentos – reunidos sob as formas de cultura das mídias, a cultura das imagens, as formas produzidas e/ou reproduzidas das imagens da cultura,
a crítica cultural, as marcas do imaginário na cultura contemporânea, os meios de comunicação e suas
formas de assimilação da cultura imagética, dentre
outras possibilidades; (2) análises críticas que contemplem as formas de representação das imagens e
os seus produtos visuais e culturais produzidos no
mundo contemporâneo, abarcando contribuições
próprias e singulares do campo do design, dos conhecimentos da arquitetura e do urbanismo, das
discussões literárias, cinematográficas e dos campos
117
artísticos e culturais de modo geral; (3) exames críticos dos diferentes processos constitutivos de produção de imagens no mundo cultural contemporâneo,
com vistas à análise dos fluxos contemporâneos de
produção e circulação de objetos culturais imagéticos, e também às formas de consumo e recepção de
imagens, às formas imagéticas contrastantes entre
uma suposta produção mais central e outra periférica, às formas de atuação e disputas de instituições
culturais e sociais e seus grupos, num mundo predominantemente imagético. Além do dossiê temático sobre Cultura e Imagem, também podem ser
encaminhados artigos, ensaios, críticas e resenhas
de temas livres. As normas de submissão e análise
estão disponíveis aqui. Os trabalhos serão recebidos
por meio eletrônico até 28/02/2014, e os autores
poderão acompanhar o progresso de sua submissão
através do sistema eletrônico da revista.
Dossiê
Temático
La convergencia mediática como
ideología – algunas reflexiones sobre
la evolución de la narrativa audiovisual
en la era digital
MARZAL-FELICI, Javier
Resumo
Nestas páginas, revisamos a noção de re-mediación, propomos o exame de algumas práticas transmedia e crossmedia no cinema contemporâneo e analisamos uma série de hibridizações e interdependências discursivas que
ocorrem no campo dos games. Nossa análise conclui com uma reflexão que segue dois eixos distintos: de um
ponto de vista semiótico e estético, é proposto, como hipótese de trabalho, que o verdadeiro discurso hegemônico do nosso tempo, característica da convergência de mídias, é a linguagem da publicidade; por sua vez, do
ponto de vista da economia política da comunicação, salientamos que o aumento das hibridações discursivas
e o fenômeno da convergência midiática devem estar relacionados à escala planetária da ideologia dominante, o
neoliberalismo, o que explica, finalmente, o cenário midiático que está sendo desenhado em nível global.
Palavras-chave: Convergência midiática – Narrativa audiovisual – Videojogos – Publicidade – Economia política da
comunicação.
Resumen
En estas páginas se revisa la noción de re-mediación, se propone un examen de algunas prácticas transmedia y
crossmedia en el cine contemporáneo y se analiza una serie de hibridaciones e interdependencias discursivas que
se están produciendo en el campo de los videojuegos. Nuestro examen finaliza con una reflexión que sigue dos ejes
diferenciados: desde un punto de vista semiótico y estético, se propone como hipótesis de trabajo que el auténtico
discurso hegemónico de nuestro tiempo, característico de la convergencia mediática, es el discurso publicitario; por
otro, desde el punto de vista de la economía política de la comunicación, se subraya que el auge de las hibridaciones
discursivas y el fenómeno de la convergencia mediática debe ponerse en relación con la ideología dominante a escala
planetaria, el neoliberalismo, que explica, en última instancia, el escenario mediático que se está dibujando a nivel
global.
Palabras clave: Convergencia mediática – Narrativa audiovisual – Videojuegos – Publicidad – Economía política de
la comunicación.
Abstract
In these pages we review the notion of re-mediation, we propose a review of some transmedia and crossmedia
practices in contemporary cinema and analyzed a series of hybridizations and interdependencies discourse
121
revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 121-129, out. 2012/mar. 2013.
MARZAL-FELICI, Javier. La convergencia mediática como ideología – algunas reflexiones sobre la evolución de la narrativa audiovisual en la era digital
taking place in the field of gaming. Our review concludes with a reflection that follows two distinct axes: from
a semiotic point of view and aesthetic, is proposed as a working hypothesis that the true hegemonic discourse
of our time, characteristic of media convergence, is the language of advertising, on the other, from the point of
view of political economy of communication, it is stressed that the rise of the hybridizations discursive and media convergence phenomenon must be related to the planetary scale dominant ideology, neoliberalism, which
explains ultimately the media landscape is being drawn globally.
Keywords: Convergence media - visual narrative - Games - Advertising - Political economy of communication.
Introducción: el contexto de la
revolución digital
naturaleza diferente al cine. Mientras el cine “socializa”, “forma sentido de comunidad”, “satisface
un imaginario” y “promete una realización sexual”
(Cherchi, 2001, p.54), la imagen digital tiende a
ocultarse mejor en la memoria del espectador, “por
su relativa simplicidad tecnológica, el bajo nivel de
atención exigida y la naturaleza incompleta de la
imagen” (Cherchi, 2001, p.80).
Podemos señalar que la virtud del ensayo de
Cherchi es sacar a la luz una polémica que en el
contexto de la historiografía cinematográfica está
totalmente ausente. Durante años, todos los que
nos dedicamos a la investigación y a la docencia
de la teoría e historia de la imagen hemos insistido ante nuestros estudiantes en la necesidad de
establecer una nítida separación entre la naturaleza
de la imagen cinematográfica y de la imagen electrónica. La tecnología digital ha hecho posible la
convergencia entre medios de comunicación, hasta
el punto de que hoy no puede hablarse del cine
como fenómeno comunicativo independientemente de otros medios o formas de comunicación como
la fotografía, la televisión, la publicidad, internet,
los videojuegos o los discursos multimedia, en general, ya que estamos inmersos en el universo de
lo audiovisual (Company & Marzal-Felici, 1999),
expresión del mundo globalizado –en especial, en
los planos ideológico, económico y político– en el
que vivimos.
Hemos introducido el debate en torno a la imagen digital a través de las provocativas y polémicas reflexiones de Paolo Cherchi acerca del futuro
(ahora presente) del cine. No obstante, el fenómeno de la convergencia mediática inunda y afecta a
todas las formas de comunicación audiovisual, por
lo que creemos necesario realizar un breve examen,
cuanto menos, de algunos campos de reflexión que
nos parecen especialmente interesantes, por ser
muy fértiles a la hora de generar ideas y reflexiones acerca del estatuto de la imagen en la sociedad
contemporánea.
Hace poco más de 12 años, en 2001, Paolo
Cherchi Usai publicaba un breve ensayo titulado
The Death of Cinema. History, Cultural Memory
and the Digital Dark Age / La muerte del cine.
Historia y memoria cultural en el medievo digital (Cherchi, 2001). No sería muy destacable este
hecho si no fuera porque Paolo Cherchi Usai era
entonces Restaurador Senior del Departamento de
Cinematografía en la George Eastman House (Kodak) y Director del “L. Jeffrey Selznick School of
Film Preservation”, un centro de formación de restauradores y conservadores de cine, responsabilidades que abandonó poco después, y a las que ha
regresado en 2011.
Este breve y peculiar ensayo de Paolo Cherchi
está estructurado como una colección de breves reflexiones –52 textos que van desde una sola linea a
una página completa– a propósito de la naturaleza
del cine, más allá de lo que significa el trabajo de
conservación y restauración de las películas. En la
introducción, Cherchi señala cómo la revolución digital se ha convertido en una “ideología persuasiva”,
sobre la que parece existir un consenso definitivo,
ya que poner en duda sus “virtudes” sería una actitud tan atrevida como oponerse al “progreso científico”. La cuestión de fondo tratada por el autor es
la caracterización del objeto de la historia del cine y
de las implicaciones filosóficas y culturales del trabajo de conservación y restauración cinematográficas. Paolo Cherchi señala que “la destrucción de las
imágenes en movimiento es lo que hace posible la
historia del cine” (Cherchi, 2001, p.19).
Es cierto que si todos los objetos cinematográficos estuvieran disponibles, sería muy difícil establecer criterios de relevancia. Con respecto a la
imagen digital, Cherchi señala que su destino es el
mismo que el de la imagen fotoquímica. La imagen electrónica, nos recuerda Cherchi, posee una
122
revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 121-129, out. 2012/mar. 2013.
MARZAL-FELICI, Javier. La convergencia mediática como ideología – algunas reflexiones sobre la evolución de la narrativa audiovisual en la era digital
Aclaraciones necesarias:
algunos conceptos básicos
propio espacio de significado cultural de forma separada y autónoma.
Así pues, el término re-mediaciones viene a describir el actual contexto de la convergencia mediática. Estamos inmersos en un escenario audiovisual
en el que predominan las hibridaciones discursivas: las influencias entre el cine y la televisión, la
fotografía y el cine, el cómic y el cine, el cine y
los videojuegos, los videojuegos y la televisión, la
publicidad y el cine, la publicidad y la televisión
son constantes actualmente. Son influencias que se
detectan en los modos de representar, narrar, consumir y comerciar las imágenes. Sin duda alguna, la
transmutación de la imagen en digital ha facilitado
y acentuado mucho más el mestizaje entre los discursos audiovisuales contemporáneos, aunque este
asunto venga realmente de bastante atrás, mucho
antes de la irrupción de las tecnologías digitales.
La pregunta inicial que cabe hacerse es “¿de qué
hablamos cuando nos referimos a la convergencia
de medios?”. Es evidente que la irrupción de las tecnologías digitales ha hecho posible la convergencia
mediática: el cine digital, la fotografía digital, la TV
digital, la radio digital, la música digital, la pujante
industria de los videojuegos, la prensa digital, etc.,
han ido convergiendo, adoptando unos estándares
tecnológicos comunes, y configurando además un
nuevo universo –el de lo audiovisual– que parece
ser, en apariencia, bastante homogéneo.
No obstante, el verdadero cambio cabe situarlo
sobre todo en la forma de consumir estos bienes
culturales, a través de internet y de las redes sociales. En muchos casos, se ha pasado de una manera
colectiva de consumo –especialmente evidente en
el caso del cine (en las salas de exhibición) y de la
televisión (el modelo dominante durante décadas
ha sido el de las televisiones generalistas comerciales)– a un consumo individualizado.
Actualmente, el escenario de la convergencia de
medios ha sido descrito como un terreno de “remediaciones”. El término “re-mediación”, desarrollado por Bolter y Grusin en su libro Remediation.
Understanding New Media (1999) designa la lógica
por la que los nuevos medios remodelan medios
anteriores valiéndose de una doble estrategia, aparentemente contradictoria: la inmediatez y la hipermediacidad. Como punto de partida, destacan
que la idea de re-mediación se fundamenta en el
concepto de genealogía de la imagen propuesto por
Foucault: no se trata de hallar el origen de la imagen digital, sino de realizar un ejercicio que pretende explorar las relaciones que se han dado entre
diferentes medios a lo largo de los últimos siglos
para entender la forma en la que se relacionan hoy
en día. La re-mediación, pues, no nació con la introducción de la imagen digital, sino que ésta sólo
ha alterado la velocidad a la que se producen los
intercambios entre medios.
La inmediatez y la hipermediacidad son manifestaciones contrarias de un mismo deseo, el deseo de
sobrepasar los límites de la representación y de alcanzar lo real. Bolter y Grusin afirman que, en este
momento histórico, todos los medios funcionan
como re-mediadores y, por tanto, la re-mediación
ofrece una vía para interpretar los medios anteriores también. De esta forma, ningún medio puede
funcionar de forma independiente y establecer su
Prácticas transmedia y
crossmedia en el cine
contemporáneo
Cabría matizar que, en un contexto de creación
como el cine, el término crossmedia se refiere específicamente a la puesta en marcha de proyectos
multiplataforma con una temática que aglutina
materiales muy variados que los propios usuarios pueden compartir, especialmente, a través de
la creación de portales o sitios web creados a tal
efecto, siempre dependiendo del planteamiento del
proyecto y del grado de interactividad prevista por
la dirección de dicho proyecto.
En contraposición, un proyecto transmedia es
asimismo “un proyecto multiplataforma que cuenta
con una trama clara, compuesta por varias historias que pueden desarrollarse en diferentes formatos como videojuegos, blogs, películas o juegos de
rol, y que, a su vez, pueden distribuirse a través de
plataformas distintas como móviles, cines uordenadores” (Sanmartin, 2012, p. 35), donde el usuario
tiene la posibilidad de elegir entre diferentes propuestas para seguir o participar en el desarrollo
de la historia, donde cada una de ellas posee una
forma y sentido propios. Los proyectos transmedia cuentan con una tradición importante en el
ámbito del cine: desde La guerra de las galaxias
(Star Wars, Georges Lucas, 1977), que ha conocido sus versiones como serie de dibujos animados
para televisión, videojuegos, cómic, novelas, etc.,
hasta Avatar (James Cameron, 2009), también con
su videojuego correspondiente, y un extraordina123
revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 121-129, out. 2012/mar. 2013.
MARZAL-FELICI, Javier. La convergencia mediática como ideología – algunas reflexiones sobre la evolución de la narrativa audiovisual en la era digital
rio despliegue de productos de merchandising, que
han dado más beneficios que las propias películas
en ambos casos.
Nos hallamos, pues, en un nuevo contexto en
el que han empezado a cobrar un especial protagonismo las redes sociales, el auge de los videojuegos
en línea y de los juegos de rol, lo que ha llevado al
desarrollo de historias que se desarrollan de forma
viral. En definitiva, estamos ante un fenómeno que
Henry Jenkins define como “convergencia mediática”, concepto a relacionar con el de cultura participativa y la noción de inteligencia colectiva. Por
“convergencia”, Jenkins entiende “el flujo de contenido a través de múltiples plataformas mediáticas,
la cooperación entre múltiples industrias mediáticas
y el comportamiento migratorio de las audiencias
mediáticas, dispuestas a ir casi a cualquier parte en
busca del tipo deseado de experiencias de entretenimiento. ‘Convergencia’ es una palabra que logra
describir los cambios tecnológicos, industriales,
culturales y sociales en función de quienes hablen
y de aquello a lo que crean que están refiriéndose”
(Jenkins, 2008, p.14).
Por un lado, podemos hallar ejemplos tan elocuentes de hibridaciones discursivas como el found
footage (literalmente, el metraje encontrado), en
cuyo contexto numerosos artistas emplean materiales hallados para su reciclaje y adaptación,
como podrían ilustrar los trabajos de Luis Fernández Pons –Desfile militar. Madrid, 12 de octubre de
2002, 2003, pieza mostrada en un contexto diferente al original–, Eugeni Bonet –A Spanish Delight,
2007, apropiación de un material ajeno, en la lógica
del objet trouvé o del duchampiano readymade–,
Sonia Armengol –ABC pornographique, 2007, con
la manipulación química de la película hallada–,
Gerard Freixes –Alone, 2008, basado en la manipulación digital de imágenes–, David Ferrando –Night
of the Living Dead, 2006, ejemplo de remonaje
audiovisual–, Enrique Piñuel –The Dancer’s Cut,
2007, experimentación de sincronización de imágenes y música–, Gerard Gil –Miralls, 2006, como
ejemplo de utilización poética del found footage–,
Alberto Cabrera Bernal –Matar a Hitchcock, 2008,
collage audiovisual que expolia fragmentos clásicos
como provocación–, entre muchos otros ejemplos,
que han sido estudiados con rigor y exhaustividad
(Gloria Vilches, 2010).
Por otro lado, es muy notable la aparición de numerosas prácticas cinematográficas o audiovisuales
en la red, que se enmarcan tradicionalmente en un
contexto amateur, si bien la cuestión parece mucho
más compleja. La pieza clave que ha cambiado en
el nuevo contexto de la convergencia mediática es,
sin duda, la instancia receptora, el consumidor del
cine y de productos audiovisuales que se ha tansmutado en algo bien diferente: el llamado prosumer
(producer + consumer), un tipo de espectador que
ya no se limita a consumir lo que le ofrecen los canales de distribución tradicionales, sino que desea
participar activamente en su producción, de forma
colaborativa.
Se pueden citar, en este contexto, distintos
trabajos como los de Vicent Moon y la banda de
música Efterklang, cuyo proyecto de producción
An Island (2011), junto a otros como Les petites
planètes (2011), se propone desafiar los sistemas de
distribución y exhibición tradicionales, al facilitar a
quien lo desee el material de exhibición en DVD, a
condición de que éste se comprometa a organizar
proyecciones del material en público y de forma
gratuita (López Riera, 2011). Uno de los proyectos
colaborativos más conocidos es la reciente producción de Ridley y Tony Scott, La vida en un día (Life
in a Day, Kevin MacDonald, 2010), a través de su
productora “Scott Free”, film resultado del montaje
de 4.500 horas de vídeo, cuyas imágenes grabadas
el 24 de julio de 2010 fueron enviadas por personas
procedentes de 192 países.
También la red ha sido testigo de la transformación de algunos portales tradicionalmente centrados en la distribución ilegal de películas – como
BitTorrent o Vodo – que empiezan a distribuir producciones cinematográficas independientes (Menotti, 2012). Como han señalado distintos autores
(Lasica, 2005; Lessig, 2008), el futuro de las industrias culturales y, en especial, del cine pasa por
la red, una idea que empieza a ser asumida (todavía tímidamente) por los grandes estudios de Hollywood. De este modo, asistimos a la proliferación
de portales para el consumo de productos audiovisuales en línea, desde el pionero servicio Movielink (impulsado en 2002 por algunas majors como
Universal Studios, Warner Brothers, Sony Pictures,
Paramount Pictures y Metro Goldwing Mayer, y adquirido en 2007 por la empresa Blockbuster), junto a otros como Vudu, Cinemanow, Hulu, iTunes,
Netflix, Filmotech, etc., cuyo negocio va creciendo
lentamente mientras infinidad de portales ofrecen
descargas gratuitas de películas, series de televisión
y otros contenidos audiovisuales.
Sin duda, una de las preguntas que surgen inmediatamente es cómo se pueden financiar propuestas de found footage o de producción colabora-
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MARZAL-FELICI, Javier. La convergencia mediática como ideología – algunas reflexiones sobre la evolución de la narrativa audiovisual en la era digital
los últimos años una explosión de versiones cinematográficas como Iron Man (Jon Favreau,
2008), Capitán América (Joe Johnston, 2011),
X-Men (Bryan Singer, 2000), Daredevil (Mark
Steven Johnson, 2003), Hulk (Ang Lee, 2003),
por no citar otras franquicias importantes
como Batman, iniciada en 1989 por Tim Burton, Spiderman, saga cuyo primer film fue dirigido por Sam Raimi en 2002, o Superman, otra
conocida saga iniciada en su momento bajo la
dirección de Richard Donner en 1978.
El empuje del cine ha sido aprovechado por
el sector de los videojuegos de manera intensiva, ofreciendo la posibilidad al espectador
de que éste se convierta, temporalmente, en
jugador que puede así “vivir” la experiencia
protagonizada por sus personajes favoritos de
la ficción cinematográfica (Sáez et al., 2011,
p.1101-17). Algunos de los videojuegos basados en películas muy conocidas son El Señor
de los Anillos, La batalla por la Tierra Media,
inspirado en la saga de Peter Jackson (2001,
2002, 2003); Spiderman 3, inspirado en el film
de Sam Raimi (2007); 007. Quantum of Solace,
inspirado en el film de Marc Foster (2008); El
increible Hulk, basado en las versiones cinematográficas de Ang Lee (2003) y Louis Leterrier
(2008), inspirado en el cómic de Stan Lee y
Jack Kirby (1962); Los 4 Fantásticos, basado
en el film de Tim Story (2005), y en el cómic
de Jack Kirby (1961); Piratas del Caribe en el
Fin del Mundo, adaptación al formato de videojuego del film dirigido por Gore Verbinski
(2003); etc. En todos los casos, se cuenta con
la ventaja de que el jugador está familiarizado
con el entorno gráfico del videojuego, inspirado en los films citados, con el fin de conseguir
una inmersión del espectador-jugador gracias a
la intensificación del realismo cinematográfico,
al tener éste la oportunidad de decidir adónde
va y qué es lo que hace (Darley, 2002, p.249).
Para conseguir tales efectos en el jugador,
se busca una recreación fidedigna de personajes, escenarios y ambientes que ya aparecen en
el film correspondiente e, incluso, se emplean
técnicas de planificación de cada “secuencia” (o
“pantalla”) similares o equivalentes a la película
que sirve de inspiración, a través del uso del
mismo tipo de escala de planos, de duración,
de movimientos de cámara, efectos de sonido,
etc., que recuerdan el estilo fílmico de la película que sirve de referente. De manera general,
tiva a las que hemos hecho referencia. La respuesta
la tenemos (sólo parcialmente) a través del llamado
crowdfounding, sistema de financiación colectiva y
voluntaria que permite captar fondos gracias a la
contribución de miles de internautas que así se convierten en coproductores de estas producciones. En
efecto, en los últimos años hemos asistido a una
multiplicación de iniciativas en este sentido, que
exceden el ámbito de la producción cinematográfica y también se han dado en el campo de la moda
(www.catwalkgenius.com), la música (www.sellaband.
com) o la televisión (www.myspace.com/crowdedreality). En el ámbito español, destacan algunas iniciativas como www.lanzanos.com, que se ofrece como
plataforma para captar recursos económicos para
el sostenimiento de proyectos en campos como la
producción de videojuegos, películas, documentales, cortometrajes o películas de ficción, el lanzamiento de revistas culturales, la financiación de iniciativas empresariales, de proyectos solidarios, etc.
Algunos films producidos según este sistema
son The Age of Stupid (Franny Armstrong, 2009),
documental sobre el cambio climático nominado
en los British Independent Film Awards, que consiguió recoger más de medio millón de euros, o el
caso de El cosmonauta (Nicolás Alcalá), que en estas fechas (mayo de 2013) ha finalizado ya el rodaje
del film y su postproducción, y está pendiente de
su estreno en salas. El film que ha conseguido recoger más de 400.000 euros en donaciones de más
de 3.800 productores y de 500 inversores. De este
modo, se puede afirmar que este tipo de iniciativas
sólo son posibles gracias a una economía híbrida,
como diría Lawrence Lessig (2008), para cuyo sostenimiento se buscan las más variadas fuentes de
financiación, tradicionales y de la red 2.0.
Cine y videojuegos: un
espacio para las hibridaciones
discursivas
Hemos señalado cómo el mercado del entretenimiento ha adoptado como estrategia
empresarial y comercial la producción de contenidos crossmedia y transmedia. De la producción de películas para cine se ha pasado a
la producción de versiones de films conocidos
para televisión, bajo el formato de series como
Las aventuras del jovel Indiana Jones (George
Lucas, 1992); de cómics muy conocidos y denostados por la alta cultura en los años setenta
como los héroes de Marvel, hemos asistido en
125
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MARZAL-FELICI, Javier. La convergencia mediática como ideología – algunas reflexiones sobre la evolución de la narrativa audiovisual en la era digital
se puede afirmar que en el contexto de estos videojuegos “adaptados” de films muy conocidos
lo fundamental ya no es la calidad de imagen o
el realismo de la puesta en escena: mucho más
importante es la interactividad que define en
cada caso el propio videojuego.
Sin lugar a dudas, el estudio del videojuego como texto audiovisual merece ser estudiado con especial atención, dado que el sector de
los videojuegos ha pasado a ser uno de los más
importantes de las industrias culturales, siendo
más relevante en facturación que los sectores de
la música y el cine juntos en estos momentos.
Creemos con Aarseth (2001) que el universo de
los videojuegos debe ser atendido de manera específica y autónoma respecto a otras formas de
representación como el cine. Coincidimos con
Dovey y Kennedy (2006: 86), cuando afirman
que en tanto que objeto cultural, que guarda una
estrecha relación con otros medios tradicionales
como la fotografía, el cine o la televisión, cabe
abordar el estudio del universo de los videojuegos a través de la aplicación de metodologías híbridas. Sin duda, nos hallamos ante un objeto de
estudio que desafía al analista de manera muy
notable, incluso en cuestiones tan elementales
como el hecho de que nos hallamos ante textos –los videojuegos– de naturaleza totalmente
cambiante y mutable, al depender su materialidad de la interacción del propio consumidor del
videojuego (Dovey & Kennedy, 2006, p.99).
y mejor conocimiento del consumidor final, lo que
facilita la posibilidad de elaborar mensajes cada vez
más personalizados y específicos. Dentro de esta
coyuntura, se observan cambios y adaptaciones que
la publicidad está experimentando en sus estrategias, en sus medios y formatos, en la confección
de sus mensajes e incluso en la propia concepción
de la publicidad y la agencia tradicional. Y en esta
reorientación, asistimos también a un proceso de
acercamientos, hibridaciones y fusiones en formas,
géneros y sistemas de los ámbitos del periodismo,
la comunicación audiovisual y la publicidad, interrrelaciones que favorecen la adaptación del lenguaje publicitario al nuevo contexto digital.
En cierto modo, se podría afirmar que la tecnología digital aplicada a los discursos audiovisuales
permite construir, por un lado, imágenes más creíbles y verosímiles, más “reales”, si se quiere, que
las fotoquímicas, puesto que con ella es más fácil
ocultar las huellas de la mirada enunciativa. En segundo lugar, la tecnología digital favorece y alienta
la producción de más y mejores imágenes, es decir,
alienta el consumo de fotografías, con lo que vida
de estas imágenes es más efímera que nunca, en
sintonía con la cultura del “fast food” que vivimos.
Finalmente, la tecnología digital aplicada a los discursos audiovisuales permite construir imágenes
más espectaculares e impactantes, algo característico del discurso publicitario, con lo que se potencia
así la cultura del entretenimiento y la sociedad del
espectáculo (Debord, 1999 [1967]; Casero-Ripollés
& Marzal-Felici, 2011) en la que estamos inmersos.
Por lo que respecta a la evolución actual del
discurso publicitario, es evidente que Internet está
suponiendo un cambio en la forma de comunicar
de las marcas que está favoreciendo la aparición de
nuevas formas y formatos publicitarios para llegar
al consumidor de forma más eficaz y más próxima,
mediante la búsqueda de estrategias para ganar la
confianza online de los consumidores y la adaptación del lenguaje publicitario a las nuevas formas
de comunicación digital, en especial a través de las
redes sociales.
En segundo lugar, el panorama digital está motivando la emergencia de nuevos soportes y medios publicitarios, como respuesta a la aparición
de nuevas formas de consumo, que conducen al
desarrollo de nuevas formas de narrar las historias
publicitarias (cada vez más próximas a la realidad e
intereses del consumidor) como sucede con el “advertainment” y el “advergaming”, formas de comunicación publicitaria que constituyen casos para-
La publicidad como discurso
hegemónico en la era de las
hibridaciones discursivas
Creemos necesario finalizar este apresurado recorrido haciendo referencia muy brevemente a la
imagen publicitaria, forma de hibridación discursiva absolutamente hegemónica en el contexto de
la cultura visual contemporánea, no sólo por su
naturaleza íntrinsecamente intertextual, sino sobre
todo porque, en cierto modo, la imagen publicitaria
contemporánea constituye una suerte de espejo sobre el que se reflejan todas las formas de expresión
anteriormente citadas, al ser la publicidad un tipo
de comunicación paradigmática en lo que a eficacia
y capacidad seductora se refiere.
El contexto contemporáneo ha propiciado toda
una serie de cambios y transformaciones del discurso publicitario, en especial en lo referente al desarrollo de estrategias para facilitar el acercamiento
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MARZAL-FELICI, Javier. La convergencia mediática como ideología – algunas reflexiones sobre la evolución de la narrativa audiovisual en la era digital
este parece ser un auténtico principio rector
que explica el gran éxito de público del cine
hegemónico, al reconocer y reconocerse éste en
las referencias a otros films y a otras formas de
expresión y comunicación.
Creemos conveniente destacar que, en el actual contexto de la cultura digital, es fundamental
prestar atención a la actitud de los consumidores, en cuyo contexto la convergencia de medios
representa la búsqueda de nuevas informaciones
y el establecimiento de conexiones entre esos
contenidos mediáticos dispersos. Es interesante
subrayar que dicha convergencia no se produce
por la sofistificación de los aparatos mediáticos
(PDAs, consumo de televisión, radio e internet a
través del teléfono móvil, etc.), sino que es algo
que “se produce en el cerebro de los consumidores individuales y mediante sus interacciones
sociales con otros” (Jenkins, 2008, p.15).
El auge de las hibridaciones discursivas se
produce, por tanto, en un contexto de convergencia cultural, de una gran amplitud. La imagen digital constituye, en la nueva economía
del entretenimiento, un producto perfectamente adaptado a las leyes del mercado: favorece
su rápido consumo, que debe ser atendido con
una gran rapidez también en su producción y
circulación; facilitado enormemente la circulación y el consumo de imágenes; da lugar a la
disminución de los costes de distribución y a
la aparición de nuevas fuentes y fórmulas de financiación. Sostenemos que esta mutación de
los medios guarda una estrecha relación con la
expansión de la economía de mercado y la circulación de capitales especulativos en nuestro
mundo moderno. Las imágenes circulan por el
ciberespacio como los flujos de capitales monetarios. La convergencia de medios ha sido
posible gracias a una profunda revolución tecnológica que ha tenido efectos indudables en
la forma misma de concebir la cultura como
producción simbólica y, al tiempo, tiene importantes consecuencias en la configuración del
espacio público que compartimos, ya no sólo físicamente sino también en los nuevos espacios
virtuales que han construido las redes sociales e
internet, transformando así el imaginario social.
digmáticos de hibridación discursiva. Por un lado,
el “advertainment” supone la utilización creativa y
publicitaria del storytelling, mediante la narración
de historias donde la marca y/o producto tienen un
protagonismo emergente o una presencia significativa y perfectamente imbricada en la historia relatada. Por otro lado, el “advergaming” se sirve del
videojuego como estrategia para aproximarse al público, a través del juego y del contexto que a éste le
rodea (distendido, cercano y con gran implicación
del usuario), con el fin de llegar al consumidor y
trasmitirle una imagen positiva de la marca. En este
sentido, el discurso publicitario es, en sí mismo, un
ejemplo canónico de hibridaciones discursivas.
La convergencia mediática
como ideología: las
hibridaciones discursivas
y la economía híbrida del
entretenimiento remix
El examen del auge de las hibridaciones discursivas, debe llevar a preguntarnos por qué
es tan relevante, en especial, en el audiovisual
contemporáneo esta tendencia. La respuesta
podría venir de la mano del concepto de reconocimiento, también conocido en la retórica
clásica como anagnorisis (Aristóteles) o anamnesis (Platón), en tanto que tentativa de explicación del funcionamiento textual de cierto tipo
de relatos (Cave, 1988; Balló & Pérez, 2005), y
que hemos estudiado en otro lugar, a propósito
del melodrama cinematográfico (Marzal-Felici,
1998). En cierto modo, el reconocimiento es
en sí mismo una fuente de placer o gratificación para el espectador que refuerza el efecto
de identificación. La redundancia y serialidad
(una propiedad decididamente metafórica) del
cine de acción contemporáneo, como del melodrama fílmico (en su producción y consumo
como espectáculo) repite hasta la saciedad las
mismas fórmulas retóricas un número ilimitado de veces. A nuestro juicio, el reconocimiento o familiaridad de las estructuras antes
enunciadas nos ayuda a comprender que numerosos films del cine mainstream son fruto de
una rica y compleja hibridación de discursos
audiovisuales y textos que terminan tejiendo la
compleja trama de las películas, que así consiguen cautivar y seducir al espectador. En el
contexto de la cultura popular contemporánea,
Román Gubern ha subrayado, asimismo, la
profunda revolución que supone la aparición de
la imagen digital en nuestra cultura, en tanto que
“ha devuelto la libertad de imaginación del pintor
al ciudadano de la era fotográfica” (Gubern, 1996:
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MARZAL-FELICI, Javier. La convergencia mediática como ideología – algunas reflexiones sobre la evolución de la narrativa audiovisual en la era digital
Europa un política de desregulación neoliberal que
ha alimentado la idea de que las nuevas tecnologías
de la información son la nueva “panacea de todos
los males humanos”. De este modo, se ha terminando imponiendo el “discurso sobre la convergencia
como nuevo motor tecnoutópico de la sociedad de
la información”. La digitalización y la convergencia
se han convertido en las claves que harán posible el
“progreso económico y social”. Es necesario reconocer, desde una perspectiva crítica, que la llamada
“Sociedad de la Información”, perfectamente sancionada por las Instituciones públicas y privadas de
todo el mundo occidental, se ha convertido en una
nueva mitología que alimenta “las ideologías y las
utopías”, y “cómo ambas pueden armar a los gobernantes y estimular la obediencia de los gobernados”
(Bustamante, 1998, p.45).
Las hibridaciones discursivas, por su parte, han
facilitado, como hemos visto, la producción de textos audiovisuales, así como su rápido consumo por
una audiencia insaciable de nuevas imágenes, que
en el fondo no son tan “nuevas”. Por todo ello, parece más necesario que nunca adoptar una posición
crítica ante las imágenes, de lo que depende, no
sólo la construcción de una ciudadanía crítica, sino
también el futuro mismo de las democracias y del
mundo en el que vivimos.
148), cuyas tecnologías icónicas se caracterizaban
hasta ahora por su capacidad para “documentar” la
realidad más que para “inventarla”, ya que su funcionamiento se basa en el registro de la luz en un
soporte fotoquímico o electrónico. En el caso de la
imagen infográfica, creadora de realidades virtuales, nos hallamos ante la aparición de una “nueva
antropología de lo visible”, en palabras de Gubern.
La función del lector / espectador es absolutamente
transformada, mientras que la función y figura del
narrador se desvanece. Todo ello provoca un brutal
replanteamiento “entre sensorialidad y narratividad,
entre mímesis y diégesis, entre percepción y estructura” (Gubern, 1996, p. 172). Probablemente, el
campo que ha conocido más aplicaciones de la realidad virtual es el universo del videojuego, donde se
ha explotado muy hábilmente el juego de gratificaciones y desahogos emocionales que nuestra sociedad “neurótica” necesita. La explosión cibercultural,
cuyo máximo exponente es la realidad virtual, sólo
posible gracias al desarrollo de las nuevas tecnologías de la información, lleva a Román Gubern a realizar la siguiente reflexión, que suscribimos:
Es hoy una evidencia que la industria está basada en la tecnología, pero es activada por el poder
financiero, que a su vez se moviliza por la expectativa de beneficios económicos, en razón de que sus
productos industriales satisfagan deseos y apetencias colectivas, que a veces son generados o acelerados artificialmente por tales industrias (Gubern,
2000, p.218).
Nota
El presente estudio ha sido financiado con la
ayuda del Proyecto de Investigación de la convocatoria Universitat Jaume I-Bancaja, titulado “Análisis de los flujos de transferencia de conocimiento
entre los sistemas educativos superiores y la industria del videojuego”, código 11I301.01/1, para el
periodo 2012-14, bajo la dirección del Dr. Javier
Marzal-Felici.
Estas palabras de Gubern parecen especialmente
pertinentes, ya que subrayan la importancia de las
fuerzas económicas como auténtico protagonista de
la revolución digital que estamos viviendo. Lenta
pero implacablemente se ha introducido en toda
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Javier MARZAL-FELICI é catedrático de Comunicação Audiovisual e Publicidade e diretor do Departamento
de Ciências da Comunicação da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Jaume I (Castellón, Espanha). E-mail: <[email protected]>.
Recebido para avaliação em março de 2013. Aprovado para publicação em abril de 2013.
129
Duplicidades e contradições em
Bernardo Carvalho: o estético e o
político; o universal e o particular1
MELLO, Jefferson Agostini
RESUMO
O presente artigo visa a entender o lugar de Bernardo Carvalho no campo literário brasileiro e no espaço literário mundial. O ponto de partida é a análise de um dos seus romances, O sol se põe em São Paulo. Em seguida, depois de se depreender a estrutura do romance, busca-se relacioná-la com o suposto projeto literário do escritor, evidenciado em seus textos
de crítica. Nota-se, assim, da leitura do conjunto, a ênfase do autor a referências literárias modernistas internacionais.
Finalmente, analisa-se a recepção desse projeto literário cosmopolita na França, um dos centros da literatura mundial
onde a obra do autor tem sido traduzida. A hipótese é de que tanto a construção do romance quanto essas referências
explícitas são formas do autor brasileiro cosmopolita se inserir no espaço literário mundial e, ao mesmo tempo, combater
a literatura brasileira marcadamente heterônoma, estabelecendo, assim, uma competição com seus pares locais.
Palavras-chave: Ficção brasileira contemporânea – Bernardo Carvalho – O sol se põe em São Paulo – Literatura
Mundial – Cosmopolitismo.
ABSTRACT
This article intends to place the author Bernardo Carvalho both in the Brazilian literary field and the world literary
space. We start analyzing one of his novels, O sol se põe em São Paulo. In the following, after apprehending the novel
structure, we try to connect it to the supposed writer’s literary project, presented in his texts of literary criticism. It will
be revealing the author’s quotations of literary texts and authors from the international modernist canon. Finally, we
analyze the reception of Carvalho’s cosmopolitan work in France, one of the centers of the world literary space and
where many his novels were translated and published. Our hypothesis is that both the novel construction and those references are forms that the Brazilian cosmopolitan writer finds to put himself in a world literary space and, at the same
time, to fight in Brazilian literary field, strongly heteronymous, establishing then a competition with his local pairs.
Keywords: Brazilian contemporary fiction – Bernardo Carvalho – O sol se põe em São Paulo – World Literature –
Cosmopolitanism.
1 Este artigo é a síntese de duas pesquisas. A primeira, realizada entre 2006 e 2008, em torno de quatro autores
representativos da ficção brasileira contemporânea, entre eles Bernardo Carvalho, obteve auxílio do CNPq. A
segunda, executada no primeiro semestre de 2012, visou ao estudo da inserção da obra Bernardo Carvalho
no espaço literário internacional, mais especificamente no campo literário francês, e contou com uma bolsa
de pós-doutorado da Fapesp. O autor agradece às duas agências.
131
revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 131-144, out. 2012/mar. 2013.
MELLO, Jefferson Agostini. Duplicidades e contradições em Bernardo Carvalho: o estético e o político; o universal e o particular
A proposta deste ensaio é a de observar a produção de Bernardo Carvalho, um dos mais prestigiados
ficcionistas brasileiros da atualidade, a partir das dinâmicas do campo e do espaço literários. Se, de um
lado, ela tende a resultar de tensões particulares à literatura brasileira contemporânea – historicamente caracterizada por uma escrita política e socialmente interessada e por um mercado literário restrito, apesar
da crescente profissionalização do escritor, de outro,
mais do que simples documento do tempo presente,
a obra de Carvalho deve ser lida como instância fundamental no processo de legitimação em um espaço
literário cada vez mais globalizado, mas nem por isso
simétrico ou isento de debates específicos.2
Em termos gerais, as narrativas e os ensaios de
Bernardo Carvalho possuem temáticas up to date,
escrita inventiva e um repertório internacional de
referências. As repetidas menções explícitas e implícitas a ícones da literatura do século 20, a escritores do chamado alto modernismo, ao lado da
atenção à forma, contribuem para o autor se diferenciar tanto da literatura mais próxima do grande
público quanto daquela com forte teor político e/ou
que visa a discutir questões brasileiras.3 Por meio
de uma produção cujo foco é a linguagem, de uma
leitura atualizada do que se está produzindo fora do
país, na literatura e nas outras artes, e advogando
em prol de uma literatura a serviço da imaginação e
da própria literatura, Carvalho tem obtido destaque
no campo literário brasileiro contemporâneo.
As filiações estéticas de Bernardo Carvalho são
perceptíveis tanto em seus textos de crítica quanto
em seus textos ficcionais. Nesses, o elogio a uma
literatura que nega o referente se dá menos pelo
recurso da citação do que pela própria forma literária: além da dificuldade de compreensão da fábula,
seus romances são repletos de enigmas, incongruências e aforismos que buscam desviar a atenção do
leitor da história que está sendo contada. Ademais,
na ficção de Carvalho, tudo parece se espelhar: o
autor lança mão de recursos como a mise en abyme
e a homologia; insere uma história dentro da outra;
apaga a relação de causa e efeito entre os eventos;
apresenta visões múltiplas de uma mesma personagem, que pode, eventualmente, compartir semelhanças com outras, inventa narradores que mais
2 Os conceitos de campo e espaço literário aqui utilizados têm como base as obras de Pierre Bourdieu
(1996) e Pascale Casanova (2002). Campo se refere à relativa autonomia da produção e dos produtores literários e às tensões e disputas entre os
agentes em sua busca de legitimação dentro de um
determinado país. Espaço amplia essa ideia para
uma escala mundial. Assim, Casanova (2002) argumenta que produções literárias particulares têm
como norte o que ela chama de espaço literário
mundial, um espaço onde autores competem entre
si tendo como parâmetro as noções de autonomia
e cosmopolitismo, capitais simbólicos próprios da
cidade com mais acúmulo literário, Paris. Nesse
modelo teórico por ela proposto, o campo literário
francês dita os rumos e as modas literárias a serem
seguidos por outros campos. Características como
particular e universal, heterônomo e autônomo,
regional e cosmopolita se tornam tempos diferentes de um mesmo espaço, mundial, e as obras literárias só se manifestam em sua singularidade a
partir da totalidade da estrutura que permitiu seu
surgimento. Cada livro escrito no mundo, e declarado literário, seria uma parte ínfima da “combinação” de toda a literatura mundial, que, por sua
vez, seria o resultado do embate entre os autores,
críticos e editores no afã de se aproximar cada vez
mais de Paris. Da mesma forma, maior acumulação
corresponderia a maior autonomia e a maior proximidade aos valores cosmopolitas, isto é, a uma
linguagem literária mundial. Por outro lado, menor acumulação corresponderia a maior heteronomia e a maior dependência dos valores nacionais,
políticos e ideológicos. Há, certamente, alguns
problemas na proposta de Casanova, tais como o
eurocentrismo e a ideia de embate, que, segundo
ela, permearia qualquer ato estético. Cristopher
Prendergast (2001) resenha o livro de Casanova e
questiona se, além de embate, não haveria também
negociação entre os autores. Queixa-se, ademais,
da falta de análise interna dos textos de que Casa-
nova se vale para construir seu modelo teórico. As
críticas de Prendergast a Casanova estão de certo
modo incorporadas neste ensaio.
3 Ao responder à questão proposta pelo jornal francês Libération, “O que é ser brasileiro hoje?”, Carvalho afirmou: “Esta questão é um antigo clichê,
um antigo dilema da cultura brasileira. Ao contrário do que acontece em um país como a França,
escritores, cineastas, artistas plásticos e músicos
brasileiros aplicaram-se muito tempo, com mais
ou menos ambição e sucesso, para produzir uma
manifestação artística que fosse a expressão da
identidade nacional deles. Evidentemente, esse
fenômeno gerou incontáveis equívocos e todos os
tipos de cabotinagens megalomaníacas, tirando a
atenção do que era puramente artístico em nome
de programas ideológicos e políticos que serviam
para escamotear a mediocridade do que era apresentado como arte” (Carvalho, 2000). Optei por
traduzir para o português todos os fragmentos de
textos estrangeiros citados neste artigo.
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MELLO, Jefferson Agostini. Duplicidades e contradições em Bernardo Carvalho: o estético e o político; o universal e o particular
complicam do que explicam. Enfim, pede do leitor
mais atenção ao modo como a narrativa foi construída do que aos significados que ela pode trazer.
São traços gerais que perpassam quase todos os
textos desse ficcionista com “desejo de mundo” e
se encontram ressaltados no romance O sol se põe
em São Paulo (2007).4 Embora se passe em um espaço transnacional, essa narrativa tem seu início
nos bairros da Liberdade e do Paraíso, na cidade
de São Paulo. Ali, uma senhora japonesa, chamada Setsuko, que na segunda parte o leitor descobre se chamar Michiyo, conta para o narrador, um
publicitário que frequentava seu restaurante, uma
história de amor, ciúme e imposturas que ela teria
vivido no Japão, antes, durante e logo depois da
Segunda Guerra Mundial. Quem se encarrega de
juntar as peças é esse publicitário, dublê de escritor
e descendente de japoneses, que Setsuko-Michiyo
acaba contratando para transcrever a sua história, a
qual termina abruptamente com o desaparecimento dela. Divido em duas partes, o romance é completado com uma carta que ela deixou a uma das
personagens, um ator de kyogen, Masukichi, por
quem se apaixonou na juventude.
Junto a um enredo labiríntico está a dificuldade de se periodizar os eventos em termos de uma
sequência que nos permita apreender causas e efeitos. Em vez de advir da realidade social, a mudança drástica da trajetória das personagens, embora
localizada historicamente no drama da Segunda
Guerra Mundial, será resultado de ficções, internas
à própria ficção.
Num primeiro momento, a protagonista Michiyo, cega de ciúme e suspeitando se tratar de um
caso amoroso, não consegue perceber que a relação
de intimidade do seu marido Jokich com Masukichi, o ator, por quem ela também era apaixonada,
vinha do passado em comum dos dois, isto é, do
ódio de ambos ao nacionalismo extremista durante
a guerra. Desesperada, sem entender a situação, ela
narra suas desconfianças a um velho escritor para
quem trabalha, para que este as publique em uma
revista na forma de romance-folhetim. O efeito da
paranoia (que para Bernardo Carvalho é também
uma forma de ficção) e da vingança de Michiyo,
assim como o da história publicada pelo escritor,
levará as personagens ao desterro, mudará completamente seus destinos e possibilitará o que será
narrado no conjunto do romance.
Ou seja, a ficção precede o vivido. Essa ideia
é, aliás, introduzida logo no início do romance,
por meio de uma piada que o narrador faz de si
próprio, mencionando um projeto pessoal que,
retrospectivamente, considera estapafúrdio: uma
dissertação de mestrado sobre a literatura como
premonição, que antecipa os fatos a serem vivenciados pelos que a escrevem. A anedota, que poderia passar despercebida, é corroborada pela menção de que a história que estamos lendo, a qual o
narrador escutou e transcreveu é a mesma presente
nos romances de Junichiro Tanizaki, importante escritor japonês (um amigo seu, do departamento de
línguas orientais de uma universidade, ressaltara-lhe a semelhança entre o que ele lhe contava e os
romances de Tanizaki), de modo que a história, em
princípio vivenciada por Michiyo e narrada em São
Paulo ao narrador-publicitário, já teria sido escrita.
Além disso, há a semelhança do velho escritor com
Tanizaki, também explorada pelo narrador, e que
teria vindo a São Paulo visitar a sobrinha. Segundo o publicitário, “não podia ser mera coincidência
que o que ela [Setsuko-Michiyo] narrava [...] parecesse tanto com seus romances [de Tanizaki]”.
A antecipação do ficcional à realidade, perceptível na voz do narrador, aparecerá também no plano
do narrado, pela voz de uma das personagens. Na
primeira parte do romance, quando Setsuko-Michiyo está trabalhando para o velho escritor, esta,
que nunca lera uma obra dele, ganha da mulher
dele um dos seus romances, reconhecendo ali a
própria história:
4 O que não se dá sem contradições, como demonstrou Ivan Marques em artigo recente. Segundo a
conclusão de Marques, que lê Nove noites, de Carvalho, em relação ao romance indianista de Alencar, mais especificamente Iracema, “com seu indianismo às avessas, Nove noites exprime, ao cabo,
o mesmo dilema representado pelo romance de
Alencar. Como descendente de Iracema, o escritor
se sente dividido entre as raças invasoras e a sua
própria gente, entre a admiração pelo estrangeiro
e a procura (ressentida, contrariada) da sua frágil
identidade” (Marques, 2010, p.250).
[Setsuko] identificou-se de imediato com os personagens. Via correspondências sem fim com a sua
própria vida. A começar pelas relações familiares,
sobretudo com as irmãs. Aquele era o seu mundo.
E ao mesmo tempo o mundo onde gostaria de viver.
Seu entusiasmo pela descoberta foi tão grande que,
mesmo não tendo coragem de manifestá-lo, deve ter
sido visível. Tanto que na semana seguinte já ganhara outros dois volumes. E agora as correspondências
entre os livros e a vida se estendiam também ao que
tinha visto (ou suposto ver) nos últimos meses, nas
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MELLO, Jefferson Agostini. Duplicidades e contradições em Bernardo Carvalho: o estético e o político; o universal e o particular
relações entre Michiyo, Masukichi e Jokichi (Carvalho, 2007, p.81).
Portanto, seja no plano da narração ou no plano
do narrado, reitera-se a mesma ideia de ficção como
um universo autônomo, que ora determina, ora antecipa o vivido.
Além disso, o romance cria um universo de correspondências (“entre os livros e sua vida”) que esmaece o que se costuma chamar de “real” e o ficcionaliza, em busca de um outro tipo de real. É o que
o narrador quer dizer por meio de uma citação do
próprio Tanizaki, bem ao final do romance:
N’O elogio da sombra, Tanizaki diz que a beleza
oriental nasce das sombras projetadas no que em si
é insignificante. O belo nada mais é do que um desenho de sombras. Os ocidentais são translúcidos;
os orientais são opacos. Ninguém veria a beleza da
lua de outono se ela não tivesse imersa na escuridão
(Carvalho, 2007, p.164).
O que faz a lua de outono intrigante e bela é o
fato de estar obscurecida. Eis o trabalho da ficção:
não consiste em dizer algo a respeito de um objeto;
mas compô-lo, alterando-o. E é nessa composição,
isto é, “desenho de sombras”, signos, traços, que
não levam a lugar algum fora dele, que ele, o objeto,
vive. Ao receber o tratamento do artista, deixa de se
referir (de ser translúcido) para ser ficção, em toda
a sua potência.
Com efeito, essa ideia de que a ficção faz viver um
objeto, ou a realidade, ou, então, de que os determina, aparece em vários planos do romance (narrador,
personagem, enredo). Forma-se, então, uma rede de
homologias, que contribui para estruturar um universo sem saída, autorreferente. O sol se põe em São
Paulo não apenas trata da ficção como um mundo
à parte (ou do mundo como ficção). É estruturado
em torno da ideia de que o referente está perdido, a
única consistência real é a própria linguagem. Isso é
perceptível na breve menção à dissertação de mestrado do narrador, na relação entre as personagens,
que parecem estar dentro de uma peça de teatro; na
correspondência das narrativas do escritor com a
história de Michiyo. E mesmo o tempo “em que as
mentiras se revelam”, no qual Michiyo contou sua
história para o velho escritor, corresponde não apenas à casa do bairro do Paraíso (onde ela própria
teria conta a “sua” história ao narrador-publicitário),
mas à própria ficção, um tempo onde as mentiras (e
não as verdades) se revelam, isto é, onde as mentiras
são contadas, e permanecem sendo mentiras.
Ao analisar os romances Nove noites e Mongólia,
Yara Frateschi Vieira percebeu neles os espelhamentos a que o narrador submete o leitor, artifícios
que acabam criando suspense, deixando o “leitor
sempre à espera da grande revelação” (Vieira, 2004,
p.203). Esta seria, segundo a autora, a homossexualidade de Carvalho, que ela percebe refratada pela
estrutura narrativa. Para ela,
o jogo de espelhos e reflexos, as distorções, as
identidades diluídas ou esgarçadas, os painéis folhetinescos, tudo isso parece constituir o esconderijo possível para o autor situar “um mundo secreto
cheio de sinais e momentos, medos e preconceitos”,
na esteira de um passado literário que “não é puro
[...]; é dúbio e escorregadio, e requer uma enorme
dose de solidariedade e de compreensão”, conforme
reflete Colm Tóibín ao referir-se ao passado homossexual expresso na literatura (Vieira, 2004, p.206).
Vieira toca em dois aspectos centrais da narrativa
de Carvalho: os espelhamentos, que, como vimos,
criam um universo tautológico, de correspondências, em nome da ficção, e a impureza, reveladora
de uma faceta que valeria explorar também em O
sol se põe em São Paulo. Aqui, a impureza remeterá,
sobretudo, aos párias, ao desacordo entre as personagens, e à incompletude dessas.
De fato, as personagens desse romance dependem de suas histórias para existir. Mais do que isso,
dependem dos outros para contar suas histórias.
Michiyo se apresenta ao narrador como Setsuko,
leva-o para uma casa que mais parece um teatro
japonês e fala de Michiyo, de si mesma, como se
fosse de outra pessoa. O leitor e o narrador também
acreditam que ela se chama Setsuko, e não passa
de uma testemunha de uma história de amor vivida
por outra pessoa.
Tal recurso, antes de ser um artifício para enganar leitor e narrador, remete ao que Sophia Beal,
ao estudar o romance Nove noites, entendeu como
agenciamento, construção identitária que se dá pelo
viés da ficção. Michiyo se transforma em personagem para assim reconstruir, por meio da história de
Jokichi, tanto a própria identidade quanto a dele,
com a ajuda de outro, isto é, do narrador, que, por
meio deles, também construirá a sua, tornando-se
escritor. De acordo com Beal, nossas histórias não
são construídas apenas por nós ou apenas pelos outros. Elas são negociadas entre nós e os outros. Ao
tratar do personagem Buel Quain, de Nove noites,
Beal assinala: “o foco de Carvalho não são as questões epistemológicas sobre quem era Quain, mas,
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MELLO, Jefferson Agostini. Duplicidades e contradições em Bernardo Carvalho: o estético e o político; o universal e o particular
antes, questões sobre como Quain e o narrador negociam, performatizam e constroem as suas identidades” (Beal, 2005, p.136).
Portanto, nas histórias de Carvalho, as ficções
inventam a realidade. Mais ainda, elas contribuem
para compreendermos que, além de resultar de
narrativas, as identidades – e as verdades – não são
estáveis. Ao contrário, são incompletas e transitórias. No caso específico do narrador, este não apenas
busca reconstruir as trajetórias de Michiyo e Jokichi
como também depende daquelas: sua frustração por
não ser um escritor será provisoriamente cancelada,
graças à missão a que foi designado. Mas, ao mesmo
tempo em que a narrativa alheia pôde fazê-lo reviver
um sonho – e ajudá-lo a compreender o seu passado
– ela acaba por revelar o que os discursos falseiam:
a incompletude. Ao final do romance, na viagem de
volta do Japão, depois de ter cumprido seu desígnio, ele reconhecerá a incompletude de todos os indivíduos: “De repente, como se estivesse esquecido
tudo, tive vontade de chorar por todos no mesmo
avião, indo para algum lugar, acreditando em alguma coisa, todos com um passado, com alguma coisa
perdida e talvez pouca por encontrar” (Carvalho,
2007, p.162-163). Constatação não muito diferente da de Jokichi, que encomenda sua história para
Setsuko, que a encomenda ao narrador-publicitário,
pois “ninguém nunca vai poder contar nada. Quem
conta são os outros” (Carvalho, 2007, p.160).
As relações entre as personagens acionam não
mais do que provisoriamente seu modo de ser. Ou
seja, este vai depender de como e com quem negociam: Masukichi é amante de Michiyo, a quem submete seus caprichos; concomitantemente, é aliado
do marido desta, numa missão nobre, para salvar a
honra de Jokichi. Na constituição de sua identidade
de jogador-ator teriam sido fundamentais não só o
teatro kyogen, mas principalmente o ódio aos ultranacionalistas, que trataram sua família e sua companhia de teatro como párias. Em uma sociedade
que o rejeitava, não lhe dava lugar, Masukichi agia
por reação e atuava (jogava) com Michiyo; de sua
parte, uma filha-família fascinada por ele, mas que,
ao mesmo tempo, precisava encontrar um marido,
que vai amar apenas quando a este, Jokichi, será
impossível amá-la, pois ele precisará desaparecer
para se vingar de quem lhe roubou a honra.
Assim, todas as personagens do romance estão
perpassadas pelos signos do trânsito, da incompletude e da contradição. São párias, como outras personagens de Nove noites e Mongólia. Segundo a voz
do narrador,
o que Michiyo me propôs foi um aprendizado
e um desafio. Deve ter reconhecido em mim a insatisfação que também a fez correr até onde o sol
se põe quando devia nascer e nasce quando se pôr,
para revelar tempos sombrios. Deve ter reconhecido
o desacordo em mim. Quis me tomar por escritor, o
que não sou. E me fazer escrever na frente de batalha, “onde a civilização encontra a barbárie e deixa
entrever o que dela traz em si”, nesta cidade que não
pode ser o que é, uma história de homens e mulheres tentando se fazer passar por outros para cumprir
a promessa do que são: um ator a quem proíbem
atuar; um homem que precisa deixar de ser quem é
para lutar pelo país que o rejeita; outro que já não
pode viver com o próprio nome, pois morreu numa
guerra de que não participou; uma mulher que só
ama quando não podem amá-la; um escritor que só
pode ser enquanto não for. Uma história de párias,
como eu e os meus, gente que não pode pertencer
ao lugar onde está, onde quer que seja, e sonha
com outro lugar, que só pode existir na imaginação
em nome da qual ela me contou uma história que
pergunta sem parar a quem ouve como é possível
ser outra coisa além de si mesmo (Carvalho, 2007,
p.163-164).
“O oposto é o que mais se parece conosco”, sugere o narrador nas linhas finais do romance. Ou,
ainda, o “si mesmo” pressupõe seu outro, aquele
que peremptoriamente se nega, mas o que, ainda
que na sombra, acaba constituindo o sujeito. Não
há termos positivos, definitivos, e, numa inversão
surpreendente, notamos que, no romance, são os
párias os responsáveis pela construção de sentidos.
De um lado, há, em O sol se põe em São Paulo,
imanência, espelhamentos, uma máquina textual
aparentemente engrenada e sem brechas. De outro, há os párias, que remetem a modos de ser em
desacordo, uma crítica aos discursos totalitários e
totalizantes. Trata-se de duplicidade que reverbera também nos textos de crítica do ficcionista, nos
quais se vê uma concepção de literatura baseada
tanto na autossuficiência da linguagem e da literatura, quanto na importância desta para revelar o
que há de paradoxal e contraditório no humano.
Dito de outro modo, a reivindicação do impuro, em
Carvalho, se liga, contraditoriamente, à firme defesa da literatura enquanto espaço autônomo, não
contaminado por outros discursos.
Em seu texto “Impasse da consciência”, publicado em O mundo fora dos eixos, a literatura é vista
como uma linguagem de exceção, que revela o desconhecido.
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MELLO, Jefferson Agostini. Duplicidades e contradições em Bernardo Carvalho: o estético e o político; o universal e o particular
Para Blanchot, nomear é a morte das coisas, a
impossibilidade de confrontar o desconhecido que
é o próprio homem, e a palavra literária seria uma
forma de escapar desse círculo ao levar em conta e
afirmar seu próprio vazio, sua descontinuidade, os
paradoxos, as contradições que a linguagem de uso
corrente tenta excluir e dissimular. O desconhecido
só poderia ser conhecido por uma linguagem que é
posta em jogo (Carvalho, 2005, p.213).
crise dos universais e à busca de um individualismo
radical. Contudo, a reiteração de um cânon modernista e de uma pureza literária não seria o oposto da
crítica pós-moderna e desconstrucionista aos meta-relatos, entre eles os universais literários? A que
se deve essa combinação no mínimo contraditória?
E, na sequência do argumento, o desconhecido,
os paradoxos e as contradições surgem outra vez na
linguagem. Agora, seguindo Foucault, é a vez de diferenciá-la do que este autor entende como discurso.
Uma hipótese é a de que subjaz ao ideário estético, de culto da forma e elogio da ficção, por
meio do qual o desconhecido se descortinaria, o
vínculo conflituoso do nosso autor com outros modos de se fazer literatura no Brasil, com os quais
ele parece dialogar o tempo todo, embora tenda a
desconsiderá-los em quase todos os seus ensaios e
entrevistas. Essa concepção de arte e de literatura,
da qual Bernardo Carvalho seria um dos jovens representantes, pode ser fruto de disputas com outros
autores, outras posições, muitas delas radicalmente
distintas da dele. São disputas em torno de projetos
literários, relativamente novas no Brasil, e talvez se
refiram à maior profissionalização do campo literário, mais livre, pelo menos desde os anos de 1980,
das injunções da política e do Estado, apesar de
mais cerceado pelas forças do mercado.
Em um texto recente, publicado na Luso-Brazilian Review, ele explicita a ideia de uma literatura
de reação a leitores que só querem ver a realidade
figurada na obra e enuncia o lugar central de O sol
se põe em São Paulo nesse projeto:
***
Num belo texto sobre Blanchot intitulado La
pensée du Dehors [...], Michel Foucault diz: “Na verdade, o acontecimento que fez nascer o que em
sentido estrito chamamos ‘literatura’ só é da ordem
da interiorização para um olhar artificial; trata-se
muito mais de uma passagem ao ‘exterior’: a linguagem escapa ao modo de ser do discurso – isto é, à
dinastia da representação –, [...] o ser da linguagem
só aparece por si mesmo no desaparecimento do sujeito” (Carvalho, 2005, p.213-214).
Oposta à dinastia da representação, a literatura
se tornará uma existência superior, mas, ao mesmo
tempo, reveladora das profundezas contraditórias
do humano. Essa ideia, que é central no pensamento e na arte de Bernardo Carvalho, já pode ser lida
em uma resenha dele sobre Paul Valéry, de 1999.
Ali, a arte literária, tanto para o resenhista quanto
para o resenhado, é o oposto da indústria cultural, do gosto médio, da cultura de massas. Ela é
uma linguagem dentro da linguagem, “que resiste à
linguagem usual, da simples comunicação” (Carvalho, 2005, p.196). Para Valéry, segundo Carvalho,
a literatura não se conforma com o que existe, mas
anseia pelo que não existe.
O que se depreende, seja da forma literária de
O sol se põe em São Paulo, seja do discurso crítico
de Bernardo Carvalho, é que, para ele, em primeiro
lugar, a literatura está além da linguagem corrente e das contingências da realidade, condicionada
cada vez mais à sociedade de consumo. Em segundo lugar, a literatura que resiste, isto é, se mantém
pura, afastada do cotidiano, consegue revelar o que
a linguagem corrente ou o discurso não conseguem
ou tentam esconder: o desconhecido, as incongruências e, da mesma forma, a identidade como falta.
Não seria difícil vincular essa concepção dúplice de literatura ao alto modernismo e à teoria da
desconstrução, cujas derivações nos conduzirão à
Para meu completo espanto, esses livros (principalmente aquele que trazia o antropólogo e os
índios [Nove noites] e aquele escrito depois de uma
viagem à Mongólia [Mongólia]) acabaram sendo lidos
retrospectivamente como autobiografia e diário de
viagem. E isso se deu em parte porque relacionei a
experiência do antropólogo à minha própria infância com meu pai no Amazonas e porque realmente
viajei para a Mongólia antes de escrever um romance chamado Mongólia. Dei-me conta de que aquilo
com o que estava lutando era mais forte do que pensava. Foi então que comecei a conceber, em reação
a tudo isso, um livro chamado O sol se põe em São
Paulo, como um artificial, deliberado e elogioso manifesto à ficção como uma ferramenta de libertação.
Nesse livro, todas as personagens são ou japonesas
ou descendentes de japoneses, de modo que não há
aparentemente nenhum traço do autor no relato, nenhuma possibilidade de reduzir o romance à experiência imediata do autor ou a seu passado. É um livro
sobre os poderes da literatura tal como os viemos
percebendo através da moderna tradição ocidental,
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enquanto força criativa potencial de uma singularidade subjetiva e radical (Carvalho, 2010, p.4-5).
de James Joyce, o exemplo máximo da literatura entre seus contemporâneos. Também não é à toa que
tenha escrito os romances que escreveu. É preciso
ir contra o seu tempo para alcançá-lo. Ulisses, por
exemplo, cria uma “realidade antecipatória”. Não
basta à literatura fazer a ilustração da sua época (ou
da ciência da sua época). Não basta observar e descrever a realidade. Não basta representar a atualidade. É preciso ir além. Forma e conteúdo devem
estar integrados. A forma já é a ideia, o que permite
que o relato de uma pacata dona de casa seja eventualmente muito mais forte e violento que as memórias do mais implacável dos matadores. É isso o que
há de mais surpreendente e libertário em literatura
(Carvalho, 2005, p.90).
Antes de qualquer coisa, cabe notar nesse trecho a preocupação do autor com a recepção de sua
obra no Brasil, o que ajuda a confirmar a hipótese
de um diálogo e de uma disputa que se travam entre agentes de um espaço literário nacional. Ainda,
fica evidente que, ao optar por uma estética de exceção, no Brasil, Carvalho precisa ao mesmo tempo
se associar, como forma de validar sua escolha, ao
que há de mais prestigioso fora daqui e, principalmente, ao que é mais universal, ou seja, à já estabelecida tradição ocidental moderna. Porque, segundo Pascale Casanova, “em termos literários, um
clássico se coloca além de toda a competição temporal (e desigualdade espacial)” (Casanova, 2005,
p.76). E será justamente essa opção pelo que estaria acima do tempo e do espaço que acabará por
situá-lo historicamente – a despeito de ele mesmo
negar qualquer relação passada ou presente com
sua biografia.
Para melhor qualificar a empreitada estética de
Bernardo Carvalho, que se liga à sua inserção avançada no campo literário brasileiro, podem ser úteis
os argumentos de Fredric Jameson, na conclusão
de O pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Escreve Jameson que o artista modernista podia pensar sua carreira a partir do desejo de
se tornar o “‘maior pintor’ (ou poeta, ou romancista, ou compositor) ‘da época’” (Jameson, 1996,
p.311), e isso porque a temporalidade moderna era
desigual: “Algumas partes da economia são arcaicas, há enclaves de produção artesanal; algumas são
mais modernas e futuristas do que o próprio futuro” (Jameson, 1996, p.311), a ponto de ser possível
a utopia de uma sociedade diferente da que se desenhava, sugerindo-se, inclusive, retornos a formas
arcaicas de produção. Assim, o modernismo, para
Jameson, ainda era um tempo de gigantes com poderes lendários não mais ao nosso alcance.
Em uma primeira visada, os posicionamentos
de Bernardo Carvalho poderiam ser lidos a partir
dessa perspectiva heroica do modernismo, já que
sua verve, em seus textos sobre arte e literatura,
é disparada contra o mercado e contra o consumo fácil, em nome de uma escrita inventiva, que
aponte para o inusitado. Coerente com esse ideário
descrito pelo teórico estadunidense, veja-se o que
Carvalho depreende da leitura de Ulisses, feita por
Hermann Broch:
Vale atentar aí para expressões como “realidade
antecipatória”, “é preciso ir além”, ou “é isso o que
há de surpreendente e libertário em literatura”, que
se contrapõem à ideia de uma escrita conformada,
que serve de exemplo de algo, que apenas observa
a realidade e ou a atualidade. O trabalho formal,
em vez do conteúdo e das boas intenções, liberta,
traz-nos a verdade mais profunda e nos abre novas
perspectivas em nosso tempo.
Em outro texto, sobre Agape Agape, de William
Gaddis, Carvalho torna precisa a diferença entre o
moderno e pós-moderno, diminuindo este. Embora, segundo o ficcionista brasileiro, Gaddis, “um
dos principais inovadores da prosa americana nos
anos 50”, tenha aberto o caminho “para o que acabou conhecido, de forma simplista e generalizada,
como literatura pós-moderna” (Carvalho, 2005,
p.25), seria um equívoco lê-lo como um escritor
pós-moderno, já que, pelo que se depreende do
texto, esse termo se vincula à literatura de falsificações, e feita para agradar. Em oposição a isso,
o que Agape Agape revela é a nostalgia do que
era mais caro e fundamental ao projeto da literatura
moderna, a nostalgia da juventude de uma arte e de
uma literatura verdadeiras, capazes de tudo. Em seu
“canto do cisne”, Gaddis lembra apenas o que os seguidores da escola das convenções tentam ocultar: a
liberdade do romance (Carvalho, 2005, p.27).
Mas é possível à literatura do presente recuperar essa face heroica e libertária do modernismo? É
possível, como quer Carvalho, aplicar ao momento
em que vivemos a lógica de resistência modernista
vinculada a um tempo de monopolismo capitalista
que, no entanto, ainda deixava brechas para a resistência se instalar?
Contudo, o projeto de Bernardo Carvalho não
Não é por acaso que ele [Broch] via em Ulisses,
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MELLO, Jefferson Agostini. Duplicidades e contradições em Bernardo Carvalho: o estético e o político; o universal e o particular
visa apenas a isso. Há outras ambições em jogo, fazendo com que o elogio do pária e da incongruência fiquem pormenorizados em seus escritos. Idealmente, o autor parece querer se inserir no que
poderíamos chamar de uma sociedade mundial da
literatura. Se não consegue, ao menos tal reivindicação pode aumentar as condições do escritor brasileiro antenado de se fazer ouvir internamente, em
um espaço literário como o nosso, bastante marcado pela literatura socialmente interessada.
a editora já publicou dois livros de Luiz Ruffato,
um de Cristóvão Tezza, um de Silviano Santiago, e
acaba de publicar Adriana Lisboa e João Almino. A
sua proprietária, Anne Marie Métailié, que das ciências humanas migrou para as literaturas lusófona e
hispânica,5 conheceu Carvalho quando ele, correspondente da Folha de S. Paulo em Paris, entrevistou-a. Ela ficara impressionada com sua inteligência e
acabaram se tornando amigos. Ele só entraria para
a editora dela a partir do quarto livro lançado na
França, Mongólia – os três primeiros, Aberração, Bêbados e Sonâmbulos e As iniciais, foram publicados
pela editora Rivages. Mas, desde que tomara conhecimento de sua literatura, Anne Marie Métailié, que
faz questão de dizer que não publica aquilo pelo
qual não se apaixona, buscava trazer Carvalho para
a própria editora.6
Para ela, independentemente da reputação que
o autor possa ter em seu país de origem, a opção
por traduzir uma obra passa necessariamente pelo
seu crivo crítico, e a literatura de Carvalho teria caído bem no gosto dela. Entre os aspectos da sua
***
No texto “As coleções de literatura estrangeira”,
Gisèle Sapiro argumenta que “as formas de universalização [em termos de estratégia dos atores, mas
também dos modos de valorização de suas obras]
variam das mais politizadas às mais despolitizadas”:
“o modo de universalização politizado sublinha a
dimensão moral ou ainda a dimensão histórica e
memorial da literatura”. Em oposição a este, o
modo de universalização despolitizado consiste em
valorizar a potência geral e a qualidade literária da obra sem levar em conta qualquer particularismo, quer se trate as suas qualidades formais, de
sua inscrição na literatura universal (pela referência mais ou menos implícita aos clássicos do passado), de sua dimensão auto-referencial, ou ainda
da expressão de ponto de vista individualistas ou
subjetivistas reenviando a experiências que podem
ser partilhadas além das fronteiras geográficas ou
temporais (Sapiro, 2008, p.207).
5 Em entrevista a Isabelle Roche, ela explica: “[...]
comecei publicando obras de ciências humanas.
Depois me dei conta de que havia lacunas na literatura: alguns livros estrangeiros, que eu havia lido,
não existiam em francês, ou, se existiam, as traduções eram péssimas. Era preciso agir, e foi com a
publicação de escritores brasileiros que me lancei
à publicação de textos literários”. Disponível em:
<http://.lelitteraire.com/article1149.html>. Acesso
em: 3 maio 2012. Em entrevista a mim concedida,
em abril de 2012, que transcorreu em português,
língua em que, aliás, se expressa muito bem, Anne-Marie Métailié disse que seu interesse pela literatura brasileira viria do curso de graduação em
Letras que ela teria feito na juventude, quando foi
aluna de Marlise Meyer. À época, ela teria assistido,
igualmente, a uma disciplina ministrada por Antonio Candido, quando da passagem dele por Paris.
Ela também traduzirá Candido para o francês (Littérature et sous-développement. L’endroit et l’envers,
Paris, Métailié; Unesco, 1995). Quando não referenciadas, as informações referentes a Anne-Marie
Métailié são provenientes dessa entrevista.
6 Assim ela me relatou o encontro com Carvalho:
“Ele me entrevistou e o achei muito, muito inteligente e nos demos muito bem. Ficamos mais ou
menos em contato, e quando ele publicou os primeiros livros eu fiquei muito decepcionada por ele
não tê-los me proposto. Ele passou por uma rede
de amigos meus e seus livros foram publicados
pela Rivage”.
Do ponto de vista da estratégia do autor, é
possível afirmar que a obra de Bernardo Carvalho
busca participar desses dois universalismos, pois,
apesar de reivindicar a literatura como um tipo de
linguagem superior, desinteressada, sobre os espaços muitas vezes indeterminados e fluidos, está
também em jogo, em seus escritos, a crítica das
identidades fixas e estáveis, como, por exemplo, o
nacionalismo e o compromisso da literatura com a
realidade brasileira.
Com efeito, é justamente esse caráter universal
duplo (politizado/despolitizado) das narrativas de
Carvalho que será notado por uma parte da crítica
cultural da França, país onde o autor brasileiro tem
conseguido boa inserção.
Lá, ele é hoje publicado pela editora Métailié,
considerada pequena, mas com boa reputação entre
os leitores mais exigentes. Dos ficcionistas brasileiros contemporâneos de maior prestígio atualmente,
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MELLO, Jefferson Agostini. Duplicidades e contradições em Bernardo Carvalho: o estético e o político; o universal e o particular
São Paulo, cujo lead é: “Um milhão de descendentes de imigrantes japoneses vivem em São Paulo. O
romancista brasileiro descreve de forma magnífica
essa comunidade que não se esquece de onde vem”
(Lapaque, 2008). No geral, contudo, as análises da
obra de Carvalho na França semelham a esta, sobre
Bêbados e sonâmbulos:
literatura que mais chamam atenção de Anne-Marie Métailié estão o medo e a paranoia, que o autor
explora tanto como elemento de criação, quanto
tema. Ademais, segundo ela, Carvalho sabe contar
histórias:
Ele trabalha de uma maneira muito inteligente o tema do medo. Ele se coloca sempre, por meio
dos seus textos, em situações de medo. E é muito,
muito... Tem muito talento. Por outro lado, ele conta
histórias, e isso para mim é muito importante. Acho
que a literatura não é só estilo. Então, ele constrói
uma obra... O seu português é um encanto. Eu gosto.
Elaborada como um quebra-cabeça e conduzida com um virtuosidade suficientemente alucinada,
não se consegue resumir a intriga; ela funciona tanto como suspense quanto como metáfora da ficção,
que multiplica os efeitos de espelho e as myses en
abyme, para significar, no fim das contas, o arbitrário poético de toda fábula (Gabriel, 1998, p.62).
Em contraste com Anne-Marie Métailié, que
tem como critério para a escolha dos seus autores
a capacidade deles de narrar, isto é, de contar uma
história,7 os críticos franceses valorizam, sobretudo, os traços estéticos – narrativos – e políticos
(político entendido a partir da tipologia de Sapiro)
da obra de Carvalho. Elogiam o trabalho formal,
em quase todas as resenhas de todos os romances.
Escrevem, igualmente, sobre o parentesco da obra
do autor brasileiro com a de Jorge Luis Borges, sobre a técnica da mise en abyme, sobre o detetivesco,
que inclui, no caso, a investigação sobre a própria
forma literária.
Ainda, são trazidos à baila aspectos relativos à
autobiografia em Nove noites, como, por exemplo,
no lead da resenha do jornal Le Monde – “Bernardo
Carvalho segue a pista de um antropólogo e remonta em direção a seus próprios fantasmas” (Cortanze,
2005, p.V) – ou no artigo de Michele Gazier, para o
Télérama, sobre o mesmo romance: “Carvalho não
pinta seu próprio coração, atribuindo-o a um outro, mas vai ao limite de sua própria busca” (Gazier, 2005, p.34). Ainda, no caso de O sol se põe em
São Paulo, Véronique Rossignol, do Livres Hebdo, ao
mesmo tempo em que ressalta a complexidade da
estrutura do romance, chama-o de “uma história de
honra e humilhação” (Rossignol, 2008, p.4).
No conjunto da recepção crítica francesa da
obra de Bernardo Carvalho, que é, talvez, o ficcionista brasileiro contemporâneo mais resenhado na
França, há poucos artigos sobre o conteúdo explícito dos romances. Exceções seriam as publicadas
no jornal Le Fígaro, como essa, sobre O sol se põe em
Nesse sentido, para a mídia cultural francesa,
ou ao menos parisiense, Bernardo Carvalho aparece como um autor de forma difícil, cosmopolita,
comparado eventualmente com outros escritores já
consagrados, como Borges, Beckett e Conrad.
E não deixa de ser curioso que essas leituras
por assim dizer universalizantes e positivas de suas
obras venham seguidas de notas biográficas sobre o
seu domínio do idioma francês e sobre sua relação
com a cultura francesa, o que parece reforçar, junto
ao público francês, o cosmopolitismo do autor. Por
exemplo, Claude Michel Cluny, no Le Figaro, inicia seu artigo da seguinte forma: “Brasileiro nascido
em São Paulo, íntimo de Paris, Bernardo Carvalho
começa pelo mais difícil: os contos” (Cluny, 1997);
já, na revista Les Inrockuptibles, Fabrice Gabriel escreve: “Bernardo Carvalho é um falso tímido, mas
um verdadeiro romancista e um autêntico viajante.
O que não significa que os livros desse brasileiro
perfeitamente francófono (ele foi correspondente
da Folha de São Paulo em Paris) sejam assimiláveis a
simples relatos exóticos... (Gabriel, 1998, p. 62)”;
também Véronique Rossignol destacará o “francês
perfeito” de Carvalho (Rossignol, 2008, p. 4).
Em maio de 2005, ano do Brasil na França, a
revista Le Magazine Littéraire publicou um artigo sobre a literatura brasileira contemporânea em que é
ressaltada, justamente, a faceta cosmopolita da nova
produção, tendo como destaque, no caso, o romance
Budapeste, de Chico Buarque, e também Mongólia, de
Bernardo Carvalho. Segundo Erwan Desplanques,
7 “Digamos que as preferências acabarão desenhando
uma linha editoral, porque as preferências, não as
temos do nada, é óbvio. Se precisasse definir um fio
condutor, eu diria que publicamos livros que contam histórias”. Entrevista a Isabelle Roche (op. cit.).
no momento em que a França eleva as cores do
país deles, com reforço de muito samba e clichês
ameríndios, os autores parecem desgostar suas origens. Nenhuma palavra sobre os jogadores de futebol, nem sobre os dançarinos (sic) de capoeira. Fim
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MELLO, Jefferson Agostini. Duplicidades e contradições em Bernardo Carvalho: o estético e o político; o universal e o particular
cebe o jornalista de Le Magazine Littéraire, gostaria
de frisar que a representatividade da língua literária
de Carvalho pode, ao fim, limitá-lo à condição de
autor nacional. E isso graças às especificidades do
espaço de recepção, no caso, o francês.
Como se sabe, no Brasil, atualmente, o consumo
frequente de uma literatura mais rebuscada se deve,
praticamente, aos leitores especialistas (escritores,
professores universitários, alunos de graduação e
pós-graduação de cursos de letras e ciências humanas) e as instancias de consagração são formadas,
sobretudo, por esse tipo de leitor.
Já, na França, além dos críticos – que podem ser
tanto os jornalistas culturais quanto os acadêmicos,
além dos próprios escritores9 – as livrarias têm um
papel crucial na difusão, divulgação e seleção das
obras, e o livreiro, mais do que um mero vendedor, é um mediador importante. De acordo com
Priscilla Clark, para quem o estatuto da literatura
na França tem a ver com raízes aristocráticas ainda
hoje presentes:
do realismo social. Os homens de letras desertaram
o Brasil, renegando tanto suas tradições quanto seus
estereótipos. O destino é a terra de ninguém literária onde, desvinculados das preocupações identitárias dos mais velhos, eles podem enfim propor o
universal (Desplanques, 2005, p.80).
Apesar de certo exagero, caso se observe de perto a produção literária contemporânea, com suas
coleções “estrangeiras” como a Amores Expressos
(Companhia das Letras), com suas participações
em feiras de livro internacionais, e com seus romances “desterritorializados”, o comentário parece
correto: aponta para uma das tendências da literatura brasileira contemporânea, que, como estou
tentando demonstrar, é ressaltada na produção de
Bernardo Carvalho. No entanto, como se verá, esse
desejo de buscar o universal se choca na maioria
das vezes com a realidade local, quer dizer, com o
espaço de recepção estrangeiro. Assim, duplicidades e contradições aparecem não apenas na obra de
Carvalho, mas também no modo como seus leitores
a recebem.
Em seu texto “Consagração e acumulação de capital literário: a tradução como câmbio desigual”,
Pascale Casanova divide em quatro grupos as línguas dominadas: as orais ou aquelas cuja escrita
foi fixada recentemente; as de criação ou recriação
recente, que se tornaram em um momento de independência uma língua nacional; as de cultura ou de
tradição antiga ligadas aos países “pequenos”, como
o holandês, o dinamarquês; as de grande difusão,
com muitos falantes, mas pouco conhecidas no
mercado literário internacional, sendo, portanto, literariamente dominadas. Assim, o português – ou o
“brasileiro”, como é divulgada pela editora Métailié,
a língua na qual Bernardo Carvalho escreve – faz
parte desse último grupo. Apesar de uma suposta
mudança de posição de nossa literatura no espaço
literário mundial, agora talvez mais autônoma, isto
é, mais próxima do centro desse espaço,8 como per-
Apesar dos avanços técnicos e de um mercado
bastante expandido, a comercialização em larga
escala chegou à França relativamente tarde, e uma
razão certamente recai na percepção de editores e
livreiros de que a sua tarefa é “nobre”, portanto distante do comercialismo vulgar do mercado (Clark,
1979, p.1066-1067).
Anne-Marie Métailié corrobora essa observação. Mesmo em um momento em que a França se
depara com a massificação do mercado cultural, a
editora de Bernardo Carvalho na França privilegia
literários melhores dotados de capital e, de outro,
os campos nacionais desprovidos ou em formação e
que são dependentes no que toca as instâncias políticas – nacionais na maioria dos casos. Podemos
notar uma homologia de estrutura entre cada campo nacional e o campo literário internacional: os
campos nacionais se estruturam também segundo a
oposição entre um polo autônomo e cosmopolita, e
um polo heterônomo, nacional e político. Essa oposição se encarna, notadamente, na rivalidade entre
os escritores ‘nacionais’ e os escritores ‘internacionais’” (Casanova, 2002/2004, p.8).
9 Em texto que abre uma edição de 2012 da revista
Les Temps Modernes, em número dedicado à crítica
– Les Critiques de la Critique –, Antoine Compagnon reevoca Thibaudet para abordar o estado das
três críticas, ainda válidas na França de hoje: de
jornalistas, escritores e professores universitários
(Compagnon, 2013, p.11).
8 De acordo com essa autora, em fragmento que,
aliás, resume bem as teses de seu livro A república
mundial das letras, “a partir da revolução nacional
herderiana, o campo literário mundial, formado da
quase totalidade dos campos literários nacionais,
estrutura-se de modo durável, ao mesmo tempo segundo o volume e a antiguidade do capital e segundo o grau correlativo de autonomia relativa de cada
campo literário nacional. O espaço literário internacional é, portanto, ordenado segundo a oposição
entre, de um lado, um polo autônomo, os campos
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MELLO, Jefferson Agostini. Duplicidades e contradições em Bernardo Carvalho: o estético e o político; o universal e o particular
o trabalho dos livreiros:
tradição com a propensão, na França, em classificar
as literaturas de acordo com as línguas e os países, o
que reenvia ao postulado de uma autonomia relativa
das literaturas nacionais, enquanto as obras que se
referem mais à literatura universal que à tradição
nacional são cada vez mais numerosas, em particular nas literaturas periféricas (Sapiro, 2008, p.205).
Focalizamos no trabalho dos livreiros! Então,
mandamos o serviço de imprensa até os livreiros,
discutimos com eles. Eles convidam os autores, fazem debates com o público porque eles têm credibilidade. Têm um papel importante na cultura e têm um
papel social muito importante porque agora as livrarias que funcionam bem se tornam lugar de encontro, de sociabilidade. Então, trabalhamos diretamente com o leitor. E também tem as Feiras de Livro.10
O verbo “reenviar”, empregado aqui por Sapiro,
aponta para uma marca que é raramente apagada e
é a que prevalecerá quando se olha para o autor estrangeiro da periferia do espaço literário mundial,
com raras exceções. Geralmente, o que o público
francês busca nesse tipo de autor é a expressão de
uma cultura nacional (Sapiro, 2008, p.203).11
Isso explicaria, em boa medida, a escolha das
capas de dois livros de Carvalho para a edição francesa, em que o específico ganha o lugar do universal. Por exemplo, a foto da contracapa de Nove
noites, da edição brasileira, em que se vê um Bernardo Carvalho criança, de mãos dadas com um
índio – este em indumentária típica – será a capa
da edição francesa. Trata-se, assim, do oposto do
que sugerem o conjunto da capa e da contracapa da
edição brasileira. Na capa brasileira, de autoria de
um fotógrafo francês apaixonado pelo Brasil, Marcel Gautherot, intitulada Porto, temos uma imagem
em primeiro plano de um navio ancorado, ao lado
dos guindastes, e, em segundo plano, navios no
horizonte, partindo e chegando. Assim, a viagem,
na capa brasileira, com todas as metáforas que ela
carrega (deslocamento, desidentificação), em uma
foto sem a presença da figura humana, dá lugar,
na capa francesa, a uma imagem tipificada, em que
se ressalta a figura de um índio enorme com uma
criança. Essa foto, ao ser colocada, na edição brasileira, como antítese da foto da capa, permite ver no
conjunto certa ironia, na exploração do contraste
entre o geral e o particular.
Com efeito, a mesma mudança do universal ao
particular parece valer para as capas de O sol se põe
em São Paulo, em que a imagem de uma megalópole, que poderia ser tanto São Paulo quanto Tóquio,
Portanto, além de receber uma resenha em um
jornal de prestígio, dá reputação a um autor, na
França, o fato de sua obra ocupar as estantes das
livrarias tradicionais, que, no caso, distinguem-se
das do tipo “grande surface”, como as FNAC. Melhor ainda se ocupar as primeiras bancadas, onde
são expostos os lançamentos e as preferências dos
livreiros, que são, antes de vendedores, leitores e
selecionadores dos produtos que oferecem.
O problema para os autores estrangeiros é que,
em Paris, as livrarias separam os autores por línguas e nacionalidades. Por mais cosmopolita que
seja, só por escrever em português, um autor como
Bernardo Carvalho terá sua obra colocada na parte,
sempre reduzida, destinada à literatura lusófona.
Sobre essa contradição, escreve Gisèle Sapiro:
As estratégias de universalização podem variar,
do apagamento das referências de tempo e espaço à
sua acentuação de uma maneira distanciada, irônica, estetizante ou exótica, com piscadas de olhos aos
símbolos de uma cultura “mundial” em formação,
que se elabora e se difunde largamente a partir de
Nova Iorque. Elas invariavelmente entram em con10Christian Roblin, diretor da SOFIA (Société Française des Interets des Auteurs de l’écrit), em entrevista concedida a mim, afirma que o que sustenta o
funcionamento do mercado do livro e da edição na
França são as livrarias “e o fato de termos uma rede
de livrarias. A edição é essencialmente um mercado de oferta. É isso! Isso conta muito! Portanto, o
livreiro tem seu papel ainda. Ainda porque, com
a edição digital, essas livrarias estão fragilizadas e
têm menos chance de sobreviver. O dia em que
desaparecer o circuito de livrarias independentes
haverá muita dificuldade para a edição. Porque a
edição vive também dessa proximidade, do calor
das pessoas que passam por lá. Aí está! Mas, de
todo modo, é um pouco impactante [...]. Eu vou
bastante às livrarias para ver, porque é sempre interessante. Vejo que há sempre pessoas dentro delas. Elas estão sempre cheias”.
11Na conversa que tive com Olivier Desmettre, coordenador do festival Lettres du Monde, de Bordeaux,
este destacou que o público que assiste aos escritores estrangeiros no festival constitui-se, em grande
parte, de interessados ou no país, ou na sua cultura, ou, ainda, no seu idioma. Em 2005, o Lettres du
Monde homenageou o Brasil. Estiveram presentes na
ocasião, entre outros, Luiz Ruffato e Betty Mindlin,
ambos autores publicados pela Métailié.
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MELLO, Jefferson Agostini. Duplicidades e contradições em Bernardo Carvalho: o estético e o político; o universal e o particular
da edição brasileira, é substituída pela fotografia de
uma mulher japonesa em luto, reenviando o leitor
ao conteúdo explícito do romance e jogando contra as duplicidades – São Paulo/Tóquio, dia/noite,
luminosidade/obscuridade – que, como se viu, o
romance parece explorar, sem resolver. Assim, a
capa “autoriza” a leitura que o resenhista do Figaro
faz do romance.
De modo que as edições francesas ressaltam o
que Sapiro entende como a dimensão exótica, chamada por alguns editores de etnográfica, a qual,
segundo ela, remete a um particularismo despolitizado, próximo de uma lógica heterônoma, mas que
tem sido o olhar sobre as literaturas estrangeiras
na França (Sapiro, 2008, p.206). A própria editora, Anne Marie Métailié, escolheu pessoalmente as
duas capas para as edições francesas e optou pelo
particular em detrimento do universal, pensando
talvez no mercado potencial para os romances de
Bernardo Carvalho.
Como assinala Pierre Bourdieu, em artigo sobre a circulação internacional das ideias (Bourdieu,
2008), o sentido e a função de uma obra estrangeira são determinados tanto pelo campo de chegada quanto pelo campo de origem, e isso por duas
razões: porque o sentido e a função no campo de
origem tendem a ser completamente ignorados e
porque a transferência de um campo a outro se faz
por meio de uma série de operações sociais, como,
por exemplo, a seleção e as estratégias de valoração,
que vão desde a escolha do tradutor à do prefaciador, nas quais se podem aplicar categorias de percepção e problemáticas próprias de um campo de
produção diferente.
No caso de Bernardo Carvalho, há certa homologia entre sua obra e a editora na qual ela é
publicada, no sentido de ambas fazerem parte do
polo de produção restrita. Por outro lado, trata-se
de editora conhecida, sobretudo, por ser especialista em literaturas nacionais e línguas semiperiféricas (o espanhol) e periféricas (o português). As
tradutoras dos romances de Carvalho, que poderiam, também, imputar maior valor à obra dele,
não são figuras destacadas no campo literário francês.12 Amenizaria, quem sabe, a recepção desigual,
quando comparada à sua posição de destaque no
Brasil, o fato de Carvalho conseguir ele mesmo se
posicionar na mídia cultural francesa, controlando,
de certo modo, a recepção de uma obra de ambição
cosmopolita.13
Em um espaço literário dominante como o
francês, Bernardo Carvalho acaba tendo um lugar
dúplice: autor universal, por boa parte da crítica
cultural, e autor específico, de uma língua e de uma
literatura dominadas, por parte de outros mediadores e, supõe-se, do público leitor, com o reforço das
estratégias da editora francesa, por onde sua obra é
publicada. Como explica Pascale Casanova, “a inegalidade linguístico-literária implica que o valor de
um texto literário – seu valor no mercado dos bens
literários – depende, ao menos em parte, da língua na qual ele é redigido” (Casanova, 2002/2004,
p.14).
***
Ao acionar o referencial estrangeiro já consagrado, ao se filiar ao grand monde da literatura mundial, demonstrando suas credenciais aos de dentro,
Bernardo Carvalho se constrói, internamente, como
o mais cosmopolita dos nossos escritores. Um dos
efeitos desse empenho é que, para setores da crítica
literária brasileira, Carvalho é visto como autor cosmopolita e, portanto, em tempos de mundialização
literária, acaba sendo bem cotado aqui dentro. Para
fora, contudo, ele figura como um autor brasileiro.
Recuperando um fragmento do romance, sua história como escritor, dentro do espaço literário, é um
pouco a de suas personagens, “gente que não pode
pertencer ao lugar onde está, onde quer que seja, e
sonha com outro lugar, que só pode existir na imaginação” (Carvalho, 2007, p.164).
Referências
BEAL, S. (2005). Becoming a character: an analysis
máticas”, como, por exemplo, um Valérie Larbaud
tradutor de Joyce, nem “consagradoras institucionais”.
13De acordo com Anne-Marie Métailié: “O Bernardo [Carvalho] tem uma vantagem enorme para
um editor porque ele fala muitos idiomas, então,
quando vem pode dar entrevistas diretamente,
pode participar de debates, diretamente. E pode
participar em emissões de rádio. Isto é importantíssimo para a recepção da obra pelos leitores!”.
12 As tradutoras de Carvalho na França são Marivonne Lapouge-Pettoreli, para Aberração, Bêbados e sonâmbulos e As iniciais; e Geneviève Leibrich, para
Nove noites, Mongólia, O sol se põe em São Paulo e
O filho da mãe. Segundo categorias de Casanova
(2002/2004), não são nem “consagradoras caris142
revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 131-144, out. 2012/mar. 2013.
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Jefferson Agostini Mello é professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São
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Brasileira (FFLCH), ambos da Universidade de São Paulo (USP). E-mail: <[email protected]>.
Recebido para avaliação em março de 2013. Aprovado para publicação em abril de 2013.
144
Os heróis do ensaio de
Euclides da Cunha
Carvalho, Ricardo Souza de
Resumo
A partir de menções esparsas que Euclides da Cunha fez ao escritor britânico Thomas Carlyle, entre 1894 e 1903,
propõe-se uma concepção do gênero ensaio que orienta as obras Os Sertões e Contrastes e confrontos. Carlyle teria
oferecido a Euclides uma representação da História emocionante como a literatura e baseada na figura paradigmática
do herói. No entanto, o autor brasileiro modifica essa matriz devido às determinações do meio brasileiro.
Palavras-chave: Euclides da Cunha – Thomas Carlyle – Ensaio – Herói.
Abstract
From Euclides da Cunha’s mentions about the British writer Thomas Carlyle, between 1894 and 1903, proposes a
discussion about essay genre in the works Rebellion in the Backlands and Contrastes e confrontos. Carlyle would have offered to Euclides a representation of the history as literature, based on the paradigmatic figure of the hero. However,
the Brazilian author modifies this perspective due to the Brazilian context.
Keywords: Euclides da Cunha – Thomas Carlyle – Essay – Hero.
do Recife”, a exemplo dos livros Ensaios e estudos de
Filosofia e crítica (1875), de Tobias Barreto e Ensaio
sobre a Filosofia do Direito (1895), de Silvio Romero.
Os títulos geralmente trazem outros termos para realizações que podem ser entendidas como ensaio,
a exemplo dos livros Aspectos da Literatura Colonial
Brasileira (1896), de Oliveira Lima, e Escritos e discursos literários (1901), de Joaquim Nabuco.
Contudo, a fortuna crítica euclidiana tem se
valido do termo ensaio com certa frequência para
caracterizar textos que transitam entre a literatura e
outros campos do conhecimento, em consonância
Ao que se saiba, Euclides da Cunha nunca utilizou a palavra ensaio para designar sua obra em
prosa não ficcional, Os Sertões (1902) e as coletâneas que reúnem parte de sua produção jornalística,
Contrastes e confrontos (1907) e À margem da História (1909). Essa ausência da denominação ensaio
não seria exclusividade de Euclides, pois no Brasil
não havia um uso extensivo como na Europa do
século 19. Tomando apenas os títulos das obras, a
palavra estaria circunscrita ao estudo de uma área
mais específica e de viés cientificista, propostos sintomaticamente pelos membros da chamada “Escola
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Carvalho, Ricardo Souza de. Os heróis do ensaio de Euclides da Cunha
com um gênero variável na forma e nas intenções.
Além disso, tal abordagem vincula-se mais a uma
tradição ensaística do pensamento brasileiro, em
detrimento das relações dos escritos de Euclides
com uma prática literária que se consolidava na
Europa do século 19.
A imprensa promoveu a expansão do que se
pode chamar ensaio.1 Como indício de seu reconhecimento literário, os ensaios poderiam ser publicados em livro, formando uma obra coesa ou
uma coletânea. Mas, ao que tudo indica, Euclides
desconfiava da relevância do livro que nascia das
páginas efêmeras dos jornais. Em grande parte, os
textos produzidos para o jornal representavam para
ele uma espécie de esboço para uma obra mais bem
acabada. Dessa maneira, a série “Canudos (diário
de uma expedição)”, que enviou como correspondente de guerra a O Estado de São Paulo, entre agosto e outubro de 1897, é uma preparação – ou ainda ensaio – para Os Sertões. Aliás, o próprio jornal
anunciara que, além das reportagens, também faria
estudos para “escrever um trabalho de fôlego”, um
“valioso documento para a história nacional” (Andrade, 2002, p.130). Cioso quanto ao impacto que
sua obra de estreia causaria, o escritor apenas se
permitiu divulgar um “Excerto de um livro inédito”, em 19 de janeiro de 1898, referente ao capítulo
III da parte O Homem. Talvez a percepção de uma
literatura fácil e fragmentária tenha afastado Euclides da divulgação jornalística e do termo ensaio,
preferindo a dignidade do livro inédito, ancorado
na ciência e na historiografia.
Por esses motivos, não seria de se estranhar um
aparente desprezo com que Euclides comentou a
primeira coletânea de seus textos jornalísticos, em
carta de 31 de dezembro de 1906 ao amigo Escobar:
Um editor português (com a mania do suicídio)
reuniu uns vinte artigos meus, pespegou-lhe o título
Contrastes e confrontos, pediu um prefácio ao Bruno
– o fantástico Pereira de Sampaio – e arranjou um
livro que dentro de 15 dias aqui chegará. Não será
bem um livro – mas agradeço ao Joaquim Leitão
(o tal descabeçado) o pensamento. Tais artigos são
uma espécie de filhos naturais do espírito, mais descuidados, talvez, porém às vezes dignos do nosso
amor (Galvão; Galotti, 1997, p.322).
Por um lado, existe um esforço em desqualificar
uma publicação que não chega a ser um livro e se
eximir de qualquer responsabilidade: os textos são
minimizados como “uns vinte artigos” publicados
por um terceiro longínquo e não confiável. Por outro, contraditoriamente, Euclides releva a falta do
“descabeçado” editor português, ao confessar certo
sentimento para com esses “filhos naturais do espírito, mais descuidados, talvez, porém às vezes dignos do nosso amor”. Embora não se trate do livro
“vingador” e bem planejado de 1902, tal linguagem
familiar, não usual em Euclides, pode trair uma
ilustre filiação. Na advertência ao Leitor, Michel de
Montaigne, que em 1595 lançara o gênero ensaio reverenciado pelos séculos seguintes, apresentava-se
sem pretensões: “[...] eu não me propus a nenhum
fim, a não ser doméstico e privado [...] Eu quero
que me vejam em minha maneira simples, natural e ordinária, sem estudo e artifício. [...] Assim,
Leitor, sou eu mesmo a matéria de meu livro [...].”
(Montaigne, 2001, p.53). Tal perspectiva subjetiva
da tradição do ensaio pode justificar a inclusão em
Contrastes e confrontos do texto inédito “A Esfinge”,
que traz a indicação “De um diário da revolta” e a
data de 8 de fevereiro de 1894. Em meio ao narrador da história e do analista da política internacional, predominantes nos demais ensaios, surge o
próprio Euclides aos 28 anos registrando o encontro furtivo na calada da noite com o presidente Floriano Peixoto, quando dirigia as obras de fortificação em plena Revolta da Armada, deflagrada no ano
anterior. Em lugar do discurso sobre um momento
crucial para o regime republicano ao feitio do jornalista militante, o diário estimula o experimento
do narrador que faz as vezes de um ficcionista em
torno da tensão das tarefas em terra firme, da ameaça dos navios ancorados na baía mergulhada na
escuridão e de suas conjecturas. Não se sabe se “A
Esfinge” seria a recuperação de um diário da juven-
1 Alexandre Eulalio (1992, p.50) comentou a interdependência entre ensaísmo e jornalismo no Brasil:
“[...] Sinônimos imperfeitos, articulismo e ensaísmo são obrigados a coincidir de todo nas condições do Brasil; [...] Daí a importância das seções
fixas ou da colaboração constante em jornais e revistas, coletadas mais tarde em volume. [...] Muito
mais corrente em nossa literatura pode parecer ao
primeiro momento, e por isso aceita como irremediável, o universal da prática fez com que o articulismo de ensaio fosse com o tempo considerado
a forma mesma da expressão do gênero, votando
a uma irrecorrível efemeridade mesmo aquilo que
de mais importante pudesse aparecer debaixo dessa forma. Sem ter sido o único, Sílvio Romero foi o
ensaísta que de maneira mais veemente se recusou
a esse fragmentarismo consagrado, preferindo seccionar, revistas e folhas afora, seus estudos quase
todos eles de dimensões ponderáveis”.
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Carvalho, Ricardo Souza de. Os heróis do ensaio de Euclides da Cunha
tude não preservado, reconstrução da memória ou
até mesmo uma interseção dos dois; o que importa
é considerá-la peça seminal para a compreensão do
ensaio de Euclides.
Ainda no começo, ele expõe o dilema entre as
atribulações da profissão de engenheiro e a dedicação às letras, que marcaria sua trajetória. Diante
da mudança das obras de fortificação do morro da
Saúde para as Docas Nacionais, uma afeição literária
o redimiria de uma situação tão adversa às suas inclinações: “Acompanhei-os; e não esqueci um adorável companheiro e mestre, Thomas Carlyle, em
cujas páginas nobremente revolucionárias me penitencio do uso desta espada inútil, deste heroísmo
à força e desta engenharia mal-traçada...” (Cunha,
1995, p.200). A menção tão destacada ao escritor
britânico Thomas Carlyle (1795-1881) pode explicar alguns parâmetros da obra euclidiana.
Muito lido e discutido no século 19, Carlyle,
assim como Euclides, enveredou-se pela prosa não
ficcional, mas com estreitos vínculos literários. Na
melhor tradição de um gênero que nesse momento
tinha a Inglaterra como principal modelo, publicou
inúmeros ensaios sobre os mais variados assuntos
em periódicos como o prestigioso Edinburgh Review, que depois comporiam uma série de volumes.
A história é um de seus maiores interesses nos ensaios e em obras de maior fôlego, sendo French Revolution: a History (1837) uma das mais conhecidas.
O elogio das “páginas nobremente revolucionárias”,
feito por Euclides, talvez se refira a esse livro, uma
vez que a Revolução Francesa estimulara os ideais
republicanos de sua poesia de juventude.
Portanto, em 1894, quando Euclides ainda se
dividia entre a poesia e os textos jornalísticos como
forma de expressão, a leitura de Carlyle pode ter
sido reveladora de uma maneira empolgante e expressiva de se escrever sobre o que ocorreu, semelhante à de um poema épico ou de um romance.
Enquanto na Europa, nesse final de século 19, a
história se afastara da literatura para se especializar
como disciplina legitimada pela ciência, tal recuo
de Euclides a um escritor anterior à consolidação
desse processo indica uma estratégia frente às condições de produção de conhecimento no Brasil ainda não propícias a essa separação. Além disso, por
mais que se encarasse como homem de ciência, não
se livrava de uma sensibilidade romântica que o fazia se identificar com autores e obras dos anos de
1830 e 1840.
A biografia foi o gênero por excelência escolhido por Carlyle para combinar a história e a ficção
narrativa: “A História do mundo nada mais é que
a biografia dos grandes homens” (Dosse, 2009,
p.163). Muitas vezes, a forma do ensaio, em livres
pinceladas, criava um quadro ou um perfil da personagem histórica tomada como um herói superior
a todos e condutor dos acontecimentos. Ao contrário do distanciamento entre o autor e seu objeto
exigidos pela história científica, Carlyle ansiava por
uma interpenetração entre as partes: “Não basta julgar o herói, é preciso também transfundir nele o
próprio eu” (Dosse, 2009, p.164).
O autor britânico idealizou uma tipologia de
heróis em seis categorias representadas por figuras
proeminentes: o herói como divindade (Odin, da
mitologia e do paganismo escandinavos); profeta
(Maomé); poeta (Dante e Shakespeare); predicador
(Lutero e John Knox); homem de letras (Rousseau,
Johnson e Burns); e soberano (Cromwell e Napoleão). Este último encarnaria um espírito revolucionário, que reuniria em si as possibilidades da
perfeição política: “Que em todos os países encontremos o homem que, que o elevemos ao patamar
supremo da nação e que o tratemos com a mais leal
deferência: eis o único meio de instaurar um governo perfeito” (Dosse, 2009, p.165).
Ao acreditar na nobre concepção de herói proposta por Carlyle, o jovem Euclides não a reconheceria em seu entorno, a começar pelo seu “heroísmo
à força”. E, acima de todos, Floriano Peixoto decepcionaria esse ideal. Como se fosse uma aparição
fantasmagórica, o presidente surge sorrateira e anonimamente apenas no fecho do ensaio. O narrador
se fixa em sua fisionomia, cujo desenho esboça em
traços incisivos um parecer sobre a personagem: “A
meia penumbra da claridade em bruxuleios, lobriguei um rosto imóvel, rígido e embaciado, de bronze; o olhar sem brilho e fixo, coando serenidade
tremenda, e a boca ligeiramente refegada num ríctus indefinível – um busto de duende em relevo na
imprimidura da noite, e diluindo-se no escuro feito
a visão de um pesadelo.” A derradeira frase reduz a
alusão mitológica à constatação prosaica: “... e a Esfinge, quebrando a imobilidade da pedra, veste um
paletot burguês e vem – desconfiadamente confiante – rondar os lutadores...” (Cunha, 1995, p.204).
Dez anos depois, Euclides voltaria a Floriano
no ensaio “O Marechal de Ferro”, divulgado inicialmente em O Estado de São Paulo, e recolhido
em Contraste e confrontos. Mesmo sem citá-lo diretamente, Euclides ainda considerava o tipo do
“herói-soberano” de Carlyle. Ao contrário da fama
de Floriano em seu tempo, o atributo não lhe cor147
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Carvalho, Ricardo Souza de. Os heróis do ensaio de Euclides da Cunha
responderia sob um exame recuado, tornando-se
uma espécie de “herói negativo”, uma vez que seu
crescimento pressupunha a queda do país:
Segundo Euclides, o poeta satírico teria se sobressaído por ser o fruto mais expressivo de um Brasil
em formação:
O herói, que foi um enigma para os seus contemporâneos pela circunstância claríssima de ser
um excêntrico entre eles, será para a posteridade um
problema insolúvel pela inópia completa de atos que
justifiquem tão elevado renome. É um dos raros casos de grande homem que não subiu, pelo condensar
no âmbito estreito da vida pessoal as energias dispersas de um povo. Na nossa translação acelerada
para o novo regímen ele não foi uma resultante de
forças, foi uma componente nova e inesperada que
torceu por algum tempo os nossos destinos.
Assim considerado, é expressivo. Traduz de
modo admirável, ao invés de sua robustez, a nossa
fraqueza.
O seu valor absoluto e individual reflete na história a anomalia algébrica das quantidades negativas:
cresceu, prodigiosamente, à medida que prodigiosamente diminuiu a energia nacional. Subiu, sem se
elevar – porque se lhe operara em torno uma depressão profunda. Destacou-se à frente de um país, sem
avançar – porque era o Brasil quem recuava, abandonando o traçado das suas tradições... (Cunha,
1995, p.129).
Mais do que o homem, biologicamente falando,
Gregório de Matos foi um admirável órgão social
quase passivo, feito uma alavanca, cuja força eram
as próprias forças coletivas: uma máquina simples
em que se corporizaram muitas tendências da raça
nova que surgia. Foi “herói” na alta significação
dada à palavra pelo dramático Carlyle: prefigurou,
fundindo-se na sua individualidade isolada, muitos
aspectos de um povo.
E passou pela vida obedecendo à fatalidade mecânica de uma resultante intorcível: incorrigível,
rebelde sempre à visão estreita dos que pensavam
morigerá-la, como se houvesse preconceitos ou regras para estes avant-coureurs das nacionalidades,
títeres privilegiados, arrebatados pelas leis desconhecidas da história. Foi um grande sacrificado o
desenvolto folgazão! E maior que os seus êmulos, de
Juvenal a Bocage, a sua sátira, em que pese ao tom
ferocíssimo e maligno, pertence-lhe menos do que
às rebeldias nascentes e relaxamentos inevitáveis de
uma sociedade em que se chocavam os vícios de um
povo velho, agravados pela “bebedeira tropical” e os
instintos inferiores de duas raças bárbaras.
Desta alquimia horrorosa, tendo como reagentes o deslumbramento solar, a canícula mordente e a
terra fecunda, só podia surgir naquela retorta Bahia
desmedida aquele precipitado.
Foi tão natural e espontâneo que ainda não se
extinguiu. Difundiu-se em dois séculos, e aí está,
impressionante, nesta adorável capadoçagem nacional que atenua em boa hora a nossa melancolia de
semibárbaros... (Cunha, 1997, p.155).
Euclides, no entanto, vislumbrou no período
colonial alguns “heróis” na acepção de Carlyle em
duas figuras antípodas. A primeira delas seria “Anchieta”, matéria do ensaio publicado em O Estado
de São Paulo, em 9 de junho de 1897, por ocasião
das comemorações do quarto centenário da morte
do jesuíta, e reunido em Contrastes e confrontos. A
“missão evangelizadora” com os indígenas faria de
Anchieta “síntese de uma época”, uma espécie de
“herói-predicador”: um “Grande homem, segundo a
definição profunda de Carlyle, a sua história abrange um largo trecho da nossa própria história nacional” (Cunha, 1995, p.145).
Mais tarde, entusiasmado com o “perfil literário”
sobre Gregório de Matos escrito por Araripe Junior,
remontou mais uma vez a Carlyle, à luz das condições do meio brasileiro, trocando a “Providência divina” pela “fatalidade biológica”. A carta ao amigo,
de 12 de março de 1903, expande-se em um ensaio,
cuja forma, mais livre do que os textos publicados,
é percebida e interrompida pelo próprio Euclides:
“Mas noto a tempo o desgarrão que me desorienta, escrevendo, rápido, estas linhas, tomando-lhe o
tempo e expondo aí, desalinhadas e em flagrante,
a impressão ou antes uma das impressões que me
deixou seu belo livro.” (Cunha, 1997, p.155-156).
Insinuaria Euclides uma categoria brasileira, a
do “herói-capadócio”? De todos os modos, uma outra Bahia, a dos sertões, obrigara Euclides a ampliar
a tipologia dos heróis de Carlyle, a do “herói-pelo
avesso”. A reportagem de 23 de agosto de 1897 enviada a O Estado de São Paulo, como muitas outras,
configura-se na forma de ensaio para o livro em gestação. O retrato do líder dos canudenses, Antonio
Conselheiro, oscila entre a ojeriza do “monstro” e o
fascínio pelo “herói-profeta” que liderava uma multidão de fanáticos:
148
[...]
À medida que nos avantajamos no passado aparecem de um modo altamente expressivo as diversas
fases da existência desse homem extraordinário –
fases diversas, mas crescentes e sempre numa sucessão harmônica, lógicas nas suas mais bizarras ma-
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Carvalho, Ricardo Souza de. Os heróis do ensaio de Euclides da Cunha
Mesmo não sendo a Arábia, Euclides escreveu
um “capítulo fulgurante” sobre Antonio Conselheiro ao estilo de Carlyle, o capítulo IV da parte “O
Homem” d’Os Sertões. O gênero biográfico delimita a personagem como súmula de toda uma coletividade: “A sua biografia compendia e resume a
existência da sociedade sertaneja.” (Cunha, 2001,
p.257). E assim como os heróis positivos de Carlyle, mas no sentido inverso, Antonio Conselheiro ao
mesmo tempo conduz a todos e é conduzido por
uma força maior:
nifestações, como períodos sucessivos da evolução
espantosa de um monstro.
Diante de tudo isto, é singular a teimosia dos
que de algum modo o querem nobilitar, alteando-o ao nível de simples mediocridade agitada ou
maníaco imbecil, quase inofensivo – arrancando-o,
erguendo-o da profunda depressão em que jaz como
homem fatal, tendo diametralmente invertidos todos os atributos que caracterizam os verdadeiros
grandes homens.
Tudo é relativo; considerá-lo um fanático vulgar
é de algum modo enobrecê-lo.
A matemática oferece-nos neste sentido uma
apreciação perfeita: Antonio Conselheiro não é um
nulo, é ainda menos, tem um valor que aumenta segundo o valor absoluto da sua insânia formidável.
Chamei-lhe por isto, em artigo anterior – grande
homem pelo avesso.
Gravita para o minimum de uma curva por onde
passaram todos os grandes aleijões de todas as sociedades. Mas está em evidência; não se perde no
anonimato da mediocridade coletiva de que nos fala
Stuart Mill, embora seja inferior ao mais insignificante dos seres que a constituem. (Cunha, 2000,
p.122-123).
O evangelizador surgiu, monstruoso, mas autônomo. Aquele dominador foi um títere. Agiu passivo, como uma sombra. Mas esta condensava o obscurantismo de três raças.
E cresceu tanto que se projetou na História.
(Cunha, 2001, p.268).
Parcimonioso em revelar suas fontes, Euclides
não menciona Carlyle em Os Sertões como fizera
nos ensaios esparsos. Contudo, para Joaquim Nabuco, leitor familiarizado com o ensaio inglês, era
fácil detectar a sombra de Carlyle em Euclides. A
rejeição d’Os Sertões, externada em carta a Graça
Aranha de 1903, relaciona-se a uma diversa recepção de Euclides e Nabuco do ensaio inglês do século 19:
Desta vez, as imposições do meio seriam muito mais perversas do que no caso de Gregório de
Matos; mas subsistiria em Antonio Conselheiro um
valor que poderia ter florescido em um ambiente
mais favorável:
[...] Não é o caso somente de empregar a expressão tão expressiva Les arbres empêchent de voir la forêt;
aqui a floresta impede também de ver as árvores.
É um imenso cipoal; a pena do escritor parece-me
mesmo um cipó dos mais rijos e dos mais enroscados. Tudo isso precisa ser arranjado por outro, ou de
outra forma. Eu nunca pude me afeiçoar a Carlyle,
e este tinha o gênio por si! Esse livro caberia em
poucas boas páginas. Não fico esperando nada do
que se anuncia. Decerto, talento há nele, e muito,
mas o talento, quando não é acompanhado da ordem necessária para o desenvolver e apresentar, há
alguma coisa em mim que me faz fugir dele. Como
lhe digo, falta-me a compreensão do cipoal (Nabuco,
2006, p.527).
Além disto, as condições mesológicas nas quais
devemos acreditar, excluídos os exageros de Montesquieu e Buckle, firmando um nexo inegável entre
o temperamento moral dos homens e as condições
físicas ambientes, deviam formar, profundamente
obscura e bárbara, uma alma que num outro meio
talvez vibrasse no lirismo de Savonarala, ou qualquer outro místico arrebatado numa idealização
imensa. Porque, afinal, impressiona realmente essa
tenacidade inquebrantável e essa escravização a
uma ideia fixa, persistente, constante, nunca abandonada.
Que diferença existe entre ele e os grandes meneurs de peuples de que nos fala a história? Um meio
mais resumido e um cenário mais estreito apenas.
Dominando há tanto tempo, irresistivelmente, as
massas que cegamente lhe obedecem, sua influência
estranha avolumou-se, cresceu sempre numa continuidade perfeita e veio bater de encontro à civilização.
Se recuássemos alguns séculos e o sertão de Canudos tivesse a amplitude da Árabia, por que razão
não acreditar que o seu nome pudesse aparecer,
hoje, dentro de um capítulo fulgurante de Thomas
Carlyle? (Cunha, 2000, p.123-124).
Nabuco leu com atenção os Ensaios, de Francis Bacon, fundador do gênero entre os britânicos
por volta do final do século 16 e começo do 17.
Uma edição de 1896 em dois volumes que lhe pertenceu integra hoje o acervo da Fundação Joaquim
Nabuco, em Recife, trazendo destaques e notas em
alguns ensaios. Vale lembrar que, em 1896, o escritor esteve imerso na realização do monumental
Um estadista do Império e, portanto, a tradição do
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Carvalho, Ricardo Souza de. Os heróis do ensaio de Euclides da Cunha
na sua principal obra, The History of England (18481861), uma das bases dos retratos do pai de Nabuco e dos outros estadistas do Segundo Reinado,
culminando no de D. Pedro II. Por consequência,
os políticos brasileiros são tratados com a mesma
deferência de Macaulay pela Monarquia Britânica.
Já Euclides, como se viu, preferiu o herói na forma
vibrante de Carlyle, mas adaptada às determinações
– ou melhor, imperfeições – do meio brasileiro. O
ensaio entre a reflexão histórica e a ficção literária
de Os Sertões e Contrastes e confrontos constituem
uma “galeria subterrânea” da história brasileira:
assim, haveria o “herói-capadócio” Gregório de
Matos, o “herói-negativo” Floriano Peixoto ou o
“herói-ao avesso” Antonio Conselheiro.
ensaio de Bacon pode ter lhe inspirado, entre outros. No século 19, o grande modelo de Nabuco
foi Thomas Macaulay (1800-1859), enaltecido em
Minha formação: “A frase, a eloquência, o retrato e
a encenação histórica de Macaulay foram também
uma influência permanente que se imprimiu em
meu espírito;” (Nabuco, 2012, p.87-88). Por isso,
ao condenar o estilo d’Os Sertões, Nabuco, de certa
forma, estaria opondo Carlyle a Macaulay: de um
lado, a “frase” e a “eloquência”, entendidas como
exemplares; de outro, a linguagem cerrada e retorcida à maneira de um “imenso cipoal” que comprometeria tanto o objeto quanto o talento.
O “retrato” de Macaulay alude à reconstituição
dignificante das figuras políticas em seus ensaios e
Referências
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NABUCO, J. (2006). Diários. Edição de Evaldo Cabral de Mello. (org.). Rio de Janeiro, Bem-Te-Vi.
_____. (2012). Minha formação. São Paulo, Editora 34.
Ricardo Souza de Carvalho é professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), atuando no Programa de
Literatura Brasileira (FFLCH). E-mail: <[email protected]>.
Recebido para avaliação em março de 2013. Aprovado para publicação em abril de 2013.
150
Jornalismo Narrativo em
tempos de Belle Époque
VERRUMO, Marcel
Resumo
Este artigo analisa a série de reportagens Mistérios do Rio, escrita pelo repórter Benjamim Costallat, na qual há um
registro jornalístico da modernização do Rio de Janeiro dos anos 1920 durante a Belle Époque. Em um primeiro
momento, observa-se como o narrador-repórter Costallat, já assumindo traços do jornalista moderno, registra as
principais transformações que marcaram a modernização da então capital federal, atentando tanto para as camadas
altas quanto para as baixas de sua sociedade. A segunda parte destina-se à analise da linguagem das reportagens eróticas da série e, em um terceiro momento, pensam-se possíveis relações entre as reportagens e o chamado jornalismo
sensacionalista. Em última instância, analisa-se como se dá a representação da modernização de uma cidade brasileira
no início do século 20.
Palavras-chave: Jornalismo – Benjamim Costallat – Modernização – Belle Époque – Rio de Janeiro.
Abstract
This article analyzes the series of reports from Rio Mysteries, written by reporter Benjamin Costallat, in which there is
a journalistic record of the modernization of Rio de Janeiro during the Belle Époque. At first, there was as the narrator-reporter Costallat since assuming traits of modern journalist, records the major transformations that the then federal
capital has modernized, paying attention both to the upper layers for when the casualties of their society. The second
part intends to analyze the language of erotic stories in the series, and a third time, think up possible relationships
between the reports and called sensationalist journalism. Ultimately, we analyze how the representation of a Brazilian
city in the early twentieth century is.
Keywords: Journalism – Benjamin Costallat – Modernization – Belle Époque – Rio de Janeiro.
151
revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 151-164, out. 2012/mar. 2013.
VERRUMO, Marcel. Jornalismo Narrativo em tempos de Belle Époque
Introdução
Quando o arquiteto Jacques Ignace Hittorff mostrou a Haussmann seus planos para uma nova avenida, Haussmann os atirou de volta, dizendo: “Não é
bastante larga (...). O senhor quer 40 metros de largura, e eu quero 120.” [...] Haussmann arrasou os
velhos cortiços parisienses, usando o poder de expropriação do Estado em nome do progresso e da
renovação cívica. Ele organizou deliberadamente a
remoção de grande parte da classe trabalhadora e de
outros elementos indisciplinados do Centro da cidade, onde constituíam uma ameaça à ordem pública e
ao poder político. Criou um desenho urbano no qual
se acreditava que haveria um nível de vigilância para
garantir que os movimentos revolucionários fossem
dominados facilmente (Harvey, 2012, p.38-43).
A Belle Époque carioca inicia-se com a subida de
Campos Sales ao poder em 1898 e a recuperação da
tranquilidade sob a égide das elites regionais. Neste ano registrou-se uma mudança sensível no clima
político, que logo afetou o meio cultural e social, as
jornadas revolucionárias haviam passado. As condições para a estabilidade e para uma vida urbana
elegante estavam de novo ao alcance da mão (Needell, 1993, p.39).
Influenciado por valores e paradigmas importados da Europa – mais acentuadamente da França
e da Inglaterra –, o Rio de Janeiro do início do século 20, então capital federal, era palco de transformações políticas, econômicas, sociais, culturais
e arquitetônicas. A cidade, quando comparada à do
período colonial, era caracterizada, por exemplo,
por “menos patriarcalismo, menos absorção do filho pelo pai, da mulher pelo homem, do indivíduo
pela família, da família pelo chefe, do escravo pelo
proprietário; e mais individualismo: da mulher, do
menino, do negro” (Freyre, 2003, p.126).
No entanto, essa transformação na mentalidade
dos cidadãos ainda era pequena frente às mudanças
que o governo republicano almejava implantar no
território. Movido por um ideal positivista impresso na bandeira nacional, Ordem e progresso, e indo
de encontro ao patriarcalismo colonial, os governos
federal e municipal queriam aproximar, física e simbolicamente, as ruas do Distrito Federal das de outras capitais, como as de Paris e Buenos Aires. O “Rio
Civiliza-se”, como esse período de reformas ficou conhecido, foi uma tentativa de imprimir um caráter
cosmopolita à metrópole (O’Donnell, 2008, p.32).
Uma das principais alterações assistidas pelos
transeuntes do Rio de Janeiro foram as reformas urbanas promovidas pelo prefeito Pereira Passo e claramente inspiradas nas Grandes Obras de Paris, realizadas pelo engenheiro Haussmann no território
francês. As reformas francesas ocorreram durante o
governo de Napoleão III e incluíram a construção
de ferrovias por diversas regiões da Europa e dentro da França; a edificação de grandes obras, como
o canal de Suez; a abertura de portos em território francês; a drenagem de pântanos que causavam
epidemias e a reconstrução da malha urbana de Paris, que veria, por exemplo, serem abertas 12 avenidas em torno do Arco do Triunfo. Essas grandes
avenidas talvez sejam o grande ponto urbanístico
associado à figura de Haussmann:
Marshall Berman, em Tudo o que é sólido desmancha no ar, afirma que a transformação da infraestrutura das ruas resultou em reconfigurações
do modo de vida dos franceses e da construção de
um novo modelo urbano. Paris tornou-se, a partir
daí, conhecida como a Cidade Luz, e se transformaria em um centro turístico mundial com seus
cafés, lojas de departamento, indústria da moda,
grandes exposições de arte, etc. Seu tráfego fluía
sem dificuldade por toda a malha urbana, grandes
marcas instalavam-se nas regiões centrais e ficavam
aos olhos da multidão consumidora, os mais pobres eram empurrados para as periferias para não
“sujar” a imagem moderna que os políticos buscavam transmitir (Berman, 2007, p.180).
Em 1902, quando o Presidente da República,
Rodrigues Alves, e o Prefeito do Rio de Janeiro,
Pereira Passos, assumiram seus respectivos cargos,
criaram o projeto de aproximar a capital brasileira
da francesa. Iniciaram, então, as famosas reformas
do período. Nicolau Sevcenko elencou os quatro
pilares nos quais elas se sustentaram a reforma carioca do início do século 20:
A condenação dos hábitos e costumes ligados
pela memória à sociedade tradicional; a negação de
todo e qualquer elemento de cultura popular que
pudesse macular a imagem civilizada da sociedade
dominante; uma política rigorosa de expulsão dos
grupos populares da área central da cidade; e um
cosmopolitismo agressivo (Sevcenko, 2003, p.43).
Em 15 de novembro de 1905, quando se comemoravam os 16 anos da proclamação da república,
o prefeito entregou aos cidadãos cariocas um dos
símbolos, talvez o maior, que marcariam a modernização do Distrito Federal: a avenida Central (atual Rio Branco). A obra foi o principal marco do seu
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governo. Iniciadas em 1903, as reformas da avenida, assinadas pelo engenheiro Paulo de Frontin,
implicaram a demolição de 1.600 residências, entre
elas casas antigas e cortiços, ao longo de 1.800 metros. Como as parisienses, a avenida carioca também ganhou em extensão e o pedestre que quisesse
cruzá-la teria de andar 33 metros.
A modernização imposta do Rio de Janeiro teve
seu preço social. Muitos dos moradores dessas casas foram expulsos e ficaram sem residência, sendo
obrigados a se transferirem para regiões mais periféricas da cidade – e onde a especulação imobiliária
era menor. Historicamente, verifica-se aí a ampliação do processo de favelização observado no Rio de
Janeiro, iniciado anos antes:
então capital federal, este artigo faz uma análise interpretativa da principal obra do repórter Benjamim
Costallat, a série de reportagens narrativas Mistérios do Rio. Em um primeiro momento, observa-se como o narrador-repórter registra aS principais
transformações pelas quais a cidade passou no período de modernização, atentando tanto para as camadas altas quanto para as baixas de sua sociedade.
A segunda parte destina-se à analise da linguagem
das reportagens eróticas da série e, em um terceiro
momento, pensam-se possíveis relações entre as reportagens e o chamado jornalismo sensacionalista.
Um repórter do “Rio Civiliza-se”
Ao passar por diferentes ambientes e tempos dos
anos 1920, a reportagem de Benjamim Costallat
em Mistérios do Rio está associada, em primeira
instância, ao real. Distanciando-se do paradigma
jornalístico característico do século 19 – marcado
por textos em que o “repórter” não presencia o real
aparente, apenas expõe sua opinião sobre fatos cotidianos –, a série afirma princípios da reportagem
moderna ao ter um repórter-narrador in loco em
busca de informação. Seus textos aproximam-se
dos de outro repórter do período ou, como alguns
pesquisadores preferem classificá-lo, historiador
social: João do Rio. Esse, como se verifica em obras
como A alma encantadora das ruas e As religiões do
Rio, registrou as transformações do Rio de Janeiro
nas décadas de 1900 e 1910, em textos publicados
nos principais diários da época e nos quais também
registrava o alto mundanismo das elites e a exclusão e os costumes dos pobres. Ao analisarem sua
obra, alguns historiadores classificam-no como o
primeiro repórter moderno brasileiro:
As favelas, conjuntos de barracos amontoados
nos morros, haviam sido erguidas perto da nova
área de docas ao norte, no final do século XIX, e
foi para lá que se dirigiram muitos desabrigados das
habitações decadentes da Cidade Velha, demolidas
com as reformas de 1903-06. [...] nas reformas de
Rodrigues Alves, conforme entendidas por ele e por
sua platéia de elite, o impacto negativo se subordinava naturalmente ao impacto positivo almejado
(Needell, 1993, p.71-73).
O “Rio Civiliza-se” também é verificado, por
exemplo, na proibição de antigos hábitos, como o
de ordenhar vacas em espaços públicos, urinar e
cuspir nas ruas. Outra imposição bem polêmica e
que resultou em revoltas urbanas foi a da vacina
obrigatória, a qual buscou combater as frequentes
epidemias que mutilavam a população, como a de
varíola, febre amarela, malária e tuberculose.
Imerso nesse contexto de transformações físicas
e costumes da cidade, o jornalista-escritor Benjamim
Costallat, um dos principais repórteres do período,
escreveu a série de reportagens Mistérios do Rio, na
qual descreveu como se caracterizavam as diversas
camadas da sociedade carioca do período. Nesse
material, convivem o registro da urbanização, verificada nas ruas por onde passava a burguesia, e o comentário sobre a exclusão de proletários explorados
socialmente e, cada vez mais, “empurrados” para as
favelas. Ao construir textos em que está presente um
mosaico de diferentes grupos sociais e diversas realidades, o repórter Benjamim Costallat legou uma obra
indicativa da modernização da Belle Époque carioca,
um período em que, não apenas a partir de valores
franceses, se moldou a sociedade do Rio de Janeiro.
Conscientes da necessidade de pensar a linguagem jornalística em tempos da modernização da
O método de apuração de João do Rio já era o de
um repórter moderno: o questionamento das fontes,
a circulação por diversos bairros em busca de diversidade, o uso privilegiado da descrição in loco. A
curiosidade do repórter era semelhante à dos leitores, confirmada pelo sucesso de seus livros e de suas
séries de reportagens (Costa, 2006, p.42).
Estudiosos pontuam que sua influência não se
restringiu a seu tempo e se verificaria em narrativas
como a de Benjamim Costallat:
Morto em 1921, a marca de seu legado [de João
do Rio] não seria discreta. Tanto que nos anos 1920
assistiu-se a uma espécie de proliferação de escritores-repórteres marcados por ressonâncias, formais
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e estéticas, dos textos de João do Rio. Trata-se de
jornalistas-escritores hoje praticamente esquecidos, representantes de uma vertente decadentista
e “escandalosa” da crônica social, seja nas próprias
seções fixas do jornal diário, seja em romances ou
livros de contos lançados nas primeiras décadas do
século XX (Bulhões, 2007, p.103).
Retornando ao repórter-escritor analisado, Benjamim Costallat, pode-se afirmar que, em sua obra,
não por acaso ele adota um repórter-narrador-testemunha em algumas reportagens. Tratava-se de um
modelo de narrador capaz de atender aos anseios
de um jornalismo que, introduzido no Brasil por
João Rio na primeira década do século, começava a
amadurecer. Já era um tempo em que o profissional
da imprensa saía das redações e ia às ruas à busca de
informação. Essa era também a configuração de um
repórter ideal para registrar as transformações da
cidade. Em uma entrevista que o escritor Benjamim
Costallat concedeu ao Jornal do Brasil na véspera
da estreia da série Mistérios do Rio, já esclarecia que
os textos pautavam-se na realidade e situações vividas pelo narrador repórter. Estabelecia-se, assim,
um contrato inicial entre o jornalista e os leitores a
respeito da factualidade dos conteúdos:
Hoje o que o escritor procura dar, e que o próprio
público leitor exige, é a – verdade. A verdade nos
ambientes, a verdade na ação e a verdade nos personagens. [...] Apenas olhei e narrei. A composição
literária, às vezes, exige certa fantasia. Mas eu peço
ao público que acredite que todos, absolutamente
todos, os ambientes por mim descritos são verdadeiros, e as personagens que passam pelos Mistérios
foram observadas de perto. Não houve exagero, nem
imaginação da minha parte. E daí ter sido a minha
tarefa dobrada – fazer um trabalho sugestivo e interessante dentro da verdade, guardando uma grande
medida na composição... (Costallat, 1924, p.11).
Ao sair pela cidade à busca de informações, o
repórter de rua, Benjamim Costallat, aproxima a
vivência jornalística com um elemento típico da
ficção literária de seu contexto discursivo: o flâneur. Importado à moderna reportagem brasileira
por João do Rio, o flâneur, componente migratório
da literatura finissecular 19 e presente em Oscar
Wilde e Jean Lorrain, por exemplo, seria “um passeante ocioso, um andarilho que caminha a esmo”
(Bulhões, 2005, p.115). Quando Walter Benjamim
analisa a obra de Charles Baudelaire, por exemplo,
identifica a figura do flâneur como um ser errante
em contato com a multidão (Benjamim, 1989).
Há um flâneur em Mistérios do Rio que perambula por lugares obscuros da cidade de seu tempo,
desce aos infernos buscando desvendar realidades
proibidas e perigosas. Trata-se do narrador-personagem que atravessa o morro do cotovelo e vai ao
bairro chinês para registrar como vivem “Os fumantes da morte”, viciados em ópio; do narrador-personagem que vai ao bairro de Ramos para participar de uma cerimônia de candomblé. Sua postura
profissional é a do repórter que, desvendando uma
realidade sombria, promete revelá-la ao seu leitor
ao transformá-la em um texto jornalístico.
Dando um passo à frente em relação ao flâneur
em João do Rio, esse elemento no narrador-repórter
dos Mistérios já assume um caráter mais profissional, caminhando pelas ruas cariocas da Belle Époque
com uma pauta e realizando entrevistas já planejadas. Portanto, já não há mais um flanar ociosamente
pela cidade, como se verifica em alguns textos de
João do Rio, o pai da reportagem no Brasil, mas um
andar buscando situações cotidianas sobre as quais
o repórter já possui conhecimento.
Fundamentalmente, o flâneur caracteriza-se em
Costallat como um modelo para a afirmação do ofício jornalístico de um caminhante que, passando
pelas multidões da cidade e descendo aos seus infernos, transforma-se em um autêntico voyeur:
Não podia ser mais inesperada a visão que tínhamos diante de nós. Estávamos em um dos mais perigosos antros do Rio de Janeiro. Imaginem um espécie
de porão, a luz ali é de porão, uma espécie de alcova,
sem uma janela, sem ar, sem luz, uma alcova cimentada e fétida, terrivelmente fétida – um fedor de urina
acumulada, de vespasiana, de mictório sujo – estreita
– tendo como parede, de um lado, uma divisão de madeira – com um tanque, uma bica d’água, uma mesa
feita por dois cavaletes e algumas tábuas, um pequenino pano verde roto e manchado, sobre esse trapo verde um baralho usado e sebento, alguns níqueis, e ao
redor de tudo isso umas caras, atentas e febris... E que
caras!... Que fisionomias! Que máscaras patibulares e
sinistras! (Costallat, 1924, p.112-113).
Marcado por traços do noturnismo decadentista
do final do século 19 – vertente literária que assimilou e renovou traços do Romantismo –, o voyeur em
Costallat é um repórter que caminha tanto pelos bas-fonds quanto pelas instituições de elite da sociedade
carioca, inserindo nos retratos da cidade uma plasticidade a partir de impressões e sensações subjetivas.
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É um caminho de cabras. Não se anda, gravita-se. Os pés perdem a função natural de andar,
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transforma-se em garras. Primeiro é uma rampa forte, talhada na própria rocha. Depois são pequenos
degraus – e que degraus! – esperanças de degraus,
degraus esboçados na rocha viva, escorregadios, perigosos, traiçoeiros; e lá embaixo é a rua, o precipício, a grande possibilidade de se quebrar o pescoço.
Anda-se. Sobe-se. Vai-se para diante como por um
milagre. E quanto mais se sobe, mais se arrisca a um
tombo fatal, a uma queda na pedreira imensa, a uma
morte instantânea, de pernas para o ar (Costallat,
1924, p.74-76).
que o senhorio, o aluguel nunca é pago. Se o senhorio for o mais valente, então, sim, a casa é paga,
pontualmente, todos os começos de mês... É a lei de
inquilinato da Favela! A bofetada e a navalha resolvem tudo... (Costallat, 1924, p.83-84).
Ao retratar a realidade do submundo carioca
e reportar o cotidiano de seus populares, parece
haver uma identificação positiva entre o narrador-repórter e a temática. Ainda na reportagem citada,
por exemplo, o narrador pede a proteção divina
para a favela, por ela ser “alegre na sua miséria” e
que tem uma gente que “não tem nada” e “dá uma
profunda lição de alegria àqueles que têm tudo”.
“A favela que samba, quando deveria chorar, é um
maravilhoso exemplo para aqueles que têm tudo e
que ainda não estão satisfeitos... Pobre e admirável
favela!...” (Costallat, 1924, p.79).
O olhar que o repórter dispensa a bairros pobres é outra no texto “Na noite do subúrbio”. Na
reportagem em que o narrador-repórter conta o que
se passou na noite em que foi a um barracão no
bairro de Ramos, há o retrato de um local triste,
abandonado, de um povo exausto que vive uma
vida suburbana e monótona. O texto trabalha com
componentes melodramáticos como estratégia para
sensibilizar o leitor. Para criticar a exploração desses trabalhadores, há um contraste da noite que se
vive na favela e da noite que se vive na “cidade”:
Adentremos nas realidades retratadas pelo narrador-repórter na série analisada. Como já mencionado, o Rio de Janeiro do início do século 20 passou por diversas transformações devido à tentativa
de se afrancesar a cidade, arquitetônica e culturalmente. Remodelar a velha capital federal a partir de
uma estrutura francesa, tornando as ruas e avenidas mais parecidas com as parisienses, refletiu em
mudanças sociais maiores, como o surgimento de
favelas e bairros proletários.
O ambiente no qual o repórter flanou, portanto, era um mosaico de realidade. Em seus textos,
misturavam-se festas e costumes “civilizados” e
“chics”– influenciados por valores europeus – com
situações degradantes que se desenrolam nos bas-fonds da capital federal, como nas favelas “recém-criadas”. Enquanto no texto “A criatura do ventre
nu” o narrador-repórter descreve o baile dos artistas – imitação de uma festa parisiense – e os costumes e sports da elite carioca, em “A favela que
eu vi” verifica-se um registro do cotidiano dos moradores de uma favela carioca e das características
desta. Nessa reportagem, a ideia de mosaico é tão
acentuada que o narrador-repórter identifica a favela como um lugar “fora do mundo”:
Os habitantes daquelas tristes e pequeninas casas vivem no Rio o dia todo nas suas ocupações.
Só voltam ao subúrbio para dormir. O Rio, distante, como um monstro insaciável, absorve nas suas
usinas, nos seus escritórios, nas suas repartições,
aquela população inteira que, à noite, ele devolve,
exausta, aos seus lares. Enquanto a grande cidade,
numa orgia de luz, espreguiça-se pelas suas avenidas lindas e floridas, passa a noite nos seus “cabarés”
luxuosos, bebendo e cantando, fuma “havanas” nos
“bungalows” do Leblon, joga “bridge” nos palacetes
da Avenida Atlântica, ama nas pensões “chics”, ouve
música no Municipal e dança o “shimmy” por toda
a parte – os subúrbios, soturnos e tristes, dormem
estafados, uma noite curta que acabará cedo, pela
madrugada, ao apito do primeiro trem... (Costallat,
1924, p.197-198).
Estávamos, em plena favela, fora do mundo.
Vinha-me, então, ao espírito, a crônica terrível do
morro terrível, o morro do crime. Encravada no Rio
de Janeiro, a favela é uma cidade dentro da cidade.
Perfeitamente diversa e absolutamente autônoma.
Não atingida pelos regulamentos da prefeitura e
longe das vistas da polícia. Na favela ninguém paga
impostos e não se vê guarda civil. Na favela, a lei é a
do mais forte e a do mais valente. A navalha liquida
os casos. E a coragem dirime todas as contendas. Há
muito crime, muita morte, porque são essas as soluções para todos os gêneros de negócios – os negócios
de honra como os negócios de dinheiro. Na favela
não há divórcios porque ninguém se casa. Não se
fazem contratos. Não há inquilinos, nem senhorios.
Não há despejos. Se o inquilino for mais forte do
Na reportagem “Uma história de ‘manicure’”,
também se critica a exploração de camadas pobres,
ao ser apontada a convivência de duas realidades
antagônicas do Rio: a riqueza de um hotel e de seus
hóspedes é contrastada com a exploração e submissão de uma de suas funcionárias, a manicure Anita.
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Nesse texto, também há a necessidade de se atentar
para o registro das mudanças pelas quais passavam
a cidade:
costumes, manchando a moral e ocasionando a exploração de alguns estratos sociais.
Na reportagem “A criatura do ventre nu”, o
narrador-repórter retrata o baile dos Artistas, uma
festa que, segundo ele, é “um plágio do baile dos
‘Quatz-Arts, de Paris”. Há a consideração de que
o baile francês é “nababesco, espetaculoso e imoral”. Importante observar como Costallat constrói
o ambiente dos bailes noturnos e os costumes das
pessoas que os frequentam. A música que predomina nessas festas é o jazz-band e o fox-trot, como se
pode apreender lendo a reportagem citada e “Quando os cabarés se abrem”. Um dos sports modernos
praticado pelos jovens nas festas é o éter-party,
que consiste em “molhar o lenço com um lança-perfume – ou com um frasquinho que se traz no
bolso – e respirar, respirar o éter, até que os olhos
fiquem injetados de sangue e o cérebro povoado de
sonhos...” (Costallat, 1924, p.184).
Em se tratando dos vícios que caracterizam a sociedade carioca do início do século 20, Costallat reportou diversas situações que desvendam como drogas ilícitas eram vendidas e utilizadas. Retratou que
isso também não acontece apenas durante a noite e
em lugares específicos, mas durante todo o dia e em
praticamente todos os bairros da cidade. Um dos textos mais emblemáticos sobre o assunto é “No bairro
da cocaína”, reportagem em que o narrador-repórter
se finge de cocainômano para adquirir três frascos de
cocaína. Além de divulgar “senhas” e locais em que se
encontram pontos de venda da droga, a reportagem
faz uma verdadeira “radiografia” da distribuição da
cocaína na cidade do Rio de Janeiro:
O Rio sofria, então, a sua formidável transformação. De cidade provinciana transformava-se, em
poucos anos, em grande centro cosmopolita. De cidade bem brasileira, com as suas chácaras como as
da Tijuca e suas casas como as de Botafogo, sempre
com a velha e esguia palmeira dizendo o número de
boas e pacatas gerações que por ali passaram – o Rio
começou a ser a grande cidade internacional com
Copacabana, e com Leblon, construídos à americana, feitos de “bungalows” e de jardinetes simétricos
e asfaltados. Grandes hotéis surgiram. Enormes
formigueiros humanos, luxuosos, confortáveis, de
criadagem irrepreensível. “Concierges”, “grooms”,
“chasseurs”, “someliers” – toda uma população nova
de criados fardados e encasacados que o velho Rio
ignorava, o velho Rio só conhecia, para fazer todos
esses serviços ao mesmo tempo, a tradicional “bá”
preta, que foi, mais ou menos, a ama seca de todos
nós, ou a velha portuguesa de lenço vermelho à cabeça... Mas no Rio os grandes palácios iluminados
se construíram. Uma nova vida surgia. A antiga cidade bem brasileira passava a ser a cidade de todo
o mundo. Todas as raças e todos os povos desembarcavam nas suas docas, com os seus vícios e a sua
civilização requintada (Costallat, 1924, p.215-216).
Note-se que, ao comentar as mudanças sofridas
pela capital federal, o repórter comenta a perda do
caráter “bem brasileiro” do Rio ao se afrancesar.
Observa-se em outros textos, como quando o narrador-repórter comenta a respeito de prostituição e
cabarés, uma condenação de valores considerados
tradicionais pela sociedade da época. Na sua mais
conhecida obra, Mademoiselle Cinema, a modernidade e os valores estrangeiros – particularmente os
franceses – também são abordadas negativamente, uma vez que, quando a personagem Rosalina
abandona a tradição brasileira e se influencia por
costumes europeus, acentua-se a ideia de que a personagem agiu contra as instituições burguesas e se
desvirtuou. A própria justificativa de que Costallat
utilizou para defender seu romance no banco dos
réus está em consonância com essa tese. Segundo
ele, o livro que narra a transformação sofrida por
Rosalina – desvirtuar-se ao entrar em contato com a
cultura europeia – deveria ser publicado para servir
de exemplo às jovens e auxiliar na sua educação.
A modernidade e o afrancesamento social, tanto na série quanto no romance, portanto, remetem
à ideia de decadência social, de ir contra os bons
O bairro da cocaína estava, naquele momento, em plena efervescência. Dos cafés da Lapa às
pensões elegantes da Glória, passando pelos becos
nojentos da prostituição taximétrica, o bairro da
cocaína vibrava de luzes, de risos de mulheres, de
espasmos humanos... O bairro da cocaína! Botafogo, Copacabana, Avenida Atlântica, Santa Tereza,
Leblon, também tomam cocaína. Até Madureira já
está contaminada... Mas a zona de irradiação do vício, a zona do comércio miserável do terrível tóxico,
é a Lapa e a Glória. Entre dez meretrizes, nove são
cocainômanas. E a zona de prostituição não podia
deixar de ser a zona de vício da “poeira” terrível.
Nos “clubs”, nas alcovas das horizontais, nos cafés
noturnos, nas pensões “chics”, toda a Lapa e toda
a Glória tomam cocaína em suas noites lúbricas e
inquietas (Costallat, 1924, p.136-137).
O encerramento da reportagem é indicativo de
uma ideia frequente nos textos do jornalista: en156
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tre os cocainômanos há uma lealdade, uma espécie
de confraria segundo a qual os viciados se ajudam
quando estão com abstinência da droga. É essa a
tese presente na afirmação de que Gaby – uma parisiense viciada que auxilia cocainômanos quando
lhes falta a droga – é “a sacerdotisa de uma nova
religião – a cocaína” e que “se alguém estiver morrendo de fome, talvez Gaby não o socorra com uma
esmola. Mas se for de tóxico de que alguém necessitar, Gaby será capaz de vender a sua última “toilette” e a sua última “joia” (Costallat, 1924, p.140).
A lealdade existente entre os viciados também é reportada no texto “O segredo dos sanatórios”, quando o narrador-repórter aponta para a necessidade
de se ter cuidado para que enfermeiros e médicos
não levem drogas aos pacientes internados.
Portanto, percebe-se que, flanando por uma cidade em constantes mutações, Costallat registrou
como vivem personagens dos bas-fonds cariocas
e se voltou também para os costumes e vícios das
elites da época, criticando sua postura de buscar
afrancesar a própria brasilidade. Porém, a pena desse jornalista-escritor também reportou outras temáticas, como o erotismo e a violência. Passar-se-á
agora à análise interpretativa de como se constroem
as narrativas eróticas da série de reportagens.
década do século XX, criavam uma cultura diferente dos padrões vigentes, resultado de suas próprias
escolhas frente ao que era importante ou possível
de acontecer. Sem deixarem de receber influências e
limites, até pela força, dos valores e normas burgueses, os trabalhadores construíam uma cultural relativamente autônoma [...] decorrente de uma prática
cotidiana de vida (Esteves, 1989, p.120-121).
Diante da adoção de padrões diferentes dos vigentes, muitos dos comportamentos dos populares
eram considerados imorais e patológicos, segundo
a autora, como as jovens que perdiam a virgindade
antes de se casarem e as mulheres que se “divorciavam” dos maridos.
Ao se entrar em contato com a série Mistérios
do Rio, porém, pode-se considerar que algumas fatias da elite carioca, tendo contato com a cultura
europeia e sendo influenciadas por seus valores,
também começaram a assumir comportamentos
conflitantes com os aceitos pela moral vigorante. O
próprio narrador-repórter, ao longo das narrativas,
tece comentários moralistas e que parecem estar em
consonância com os valores instituídos e aceitos
pela sociedade da época. Consequentemente, em
muitos momentos se identificam comentários que
parecem condenar comportamentos “desviantes”.
Isso pode ser verificado, por exemplo, na reportagem “Casas de amor”, quando o narrador comenta a
respeito do fim do “expediente” das prostitutas em
uma casa de rendez-vous: “a maioria vai continuar
a prostituição fora dali. Outras não; depois das 7
horas são honestas... Estranhos costumes de uma
estranha época! Meninas de família, senhoras casadas, quanta desgraça e quanto mistério” (Costallat,
1924, p.107). Ao opor as mulheres que continuarão a prostituição fora da casa às que serão “honestas”, fica clara a concepção moralista do narrador a
respeito das mulheres que se prostituem.
Ainda nessa reportagem, o narrador-repórter
afirma que a profissão do amor no seu tempo é
associada ao exercício da dissimulação, ou seja,
afirma-se que as prostitutas se fazem de ingênuas
para satisfazerem e incitarem os desejos de seus
pretendentes, homens taxados como “imbecis” pelo
narrador:
O cotidiano do amor segundo a
pena de um jornalista-escritor
Uma temática muito frequente na série Mistérios
do Rio é a do amor. Das treze reportagens, quatro
trabalham com o componente erótico: “Quando os
cabarés se abrem”, “Casas de amor”, “A criatura do
ventre nu” e “Uma história de ‘manicure’”. Diante
da expressividade do assunto e considerando que
o nome de Benjamim Costallat é frequentemente
associado ao componente erótico – por ele ter feito
grande sucesso com o romance Mademoiselle Cinema –, carece-se de compreender como as reportagens retratam o cotidiano do amor.
No livro Meninas Perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque,
Martha de Abreu Esteves analisa a problemática sexual das camadas mais baixas da população nessa
sociedade. Para isso, a autora faz um estudo dos
processos judiciais relacionados à questão. Ao pensar a moral e os comportamentos dos populares,
Martha afirma que:
Noventa por cento dessas senhoras que eu chamo de funcionárias públicas do amor – porque frequentam as casas de amor com a mesma pontualidade do funcionário que tem de assinar o ponto,
dentro de um horário preestabelecido e imutável
– noventa por cento dessas ilustres senhoras são
Enquanto agentes de sua própria história, os
populares da cidade do Rio de Janeiro, na primeira
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vem que foi trabalhar em um hotel e foi violentada
por um hóspede. O narrador-repórter associa nessa
reportagem a exploração sexual da trabalhadora à
modernização:
brilhantes profissionais da carreira que abraçaram.
Mas dizem-se amadoras. Fazem-se de ingênuas. Dizem-se casadas. Meninas de famílias. Normalistas.
Praticam, finalmente, uma série de mentiras com
o único intuito de provocar a generosidade do homem, satisfazendo-lhe a vaidade. Mentiras perigosas que vêm dar uma impressão ainda mais nefasta
dos costumes, já bem nefastos, da época (Costallat,
1924, p.102-103).
No ambiente cosmopolita do grande hotel; na
imensidade daqueles corredores brancos e daquelas
portas de números dourados; naquele “hall” onde
todas as nacionalidades estavam representadas e se
sentavam nos mesmo “maples” de couro; no “bar”,
à hora do “cocktail”; no salão, à hora das refeições,
onde uma orquestra gemia entre os barulhos dos
talheres; nos terraços, à noite, quando os charutos
“Havana” se acendiam e os homens, fazendo a digestão, começavam a sonhar diante da noite e diante
das estrelas – pairava um desejo único, uma preocupação única... Anita!... Os quinze anos ingênuos da
pequena “manicure”! Começou, então, a tremenda
perseguição (Costallat, 1924, p.220).
A relação entre dissimulação e ato sexual também está presente na reportagem “Quando os cabarés se abrem”, texto em que o narrador-repórter situa o componente erótico como um elemento muito
utilizado pelas casas da época para atrair seus clientes. A mentira não é identificada apenas na falsa relação prostituta-cliente, mas também nos desejos e
bebidas que essa utiliza para agradá-lo. Praticados
no exercício da dissimulação, a reportagem situa o
sexo e o jogo em escala máxima de reificação:
Ao analisar essa reportagem, Marcelo Bulhões
afirma que, impregnada pelo componente erótico
e com uma série de estereótipos – virgem, ingênua, pura, vítima – o texto assinala o erótico como
componente da corrupção dos tempos modernos e
identifica uma postura moralizante em Benjamim
Costallat:
Quase todas essas mulheres já têm horror ao
“champagne”, porque o bebem sem vontade, por
obrigação, todas as noites, e do tal “champagne” falsificado, feito na rua do Núncio. Essas pobres Vênus
do “cabaré” não mentem só com a boca, não vendem
só os seus beijos – mentem com o estômago, vendem
os seus pobres estômagos, para dar consumo a um
“champagne” caro e detestável, de rótulo falso, que as
envenena, mas que enche os bolsos dos interessados.
- “Garçom”, “champagne”!
Elas já pedem a bebida falsificada e cara, mecanicamente... Muitas delas prefeririam mil vezes um
copo d’água cristalina (Costallat, 1924, p.48).
Aqui, o jornalista Benjamim Costallat mostra-se
moralizador. Todavia, há sempre marcas de uma irrevogável ambiguidade. No interior da denúncia ou
da moralização, insurge-se um discurso ambíguo,
sinuoso, em que a voz do narrador, com o pretexto de moralizar, fornece o ingrediente do apetitoso
erótico. Associado como item dos vícios que compõem a modernidade urbana, o componente erótico
é fornecido ao leitor em um exercício de instigação.
Condenado, apresenta-se no discurso como algo
que seduz (Bulhões, 2008, p.138).
Ainda nesse texto, assim como em “A criatura
do ventre nu”, há a exibição dos painéis do alto
mundanismo dos salões cariocas da época, nos
quais o narrador-repórter revela a associação entre
luxo e luxúria. Nessa última reportagem, há um
acesso franco ao erótico, com o exercício do exibicionismo e do voyeurismo, em que a riqueza e o
prazer sexual parecem andar juntos. Conduz-se o
erotismo ao centro da narrativa, a qual busca escandalizar o leitor no seu desfecho, ou seja, objetiva
produzir um espetáculo narrativo quando a jovem
cortesã que contava sua história revela sua identidade masculina. A homossexualidade é escandalizada ao ser trabalhada para criar uma atmosfera
que surpreenda o leitor.
A exploração sexual das camadas mais baixas da
população pelas elites da época também é retratada
na reportagem “Uma história de ‘manicure’”. O texto narra a história da ingênua manicure Anita, jo-
A sedução nessas reportagens também é construída para ser o meio através do qual o narrador-repórter fornece ao leitor a possibilidade de acessar um universo deportado, banido.
Além disso, utiliza-se o componente erótico
através de uma sedutora estratégia discursiva: a de
velar para desvendar, esconder para revelar e proibir para incitar. Assim, condenando comportamento e escondendo realidades no início dos textos e,
posteriormente, desvendando esses universos para
além da fronteira do que a estampa da moral fornece à vista, o jornalista Benjamim Costallat criou
um discurso no qual o erotismo aparece como um
elemento discursivo potencialmente sedutor.
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Em última instância, ao utilizar o erotismo e
acentuar componentes discursivos melodramáticos
e passionais, objetivando seduzir leitores e tornar os
textos mais populares, Benjamim Costallat teria trabalhado com uma temática e um discurso que estão
inseridos na trilha seguida por jornalistas considerados sensacionalistas. Porém, não nos adiantemos.
Estudemos esse assunto mais detidamente.
não se presta a informar, muito menos a formar.
Presta-se básica e fundamentalmente a satisfazer as
necessidades instintivas do público, por meio de
forma sádica, caluniadora e ridicularizadora das
pessoas. [...] O trinômio escândalo-sexo-sangue
aponta, pois, para os três níveis de maior enfoque
do jornal sensacionalista, senda a moral, o tabu e
a repressão sexual e, por fim, a liberação das tendências sádicas dos leitos o fundo sociopsicológico,
desse tipo de jornalismo [Grifo nosso] (Marcondes
Filho, 1986, apud Angrimani, 1994, p.15-17).
Um repórter das massas
A série de reportagem Mistérios do Rio parece já
ter sido idealizada com base em produções textuais
com forte apelo popular. O próprio Benjamim Costallat reconheceu em uma entrevista a influência do
popular romance de folhetim, Os mistérios de Paris.
Por outro lado, os textos parecem também pertencer à estirpe de Les petites religions de Paris, popular série que Jules Bois escreveu para o jornal Le
Figaro, em 1898, sobre as religiões de Paris, a qual
teria influenciado João do Rio nas suas As Religiões
do Rio. Portanto, no cerne das influências da série
estão obras populares. Marcelo Bulhões também
identifica marcas de outros autores nas reportagens:
Na mesma linha de pensamento, Danilo Angrimani Sobrinho, no livro Espreme que sai sangue:
um estudo do sensacionalismo na imprensa, afirma
que sensacionalismo é tornar sensacional um fato
jornalístico que, em outras circunstâncias, não mereceria esse tratamento. Veja-se:
Pode, ainda, aventar para ela uma distante
consanguinidade com escritas dedicadas à escória
do submundo urbano, o que nos faz lembrar, longuiquamente, os exemplos das obras de Dickens,
Baudelaire, Poe ou Dostoievski, exemplares literários notáveis, interessados pelo território imundo
e oculto das grandes cidades, Paris, Londres, São
Petersburgo, com suas ruas escuras, becos, sórdidos
e perigosos e um contingente humano pútrido e fascinante (Bulhões, 2008, p.138).
Como o adjetivo indica, trata-se de sensacionalizar aquilo que não é necessariamente sensacional,
utilizando-se para isso de um tom escandaloso, espalhafatoso. Sensacionalismo é a produção de noticiário que extrapola o real, que superdimensiona
o fato. [...] O meio de comunicação sensacionalista
se assemelha a um neurótico obsessivo, um ego que
deseja dar vazão a múltiplas ações transgressoras
– que busca satisfação no fetichismo, voyeurismo,
sadomasoquismo, coprofilia, incesto, pedofilia, necrofilia – ao mesmo tempo em que é reprimido por
um superego cruel e implacável. É nesse pêndulo
(transgressão-punição) que o sensacionalismo se
apóia. A mensagem sensacionalista é, ao mesmo
tempo, imoral-moralista e não limita com rigor o
domínio da realidade e da representação [Grifo
nosso] (Angrimani, 1994, p.16-17).
A influência popular, somada aos temas e ao
discurso envolvente, talvez sejam os componentes
que fizeram com que a série tivesse alta receptividade junto às massas. Em relação à referida temática e
ao discurso utilizado, parece prudente atentar para
suas possíveis relações com o chamado jornalismo
sensacionalista, linha editorial que dispensa um
tratamento passional aos assuntos retratados para
aumentar sua atração junto ao público consumidor.
Surgido, segundo muitos teóricos, no final do
século 19 na histórica disputa travada entre o New
York World e o Morning Journal, o sensacionalismo pode ser definido, sumariamente, como uma
cobertura jornalística que objetiva valorizar os traços passionais de notícias associadas, geralmente, a
sexo, violência e morte. Ciro Marcondes Filho afirma que a imprensa sensacionalista
Os dois trechos citados anteriormente e suas
partes grifadas, sobretudo, indicam características
que já mencionamos estarem presentes na série
Mistérios do Rio. Porém, carece-se de analisar mais
detidamente como a temática e a linguagem de um
jornal sensacionalista se relacionam com as reportagens da série. Para isso, será utilizado o livro citado
de Danilo Angrimani Sobrinho e a obra A construção do discurso de sedução em um jornal sensacionalista, de Rosa Nívea Pedroso, para entender as
temáticas mais características do sensacionalismo
e analisar seus possíveis traços no corpus. Antes,
porém, atente-se para uma estrutura bastante associada ao jornalismo sensacionalista: os fait divers.
O fait divers é um termo francês que se refere
às notícias do dia (crimes, roubos, acontecimentos
extravagantes) que têm importância circunstancial
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e se constituem como a principal fonte de informação do jornalismo sensacionalista. São notícias que
encontram no insólito sua maior influência. Para
Maffesoli:
dedo não havia meios de sair. Os bandidos envidavam todos os esforços, a própria vítima os ajudava
e o anel seguro ao dedo, apreso à carne não saía. Os
bandidos já estavam furiosos e se consideram pela
segunda vez roubados, quando um deles sugeriu...
- Que lhe cortem o dedo!
Um grito agudo de dor, um esguicho de sangue
e uma navalha, rapidamente, fez a operação... (Costallat, 1924, p.151).
Em uma sociedade de massa, mas também de
comunicação, o fait divers é uma informação quente e circunstancial, localizada [...] ele emana de um
lugar datado, ele é carne e sangue em sua origem.
[...] Como o conto, o carnaval, o jogo pueril, o comentário do fait divers permite falar, sem falar, da
violência, do sexo, das leis e de suas transgressões
(Maffesoli, 1988, apud Angrimani, 1994, p.25).
Pedroso também afirma que os fait divers, geralmente, são associados a imagens que contribuem para acentuar o caráter sensacional do acontecimento. Também é possível identificar isso na
mesma reportagem, uma vez que, na ilustração que
acompanha o texto, abaixo do desenho de um carro
adentrando no túnel, aparecem três homens cortando o dedo de um homem engravatado e muito
sangue escorrendo do dedo. A valorização da violência, inclusive, levava a uma falsa correspondência inicial entre o conteúdo da reportagem e a imagem, porque o crime desenhado se referia apenas a
uma micronarrativa dentro de uma narrativa maior,
a aventura do narrador-repórter no túnel do pavor.
O leitor que pegasse o Jornal do Brasil, porém, poderia supor inicialmente que o crime retratado pela
imagem teria sido contra o jornalista-escritor Benjamim Costallat. Estabelece-se, portanto, uma falsa
correspondência entre texto e imagem.
Outro fait diver inserido na série está presente
na reportagem “Casas de amor” e valoriza o componente sexual e humorístico de um acontecimento
de forte interesse humano, devido ao seu caráter
insólito. Trata-se de um dos casos narrados que se
passam na casa da Judith, casa de prostituição:
O fait divers, como informação autossuficiente,
traz em sua estrutura imanente uma carga suficiente
de interesse humano, curiosidade, fantasia, impacto,
raridade, humor, espetáculo, para causar uma tênue
sensação de algo vivo no crime, no sexo e na morte. Consequentemente, provoca impressões, efeitos
e imagens (que estão comprimidas nas formas de
valorização gráfica, visual, espacial e discursiva do
fato-ficção) [Grifo nosso] (Pedroso, 2001, p.106).
As considerações de Pedroso podem ser basilares para se visualizar traços desse “gênero” nas
reportagens de Costallat. No corpus analisado, o
trinômio sexo-violência-escândalo nomeia os fait
divers presentes. Esse “gênero” não aparece isoladamente na série, mas inserido em reportagens,
criando, assim, textos híbridos.
Em “O túnel do pavor”, por exemplo, narrativa
em que o narrador-repórter conta sua ida ao túnel
do rio Comprido, perigoso local da cidade na época, Costallat também narra um assalto que se passou naquela área. O crime foi contra um advogado
que, por não conseguir retirar o anel para entregar
aos ladrões, teve o dedo decepado para que esses
conseguissem o objeto. A narração valoriza o sensacional e a violência, buscando fazer com que o
leitor se sensibilize com o discurso. Sendo um crime cotidiano da cidade, a narração do assalto, seguido de violência física, pode ser considerada um
fait diver por valorizar componentes passionais do
acontecimento, como se pode observar:
Ela é muito linda. Ele muito feio. Mas são casados... Ele se diz advogado e se chama G. P. Ela,
a senhora V. P., comparece, todas as tardes, à hora
regulamentar, das 3 às 6 horas, à casa de Judith.
O marido tem conhecimento disto. E quando, por
acaso, ele precisa de mulher para alguma coisa, não
hesita em telefonar para o própria “rendez-vous”:
- É o XXXX Central?
- Sim, senhor.
- Casa da Judith?
- Sim, senhor.
- Faça o favor de chamar V. Diga a ela que é G.,
o marido, que está chamando!
- Olha, Dr. G. P. queira desculpar, mas V. não
pode atender. Está ocupada...
- Bom. Eu telefonarei mais tarde!... (Costallat,
1924, p.106-107).
Contam que nos inúmeros assaltos no túnel do
Rio Comprido a vítima era um advogado, um bacharel em direito. Os malandros ao assaltarem-no
nada encontraram. [...] Os bandidos já se julgavam
roubados e iam soltar o pobre bacharel, depois de
alguns trancos, qual viram reluzir em seu dedo um
grande e rico anel de grão, o anel símbolo de rubi
com seu chaveiro de brilhante. Mas o anel preso no
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Essa micronarrativa não é uma informação de
interesse público, apenas uma situação de grande
interesse humano por trabalhar com aspectos humorísticos relacionados à temática sexual.
Em relação aos temas mais presentes em jornais
sensacionalistas, Angrimani Sobrinho cita a morte, a violência, a homossexualidade, o fetiche e o
voyeurismo. Sobre o primeiro ponto citado, o autor
reconhece que a morte está presente em todos os
jornais, sejam eles sensacionalistas ou não, porém,
a forma como os dois retratam o assunto se difere:
Outro tema frequente em coberturas sensacionalistas é a violência, ou seja, destacar assassinatos, suicídios, estupros, vinganças, brigas, situações
conflitantes, agressão sexual, tortura e intimidação,
por exemplo. Pode-se identificar essa temática no
fait diver a que nos referimos anteriormente (o roubo, seguido de agressão física, na reportagem “O
túnel do pavor”).
A homossexualidade é outro assunto comum
em jornais sensacionalistas, sendo que, segundo
Angrimani Sobrinho, o tratamento que o jornal
dispensa ao tema é “preconceituoso, marginalizante, ofensivo e retrógrado. O homossexual aparece
como um perverso degenerado, cuja conduta fere
a ‘normalidade’ e coloca em risco as instituições”
(Angrimani, 1994, p.66). Pedroso, na mesma linha,
completa que esse tipo de jornal faz do homossexual algo escandaloso, cômico, provocador, perturbador e agressivo. Pode-se identificar esse tratamento
na reportagem “A criatura do ventre nu”, a qual
também possui mais duas características sensacionalistas: o fetichismo e o voyeurismo. O texto
tem um desfecho que surpreende o leitor com a
situação escandalosa e espetacular. Os personagens
homossexuais, ironizados por meio de seus apelidos e características físicas, são estereotipados para
construir um discurso humorístico:
A morte relatada pelo jornal sensacionalista é
diferente da morte comum, essa que envolve sofrimento, saudades, choque, traumatismo, dor, angústia, separação. A morte no jornal sensacional é
perturbadora, porque a imagem do cadáver impressiona, mas ao mesmo tempo atua no sentido inverso:
“mata” o outro e “preserva” o leitor. A morte não só é
“saboreada como espetáculo”, mas aparece como ato
simbólico que garante a integridade do observador
(Angrimani, 1994, p.116).
O autor completa que a morte no jornal sensacionalista é narrada em linguagem-clichê e admite nuclearização, por se referir a vários “tipos” de
morte (Angrimani, 1994, p.56). Pode-se identificar
a exploração da morte por meio de uma linguagem
melodramática e que explora componentes passionais na reportagem “A pequena operária”, da série
Mistérios do Rio. Nesse texto, o repórter-jornalista
cria uma personagem que é o estereótipo de uma
trabalhadora explorada e constrói um espetáculo
narrativo para contar toda a exploração da operária
que resultou em sua morte. No final da reportagem,
por exemplo, depois de um hospital se recusar receber a operária, a qual foi trazida pela ambulância, a personagem é encontrada morta. Os adjetivos
presentes na descrição contribuem para criar um
ambiente dramático e passional:
Se um raio tivesse caído na cabeça de Flávio
Guimarães não teria provocado maior estrondo do
que aquela fantástica revelação. Um homem! Estava diante de um homem! A deliciosa Salomésinha
de ventre nu era um homem, era um Adolfo, um
Adolfosinho, um Adolfinho qualquer... Mas Flávio
Guimarães não teve tempo de protestar. Mais dois
“moços bonitos”, companheiros de Adolfo, se aproximavam. Um vestido de rajah, outro de “bailado
russo”, segundo sua própria informação. Adolfo fez
as apresentações:
- Meu novo amigo...
E apontando o homem do “bailado russo”:
- Jaimesinho! Não conhece? O Jaimesinho da
Lapa!...
Depois foi a vez do “rajah”:
- Este aqui é o Ernestosinho, apelidado por
“Mimi”. Nunca ouviu falar no “Mimi” da Glória?
Não, Flávio Guimarães não tinha honra de conhecer aqueles distintos cavalheiros – o Sr. Mimi e
o Sr. Jaimesinho. Cumprimentou-os com todas as
homenagens, ainda meio tonto. Mas Adolfinho não
deu tempo a Flávio Guimarães de respirar e continuou:
- Foi por causa do Mimi e do Jaimesinho que o
meu amigo brigou comigo. Ele não queria que eu
Na escuridão do carro, o corpo pequenino de
Helena estava imóvel, sem vida. Um lindo sorriso
de criança sonhando inundava-lhe a fisionomia magra e esquelética. Helena parecia sonhar. Mas estava
morta! Morta, gelada! O “chauffeur”, calejado por
esses espetáculos, murmurou entre os dentes:
- Esta, pelo menos, teve espírito. Adivinhou que
a Santa Casa não a receberia. E então se foi... E fez
muito bem!...
Na ambulância tétrica e negra como uma prisão,
a pequena operária sorria, meigamente, para o céu!
(Costallat, 1924, p.35-36).
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Belle Époque carioca: do alto mundanismo ao universo dos bas-fonds. Ao sair pela cidade em busca
de informação para representar seu espaço-tempo,
Costallat teria aproximado sua vivência jornalística de um elemento típico da ficção literária de seu
contexto discursivo: a do flâneur. Influenciado pelo
noturnismo decadentista finissecular e relacionado
a uma espécie de voyeur, essa figura, na série, visita perigosos locais, desce aos infernos para buscar
informações e desvendar realidades ocultas e surpreendentes da capital federal. Quando o narrador-repórter retrata a realidade do submundo carioca
e reporta o cotidiano de seus populares, parece se
identificar positivamente com a temática. Por outro
lado, quando se volta para as elites da época, comentando a respeito da modernização e do afrancesamento da sociedade, Costallat parece associar
esses temas à decadência social, a ir contra os “bons
costumes”.
Em seus textos, impressos em um momento de
modernização da cidade e da imprensa, também
pôde ser identificado o amadurecimento do embrião do repórter da modernidade, surgido com
João do Rio. Se esse repórter, considerado por alguns pesquisadores o iniciador da reportagem no
Brasil, foi o primeiro a sair da redação em busca
de informação nas ruas, Benjamim Costallat dá um
passo à sua frente: vai às ruas à busca do registro do
cotidiano; no entanto, já não é um flâneur ocioso,
mas um repórter pautado à busca de temáticas e
personagens específicos. É o profissional dos jornais acompanhando a cidade e entrando em uma
nova era – a era das máquinas, da informação, da
velocidade. A era moderna.
dançasse com eles. Chegou a me proibir. Ciúmes,
apenas ciúmes. E ciúmes tolos. Ora, eu não me sujeitei. A gente não pode ser grosseiro, principalmente com colegas, não acha?
Jaimesinho e Mimi, com as suas vozesinhas de
falsete, aplaudiram (Costallat, 1924, p.35-36).
Portanto, por meio de uma linguagem popular
e trabalhando com temas que remetem ao trinômio
sexo-violência-escândalo, a série de reportagens
Mistérios do Rio parece apresentar traços do chamado jornalismo sensacionalista. O que, décadas
depois, desembocaria em produções radiofônicas
e em jornais como o Notícias Populares, parece já
estar presente na série analisada. É claro que não se
está afirmando que Benjamim Costallat teria sido
o iniciador do jornalismo sensacionalista no Brasil,
afinal, definir uma matriz textual em apenas uma
produção parece até ser imprudente e inadequado.
O que se afirma é que a série de reportagens, ao
buscar retratar o cotidiano das elites e os bas-fonds
cariocas da década de 1920, parece integrar uma
cadeia de textos jornalísticos que utilizam atributos
narrativo-ficcionais sensacionalistas para ter grande
apelo junto às massas.
Considerações finais
Desvendar como Benjamim Costallat, na série
Mistérios do Rio, representou a modernidade carioca e como se caracterizava a linguagem de suas
reportagens foi o objetivo deste artigo.
Publicada em um contexto de transformações
políticas, sociais e culturais, a série Mistérios do Rio
faz um registro de diferentes camadas sociais da
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SUE, E. (1913). Os mistérios de Paris. Lisboa: Guimarães & Cia.
Marcel Verrumo é jornalista, repórter da Editora Abril e mestrando do Programa de Pós-graduação em
Comunicação Social da Universidade Estadual Paulista (Unesp). E-mail: <[email protected]>.
Recebido para avaliação em março de 2013. Aprovado para publicação em junho de 2013.
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Origami científico: a linguagem
das dobraduras no
design contemporâneo
ROSSI, Dorival Campos; TEIXEIRA, Samanta Aline
Resumo
Depois de atravessar inúmeras gerações e países, funções mais abrangentes estão sendo incorporadas ao origami além
da simples confecção de objetos artísticos: o dobrar vem desencadeando uma série de novas construções dentro do
projeto e da criação. Sob as novas representações e atuações que a arte de dobrar papel encerra, este artigo se propõe a investigar como o origami se configura nos dias de hoje e como se comporta como linguagem contemporânea
aplicada aos processos projetuais das mais diversas naturezas. Relacionando teóricos, artistas, designers, etc., pode-se
apontar a relevância de cada uma dessas áreas na configuração do origami científico e projetual. A modularidade, o
coletivo, o construir consciente, o contemporâneo e a inovação são relações intrínsecas à práxis projetual que configuram um panorama adjacente e subordinado à estrutura principal. Aposta-se na essência do origami como uma
funcionalidade tangível para o pensamento criativo.
Palavras-chaves: Origami – Design – Processos – Transdisciplinaridade – Inovação.
Abstract
After crossing several generations and countries, broader functions are being incorporated to origami than simply
making art objects: the fold initiates a series of new buildings within the design and creation. Under the new representations and performances that the art of paper folding keeps, this article aims to investigate how the origami is
configured nowadays and how it behaves while contemporary language applied to projective processes of diverse
natures. To better understand the actual origami, relations are used inside branch of math, conceptual and projectual.
Relating theorists, artists, designers, etc., can point out the relevance of each of these areas in the configuration of
cientific and projectual origami. The modularity, the collective, the conscious build, the contemporary and the innovation are relationships intrinsic to the praxis projectual that shape a landscape adjacent and subordinate to the main
structure governing. It bets on the essence of origami as a tangible functionality for creative thinking.
Keywords: Origami – Design – Processes – Transdisciplinarity – Innovation.
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ROSSI, Dorival Campos; TEIXEIRA, Samanta Aline. Origami científico: a linguagem das dobraduras no design contemporâneo
Introdução
• Em um primeiro momento, o foco se concentra no “esqueleto” do origami, como ele
se dá, como se comporta, como se forma e
o que essa formação implica, e o que dela se
pode refletir e/ou aproveitar;
• Em um segundo momento, depois de explanada a estrutura compositiva e filosófica
das dobraduras, parte-se para a comunicação e o ensino do origami, que é interativo,
emergencial e coletivo – processo que, por
ser imanente às dobraduras, contribui significativamente para a sociedade por meio
da transmissão horizontal e inovadora do
conhecimento;
• Por último, mas não menos importante, citam-se e se analisam alguns dos inúmeros
processos criativos no mundo que utilizam
a linguagem do origami como principal ferramenta em design.
Sabe-se que o design vem enfrentando uma série
de mudanças em sua essência e que essas mudanças estão sendo particularmente intensas no Brasil.
Com a modificação de currículos e a oficialização
da profissão, o design está aumentando suas atuações, intervenções e colaborações nas grandes e pequenas cidades. Ser designer já não significa mais
atuar exclusivamente nas fábricas, passando-se do
plano das ideologias vanguardistas para ações diretas na sociedade.
Em nossa era pós-industrial, está-se diante de
uma nova realidade em que as indústrias criativas
estão ascendendo e ganhando força nas mais variadas áreas. São indústrias que cultivam paradigmas
que fogem do senso tradicional, as quais buscam
por janelas nunca antes notadas ou observadas com
afinco. Algumas dessas janelas exploradas são as linguagens antigas, como os crafts. Estes, por sua vez,
são hibridizados com as linguagens mais recentes
(entre elas, a eletrônica), fomentando os mais diversos tipos de processos projetuais. Por processo projetual se entende o que seria a nova configuração do
design, ou seja: “O projeto é um projetar contínuo,
é exercer sempre uma crítica sobre a existência, e
supor qualquer coisa de diferente e evidentemente
melhor” (Argan, 2005, p.265). O projeto (ou design)
é, então, nada menos do que um processamento de
ações sucessivas de valorização que vão se atualizando conforme o tempo, o ambiente e a cultura
(Rossi, 2003, p.95). O origami não somente entra
nesta gama de resgates como tem sido atualizado
como um dos objetos mais estudados e aplicados
atualmente nos adventos contemporâneos.
Origami conceitual: a
nomenclatura, filosofia e
composição das dobraduras
Onde e como introduzir um fio entre dois fios,
por onde passar, por qual espaço? É preciso ir de
dimensão a dimensão para compreender melhor.
Onde e como introduzir uma folha entre duas páginas, por onde passar, por qual espaço? (...) É preciso imaginar dobraduras, invaginações, situações
extraordinariamente complexas que generalizam a
prática e a noção de nó em todas as dimensões imagináveis (Serres, 2001, p.74-75).
Serres (2001) introduz o princípio básico do
conhecimento em gerar objetos complexos e pulsantes. Não são construções aleatórias nem mesmo
com demasiada programação. Trata-se, antes, de
saber explorar e fazer do ato de explorar a principal
ferramenta para conceber ideias e objetos. Sendo
assim, um dos raciocínios tangíveis ao designer é a
dobra, pensamento vasto assim indicado: “As dobras estão na alma e só existem atualmente na alma.
Isto já é verdadeiro no caso das ‘ideias inatas’: são
puras virtualidades, puras potências, cujo ato acabado consiste em uma ação interior da alma” (Deleuze, 1991, p.44).
A importância da cultura oriental, enquanto
aglutinadora das filosofias portadoras das velhas e
novas linguagens, é assim confirmada, pois “buscar
inspiração na natureza é uma tarefa difícil nos tempos de hoje, mas os japoneses parecem lidar com a
Figura 1: As escritas possíveis para origami
Traduzido literalmente como “ato de dobrar papel”, o origami está se transformando de seu início
singelo em cima de um papel para uma ferramenta
de inovação palpável e reveladoramente potencializada dentro da transdisciplinaridade. Assim, este artigo
postula três tipos de investigação sobre o origami:
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eletrônica com a mesma facilidade com que seus antepassados ouviam o vento” (Azevedo, 1994, p.75).
Dentro da grande versatilidade da cultura japonesa,
o origami ocupa um lugar considerável. Como objeto de estudo, foca-se na construção de origamis de
acordo com princípios mais orgânicos, fazendo com
que seja possível a aproximação destes com a teoria
da subjetividade conhecida como rizoma.
Para situar melhor essa conceituação, trata-se da
teoria desenvolvida por Deleuze e Guattari (1995),
que diferenciam o pensamento filosófico objetivo
(dicotômico ou árvore) do pensamento filosófico
subjetivo, que é o rizoma. A árvore carrega o verbo
“ser” em si e possui raízes e radículas conceituais
que giram em torno da dualidade, da linearidade/
ciclo e do clássico. Já o rizoma é diferente das raízes e radículas, pois sacode e desenraiza o “ser”
para se configurar não como um começo ou um
fim, mas um meio, um “entre”, ou ainda, um corpo
sem órgãos. Como exemplo de um comportamento
rizomático, Deleuze e Guattari citam a multiplicidade, que constitui uma realidade que deixa de se
comportar como objeto ou sujeito para se tornar
natural ou espiritual. As multiplicidades não possuem estruturas ou unidade, apenas linhas abstratas/linhas de fuga e são desterritoriais. Sua natureza
mutante se conecta com outras multiplicidades e
modificam a si mesmas constantemente: um rizoma
pode se partir, quebrar-se e retomar seu lugar em
uma ou outra linha. O origami, uma vez tratado de
maneira apropriada, possui esse caráter construtivo, mutante e conectivo.
Figura 3: Origami mutante “Fireworks”, de Yami Yamauchi
Figura 4: Origami mutante “Magic Ball”, de Kade Chan
Se se considerar um origami clássico, feito a partir de um único papel sem cortes ou cola, o que
possibilita sua potencial complexidade é o arranjo
como suas dobras vales e montanhas estarão dispostas ao longo do papel. E essa disposição diz respeito
não apenas ao espaço ocupado por uma ou outra
dobra ou aos seus diversos tamanhos, mas à trama
maquinal que o origami demanda: é necessário torcer, explorar, construir, marcar, mapear, transformar o papel em algo incognoscível até então. Não
se trata apenas de desenvolver gestos manuais, mas
raciocinar sobre e com o objeto, de maneira que ele
traga em si um devir origami. Assim, a análise pura
da dobra denota que “dobrar-desdobrar já não significa simplesmente tender-distender, contrair-dilatar, mas envolver-desenvolver, involuir, evoluir”
(Deleuze, 1991, p.21). Se se considerar, então, o
“origami modular” ou ainda kusudama, além da exploração das dobras em si, também é preciso o raciocínio de construção e conexão dinâmica.
Vejamos alguns modelos:
Figura 2: Os dois tipos de dobras possíveis em origami
De acordo com Lang (2010), há dois tipos de
dobras primárias em origami: a “dobra vale” e a
“dobra montanha”. Por mais complexo e detalhado
que possa ser um origami, ele nada mais é do que
uma composição de diversas dobras vales e montanhas. Mas como uma simples folha de papel pode
se transformar em um objeto complexo utilizando
somente essas duas configurações possíveis?
Figura 5: Modelos “Icosaedro com curvas e ondas”, de
Meenakshi Mukerji; “Ômega Star”, de John Montroll; e
“Pluto”, de Makoto Yamaguchi
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Os modelos exibidos são origamis modulares,
também chamados kusudama (くす玉), ou origamis-unidades (ユニット折り紙), espécie de dobradura que foge aos parâmetros tradicionais do origami
japonês e é composta por módulos. Os kusudamas
possuem diversas formas e naturezas particulares,
mas todos os modelos modulares detêm uma característica em comum: sua estruturação se dá por meio
da união de vários origamis independentes através
de dobras, cola ou linha. Dobrar origamis modulares distintos significa necessariamente conduzir as
dobras e a união das mesmas experimentalmente: “o
rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza” (Deleuze
e Guattari, 1995, Introdução: Rizoma, p. 31). Assim
se pode associar a ideia de origami à noção de dobra,
uma maneira particular de dobrar e encaixar um
módulo ao outro que muda toda a estrutura em si.
Existem vários “começos” comuns a diversos
modelos de origamis diferentes, como mostra o esquema a seguir:
Figura 6: Conexões entre origamis-bases e alguns possíveis modelos resultantes
que, de certa forma, todos os origamis estão conectados uns aos outros enquanto formas de raciocínios
abrangentes. Essa nova configuração conceitual faz o
origami diferir de apenas uma dobradura. A dobra e a
dobradura se juntam para construir novas linguagens
e percepções possíveis em design. A solda e a costura
se juntam na tentativa de fazer emergir novos processos de produtos em design. Portanto, entende-se por
design aquilo que costura, faz a junção e não apenas a
forma em si, desconectada – a aglutinação entre esses
dois paradigmas complexos, origami e design, tornarse-á mais clara nos próximas sessões.
Origami emergencial:
comunicação e ensino das
dobraduras
Steven Johnson (2003) descreve o comportamento organizacional denominado emergência (ou
bottom-up) que se aplica a alguns tipos de sistemas
de auto-organização, tais como redes tecnológicas e
grupos de seres vivos, como os cupins, formigas e
mesmo grupos de seres humanos.
O conceito da emergência possui considerável
semelhança com a linguagem do origami enquanto
peça comunicativa. Por meio de oficinas, vídeos e
diagramas ilustrativos, observa-se que o origami é
transmitido por meio do fazer coletivo, em que não
há hierarquias. Nesses termos, a linguagem verbal
torna-se desnecessária uma vez que os gestos, as
ações e os desenhos são autoexplicativos.
Figura 7: Reunião de fotos de oficina “Uma Dobra” na
Unesp (2011)
Os origamis-bases são muito comuns para inícios de diversos modelos diferentes em origami,
sejam eles simples ou complexos. Se dobrar um
origami-base em triângulo e não adicionar qualquer
marca a mais, basta inverter seu eixo central de baixo para cima, e, com as mesmas marcas, têm-se o
origami-base em losango. Apesar de ser o mesmo
papel com as mesmas marcas, os origamis-bases são
diferentes entre si e possuem caminhos distintos e
particulares para obter resultados em dobraduras
que nada se parecem umas com as outras.
Pode-se perceber que, além das estruturas básicas de dobras vales e montanhas presentes em toda
e qualquer dobradura, há também algumas bases em
comum com diversos origamis. Esse fato evidencia
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ROSSI, Dorival Campos; TEIXEIRA, Samanta Aline. Origami científico: a linguagem das dobraduras no design contemporâneo
Para melhor entender na prática como funciona
a comunicação em dobraduras, aplicou-se durante
quatro anos a oficina de origami “Uma Dobra”, ministrada por Samanta A. Teixeira, Junia Kimura e Maurício Rogério R. Ribeiro, alunos de design gráfico e
de engenharia civil da Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho”, campus de Bauru. A oficina foi ministrada durante o encontro local “Interdesigners”, consecutivamente nos anos de 2009, 2010,
2011 e, mais recentemente, em outubro de 2012.
No decorrer das oficinas, fica claro que a transmissão de conhecimento é dada pelo mecanicismo
indireto que Johnson (2003, p.23) descreve no
comportamento das formigas. Em análise laboratorial, as formigas separavam instintivamente a parte
ativa da colônia (onde trabalhavam e geravam comida), do cemitério (onde depositavam as formigas mortas) e da lixeira (onde jogavam restos de
diversos materiais inutilizáveis e comida acumulada). Essa formação aconteceu em movimentos de
bottom-up, ou seja, sem a necessidade da figura do
líder, faziam com que o formigueiro se tornasse
pulsante e organizado por si mesmo, apenas a partir das relações intrínsecas entre seus componentes.
Johnson (2003) caracteriza também o comportamento emergencial com outro exemplo, além das
formigas: a cidade de Manchester, na Inglaterra,
que por 500 anos foi considerada uma cidade de
domínio rural devido à falta de administração de
alguma prefeitura, sem policiamento, sem autoridades da saúde pública ou qualquer órgão institucional próprio da gestão das cidades. Ironicamente
ou não, a cidade se tornou um dos principais polos
de tecnologia industrial de tecelagem do Império
Britânico, ao mesmo tempo em que se tornava também uma cidade perigosa do submundo. Há, na
emergência de feedbacks intensos entre seus componentes, padrões interativos, controles indiretos,
uma mistura de anarquia e ordem.
Figura 8: Reunião de fotos de oficina “Uma Dobra” na
Unesp (2012)
O mesmo ocorre com o ensino do origami em
formato de oficina. Havia semilíderes de início, mas
apenas para apresentar a proposta, que mudava
constantemente de objetivos durante o decorrer da
oficina. Pelo mapeamento de dobras, os participantes estavam livres para sugerir outros modelos de
diferentes naturezas. Quando a oficina começava, já
não se sabia quem era aluno e quem era o professor.
Se em uma sala de aula comum essa divisão faz sentido, na oficina de origami ela perde todo o propósito. Ocorre um grande diálogo gestual e oral entre
os membros da oficina, o limite entre quem orienta
e quem é orientado se borra e se mescla. A troca
de experiências é tão intensa que nenhuma pessoa
que se habilitou a fazer a oficina saiu sem conseguir fazer todos os modelos propostos, alguns até
de grande dificuldade e detalhismo, e isso ocorria
mesmo que a maioria dos participantes nunca tivesse qualquer contato com as dobraduras até então.
O mesmo comportamento ocorre com os diagramas
ilustrativos, criados por Yoshizawa, que são de uma
linguagem espantosamente simples e acessível.
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ROSSI, Dorival Campos; TEIXEIRA, Samanta Aline. Origami científico: a linguagem das dobraduras no design contemporâneo
nosso tempo –, o físico e origamista Robert Lang
fez um discurso inédito e extremamente cooperador
para a seriedade do origami aplicado em nossa realidade atual. Lang afirmou que, em virtude de diversas pesquisas teóricas e projetos aplicados, o origami
está presente não apenas na arte e na comunicação,
mas também na medicina, microbiologia, arquitetura e astronomia. Uma das grandes inovações que
o origami pôde fornecer para essas e tantas outras
áreas do conhecimento é a facilidade com que as dobras podem ser mudadas de acordo com a situação.
Nas palavras do próprio Lang, os objetos são pensados para serem pequenos para a “viagem”, pois se
dobram e assim se compactam e, quando chegam ao
seu destino, podem voltar à sua forma original, ou
seja, desdobrarem-se e se expandirem.
Um de seus exemplos é o heart stent. O pesquisador Zhong You, da Universidade de Oxford, aplicou o raciocínio da compactação por meio da dobra
a um tubo que desobstrui as artérias coronárias do
coração, impedindo a ocorrência do infarto nos pacientes – procedimento cirúrgico conhecido como
angioplastia. Outro exemplo de aplicação do princípio do origami citado é o design de air bags: uma
vez mais, o objeto precisa ser minúsculo para caber
dentro do volante, e necessita se expandir rapidamente para proteger o motorista no caso de algum
acidente, razão pela qual o air bag precisa ser dobrado não de forma aleatória, mas de uma maneira precisa, engenhosa, uma vez que sua expansão
precisa ocorrer em menos de três segundos. Esse
tipo de precisão com margem de erro extremamente diminuta é possível com o know-how do origami
científico: saber onde e como dispor as dobras vales
e as dobras montanhas. Outros estudos aplicados
usando a dobra como principal ferramenta de trabalho são os telescópios espaciais da NASA: na Terra, são pequenos para economizar o combustível
do foguete de lançamento e, no espaço, voltam ao
seu tamanho original para poderem analisar com
precisão constelações, planetas, meteoros, etc. O
atual acidente do meteorito caído na Rússia, cujo
impacto deixou mais de mil feridos, prova que esses tipos de pesquisas astronômicas estão se tornando cada vez mais importantes.
Por fim, o último e mais surpreendente exemplo
citado por Lang é o estudo do físico Paul Rothemund, do Instituto Tecnológico da Califórnia, que
chegou a desenvolver técnicas para dobrar a forma
do DNA. Todos esses citados projetos da área científica comprovam que o design pensado em dobra
possui um potencial extremamente útil para a so-
Figura 9: Diagrama da borboleta “Agehachôu”, de Akira
Yoshizawa
Os diagramas se tornaram o principal elemento
comunicacional das dobraduras, revolucionando e
disseminando popularmente o origami no mundo
todo. Além dos diagramas, há hoje diversos vídeos
tutoriais on-line realizados por fãs e conferências
que investem no origami design como um dos principais veículos de arte e comunicação, trazendo vários
origamistas talentosos e que, até então, eram desconhecidos. Johnson (2003) confirma que, atualmente, constroem-se sistemas de auto-organização com
aplicação de softwares, video games, arte, música.
Constroem-se sistemas emergentes para recomendar novos livros, reconhecer vozes. Nossa vida cotidiana foi invadida pela emergência artificial. Com o
origami e sua transmissão não é diferente.
Aponta-se na dobradura a configuração de uma
linguagem independente e universal, que pode alcançar qualquer pessoa e não requer um conhecimento acumulativo ou prévio: “sem líder, ou líderes, as formigas, mediante relações colaterais (...),
constroem e organizam ‘por si mesmas’ todo o trabalho do formigueiro” (ohnson, 2003, Capítulo 1:
O Mito da Formiga-Rainha, p. 21). Essas trocas de
informações permitem com que novos paradigmas
de dobra e dobradura possam surgir e, com o design, possam fomentar os mais variados e inéditos
processos científicos inovadores que serão exemplificados a seguir.
Origami projetual 1: princípio
do compacto para viagem e
expandido para o destino
Durante o Google Zeitgeist Minds de 2010 – evento com uma série de palestras on-line que objetivam
explanar diversas perspectivas sobre questões globais a partir de alguns dos principais pensadores do
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ROSSI, Dorival Campos; TEIXEIRA, Samanta Aline. Origami científico: a linguagem das dobraduras no design contemporâneo
ciedade como um todo. O origami carrega uma imanência mutante tão elevada que pode permear praticamente todos os tipos de inovação tecnológica.
Utilizando o pensamento complexo indicado
por Morin (2011) como alicerce analítico, buscamse maiores forças de atuação e configuração do que
as visões unilaterais permitem observar. Nota-se,
então, que, no âmago do trabalho de Tompa, há
uma concepção visceralmente entrelaçada com a
idealização de um origami, em especial os modulares, que ainda estão em processo de concepção.
Há uma importância não apenas no objeto em si,
mas principalmente no raciocínio que ordenou toda
a sua estrutura.
Tompa é um designer húngaro de telhas e azulejos (um ramo bem específico e até excêntrico do design); é formado na Universidade Húngara de Artes
e Design (Magyar Iparművészeti Egyetem – MIE) na
capital Budapeste, em 1993. Contou-se como melhor exemplo deste designer a caixa “Illusion Box”,
trabalho que recentemente também serviu de referência para a concepção das luminárias “Flower
Lamps”. Em uma conversa on-line, Tompa nos
esclareceu diversos pontos sobre a concepção da
“Illusion Box”: “A ideia veio à minha cabeça durante um projeto periódico de azulejos. Fiz experimentos com triângulos regulares e quadrados baseados
em malhas (mosaicos).”1
Origami projetual 2:
processos criativos em dobra e
com a dobra
A arte não consiste mais, aqui, em compor uma
“mensagem”, mas em maquinar um dispositivo que
permita à parte ainda muda da criatividade cósmica fazer ouvir seu próprio canto. Um novo tipo de
artista aparece, que não conta mais história. É um
arquiteto do espaço dos acontecimentos, um engenheiro de mundos para bilhões de histórias por vir.
Ele esculpe o virtual (Lévy, 1996, p.149).
Lévy traz para o designer uma série de novas
possibilidades em diferentes naturezas quando
apresenta o virtual em todo o seu juízo. O virtual
representa “um modo de ser fecundo e poderoso,
que põe em jogo processos de criação, abre futuros, perfura poços de sentido sob a platitude da
presença física imediata” (Lévy, 1996, p.12). É a
partir desse novo leque de paradigmas que as criações contemporâneas podem se apoiar e se compor, trazendo projetos híbridos extremamente ricos
em conceitos, linguagens, estruturas e materiais.
Alguns desses projetos serão tratados nesta sessão
com o objetivo de verificar a potência do pensamento em origami quando lançado ao design processual atuante no mercado. Tomou-se o designer
Laszlo Tompa como exemplo de aplicação dos módulos e encaixes precisos, tal como os kusudamas,
para conceber seus processos de produto:
Figura 12: umas das unidades de telhas, por Tompa
Figura 10: “Illusion Box”, por Laszlo Tompa
Tompa prossegue: “Eu desenvolvi essas formas
para transformá-las em telhas 3D: são objetos cortados na metade (meio cone, meia esfera, etc.) que
eu consegui unir através do encontro dos seus eixos. Foi então que obtive um eixo de rotação maleável entre essas formas.”
Figura 11: “Flower Lamps”, por Laszlo Tompa
1 Tradução feita pelos autores.
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ROSSI, Dorival Campos; TEIXEIRA, Samanta Aline. Origami científico: a linguagem das dobraduras no design contemporâneo
demonstrou ao designer como ele deveria se formar
e não o contrário. Esse comportamento é pouco explorado hoje em nossa cultura, especialmente no
ramo da criação e do projeto, como Flusser pontua:
a cultura oriental deixa emergir da matéria a forma
enquanto seu devir próprio:
Figura 13: Telhas-mosaicos concebidas a partir da união
de eixos, por Tompa
Podemos observar como surgem formas entre as
mãos dos orientais, por exemplo, ideogramas escritos com pincel, flores de papel (...). Em todos esses
casos não se trata de uma ideia imposta sobre algo
amorfo; trata-se de fazer surgir de si mesmo e do
mundo circundante uma forma que abarque ambos
(Flusser, 2007, p.208).
Conclui o designer húngaro: “Durante o desenvolvimento das telhas, eu percebi que três quartos
dos elementos podiam ser usados como suporte
nos cantos e a superfície total da parede poderia
ser coberta com as telhas através dessa ligação.
Quando trabalhei com esses elementos de canto,
uma pergunta veio: ‘E se um cubo for coberto com
esses elementos em espaços não correspondentes?’
A coisa mais importante durante um projeto é fazer
as perguntas certas. Desde então, pude começar a
desenvolver progressivamente a ideia básica. Eu já
fiz outras caixas com madeira antes de poder dizer que eu deveria fazer caixas com essa ideia. Eu
projetei 16 variedades no computador até chegar
neste modelo final (a “Illusion Box”) que se tornou
o melhor protótipo feito por mim. Então, foi dessa forma que a telha de parede se transformou em
uma caixa de madeira”.
Basicamente, o que Laszlo pretende dizer é que,
por meio de seu raciocínio em ligar diferentes formas por seus eixos e rotações, foi possível transpor
suas telhas do plano bidimensional para o plano
tridimensional – os cantos das paredes, o cubo-caixa e as luminárias.
Percebe-se que há dois segmentos importantes
no raciocínio de Tompa. Primeiro: a simplicidade
de suas formas, trabalhadas apenas no arredondamento, na união, no aumento e na diminuição de
quadrados e triângulos, cones e círculos. Segundo:
a precisão de encaixe, uma forma complementa o
espaço vazio da outra: há uma interdependência
entre as diferentes formas que compõem o todo.
Mesmo sendo formas completamente diferentes,
de tamanhos e formas também diferentes, elas se
comportam tal como módulos de origami, e é exatamente essa diferença entre os módulos que garante
a plasticidade da “Illusion Box”. Outro fator importante é a transposição da orientação 2D para 3D –
da maneira como Tompa descreve, foi o objeto que
Um exemplo oriental de grande influência do
origami está no trabalho do designer de moda japonês Issey Miyake:
Figura 14: Coleção outono/inverno Eco-origami (20122013), por Issey Miyake
Figura 15: Transformação do pano-origami inicial para a
peça final, a roupa
Realizado com sua equipe de laboratório Reality
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ROSSI, Dorival Campos; TEIXEIRA, Samanta Aline. Origami científico: a linguagem das dobraduras no design contemporâneo
trabalhos do LAVA: a vitrine de La Rinascente, feita com 1.500 origamis em papéis reciclados que
incorporam a dinâmica dos recifes de corais. Segundo Bosse, um dos criadores da vitrine, os corais
possuem um comportamento organizacional inteligente, regido plenamente pela sustentabilidade.
O desenvolvimento sustentável não diz respeito somente à gestão em prol da preservação da natureza,
elenca maiores fatores do que aparenta de início,
confere feedback tanto para o meio quanto para o
usuário, ao mesmo tempo em que reforça a importância do papel do designer nos estudos criativos:
Lab e com o origamista e cientista computacional
Jun Mitani, Miyake projetou a coleção Eco-origami:
peças de roupas que possuem uma forma inicial em
duas dimensões tal qual um origami e que, quando
desdobradas, passam a ter três dimensões e adquirem a forma da roupa em si, como vestidos, bolsas,
blusas e calças. A ideia possibilitou a reutilização de
vários tecidos que foram descartados anteriormente; além disso, maximizou o conceito de “dobrar
roupas”, ou seja, o estado de guardar uma roupa
em um armário passou a ter tanta importância estética quanto o momento de usá-la. As engenhosas dobras também possibilitaram um tingimento
extremamente particular e interessante aos tecidos,
possível apenas quando dobrados de tal forma precisa e geométrica.
A seguir, como exemplo aplicado ao design e
à arquitetura e de referência clara às dobraduras,
constatam-se determinados edifícios que desafiam
tanto a gravidade quanto os limites de formato. Tais
edificações pertencem ao Laboratório de Arquitetura Visionária (LAVA). Fundado em 2007, por Chris
Bosse e Tobias Wallisser, a empresa possui sedes na
Alemanha, Austrália e Emirados Árabes Unidos e
vincula pesquisas de diversas áreas às equipes profissionais, em busca de inovação, tecnologia e diferencial.
Nesse ínterim, nota-se um padrão: assim como
o origami desafia os formatos do papel, o LAVA
desafia os formatos construtivos urbanos, fazendo
com que os limites entre a engenharia dos materiais
e os ideais do design estejam cada vez mais estreitos.
Uma das propostas da empresa é gerar uma ponte
entre o sonho/desejo e o mundo real por meio do
não conformismo.
Se o desejo é o motor do desenvolvimento sustentável, a criatividade é seu combustível: é a criatividade que dará o impulso ao empreendedor para
imaginar um produto ou serviço que ofereça mais
(satisfação às necessidades) com menos (recursos e
trabalho). (...) É a criatividade que vai permitir ao
pesquisador encontrar soluções elegantes para problemas cada vez mais complexos (Thierry Thouvenout apud Kazazian, 2005, p.8).
A sustentabilidade, em convergência com raciocínios da natureza e a linguagem dos crafts como o
origami é uma das muitas conexões que o LAVA se
dispõem a elaborar em seus projetos. Outro exemplo
de uso claro à linguagem do origami é o abrigo para
emergências Digital Origami Shelter, baseado na molécula de água e nos hotéis-cápsulas japoneses.
Figuras 17 e 18: Digital Origami Shelter, por LAVA
Figura 16: Vitrine de uma loja italiana, origamis elaborados pelo LAVA
A imagem mencionada anteriormente é um dos
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ROSSI, Dorival Campos; TEIXEIRA, Samanta Aline. Origami científico: a linguagem das dobraduras no design contemporâneo
da China, o Ano Novo Lunar Chinês. Instalados no
pátio de Customs House, em Sydney, a empresa projetou os gigantes tigres com 2,5 metros de altura
por 7 metros de comprimento e ambos possuem
200 quilos. Os tigres foram feitos apenas com materiais recicláveis, alumínio e barrisol, e a adição
da iluminação de baixa energia das lâmpadas LED.
As esculturas também simbolizam a preocupação
com a extinção de diversos animais, entre eles os
tigres. Esse projeto reflete a possível interação entre as tradições culturais com as experimentações e
tecnologias atuais.
Além do aspecto de conexão interativa que a linguagem do origami resguarda, aponta-se uma nova
mudança de paradigma também sobre o craft, que
literalmente significa “ofício”, “habilidade”, e designa o fazer manual, artesanal. O craft é uma técnica que remonta aos tempos mais longínquos da
Pré-História, mas vem sendo resgatado e utilizado
em muitos processos de projetos contemporâneos.
Diferentemente da concepção do antigo desenho industrial – em que o manual e o maquinário
se encontravam em grupos distintos e insolúveis
entre si e no qual o que era design tinha de passar
pelas máquinas e o que era feito à mão constituía
meramente um objeto artesanal –, hoje esse retorno ao contato direto com o material, com estudos
e manuseios experimentais táteis estão voltando a
fazer parte do design contemporâneo. Esse retorno
não constitui apenas um resgate de técnicas, mas
uma atualização destas em conexão com as novas
tecnologias, como as mídias digitais. O novo e o antigo aglutinam suas diferentes atuações e formações
e trazem à tona novas linguagens contemporâneas.
O craft atualizado se evidencia em empresas
criativas como o Mode/modeLab, estúdio e laboratório experimental de design e investigação coletiva
com sede no Brooklyn, em Nova Yorque. Fundado
por Ronnie Parsons e Akos Gil, o estúdio se propõe
a formar e informar diversas pesquisas aplicadas em
conexões com materiais e processos. Mode/modeLab promove diversos workshops, experimentações
e estudos sobre módulos, materiais diversos e prototipagem híbrida entre hardwares e softwares. Nos
workshops, são utilizadas ferramentas digitais como
os programas Grasshopper, Rhino, Maya e microcontroladores de Arduino. Dentre as propostas experimentais, um dos objetivos é construir protótipos físicos e virtuais que se comuniquem com as
pessoas e com o mundo ao redor. Há uma relação
íntima dentro do estúdio Mode na utilização transdisciplinar das linguagens digitais (diversos progra-
Figura 19: O abrigo planificado, por LAVA
O abrigo tem a versatilidade de ser pequeno,
fácil de ser construído e carregado por helicópteros em situações de emergência. Possui um espaço
suficiente para abrigar dois adultos e uma criança,
além de outro espaço menor parar fazer refeições e
leitura. O LAVA procura uma contínua definição de
novas expansões na criação dos espaços metropolitanos e nas visões arquiteturais. A empresa acredita que cada novo projeto de arquitetura comporta
uma ampliação da tecnologia contemporânea e, por
isso, carrega também uma grande responsabilidade
com o público e o meio ambiente.
Figura 20: Dois tigres em forma de origami para celebrar
o Ano Novo Lunar Chinês, por LAVA
Figura 21: Esquema de planificação dos tigres, por LAVA
Utilizando a linguagem do Festival das Lanternas Chinesa, mais a combinação do zhezhi (dobradura em chinês), o LAVA criou, em 2010, as esculturas demonstradas nas Figuras 20 e 21: dois tigres
agachados para celebrar o feriado mais importante
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ROSSI, Dorival Campos; TEIXEIRA, Samanta Aline. Origami científico: a linguagem das dobraduras no design contemporâneo
mas de computador para modelagem, programação
e mapeamento matemático) com as tecnologias físicas (sensores remotos e máquinas industriais de
corte a laser – CNC) e as linguagens tradicionais
(kirigami e craft).
Ao aglutinar inúmeros processos diversificados
como os citados, o resultado é uma grande esfera
sígnica que contém em seu âmago a estética relacional (Bourriaud, 2009), a pulsação das antigas e das
novas linguagens e paradigmas híbridos.
Um dos trabalhos mais relevantes do estúdio
Mode/modeLab é a exposição The business of Aura
(O Negócio da Alma), em Nova Yorque, onde há
uma forte presença do kirigami (ramo à parte do
origami que utiliza dobras e recortes diversos).
Figuras 24 e 25: Estudos de encaixes, manuseios e geometria, pelo estúdio Mode/modeLab
Figuras 22 e 23: Alguns protótipos da instalação
“The business of Aura”, por Mode/modeLab
Outro trabalho do estúdio Mode/modeLab, em
colaboração com o estúdio Tietz-Baccon, é o Material Inteligence, que ofereceu grande contribuição
no âmbito do craft e da experimentação de materiais diversos, além também da exploração das formas, texturas, cores e padrões de mosaicos em formas orgânicas. O Material Inteligence é uma oficina
de prototipagem que acontece no mês de agosto,
em Nova Yorque, desde 2010, e envolve o trabalho tanto de profissionais quanto de estudantes
na concepção de uma variada gama de objetos
orgânicos.
Figuras 26 e 27: Oficina Material Inteligence, por estúdio Mode/modeLab
A exposição inclui pintura, desenho, fotografia,
protótipos esculturais e instalação. Nela, buscou-se
trazer à tona o potencial do estúdio no processo
de produzir a aura, ou alma, e focar metodologicamente sobre elementos como a qualidade de
materiais, tato superficial, geometrias marcantes,
formas animadas e a luz.
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revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 165-178, out. 2012/mar. 2013.
ROSSI, Dorival Campos; TEIXEIRA, Samanta Aline. Origami científico: a linguagem das dobraduras no design contemporâneo
Figuras 28 e 29: Oficina Material Inteligence, por estúdio Mode/modeLab
disseminação quanto em estruturação propriamente
dita. Um dos grandes objetivos foi a destinação do
pensamento complexo às dobras e dobraduras, sem
cortar o nó górdio das problemáticas de investigação,
de maneira a complementar de forma rica e transdisciplinar o que é o origami enquanto raciocínio científico e projetual.
Na área acadêmica brasileira há pouquíssimas
pesquisas que buscam o origami no escopo do pensamento científico, social e criativo. Em contrapartida,
o origami contemporâneo (objeto mutável em dobra
que permeia sobre milhares de projetos artísticos,
urbanos e tecnológicos) está sendo utilizado e incorporado por americanos, europeus, japoneses, entre
outros países, já há algum tempo. Daí a importância
e o pioneirismo desta pesquisa por elencar, descrever
e oficializar o origami científico em diversos dos seus
âmbitos e aspectos constitutivos. Validar os projetos
que ocorrem em massa pelo mundo afora também se
tornou um dos objetivos desta investigação, de modo
a ampliar as referências de mercado para os estudantes e pesquisadores do design.
O recorte aqui adotado é bastante limitado dentro
do grande campo do origami contemporâneo, assunto de diversas teorias matemáticas, aplicações computacionais e numerosos projetos criativos/sociais
em todo o mundo. Merecem registro muitos outros
O Material Inteligence possui como briefing a relação entre o objeto projetado e as forças perceptíveis/
táteis que giram em torno desse objeto e, por meio
desse processo, navega entre as multiplicidades de
força. Os protótipos servem como links ativadores entre o design inovador e materiais de pesquisa, unindo
estrategicamente a fabricação digital, tecnologias contemporâneas e ambientes associativos. Para se obter o
kirigami ilustrado pelo estúdio Mode, já não há mais
necessidade de tesoura e cola, são usadas máquinas
de corte a laser e princípios de união modular intensos e associativos. Entre as forças que resguardam os
protótipos do Material Inteligence, há uma gestão em
particular que carrega intenso raciocínio sobre a modulação e a conexão, importante também para o origami modular. O origami dos dias hoje é uma constante exploração de formas e atuações que nem sempre
estão condensadas na figura do papel. Isso acontece
porque o origami/kusudama/kirigami transcende a limitação do material, ou seja, ele é, antes de tudo, uma
ideia e a principal ferramenta do designer.
colaboradores desse tema, tais como Erik Demaine (Estados Unidos), Tom Hull (Estados Unidos),
Eric Joisel (França), Paul Jackson (Israel) e Satoshi
Kamiya (Japão). Demaine, por exemplo, é considerado atualmente um dos maiores intelectuais reconhecidos nos estudos sobre o origami científico:
professor e pesquisador do Instituto de Tecnologia
de Massachusetts (MIT), Demaine vem contribuindo significativamente para a seriedade do origami
em projetos aplicados, como nos estudos nanotecnológicos do origami transposto sobre estruturas
proteicas, algoritmos, geometria das dobraduras e
softwares simuladores de crease patterns. No Brasil,
a professora Mari Kanegae é uma das principais
percussoras no ramo da arte do origami, liderando o Grupo de Estudos de Origami (GEO), em São
Paulo, a partir do qual chegou a atuar em nível
mundial com a exposição sobre imigração japonesa
no Brasil. Portanto, são muitas as referências.
A pesquisa sobre o origami é muito ampla, praticamente infindável, a dobradura faz links com
diversas outras áreas, transfigurando-se em uma
natureza expansivamente maior do que sua singela
origem nas mãos de um origamista.
Considerações finais
Essa reflexão investigativa procurou estender ao
máximo o paradigma origami, seus comportamentos, estruturas e, principalmente, as contribuições
que podem compor com o design e a inovação. Um
ponto importante é se fazer notar que, como outros
objetos sensíveis (Rossi, 2003, p.99), o origami está
sendo atrelado às linguagens eletrônicas, tanto em sua
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revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 165-178, out. 2012/mar. 2013.
ROSSI, Dorival Campos; TEIXEIRA, Samanta Aline. Origami científico: a linguagem das dobraduras no design contemporâneo
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Lista de Figuras
Figuras 1 a 8: produzidas e editadas pela autora do artigo por meio dos softwares Adobe Photoshop e Adobe Illustrator. Os modelos de origami também foram feitos pela autora, assim como as fotos dos mesmos.
Figura 9: extraída de: YOSHIZAWA, A. Sosaku Origami: Creative Origami. 1. ed. Japão: NHK, 1984. p. 22,
23, 29 e 54.
Figuras 10 a 13: fotos cedidas por Laszlo Tompa, acervo pessoal.
Figura 14: retirada de: Issey Miyake 132 5. Eco-Origami Collection. (2012). (Domínio Shedonism). Disponível em: <http://blog.decyng.com.ar/?s=issey+miyake>. Acesso em: 2 nov. 2012.
Figura 15: retirada de: 132 5. ISSEY MIYAKE. (2012). (Domínio Decyng). Disponível em: <http://www.
shdnsm.com/2012/06/08/issey-miyake-132-5-eco-origami-collection/>. Acesso em: 2 nov. 2012.
Figuras 16 a 21: retiradas de: Site oficial do Laboratório de Arquitetura Visionária. (2012). Disponível em:
<http://www.l-a-v-a.net/>. Acesso em: 27 nov. 2010.
Figuras 22 a 25: retiradas de: Strips Morphologies Workshop. (2010). (Site oficial modeLab). Disponível em:
<http://modelab.nu/?p=3307>. Acesso em: 16 mar. 2012.
Figuras 26 a 29: retiradas de: Material Intelligence Workshop. (2010). (Site oficial modeLab). Disponível em:
<http://modelab.nu/?p=3866>. Acesso em: 16 mar. 2012.
Dorival Campos Rossi é professor do Departamento de Design da Universidade Estadual Paulista (UNESP)
e criador do programa de pós-graduação Lato Sensu em Game Design da mesma instituição. E-mail: <[email protected]>.
Samanta Aline Teixeira é bacharel em Design Gráfico pela Universidade Estadual Paulista. E-mail: <[email protected]>.
Recebido para avaliação em março de 2013. Aprovado para publicação em agosto de 2013.
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Artigos
Livres
Portugal de calções –
para uma génese do desporto
enquanto fenómeno mediático
PINHEIRO, Francisco
Resumo
O desporto, sobretudo o futebol, é o fenómeno mediático mais marcante da sociedade portuguesa contemporânea.
Pensar a origem deste fenómeno de popularidade, a partir do processo evolutivo da imprensa desportiva, é o objetivo
deste artigo.
Palavras-chave: Portugal – Desporto – Imprensa – Popularidade.
Abstract
Sport, especially football, is the most mediatized phenomenon in the Portuguese contemporary society. Thinking
about the origin of this phenomenon of popularity, from the perspective of the sport press history, is the major goal
of this article.
Keywords: Portugal – Sport – Press – Popularity.
Introdução
E quais as razões subjacentes a isso? Recordamos
que atualmente o desporto, sobretudo o futebol, é o
maior fenómeno mediático em Portugal. Em 2011,
por exemplo, dos 20 programas de televisão mais
vistos pelos portugueses, 17 foram jogos de futebol
ou programas relacionados com esta modalidade
esportiva. Além disso, os três diários desportivos
portugueses (A Bola, Record e O Jogo) vendem mais
exemplares em conjunto que os três diários generalistas. Quando começou todo este processo e o
que esteve na sua génese são questões às quais este
artigo pretende responder, utilizando a perspetiva
evolutiva da imprensa desportiva.
Ao longo do século XX, os indivíduos e as sociedades passaram a viver grande parte das suas
experiências culturais através dos media, na linha
do que Thompson (1990) definiu como a “mediatização da cultura moderna”. O desporto em Portugal, enquanto “fenómeno social total” (Mauss,
1974), começou a conviver intensamente com essa
mediatização a partir da década de 1920. E é precisamente sobre este encontro, entre desporto e media, que irá versar este artigo. Desde logo coloca-se
uma questão: quando começou esta popularização do desporto português e a sua mediatização?
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revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 181-194, out. 2012/mar. 2013.
PINHEIRO, Francisco. Portugal de calções – para uma génese do desporto enquanto fenómeno mediático
Contexto internacional
(Barcelona, 1923) e Aire Libre (Madrid, 1923). Passaram também a circular um vasto leque de revistas
humorísticas especializadas em desporto, casos de
El Guirigay (Oviedo), La Barrila Deportiva, Xut! e
Sidral Sportiv (Barcelona). A esse cenário juntou-se
o aparecimento dos primeiros diários desportivos,
sinal da consolidação do desporto e deste ramo
jornalístico, entre o público espanhol. O primeiro
diário desportivo seria o Excelsior (Alcoba, 1999,
p.67), lançado em Bilbao, em 31 de março de 1924,
publicando-se regularmente até 1931. E, em 1926,
seria a vez do El Mundo Deportivo, criado em Barcelona em 1906, passar de trissemanal a diário. Em
Madrid, a primeira tentativa de criar um diário desportivo seria em 1930, através do Gran Sport, que
duraria dois meses.
O surgimento dos primeiros diários desportivos
na Espanha foi tardio quando comparado ao caso inglês, francês ou belga. Convém recordar que a criação de diários desportivos na Europa remontava ao
século anterior, iniciada em 1852 com o lançamento
do Sportman, em Londres. Quatro décadas depois,
em 1892, seria a vez da França estreiar no campo do
jornalismo desportivo diário com Le Vélo. E a vizinha
Bélgica avançaria com Les Sports, em 1907.
A popularidade do desporto foi um fenómeno
à escala europeia na década de 1920. Um pouco
por toda a Europa assistiu-se ao aparecimento de
novos clubes, competições, federações, infraestruturas e, obviamente, jornais desportivos, alguns
deles umbilicalmente ligados às modalidades mais
populares, como o futebol, automobilismo, boxe
e ténis, entre outras. Na Alemanha, por exemplo,
as revistas Der Kicker (Karlsruhe, 1920) e FuBball
und Leichtathletik (Duisburg, 1920) marcariam o
noticiário futebolístico alemão. E ao longo da década iriam destacar-se também o Das Weib in Sport
(1924) e o Das Illustrierte Blatt (1930), tendo o
desporto feminino como tema de fundo. O desporto automobilístico foi outra área mediática, num
fenómeno que não foi exclusivo da Europa, como
demonstrou o caso brasileiro, com três revistas importantes: Revista Automobilismo (S. Paulo, 1925),
A Voz do Chauffeur (Rio de Janeiro, 1929) e Automóvel Club (Rio de Janeiro, 1930). Na Europa,
o mundo do automobilismo levou ao aparecimento, na Bélgica, do Le Commerce Automobile Belge
(1928), e na Itália do L’Auto Italiana (1927) e, na
França, do Auto et Sports (1922-1931).
O movimento desportivo cresceu fortemente
em França, onde surgiram uma série de competições e publicações, em várias modalidades, casos
da náutica (Le Yachtsman, 1922), pugilismo (Le
Boxe et Les Boxeurs, 1921-1925), movimento olímpico (La France Olympique, 1921-1939), esgrima
e tiro (L’Escrime et Le Tir, 1921-1939), aeronáutica (L’Aéro-Sport, 1922-1930) e futebol (Football,
1929-1944, e Football et Sports, 1922). E os franceses continuaram igualmente dinâmicos, apesar
do domínio do diário L’Auto (1903), nascendo
uma série de novos periódicos de qualidade, como
a revista Le Sport Universel Illustré (1922-1935),
Trés-Sport (1925) e Match – Le plus grand hebdomadaire sportif (1926-1938). Esse dinamismo do
jornalismo desportivo francês estaria na génese da
fundação da Association Internationale de la Press
Sportive (AIPS), em julho de 1924, por ocasião dos
Jogos Olímpicos de Paris.
Na Espanha, o desporto teria também uma faceta diversificada, surgindo revistas como a Tennis
(1921) e El Sport de Caza y Pesca (Madrid, 1929).
A popularidade do desporto espanhol cresceu
enormemente, tendo como reflexo o constante
surgimento de novos periódicos desportivos generalistas, como Sporting (Madrid, 1922), Sports
O primeiro diário desportivo
português
Em Portugal, o meio jornalístico desportivo só
começou a ter alguma dimensão editorial e sustentabilidade noticiosa no início da década de 1920,
o que justificava, em grande parte, a ausência até
então de tentativas de criação de diários desportivos. Recordemos que, na década anterior, a média
de novas publicações desportivas, lançadas anualmente, tinha rondado somente quatro a cinco periódicos (devido à guerra e à carestia de vida). Essa
média só começou a aumentar a partir de 1921,
com o surgimento de 11 novos jornais desportivos, seguido em 1922 por outros 15 e em 1923
por mais 17. Desse modo, no espaço de apenas três
anos, surgiram 43 novas publicações desportivas
em Portugal (34 generalistas, 6 órgãos de clubes e
3 especializadas), dando finalmente uma dimensão
nacional e popular ao fenómeno do desporto e ao
próprio jornalismo desportivo. A esse cenário de
crescimento havia que acrescentar o facto de se ter
conseguido, principalmente através de três periódicos (O Sport de Lisboa, de 1915; Os Sports, criado
em Lisboa em 1919; e Sporting, no Porto em 1921),
a consolidação editorial deste género de jornalismo
182
revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 181-194, out. 2012/mar. 2013.
PINHEIRO, Francisco. Portugal de calções – para uma génese do desporto enquanto fenómeno mediático
nos dois principais centros urbanos do País (Lisboa
e Porto).
Esse panorama de euforia à volta do desporto e
do jornalismo desportivo levaria diversas personalidades a ambicionar a criação do primeiro diário
desportivo português. Contudo, era preciso que se
reunissem vários fatores. Em primeiro, era fundamental que os principais periódicos desportivos de
Lisboa (Os Sports) e Porto (Sporting) não estivessem em atividade, abrindo o espaço jornalístico necessário ao surgimento de um diário. Em segundo,
tinha que ter como base um corpo redatorial capaz
de produzir diariamente um noticiário eclético e de
qualidade, tarefa extremamente complicada num
meio onde imperava o amadorismo. Além disso, tinha que constituir um corpo redatorial em Lisboa e
no Porto, principais centros desportivos e de leitura jornalística, criando depois uma rede de correspondentes nacionais e internacionais. Em terceiro,
o diário teria que ser lançado numa altura em que o
movimento desportivo estivesse em grande frenesi,
gerando por si mesmo um vasto noticiário, facilitando a tarefa de produção jornalística e aumentando o interesse do público. A tudo isto tinha que se
aliar uma boa empresa tipográfica, que conseguisse
imprimir diariamente o jornal (sem falhas nem erros ortográficos, que descredibilizavam as publicações da época) e um alargado leque de postos de
venda, assim como a adesão do público ao sistema
de assinaturas (principal forma de venda de jornais
na época) e do meio publicitário.
Todo este leque de condicionantes reuniu-se em
maio de 1924, levando uma das figuras que mais
ambicionava criar um diário desportivo em Portugal, o portuense Oliveira Valença, fundador e chefe
de Redação do jornal Sporting, a avançar finalmente com a ideia, aliando-se para isso a outra figura do
desporto nacional, o lisboeta Salazar Carreira. Um
dos principais motivos para o arranque do diário
foi a paragem temporária do popular trissemanário
lisboeta Os Sports, em abril de 1924 (com vista a
uma remodelação) e a suspensão do semanário portuense Janeiro Desportivo, em maio de 1924.
Com a saída de cena destes dois rivais, a direção
do outro periódico importante da época, o Sporting, encabeçada por Oliveira Valença, decidiu suspender a publicação, em maio de 1924, e avançar
definitivamente com um diário desportivo. A esse
cenário juntava-se o facto de estarem a decorrer,
desde maio, algumas provas com vista aos Jogos
Olímpicos de Paris, cuja abertura oficial seria em
5 de julho (disputando-se até 27 de julho), aguar-
dando-se com entusiasmo a participação da maior
representação portuguesa em Olimpíadas, com 25
atletas em oito modalidades. Os Jogos Olímpicos de
Paris-1924 asseguravam o volume noticioso e o interesse popular necessários para o arranque de uma
publicação diária. Encontravam-se também na fase
decisiva as principais provas futebolísticas, acompanhadas com expectativa por milhares de adeptos.
Assente na ideia de se publicar diariamente, com
duas edições (uma em Lisboa e outra no Porto), a
direção do diário seria partilhada por Salazar Carreira, responsável pela redação lisboeta, e Oliveira
Valença, que ficaria encarregue da redação portuense. Alicerçado na estrutura redatorial e tipográfica
que até então tinha publicado consecutivamente
165 números do semanário Sporting, entre março
de 1921 e maio de 1924, surgiu na quinta-feira,
22 de maio de 1924, o Diário de Sport. No dia seguinte, na capa da “edição-sul” do Diário de Sport,
o diretor Salazar Carreira explicaria no editorial
“Apresentação” que o novo jornal tinha como missão relembrar constantemente as vantagens e as necessidades do desporto em Portugal, para que assim “o sport viva e prolifere”. E as páginas do diário
iriam servir para dar a conhecer “as exigências da
causa (desportiva), a indispensabilidade da propaganda da cultura física e a apologia do sport como
meio de fortificação da raça”.
Apesar da “incredulidade do meio”1 e das vozes
negativas que vaticinavam uma rápida extinção, o
Diário de Sport conseguiria publicar 63 números.
Futebol, remo, ciclismo, vela e boxe, assim como
o acompanhamento diário dos Jogos Olímpicos
de Paris, foram temas em destaque. Problemas de
ordem financeira e de fornecimento de papel para
impressão, aliados a alguma indefinição na empresa proprietária, fizeram com que o Diário de Sport
anunciasse, em 3 de agosto de 1924, a suspensão
temporária, esperando regressar brevemente. Mas
esse regresso nunca se verificou, voltando sim o seu
antecessor, o semanário Sporting, que a 14 de novembro de 1924 retomou a publicação, novamente de cariz semanal, em papel cor-de-rosa e com o
mesmo grafismo e lema: “Pela Raça”. A propriedade, edição e direção cabiam a Oliveira Valença, que
formou a empresa Sporting, Lda. A outra referência
do jornalismo desportivo português, Os Sports, regressou a 25 de setembro de 1924 e continuou a
sair três vezes por semana, lançando em 9 de no1 A Redacção (1924, 23 de Maio). O dever dos leitores do Diário de Sport. Diário de Sport, p.1.
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PINHEIRO, Francisco. Portugal de calções – para uma génese do desporto enquanto fenómeno mediático
vembro um suplemento ilustrado ao domingo de
manhã, que tinha como objetivo fazer uma antevisão dos jogos de futebol que se realizavam à tarde.
Visões partilhadas sobre o
desporto
Entre 1924 e 1926, período no qual a imprensa
desportiva conheceria um enorme crescimento, reflexo do que sucedia no próprio meio desportivo, o
jornal lisboeta Os Sports e o portuense Sporting mantiveram-se como os pilares da imprensa desportiva
portuguesa, isto apesar das suspensões e mudanças
de proprietários e diretivas que sofreram. A estabilidade editorial de ambas publicações deveu-se, em
grande medida, à qualidade dos seus corpos redatoriais e à própria estabilidade das competições desportivas, cada vez mais regulares e populares. Algumas
antigas estrelas do desporto, sobretudo do futebol,
começavam a transitar para as redações dos jornais,
como sucedeu com Cândido de Oliveira (primeiro
capitão da seleção nacional), que em novembro de
1925 assumiu a chefia de redação de Os Sports, depois de uma passagem pela revista Football, em 1920.
Em maio de 1926, Cândido de Oliveira chegaria mesmo a diretor, apresentando o jornal um novo subtítulo no cabeçalho: “O Jornal Sportivo de Maior Tiragem
e de Maior Expansão em Portugal”.
Quanto ao Sporting, conhecido como “o rosa”
por ser impresso em papel cor-de-rosa (tal como
viria a suceder com o Jornal dos Sports, no Brasil),
manteria uma linha editorial estável, assente na figura do diretor, Oliveira Valença. Em março de 1925,
o trabalho semanal de preparação do Sporting assentava em 11 jornalistas e em 32 correspondentes
espalhados por Portugal continental, numa clara
demonstração de que “o entusiasmo pelo desporto
enraizou-se e hoje temos o prazer de verificar que
no mais recôndito canto do País os usos desportivos
são moda corrente”.2 Foi baseado nessa estrutura
redatorial que, em janeiro de 1926, o jornal decidiu
passar de semanal a bissemanal, o que lhe permitia
manter maior atualidade noticiosa e abranger mais
temáticas desportivas e de ordem política e social.
Além das tradicionais temáticas doutrinais sobre
a importância do desporto e da educação física3 para
a sociedade portuguesa, a linha editorial do Spor2 A Redacção (1925, 26 de Março). A Província afirma-se. Sporting, p.8.
3 Cf. Dr. Oliva (1925, 4 de Setembro). Educação Física. Sporting, p.3.
ting foi igualmente incisiva na defesa do desporto
feminino e de um novo papel social para a mulher
portuguesa.4 Outro tema recorrente nos editoriais
e crónicas5 do “Rosa” foi a decadência e o desânimo nacional, chegando a descrever Portugal como
um país que “vegeta”6, que “não pensa, não sonha,
nem realiza nada”7, e o português como uma “besta
de carga”8, falto de “concepções grandes derivadas
do trabalho mental”.9 Nesse contexto de desilusão,
restava aos portugueses olharem para a França, que
servia de “mestra, conselheira e exemplificadora a
todos os outros povos”10, nos mais variados campos: “nas artes, na literatura, nas ciências, na indústria e também nos desportos”.11
Esse género de afinidade com a França estaria
igualmente patente nas páginas de Os Sports ao
longo dos anos 1920. Habitualmente, os eventos
desportivos davam azo a reflexões sobre o desporto
e a identidade nacional de cada um dos países envolvidos. Foi precisamente isso que sucedeu em 17
de abril de 1926, quando Os Sports aproveitou o
primeiro encontro de futebol entre as seleções portuguesa e francesa, que se realizaria no dia seguinte
em Toulouse (França), para fazer algumas reflexões
sobre as relações luso-francesas, definindo, na capa,
a nação gaulesa como “o farol ou berço da civilização moderna”, reconhecendo que era um país
com quem Portugal tinha “notáveis afinidades”, ao
contrário do que sucedia com a Espanha, que nos
despertava “a recordação de prélios antigos” e “o
sentimento nacionalista”.
Entre 1925 e 1926, os sentimentos de desilusão nacional foram-se acumulando nos editoriais
de Os Sports, que passou a criticar regularmente
“o espírito nacional do ‘deixa andar’”12 e “os vícios
que infestam os nossos hábitos de portuguezinhos
4 Cf. A Redacção (1925, 15 de Outubro). A mulher e
o desporto. Sporting, p.3.
5 Um dos mais incisivos cronistas seria Sousa Martins, colunista habitual na secção “Modos de ver”.
6 James (1925, 5 de Novembro). A escola desportiva.
Sporting, p.3.
7 Idem, ibidem.
8 Idem, ibidem.
9 Idem, ibidem.
10Martins, S. (1924, 20 de Fevereiro). Modos de ver
– A França e a raça latina. Sporting, p.1.
11 Idem, ibidem.
12Vieira, H. (1925, 25 de Abril). Foot-ball – Portugal-Espanha. Os Sports, p.3.
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PINHEIRO, Francisco. Portugal de calções – para uma génese do desporto enquanto fenómeno mediático
descuidados”13. O principal jornal desportivo do
país chegaria mesmo a afirmar que “Portugal está
desportugalizado”14, numa alusão à falta de novos
feitos históricos, literários e científicos. O desapontamento para com o país, cada vez mais latente entre os jornalistas, redundava, muitas das vezes, em
ataques ferozes à sociedade portuguesa. Um dos artigos mais acutilantes dos anos 1920 foi publicado
na capa de Os Sports de 6 de dezembro de 1926,
com o título “Salvemos os rapazes”, assinado pelo
diretor, Cândido de Oliveira. Nessa reflexão sobre
Portugal, o autor afirmava que os portugueses tinham de “marroquino” aquilo que lhes faltava de
europeus e dava um exemplo:
da, em grande medida, pelas páginas dos jornais
desportivos das duas cidades, que viram as suas tiragens aumentar graças a essa conflitualidade.
As contendas jornalísticas revestiram-se de diversas facetas. Em março e abril de 1925, a imprensa desportiva lisboeta envolveu-se numa troca de
acusações com a imprensa portuense por causa da
escolha do local (uns queriam Lisboa, outros o Porto) onde se devia realizar o quarto encontro de futebol entre as seleções de Portugal e Espanha (que
acabou por se realizar na capital). O único jornal
a manter uma postura apaziguadora foi O Sport
de Lisboa, que fez vários apelos à paz, em abril de
1925. Um desses pedidos, com o título “Façamos
a paz”, teria como resposta um contundente ataque no Sporting de 15 de abril de 1925, através
do artigo “Vivamos em guerra!”, que defendia uma
“guerra franca, guerra aberta”16 entre os desportistas e jornalistas desportivos do norte e do sul, questionando inclusivamente a necessidade de pacificação: “para quê a paz, se ela não tem sido mais que
uma guerra de sapa, falsa, em que o brio deste bom
povo do Norte, do Norte que vai desde o Minho até
umas léguas aquém do Mondego, era a todo o momento espezinhado pelos ‘amigos’ do Sul? Antes a
guerra, mil vezes!”17 Mas, entre os redatores desportivos portuenses, essa posição não era consensual.
A seção desportiva do diário O Comércio do Porto,
embora compreensiva com a postura do Sporting,
veio acalmar os ânimos, insistindo na ideia de que
acima dos interesses regionais estavam os do país,
por isso deviam-se respeitar as decisões dos órgãos
máximos do futebol português.
Decorridos dois meses, em junho de 1925, rebentou um novo conflito entre os dois principais
jornais das duas cidades, com efeitos na restante
imprensa. Na origem esteve a controversa morte
do pugilista Kid Augusto18, após um combate de
Abandonemos em Paris um português – e não
há ninguém que o não aponte a dedo… O ar pacóvio
com que mira e remira tudo e todos, denuncia-o e
provoca o riso… Coloquemo-lo a falar diante de estrangeiros e temos a risota pegada. Somos em tudo
e por tudo motivo de risota – de chacota impiedosa.
Mas devemos confessar que não merecemos outra
coisa. A galhofa é o justo castigo para esta nossa
condição de habitantes desta grande aldeia, que é
o nosso País, à força de isolar-se do mundo inteiro,
para marchar um século atrasado dos outros povos.
A morte de um pugilista
Apesar de partilharem princípios editoriais semelhantes, Os Sports e Sporting viveriam permanentemente de costas voltadas durante as décadas
de 1920 e 1930, tal como o meio desportivo de
Lisboa e Porto, que ambos representavam respectivamente. Na base dos constantes diferendos estiveram, quase sempre, os regionalismos exacerbados
que rodeavam o futebol. As permanentes disputas
pela hegemonia futebolística, entre os clubes de
Lisboa e do Porto, e as suas respetivas associações
regionais, criariam um clima que ficaria conhecido
como “Guerra Norte-Sul”15, germinada e alimenta-
Lisboa e do Porto, como demonstra o artigo “Vivamos em guerra!”, publicado em 15 de Abril de
1925.
16 Lobo, C. (1925, 15 de Abril). Vivamos em guerra!.
Sporting, p.8.
17 Idem, ibidem.
18 Augusto dos Santos, nascido na África, era empregado do industrial portuense Sebastião Ferreira
Mendes. Dotado de uma excelente estampa física,
o jovem Kid Augusto (batizado assim no meio desportivo) tentou carreira no boxe, onde não teria
sucesso. Num combate contra Piotin, em junho
de 1925, no Porto, sofreu graves lesões, morrendo
13 Idem, ibidem.
14A Redacção (1925, 8 de Junho). Para quê tantos
estrangeiros? Os Sports, p.1.
15As origens desse género de terminologia remontam aos primeiros jogos de futebol entre equipas
das duas cidades, no início do século XX. Mas foise agravando a partir da década de 1910, com o
início dos jogos entre as seleções de Lisboa e do
Porto, geradores de polémicas e confrontações entre ambos os lados. Nos anos 1920, o jornal Sporting foi um dos que mais apelou ao sentimento de
“guerra” entre o meio desportivo e jornalístico de
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boxe no Porto, organizado pelo jornal Sporting. A
tragédia motivaria o artigo “‘Os Sports’ acusa! – A
morte do negro Kid Augusto”, publicado na capa
de Os Sports de 13 de junho, em que o articulista
Aragão de Andrade acusou a Federação Portuguesa
de Boxe e o organizador, Oliveira Valença (diretor
do Sporting), de serem os principais responsáveis
pela fatalidade que tirou a vida ao jovem pugilista.
As mais de uma dezena de acusações graves apresentadas por Os Sports teriam réplica no Sporting
de 17 de junho, no artigo “Um jornal de Lisboa
abusando da impunidade da nossa terra brinca com
a morte – Sempre os mesmos pulhas”. Nessa análise, a Redação do “Rosa” classificou as acusações
de “infâmias”, contrapondo aos “Acusamos” de Os
Sports uma série de “Mentem”. A amplitude do debate alastrou também às seções desportivas de outros jornais, como o Diário de Notícias, O Século,
O Diário da Tarde, A Tarde, O Sport de Lisboa, O
Correio da Manhã, O Diário do Povo, Domingo Ilustrado e Jornal de Notícias, entre outros.
Em janeiro e fevereiro de 1926, novo duelo entre Os Sports e Sporting, desta vez por causa do
regulamento do Campeonato de Portugal, principal
prova do calendário futebolístico português. E em
junho desse ano, o Sporting investiria contra aquilo
que designava como “a ditadura tirânica da capital”19, no seio das principais federações desportivas
do país, ataque que mereceu refutações duras nos
jornais lisboetas.
Esse permanente clima de hostilidade entre os
periódicos teria as suas naturais repercussões no
meio desportivo português, ainda pouco habituado
a lidar com as críticas e polémicas jornalísticas. Em
inícios de julho de 1926, o jornalista de Os Sports,
Reinaldo Monteiro, especialista em esgrima, foi esbofeteado nas ruas de Lisboa pelo esgrimista Mário
de Noronha, alvo de algumas críticas na seção de esgrima do jornal lisboeta. Nessa mesma altura, a direção do Sporting CP passou a impedir o livre acesso ao balneário por parte dos jornalistas, sendo o
primeiro clube de futebol a fazê-lo, o que gerou uma
forte onda de contestação nos jornais, encabeçada
pelo correspondente lisboeta (Belo Redondo) do
periódico Sporting.20 Como represália, alguns periódicos avisaram os leitores que “não poderiam contar
com boas reportagens do que passasse no Campo
Grande, visto que um diretor (Francisco Stromp)
do Sporting CP se opunha à propaganda das provas
desportivas”21 que se realizavam no campo do clube leonino. E lamentavam aquilo que designavam
como “horror à letra redonda”22, um “mal tremendo”23 que afetava os dirigentes e desportistas portugueses, nada receptivos às críticas jornalísticas.
Esse tipo de restrições à ação dos jornalistas
desportivos, que em nome da “causa desportiva”24
se advogavam o direito a poder entrar em todos os
locais e espaços ligados ao desporto, tiveram o condão, muitas das vezes, de unir uma classe de por si
dividida e permeável a cisões. As poucas manifestações de união entre jornalistas desportivos traduziam-se nos torneios de futebol inter-jornalistas.25
A principal prova era a Taça Armando Machado
(figura de renome do jornalismo desportivo no início do século XX), instituída pelo jornal O Século
e disputada em Lisboa entre as equipas de futebol
formadas pelos jornalistas dos periódicos desportivos. O Sport de Lisboa e Os Sports foram dominadores durante a década de 1920, protagonizando
finais em que juntaram alguns milhares de pessoas
e dezenas de colegas, como sucedeu em 13 de janeiro de 1924, no Campo de Palhavã, em Lisboa.
Ironicamente, fora de campo, ambas publicações
eram rivais constantes, sucedendo-se os pequenos
conflitos jornalísticos.
O primeiro Porto-Lisboa
inter-jornalistas
A falta de uma associação de classe – não faltaram tentativas de criação de um organismo uni20 Cf. Redondo, B. (1926, 9 de Julho). Os jornalistas
e os clubs. Sporting, p.6.
21 Idem, ibidem.
22 Idem, ibidem.
23 Idem, ibidem.
24 Idem, ibidem.
25Em 16 de Março de 1924, no Campo Grande (estádio do Sporting CP), em Lisboa, realizou-se uma
das mais emblemáticas festas desportivas dos jornalistas lisboetas, contando inclusivamente com a
presença do presidente da República, Manuel Teixeira Gomes. Uma equipa de futebol formada por
jornalistas de Lisboa enfrentou o Carcavelos Club,
perante milhares de adeptos.
pouco depois, no Hospital. Os Sports defendeu que
foi em consequência dessas lesões que ele morreu,
enquanto que o Sporting alegou uma queda acidental, fora do ringue, que lhe causou um traumatismo craniano fatal.
19A Redacção (1926, 8 de Junho). A política do exclusivismo. Sporting, p.3.
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PINHEIRO, Francisco. Portugal de calções – para uma génese do desporto enquanto fenómeno mediático
ficador para os jornalistas desportivos –, a forte
concorrência entre jornais, a instabilidade do meio
desportivo, o escasso mercado de leitores e de notícias, e as regulares quezílias entre jornalistas criaram
um ambiente volátil, pouco receptivo a campanhas
ou iniciativas unificadoras entre uma classe profissional (a dos jornalistas desportivos) pouco solidária. Somente perante um objetivo maior26 (caso da
popularização da ideia de desporto) ou uma causa
nacional, como era, em meados da década de 1920,
a seleção nacional de futebol (vista como um símbolo de representação nacional), é que a imprensa
desportiva, ou pelo menos uma parte dela, tentava
unir esforços. Em finais de abril de 1925, Os Sports
e O Sport de Lisboa associaram-se e fizeram uma
convocatória à restante imprensa desportiva lisboeta “a fim de deliberar sobre a forma de imprimir o
máximo de propaganda e de brilhantismo ao próximo Portugal-Espanha em football”27, que se disputava a 17 de maio. Na noite de sábado, 2 de maio,
nas instalações provisórias de Os Sports, em Lisboa,
reuniu-se um elevado número de jornalistas desportivos, que decidiram unanimemente tomar três
medidas conjuntas:
Esta resolução conjunta – na linha do que a imprensa espanhola fizera com a sua seleção durante a
eliminatória olímpica com a Itália no ano anterior –,
foi cumprida na íntegra pela imprensa lisboeta, levando um dos organizadores e subscritores da iniciativa, O Sport de Lisboa, a congratular-se “pela maneira brilhante de civismo, de disciplina, de critério e
de solidariedade”29 com que “os queridos camaradas
da imprensa de Lisboa”30 desempenharam “tão nobre
compromisso”31. E era de esperar que todos aqueles
que numa “febre de bairrismo”32 não assumiram esse
compromisso, deviam no final saber “reconhecer no
espírito de classe e no gesto de civismo da imprensa
lisboeta, um grande exemplo, muito digno de ser seguido”.33 Ausente deste acordo tinha ficado a imprensa portuense, que durante os meses anteriores tinha
feito campanha a favor do jogo Portugal-Espanha se
realizar no Porto, o que não veio a suceder. As feridas
criadas por esse diferendo, aliadas à pouca presença
de jogadores das equipas do Porto na Seleção Nacional, fizeram com que os jornalistas portuenses se tivessem mantido à margem da iniciativa conjunta da
imprensa da Capital.
Os ânimos exaltados entre a classe jornalística
desportiva das duas cidades só acalmaram no início
do ano seguinte, quando os órgãos máximos do futebol português decidiram escolher, pela primeira vez,
a cidade do Porto para acolher o sexto jogo internacional da seleção nacional de futebol, marcado para
24 de janeiro de 1926, contra a Checoslováquia. A
imprensa desportiva portuense rejubilou, permitindo
uma aproximação à lisboeta (os principais jornalistas
desportivos de Lisboa iriam deslocar-se ao Porto para
fazer a cobertura do encontro). Desse modo, foi com
naturalidade que surgiu a ideia de realizar a primeira
partida de futebol Porto-Lisboa inter-jornalistas, iniciativa que teve “o melhor acolhimento por parte de
todos os interessados”34, já que possibilitaria criar esperanças de “um próximo futuro de leal confraternização e estreita camaradagem entre todos os que, em
Portugal, se consagram à delicada e fatigante tarefa de
propagandear a causa da educação física”.35
1ª) Não discutir a constituição da ‘equipe’, para
não produzir a costumada controvérsia desorientadora, deixando ao seleccionador uma perfeita liberdade, isenta de toda a sugestão.
2ª) Esmagar a campanha derrotista de defecção
e intriga, que os bons patriotas se preparavam para
levar a efeito e estava sendo particularmente alimentada por certos elementos irritados, de tal forma desejosos de uma derrota que recusaram toda a colaboração ao esforço nacional.
3ª) Criar em volta dos nossos jogadores uma atmosfera de confiança, fazendo-o, porém, “discretamente”, para que um possível desaire não pudesse
criar-nos uma situação risível.28
26A imprensa refreava também as críticas quando
podia estar em causa o prestígio nacional. Foi o
que sucedeu com Os Sports, em Abril e Maio de
1926, quando estabeleceu um período de “Tréguas” (cf. edição de 28 de Abril de 1926) nas duras
críticas ao presidente do Comité Olímpico Português, José Pontes, que apelidava ironicamente de
“Grande Apóstolo”, durante a visita a Portugal do
Comité Olímpico Internacional.
27 A Redacção (1925, 29 de Abril). Um convite à imprensa desportiva. Os Sports, p.1.
28 (A Redacção (1925, 3 de Junho). Dever cumprido.
O Sport de Lisboa, p.2).
29 Idem, ibidem.
30 Idem, ibidem.
31 Idem, ibidem.
32 Idem, ibidem.
33 Idem, ibidem.
34 Martins, L. (1926, 20 de Janeiro). O I Porto-Lisboa
inter-jornalistas. Os Sports, p.5.
35 Idem, ibidem.
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PINHEIRO, Francisco. Portugal de calções – para uma génese do desporto enquanto fenómeno mediático
O jornal Os Sports, através do correspondente
no Porto, Luís Martins, exultou com a possibilidade da confraternização, afirmando na secção “Página de Football”, de 20 de janeiro de 1926, que
o encontro permitiria, finalmente, estabelecer entre
os jornalistas desportivos portuenses e lisboetas “o
indispensável convívio, espalhando uma atmosfera de confiança e transformando-os de adversários,
que até agora têm sido, em amigos dedicados, aos
quais não possa malquistar qualquer diversidade
de opiniões que um ou outro entenda dever expandir”.36 O jogo acabaria por se realizar no Campo do
Covelo, no Porto, a 23 de janeiro de 1926, véspera
do Portugal-Checoslováquia, tendo juntado duas
seleções que reuniam os nomes mais sonantes do
jornalismo desportivo portuense e lisboeta. Seria
uma “excelente afirmação da amizade existente entre os plumitivos das suas cidades”, como afirmaria
a revista lisboeta Eco dos Sports de 7 de março de
1926, publicando inclusivamente uma fotografia
com 21 jornalistas que participaram no evento (tirada no terraço do prestigiado diário portuense O
Primeiro de Janeiro).
Nesse contexto proliferava na imprensa desportiva a ambição de renovar a mentalidade da “mocidade portuguesa”, através de uma “educação espartana”. Um dos editoriais que melhor sintetizou este
conjunto de aspirações ideológicas foi publicado em
Coimbra no jornal Sport, em 13 de janeiro de 1924:
Queremos uma raça intrépida, uma raça que
sinta girar nas veias o sangue puro dos heróis. Queremos uma raça que constitua o alicerce da nossa
independência, como já fora outrora a razão máxima da nossa existência no mundo tempestuoso das
conquistas. Queremos uma Pátria de verdadeiros
homens, cujo valor moral, físico e intelectual nos
imponha no conceito das nações europeias e não
uma capoeira de políticos cuja moralidade roça, por
vezes, as fronteiras da depravação e do crime.
O mens sana in corpore sano dos gregos será a
nossa divisa eterna. O milagre da nossa ressurreição
colectiva reside na sua aplicação racional e culta. A
educação espartana, dando ao organismo a necessária preparação para a luta, a audácia, a combatividade, a resistência à fadiga e à dor, o culto pelos fortes,
pelos estóicos e pelos heróis, impõe-se à juventude
portuguesa, perfeitamente abandonada pela nossa
pseudo-elite governativa e dirigente. Ai da nossa
Pátria se não soubermos orientar a mocidade que
descamba no caminho do vício e da desmoralização aterradora. (A Redacção (1924, 13 de Janeiro). O
‘Sport’ e a necessidade da sua existência. Sport, p.1)
Apogeu desportivo e mediático
Entre 1924 e 1926 continuou a verificar-se um
crescimento da imprensa desportiva generalista,
dando seguimento aos três anos anteriores (1921 a
1923), durante os quais tinham surgido 34 novos
periódicos desse género em Portugal (Continente,
Ilhas e Províncias Ultramarinas). A expansão regionalista do desporto, assente na popularidade
do futebol, trouxe consigo um crescente interesse
do público, o que aliado à ideia de que o “desenvolvimento da raça”37 dependia em “larga escala da
cultura dos sports atléticos”38, fez com que mais
entusiastas do desporto se aventurassem no jornalismo, de forma a promovê-lo. Além disso, existia
a necessidade de combater aqueles para quem o
exercício físico continuava a ser “um motivo de instintiva repugnância”39, desconhecendo “o alto valor
da sua prática racional e inteligente”40, situando-se
nesta esfera de pensamento uma parte considerável
da intelectualidade portuguesa.
Essa linha editorial seria transversal aos 42 jornais desportivos generalistas que surgiram em Portugal entre 1924 e 1926. Um número impressionante. Principalmente se tivermos em linha de conta as
dificuldades com que se debatiam os periódicos: o
desporto estava ainda numa fase de consolidação
na sociedade portuguesa, ao que se juntava um número reduzido de leitores (a taxa de analfabetismo
mantinha-se alta, com 67,8% em 1930) e os elevados custos de produção dos jornais. A tendência de criação de novos periódicos desportivos foi
de constante crescimento entre 1921 e 1926, com
exceção de 1925: 11 publicações em 1921, 15 em
1922, 17 em 1923, 25 em 1924, 17 em 1925 e 27
em 1926. Dessa forma, em apenas três anos (1924
a 1926) apareceria um total de 69 novos jornais
desportivos (42 generalistas, 10 especializados, 14
institucionais e de clubes e três artístico-desportivos41), espalhados por todo o país (Continente e
36 Idem, ibidem.
37A Redacção (1924, 13 de Janeiro). O ‘Sport’ e a
necessidade da sua existência. Sport, p.1.
38 Idem, ibidem.
39 Idem, ibidem.
40 Idem, ibidem.
41Em 1924 publicaram-se dois periódicos que juntavam desporto e cinema: o Cine-Sport – Mensário
do Cinema, Circo e Sport e a Revista de Arte e Sport –
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PINHEIRO, Francisco. Portugal de calções – para uma génese do desporto enquanto fenómeno mediático
Ilhas, nenhum nas Províncias Ultramarinas), com
predominância de Lisboa (33 jornais), seguindo-se
Porto (5) e Coimbra (3).
O ano de 1924, com as suas 25 novas publicações
desportivas, marcaria claramente um dos pontos altos da produção jornalística portuguesa dedicada ao
desporto. Pela primeira vez se ultrapassou a vintena de novas publicações desportivas lançadas num
só ano (o que apenas se voltaria a repetir uma outra
vez em todo o século XX, em 1926), o que constituía uma novidade na história da imprensa desportiva portuguesa. Convém também salientar que nesse
ano, além dos 25 novos jornais (um deles diário, o
primeiro em Portugal), estavam em atividade regular
mais 15 periódicos desportivos que tinham surgido
em anos anteriores, destacando-se o trio formado por
Os Sports (Lisboa, 1919-1945), O Sport de Lisboa
(Lisboa, 1915-1934) e Sporting (Porto, 1921-1953).
Desse modo, em 1924 registou-se a atividade de 40
publicações desportivas em Portugal – número impensável no final da década anterior.
Seguindo a tendência dos três anos anteriores,
a maior concentração de novos jornais desportivos
em 1924 foi na área da imprensa desportiva generalista, publicando-se 16 novos títulos, espalhados
por 12 cidades, claro indicador da popularização
do desporto a nível regional. A maioria teria vida
efémera, devido ao elevado preço do papel e dos
custos de composição e impressão, a que se aliavam os problemas com a distribuição postal (com
queixas regulares dos assinantes pela demora ou
falha na entrega dos exemplares) e as dificuldades
na cobrança das assinaturas. Havia ainda que acrescentar o facto de a maioria dos jornais desportivos
regionais ter um mercado de vendas restrito, o mesmo sucedendo com o meio publicitário. Além disso, a propriedade, a direção e os corpos redatoriais
dos jornais eram, habitualmente, constituídos por
grupos de jovens que contavam com pouco poder
económico e falta de experiência para enfrentar
as dificuldades inerentes a publicar regularmente
um periódico. Mas as dificuldades do jornalismo
desportivo regional não se ficavam por aqui, tendo
também que contornar “a pobreza em acontecimentos noticiáveis”42, vendo-se os jornalistas muitas vezes “atrapalhados com a preocupação do assunto
a arranjar”43. Restava, em certas ocasiões, “inventar
o assunto”44, recorrendo ao “espírito fantasioso dos
jornalistas”45, a exemplo do que faziam “os grandes
periódicos, os mastodontes da informação”.46
Questões ético-desportivas
Em 1924, o avolumar de periódicos desportivos
trouxe consigo as naturais reflexões ideológicas e
éticas sobre o papel do jornalismo desportivo. Uma
das ideias consensuais na imprensa desportiva era
a de que esta devia “combater a decadência das raças”47, devendo para isso “encetar uma propaganda de regeneração dos costumes, moralizadora do
meio e purificadora dos caracteres”.48 Era igualmente unânime, entre a classe jornalística desportiva,
que se devia acabar com as “avultadas gorjetas”49
(subornos) que alguns jornalistas recebiam para
favorecer ou criticar determinada fação ou clube,
dando azo a sucessivas quezílias e desmentidos.
Começou-se a ter consciência de que, para ganhar
a confiança dos leitores, os jornalistas desportivos
deviam “informar com a maior independência de
vistas, imparcialidade e correção, qualidades reveladoras de são carácter e consciência limpa”.50
Alguns jornais começaram a fazer a defesa de
uma “moral desportiva”51 aplicada ao jornalismo,
incentivando a melhoria das análises jornalísticas,
dominadas pela figura da “crónica-relato”52, em que
se fazia apenas a mera exposição dos acontecimentos, “sem uma crítica severa contra os que pretendem levantar a confusão no meio, sem uma palavra
de queixume para aqueles que querem assassinar
a nossa obra verdadeiramente patriótica”.53 No en43 Idem, ibidem.
44 Idem, ibidem.
45 Idem, ibidem.
46 Idem, ibidem.
47A Redacção (1924, 29 de Junho). Taça Educativa.
Porto Sportivo, p.1.
48 A Redacção (1924, 31 de Agosto). Insistindo. Porto
Sportivo, p.1.
49 A Redacção (1924, 13 de Novembro). Da informação… Leiria Desportiva, p.1.
50 Idem, ibidem.
51 A Redacção (1924, 17 de Junho). A imprensa desportiva e os desportistas. O Arauto Desportivo, p.1.
52 Vasas (1924, 1 de Junho). O Sport – Coeficiente de
correcção das raças. Porto Sportivo, p.1.
53 Idem, ibidem.
Publicação Mensal de Teatro, Literatura, Coreografia
e Sport.
42A Redacção (1924, 9 de Outubro). Do assunto…
Leiria Desportiva, p.2.
189
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PINHEIRO, Francisco. Portugal de calções – para uma génese do desporto enquanto fenómeno mediático
tanto, “censurar e atacar antes de tempo”54 nunca
poderia ser “a missão da imprensa desportiva”55, já
que assim se entraria no “campo da difamação”56,
nefasta para a credibilidade jornalística.
Uma das publicações que mais se dedicou à análise do jornalismo desportivo em 1924 seria o lisboeta Sport Ilustrado Jornal, pela pena do “Colaborador Z”. No número inaugural, de 17 de setembro
de 1924, no artigo “Verdades”, publicado na capa,
afirmava-se que para ser jornalista não bastava “saber escrever”, era necessário também “pensar”. E
no jornalismo desportivo era “obrigatória mais uma
qualidade: ser falso, hipócrita”. O “Colaborador Z”
explicava: “Para ter cotação no meio dos chamados
colegas é indispensável falsear como eles, aprender
os sorrisos irónicos deles, saber receber num aperto
de mão todo o rancor que lhes vai na alma. Um sorriso de alguns desses jornalistas corresponde a uma
demonstração de ódio, um olhar a uma vibração de
raiva”. Assim, ser jornalista desportivo significava
“sujeitar-se a situações caricatas, a ataques de toda
a espécie, a injúrias sem nome”.
Na edição seguinte, de 27 de setembro de 1924,
continuando a análise ao tema, o “Colaborador Z”
defendia novamente na primeira página que existiam duas formas de fazer jornalismo desportivo:
“Há o jornalismo torpe, de vendilhões, de cínicos,
de hipócritas e de falsários. Este é o que vamos atacar. Há o outro, o honesto, o sincero, aquele que de
todas as formas deve ser apreciado, discutido e admirado por aqueles que vêem no sport uma causa
cheia de benefícios e de purezas, o sport tal qual é
e deve ser. Os primeiros são uma, felizmente, reduzida alcateia de impostores, de miseráveis, cheios
de impurezas na sua vida, corroídos pela podridão
do seu pensar, do seu proceder”. E o que movia
estes jornalistas não era a “amizade” à causa desportiva, mas sim a “necessidade de poder”, vivendo
para isso “das campanhas e do escândalo”, seguindo uma estratégia bem definida:
certo tempo, lhes tolher a língua e paralisar-lhes o
braço. Fazem-se, alguns deles, sábios e doutores em
matéria desportiva. Outros, vivem dos escudos com
que foram pagas notícias publicadas em jornais de
que são empregados, mas a quem não são passados
recibos delas. Conhecemos de tudo, infelizmente.
A fotografia desportiva
Além do cariz reflexivo e doutrinário, o Sport
Ilustrado Jornal foi também inovador no plano
editorial, sendo um dos primeiros suplementos
informativos criados por uma revista dedicada à
fotografia desportiva, a Sport Ilustrado, que tinha
como subtítulo: “Publicação Quinzenal de Fotografia de Sport”. Lançada em Lisboa, em 29 de março
de 1924, as oito páginas inaugurais desta revista
eram integralmente ocupadas por fotografias desportivas, em especial de futebol, em detrimento do
texto jornalístico. As excelentes fotografias eram da
autoria de Arnaldo Garcez e Norberto Diniz, aos
que se juntou, pouco depois, Armando Silva, fotógrafo do Porto. E o inovador grafismo da revista
coube ao desenhador António d’Almeida.
Apesar do custo elevado (1$20 escudos), a edição inaugural da Sport Ilustrado esgotou-se, gerando enorme procura os números seguintes, que
passaram a contar com cor na capa, uma novidade
para a época. Em maio de 1924, dada a boa recetividade da publicação, a direção decidiu avançar
com a criação de um placard informativo (frente à
Estação do Rossio, em Lisboa), onde passou a afixar
diariamente as principais notícias do desporto nacional e internacional. A popularidade do periódico
aumentou de tal forma que em julho de 1924 já se
definia como “a revista preferida pelo público que
ao sport dedica um pouco da sua atenção”.57 Em 17
de setembro de 1924, de forma a colmatar o pouco
espaço dado ao texto noticioso, a direção da Sport
Ilustrado decidiu criar o Sport Ilustrado Jornal,
saindo quinzenalmente, nos sábados em que não se
publicava a revista. Assim, à Sport Ilustrado caberia
a publicação de boas fotografias e frases simbólicas
do desporto, ficando o Sport Ilustrado Jornal com
os “artigos técnicos, críticas conscienciosas, comentários e noticiário diverso”.58. Ambas publicações
terminaram em 15 de fevereiro de 1925.
Igualmente inovadora, porém mais consistente,
Escogitam nas profundezas da sua perversidade,
os pontos iniciais dum ataque a uma obra, a uma
vida, a uma criatura. Tentam depois manejá-la, darlhe vida, acalentá-la durante indeterminado tempo – o tempo suficiente para que haja alguém que,
cheio de receios, ofereça dinheiro capaz de, por um
54 A Redacção (1924, 17 de Junho). A imprensa desportiva e os desportistas. O Arauto Desportivo, p.1.
55 Idem, ibidem.
56 Idem, ibidem.
57 A Redacção (1924, 26 de Julho). Os melhoramentos do Sport Ilustrado. Sport Ilustrado, p.10.
58 A Redacção (1924, 17 de Setembro). Sport Ilustrado. Sport Ilustrado Jornal, p.1.
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PINHEIRO, Francisco. Portugal de calções – para uma génese do desporto enquanto fenómeno mediático
seria a revista quinzenal Foto-Sport, que apareceu
duas semanas antes da saída da Sport Ilustrado, em
15 de março de 1924. A Foto-Sport centrou-se na
publicação de fotografias desportivas, com realce
para o futebol, contando com dois fotógrafos: Francisco Santos e A. Salazar Dinis, cujos nomes apareciam no cabeçalho como “redactores fotográficos”.
A revista conciliava nas suas habituais 16 páginas
(três dedicadas a anúncios de publicidade) um vasto número de fotografias desportivas, acompanhadas de um breve comentário.
As suas excelentes capas fariam com que a Foto-Sport fosse bem acolhida no meio desportivo
lisboeta, apesar do preço elevado (3$00 escudos),
abrindo gradualmente as páginas a fotografias desportivas do Porto, Évora, Tomar e Coimbra, entre
outras regiões, surgindo em finais de 1924 uma
secção fotográfica dedicada ao desporto nas Províncias Ultramarinas, em África. Entre abril e maio de
1924, a revista aumentou o seu prestígio graças ao
lançamento de um popular “Concurso de Fotografias”59 (com um prémio aliciante de cem escudos,
que visava à eleição da melhor fotografia de futebol
que fosse enviada para a revista) e à publicação de
artigos de fundo sobre várias modalidades (atletismo, râguebi, boxe, natação, esgrima e ténis), assinados por alguns nomes sonantes do jornalismo
desportivo. E nos meses seguintes iria sobressair
na cobertura aos Jogos Olímpicos de Paris. Essa
consistência editorial e redatorial faria com que a
Foto-Sport aguentasse em atividade mais dois anos,
até 1º de julho de 1926, tendo-se revelado uma das
mais importantes publicações a conciliar a fotografia desportiva com brilhantes artigos de análise ao
desporto português.
fotografias na primeira página (destacou-se o fotógrafo José de Melo Araújo), uma alargada rede de
correspondentes nacionais (Ilha do Pico, Fayal,
Funchal, Lisboa, Porto, entre outros) e uma boa cobertura internacional, publicando regularmente traduções de artigos de jornais desportivos franceses.
Embora Ponta Delgada fosse um meio pequeno,
quer em termos desportivos e de leitores, O Sport
dos Açores conseguiria ultrapassar o “cabo tormentoso”60 dos três meses61 (era comum os jornais desportivos, sobretudo os regionais, não durarem mais
de um trimestre), embora tivesse sofrido logo uma
interrupção, devido às habituais faltas de pagamento das assinaturas, entre 24 de maio e 2 de agosto
de 1924. Retomada a publicação, teria como ponto alto a presença, em Ponta Delgada, do tenente e
professor de educação física, Henrique Galvão, que
em novembro de 1924 publicaria diversos artigos
no jornal, dando três conferências sobre desporto
no teatro local. Apesar das dificuldades, O Sport
dos Açores manteve-se em atividade até 6 de junho
de 1925, terminando após 52 edições, a última delas dedicada ao encontro internacional de futebol
entre Portugal e Espanha, disputado em 17 de maio
de 1925, em Lisboa.
Entre a imprensa desportiva regional lançada em
1924 iria realçar-se outro título: Figueira Desportiva. Com um corpo redatorial formado por jovens
jornalistas e colaboradores, o primeiro número deste semanário da Figueira da Foz (outra cidade com
forte índole desportiva) saiu em 25 de dezembro de
1924, publicando-se a partir daí, de forma regular,
todas as quintas-feiras, até setembro de 1927. Uma
façanha para qualquer jornal desportivo regional,
principalmente se tivermos em linha de conta que
a redação era totalmente amadora. Além de promover o desporto e a educação física, a Figueira Desportiva encetaria também, em fevereiro de 1926,
uma campanha a favor da criação de pequenas bibliotecas desportivas em todos os clubes, com o objetivo de melhorar os conhecimentos desportivos
As dificuldades dos primeiros
três meses
O uso regular de fotografias no jornalismo desportivo passaria a estar patente não só na imprensa
de referência, em Lisboa e no Porto, mas também
em nível regional. Em março de 1924, para além
das revistas lisboetas ilustradas (Sport Ilustrado e
Foto-Sport), apareceria no dia 18 outra publicação
desportiva que daria destaque à fotografia desportiva: O Sport dos Açores. Propriedade do Grupo de
Amadores do Sport, com sede em Ponta Delgada,
este periódico açoriano apresentava, além de boas
60Foi assim que o jornal Sol e Sombra (Porto, 1925)
classificou a passagem dos primeiros três meses de
edição (Cf. Cirne, R. (1925, 27 de Setembro). Bom
rumo. Sol e Sombra, p.1).
61Na edição de 21 de Março de 1925, em que comemorava o primeiro aniversário, no editorial “Há
um ano”, a Redacção de O Sport dos Açores afirmaria: “Jornal de pouco público e de terra pequena,
verifica-se por durar um ano, o interesse despertado”. E lembrava que «a existência de jornais pequenos é na generalidade de três meses”.
59A Redacção (1924, 15 de Abril). Concurso de Fotografias. Foto-Sport, p.3.
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PINHEIRO, Francisco. Portugal de calções – para uma génese do desporto enquanto fenómeno mediático
e culturais dos desportistas. Estaria ainda ligada à
organização de diversas provas de atletismo (Taça
Figueira Desportiva) e ciclismo (Circuito da Figueira em Bicicleta). E seria precisamente um problema
derivado de uma dessas provas que estaria na origem do seu fim: em finais de agosto de 1927, a Câmara Municipal da Figueira da Foz, incompatibilizada com o jornal, decidiu impor-lhe uma multa de
200 escudos (cada exemplar custava 50 centavos)
por causa de uma alegada estaca que a Figueira
Desportiva havia colocado erradamente durante a
organização de uma prova de ciclismo. A redação,
em peso, decidiu suspender o periódico, em 1º de
setembro de 1927, como forma de protesto contra
a edilidade, resultando na sua suspensão definitiva.
Ao contrário da Figueira Desportiva, que conseguiu publicar-se durante 141 semanas, a maioria
dos periódicos desportivos criados em 1924 teve
enormes dificuldades em aguentar muitos números
em atividade, sobretudo as publicações ligadas aos
clubes, sucumbindo durante os primeiros meses de
edição. Esse problema de sustentabilidade editorial, de que enfermaram os órgãos de clubes criados
em 1924, arrastou-se ao longo dos anos seguintes,
afetando a generalidade das publicações.
Além do futebol (com quatro publicações entre
1924 e 1926), mais três áreas do desporto contariam com periódicos especializados: o automobilismo, a tauromaquia e o campo das biografias
desportivas, em voga nesta época, o que se devia,
em grande medida, à necessidade de criar herois,
geradores de esperança no seio de uma sociedade
cada vez mais desiludida, como era a portuguesa.
Mas quer os periódicos tauromáquicos, quer os
biográfico-desportivos, teriam uma existência reduzida quando comparados às duas publicações
automobilísticas lançadas em 1926. O Auto (Jornal
Mensal de Automobilismo e Sport) seria apresentado em Lisboa, em janeiro de 1926, mantendo-se
em atividade durante um ano. A outra publicação
automobilística seria O Volante, que se converteria
num dos mais importantes títulos do jornalismo
automobilístico português no século XX, publicando-se regularmente (a primeira série) até meados
de 1971.
boletins de clubes e de instituições desportivas, a
área jornalística desportiva dominadora seria a generalista (jornais que abordavam todo o género de
desportos), com o aparecimento de 42 títulos. Após
os 16 novos periódicos, espalhados por 12 cidades, que surgiram em 1924, seguiram-se no ano
seguinte mais nove jornais, em cinco cidades, e em
1926 mais 17 novos periódicos desportivos generalistas, distribuídos por dez cidades. Nesse último
ano, além desses 17 jornais generalistas, apareceram dez outras publicações desportivas: seis órgãos
de clubes e de instituições desportivas, e quatro especializadas. Desse modo, em 1926 surgiram um
total de 27 novos jornais desportivos em Portugal
(continente e ilhas, nenhum nas províncias ultramarinas), número que superava o recorde de 1924,
com 25 periódicos.
Entre as 13 cidades que albergaram as 26 novas publicações desportivas generalistas criadas em
1925 e 1926, Lisboa seria a que contaria com mais
jornais (12), seguindo-se o Porto e a Póvoa do Varzim (dois títulos cada), restando dez cidades com
um periódico: Viana do Castelo, Tondela, Covilhã,
Coimbra, Tomar, Torres Vedras, Barreiro, Faro, Funchal (Madeira) e S. Miguel (Açores). O protagonismo de Lisboa torna-se mais claro quando se observa
o total de periódicos criados entre 1924 e 1926: das
69 publicações periódicas desportivas lançadas nesses três anos, 33 tiveram origem na capital.
Dessas publicações destacaram-se duas. A primeira foi Os Sportsinhos, publicação semanal lançada pela Empresa Desportiva Gráfica (detentora
de Os Sports), em 20 de agosto de 1925, tendo
como público-alvo as crianças. Apresentado como
o suplemento infantil de Os Sports, a nova publicação tinha o mesmo diretor (A. de Campos Júnior),
custando 50 centavos, contando as suas oito páginas com seções específicas: “Sport Infantil”, “Os
Contos de Acção”, “Adivinha, Adivinhão”, “Colaboração Infantil” e “Diga, que se responde…”. O seu
primeiro número, de oito mil exemplares, esgotou,
obtendo muito êxito entre os jovens. Para o sucesso
inicial foi decisiva a forma como os jovens ardinas
de Lisboa o promoveram, cativando a atenção do
público de todas as idades, curioso para folhear o
primeiro jornal desportivo infantil que se lançava
em Portugal. Com uma abordagem gráfica e linguagem dirigidas às crianças e jovens portugueses, Os
Sportsinhos faria 19 edições, cessando no dia de
Natal de 1925.
Igualmente inovadora, mas dirigida a um público adulto e apreciador de bom jornalismo despor-
O recorde de 1926
Embora tivessem surgido, entre 1924 e 1926,
dez novos periódicos desportivos especializados
(quatro de futebol, dois automobilísticos, dois
tauromáquicos e dois biográfico-desportivos) e 14
192
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PINHEIRO, Francisco. Portugal de calções – para uma génese do desporto enquanto fenómeno mediático
tivo ilustrado, seria a revista Eco dos Sports, cujo
primeiro número, de 20 páginas (três com publicidade), saiu no domingo, 7 de março de 1926, ao
preço de 1$50 escudos, com o subtítulo de “Grande Revista Sportiva Semanal”. Na capa do número
inaugural aparecia a fotografia, retocada a cor, de
um sorridente Ribeiro dos Reis, uma das principais
figuras do futebol português dos anos 1920. E a
capa interior era dedicada ao jogo de futebol entre
o Sporting CP e os húngaros do Szombathley, que
tinham estado em Lisboa numa digressão. Ambas
as imagens eram da autoria de F. Santos, que trabalhava para a Foto-Press, empresa fotográfica que
contava com outros fotógrafos de prestígio, como S.
Dinis, R. Reis e Ferreira da Cunha, todos eles com
fotografias no número inaugural da Eco dos Sports. No editorial “À maneira de introito”, publicado
na página dois, a direção esclarecia os leitores que
não se tratava de uma revista de Lisboa, mas sim
“uma revista de Portugal”. E não era “uma revista
de foot-ball, simplesmente”, mas sim “de todos os
sports, porque todos necessitam de propaganda e
dum órgão gráfico que incite os novos e encoraje os
atletas feitos”. No plano editorial, definia-se como
“um órgão de crítica serena e desapaixonada” e “um
repositório gráfico dos grandes acontecimentos
sportivos, para criar estímulo, para criar energias,
para numa palavra secundar a propaganda já iniciada, que tem como objetivo sublime, a criação de
homens fortes, sadios, vigorosos, de homens que
honrem uma raça que já deu mundos novos ao mundo!” A sua aparição no meio jornalístico desportivo
representava “também uma bela afirmação do progresso das artes gráficas em Portugal”, ficando-se a
dever a qualidade desse trabalho gráfico às Oficinas
da Litografia Mata. Este número inaugural de 7 de
março de 1926, além de publicar excelentes fotografias sobre futebol, ténis, vela, atletismo, remo
e boxe, trazia na página três uma homenagem aos
principais jornalistas desportivos da época.
A Eco dos Sports rapidamente conquistou os leitores, devendo-o principalmente às magníficas capas e fotografias desportivas que passou a publicar,
principalmente nas páginas centrais. Em junho de
1926 já ostentava o cabeçalho “A primeira revista
sportiva e a de maior tiragem em Portugal”, revelador da célere popularização e crescimento nas vendas. No entanto, apesar da inegável qualidade redatorial e gráfica, a Eco dos Sports iria sofrer, em finais
de 1927, uma forte instabilidade editorial. Porém,
em janeiro de 1928, a revista faria uma das melhores coberturas fotográficas de sempre a um evento
desportivo: para o sexto encontro de futebol entre
Portugal e Espanha, disputado em Lisboa, em 8 de
janeiro de 1928, o chefe dos serviços fotográficos
da Eco dos Sports, Ferreira da Cunha, decidiu pedir
a colaboração de mais três fotógrafos e realizar uma
exaustiva cobertura fotográfica do jogo. A reportagem do VI Portugal-Espanha, repartida por duas
edições da revista, totalizaria 44 fotografias (quatro
feitas no Estoril na antevéspera, uma na bilheteira
dos Restauradores na véspera e 39 no dia do encontro), repartidas pelos fotógrafos Arnaldo Silva (7),
Cezar Antello (2), João dos Santos (5) e Ferreira
da Cunha (30). Mas este episódico sucesso não lhe
garantiu estabilidade, já que na edição 85, de 12 de
fevereiro de 1928, anunciava uma interrupção, que
viria a ser definitiva.
Os efeitos imediatos da
mudança política de 1926
O ano de 1926 seria de mudança política em
Portugal, com implicações diretas no jornalismo
desportivo. Chegou ao fim, de forma inglória, a I
República (chamada de “Nova República Velha”),
substituída por um golpe militar em 28 de maio de
1926 que impôs uma indefinida ditadura militar,
a qual se transformaria numa ditadura civil (batizada de Estado Novo) com a chegada ao poder de
Oliveira Salazar, em 1932. Assim, 1926 e os anos
seguintes seriam tempos de instabilidade e indefinição política, em que primou a ausência de uma
perspetiva estratégica, com a sociedade portuguesa
a afundar-se, uma vez mais, num pântano de incertezas e incógnitas, levando a novas e profundas introspeções, quase sempre negativas, sobre a identidade nacional. Os editoriais dos jornais desportivos
passaram a refletir essa mesma indefinição política.
Na semana seguinte ao golpe militar, na edição de
4 de junho, um dos principais jornais desportivos
portugueses, o Sporting, publicava o artigo “O momento político e o sport”, em que deixava claro essa
mesma preocupação: “Mais uma revolução acaba
de modificar por completo a direcção política da
nossa terra, não se sabendo ainda, o que seguirá”.
O que se seguiu, pouco tempo depois, foi a imposição da censura prévia à Imprensa, “assumida
directamente pelos militares que chamaram a si,
desde a primeira hora, a responsabilidade da organização e direcção dos Serviços e execução das respectivas tarefas censórias” (Azevedo, 1999, p.375),
as quais executavam através das comissões instaladas nos Comandos da Guarda Nacional Republica193
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PINHEIRO, Francisco. Portugal de calções – para uma génese do desporto enquanto fenómeno mediático
na e nos Governos Civis. Mas o seu funcionamento
inicial começou por ser muito deficiente e “os critérios de aplicação da lei sobre o exercício do direito
de liberdade de imprensa, entretanto promulgada
(Decreto n.º 12.008 de 2 de Agosto de 1926), careciam de uniformidade” (Azevedo, 1999, p.375),
gerando muita contestação entre a classe jornalística, situação que só começaria a ser resolvida em
setembro de 1926, com uma série de medidas para
uniformizar os serviços de Censura em todo o país.
A totalidade dos jornais desportivos passou a
apresentar, frequentemente na capa, outras vezes
em páginas interiores, a nota: “Visado pela Comissão de Censura”. Mas era consensual entre os
jornalistas desportivos que o dia-a-dia da imprensa
desportiva não iria ser muito afetado pela censura,
já que o jornalismo desportivo não era considerado
prioritário, nem ideologicamente perigoso para o
censor. Em 2 de julho de 1926, o editorial “Duas
figuras”, publicado na primeira página do principal jornal desportivo português, Os Sports, dirigido por Cândido de Oliveira (que viria a ser preso
nos anos 1940, acusado de espionagem), afirmava
que as resoluções políticas do novo governo nada
interessavam ao jornal, sabido como era que “todos os jornais de desporto são neutros em matéria
política”. E reforçava a ideia, lembrando que “em
desporto não há política” e por isso mesmo “as
convulsões políticas da nossa terra não prendem
grandemente a atenção da massa desportista. Somos assim, os desportistas, uma força organizada e
orientada noutro sentido… E felizmente que assim
é. No dia em que os desportistas se agruparem ou
se distinguirem uns dos outros pelo credo político
que professam, ter-se-á perdido o desporto”.
Referências
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Francisco Pinheiro é investigador integrado do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS20)
da Universidade de Coimbra, bolsista de pós-doutoramento da FCT e do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, além de coordenador do Grupo História e Desporto, em Portugal.
E-mail: <[email protected]>.
Recebido para avaliação em março de 2013. Aprovado para publicação em abril de 2013.
194
Psicanálise, gênero e singularidade
PORCHAT, Patrícia
Resumo
A Psicologia e, mais especificamente, a Psicanálise vêm sendo chamadas a se manifestar acerca de fenômenos atuais
sobre as questões de gênero e sexualidade. A demanda pela atuação diante dessas questões cresceu, em parte, por
influência da mídia. É possível apontar limites na atuação desses profissionais por carecerem de uma reflexão sobre
a concepção de sujeito que utilizam, dos efeitos de uma patologização de gênero e da utilização de uma concepção
binária de gênero.
Palavras-chave: Psicanálise – Gênero – Sexualidade – Transexualidade.
Abstract
Psychology, and more specifically Psychoanalysis have been called to manifest themselves about current phenomena
regarding gender and sexuality issues. The demand for acting on these matters has grown, partly due to the influence
of media. It is possible to point out limits on the performance of these professionals for lacking a reflection on the
concept of subject, the effects of a pathologization of gender and the use of a binary conception of gender.
Keywords: Psychoanalysis – Gender – Sexuality – Transexuality.
Ultimamente, a Psicanálise tem sido chamada a
se manifestar sobre fenômenos relativos às diversidades de gênero e de sexo, tais como o casamento
entre pessoas do mesmo sexo, a adoção de crianças
por casais homoparentais e, mais recentemente, sobre o processo transexualizador que engloba a terapia hormonal, o conjunto de cirurgias necessárias à
redesignação sexual e à obtenção de documentação
constando novo nome e novo sexo. Para além de
uma intervenção técnica, sob a forma de laudos,
pareceres, avaliações psicodiagnósticas e psicote-
rapias (de caráter obrigatório para os transexuais),
praticamente não há mais como se furtar a emitir
uma opinião sobre o que acontece na nossa sociedade. O “fenômeno transexual”, como pode ser
chamado, já está aí.
Entendemos por “fenômeno transexual” o fato
de, a cada dia, um número maior de pessoas autodiagnosticadas como transexuais se dirigirem
a serviços públicos de saúde em busca de terapia
hormonal ou cirurgia para adequar seu corpo ao
gênero com o qual se identificam. Em 2010 foi cria195
revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 195-202, out. 2012/mar. 2013.
PORCHAT, Patrícia. Psicanálise, gênero e singularidade
do o Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e
Transexuais do Centro de Referência e Treinamento
DST/Aids-SP, na cidade de São Paulo, que atualmente tem uma fila de espera de dois anos para
atendimento de pessoas vindas de todo o país. Nesse espaço, os interessados são acolhidos, recebem,
avaliação médica, endocrinológica, proctológica,
fonoaudiológica e atenção à saúde mental.
A mídia tem sido uma das grandes colaboradoras para o aumento desse fenômeno. Se o silenciamento nos meios de comunicação acompanhou
durante anos o tabu relativo às questões de gênero e diversidade sexual, os debates, em 2010, que
precederam a revogação da lei Don’t ask, don’t tell,
assinada pelo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, podem ser considerados um marco no
desencadeamento da visibilidade dessas mesmas
questões. A controversa lei – que em português
foi traduzida por Não pergunte, não conte – existia há 20 anos e dizia respeito à política de restrição do Exército norte-americano para tentativas de
descobrir ou revelar membros ou candidatos homossexuais e bissexuais. Num primeiro momento,
pareceu interessante haver uma lei que protegesse
aqueles que não queriam contar sobre suas vidas
particulares e os que nada queriam saber da vida
particular dos outros. Aos poucos se percebeu que
essa política favorecia situações de discriminação e
preconceito. Algumas sexualidades e identidades
eram restritas ao espaço privado, sem direito à expressão pública de sua existência.
Foi igualmente em 2010 que Léa T, estilista e
modelo transexual, filha do ex-jogador de futebol
brasileiro Toninho Cerezzo, ganhou fama como estrela de campanha da grife francesa Givenchy. Alguns jornais europeus deram destaque ao seu sucesso como modelo, bem como à sua transexualidade.
Graças a Léa T, as discussões sobre a transexualidade conquistam espaço associadas à ideia de sucesso
profissional. Em 2011, o escritor João W. Nery publicou Viagem Solitária, uma autobiografia sobre
seus percursos e percalços antes e depois da transformação de mulher em homem. O aparecimento
de seu livro produziu uma avalanche de convites
para variados programas de entrevistas (Jô Soares,
Marília Gabriela, Pedro Bial, Luciana Gimenez). No
caso mais específico da homossexualidade, a declaração pública da cantora Daniela Mercury sobre seu
amor por uma mulher, no início de 2013, também
interferiu no aumento das discussões sobre sexualidade e gênero. É notório o aumento da procura nos
serviços públicos de saúde e nas clínicas particula-
res a partir dessas aparições públicas.
Nos últimos cinco anos, a autora deste artigo participou de discussões junto a membros do
Conselho Regional de Psicologia de São Paulo e a
grupos de psicanalistas acerca da especificidade de
atender indivíduos que manifestam diferentes formas de sofrimento relativas à questão da identidade
trans.1 Dois pontos aí se destacam: primeiramente, a necessidade de orientar ética e tecnicamente
a categoria dos psicólogos para atuar junto a essa
população. Em segundo lugar, a necessidade de colocar a Psicanálise e a Psicologia em contato com a
realidade trans e questionar a teoria psicanalítica
quanto à sua concepção de gênero.
A noção de sujeito
No encontro com alguns praticantes da psicanálise, e também com psicólogos de outras abordagens teóricas, é possível identificar limites de sua
atuação diante das questões mencionadas anteriormente. O primeiro diz respeito à concepção de sujeito que os profissionais têm. O que é um sujeito?
É a pessoa, é o Eu, é o indivíduo, é o sujeito do inconsciente, é o self? Abordagens humanistas, existenciais, comportamentais ou psicanalíticas criam
seus diferentes sujeitos. A teoria, aqui, é necessária
para deslocar o psicólogo ou psicanalista de sua visão comum do mundo, atravessada por sua religião
e seus preceitos morais.
Nesse sentido, a teoria utilizada para fundamentar a prática clínica precisa necessariamente
fornecer uma resposta acerca de quem se está falando. Trata-se da mulher histérica do século 19,
descrita inicialmente por Freud, que manifesta no
corpo aquilo que não resolve psiquicamente? Trata-se de um sujeito livre e consciente das escolhas
que faz, como aparece nas psicologias influenciadas
pelo pensamento existencialista? Trata-se de um ser
determinado pelas contingências ambientais, como
mostra a Psicologia, que toma o comportamento
por objeto de estudo? Pode ser um sujeito determinado pelo inconsciente, como pensava Freud ao
dizer a célebre frase: “O homem não é senhor de
sua própria casa”? Ou, ainda, trata-se de alguém
cuja fala desperta pontos de identificação e a quem
1 O termo “identidade trans” refere-se a pessoas que
não necessariamente se dizem transexuais, já que
discordam do uso feito pela medicina e pelo direito
dessa categoria, que listam itens necessários para
identificar alguém como transexual.
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se começa a julgar como se fosse semelhante? Ora,
se por um lado, por meio de sua visão comum de
mundo, o profissional apaga a neutralidade que
a visão teórica e científica poderia lhe dar (e, por
isso, é preciso se livrar da visão comum), por outro lado, muitas vezes, esse profissional se esconde
justamente atrás de sua visão teórica (que pode, por
exemplo, ser conservadora e patologizante), para
não querer ver as mudanças sociais e não querer
pensar sobre sua concepção de ser humano.
A pergunta aqui seria então: minha noção de
sujeito é compatível com a noção de ser humano
que tem direitos e necessidades? Utiliza-se aqui um
determinado viés, o de determinados direitos humanos – direito a respirar, amar, sonhar e viver, tais
como concebidos pela filósofa feminista americana Judith Butler (2004). Trata-se de um sujeito em
busca de reconhecimento, em busca da possibilidade de existir.
Pode-se encontrar em Butler (2004) uma maneira de se entender o que é um sujeito, a qual permite uma aproximação ao fenômeno transexual, assim como às diversidades sexuais e de gênero. Em
sua teoria do gênero como ato performativo (Butler,
2003; Porchat, 2007), performatividade é definida
como o veículo pelo qual efeitos ontológicos são estabelecidos. Não há uma essência ou substância por
trás do gênero. Não há “ser”, não há um “fazedor”,
não há unidade. As categorias de “ego”, “indivíduo”
e “pessoa” – às quais se poderia acrescentar a de
“gênero” – como forma de descrever os seres humanos, derivam de uma ilusão de substância. Não há
necessidade de existir um “agente” por trás do ato.
Trata-se da ideia de que existe uma produção do
“ser” como substância, ou, melhor dizendo, “performatividade” é o modo de produção de uma aparência de substância, de uma ilusão de substância,
um efeito de substância.
O conceito de performatividade utilizado por
Butler (2003) deriva de uma leitura que Derrida fez
da teoria dos atos de fala de Austin (Derrida apud
Butler, 2003). Considera-se performativa a prática
discursiva que torna realidade ou produz aquilo que
nomeia. A partir daí, Butler tomará a ideia de performatividade e de repetição como referências para
o conceito de gênero. Usa “performatividade” para
dizer que o ato performativo torna real e produz
aquilo que nomeia ou atua (enquanto gesto e comportamento) e “repetição”, porque este ato é sempre
uma citação de algo, é referido a um código e, por
isso mesmo, é efetivo. São citações e repetições, entretanto, baseadas em convenções (Butler, 2003).
A partir dessa hipótese de base, de que o ser é
uma substância ilusória, imediatamente se coloca a
questão quanto à materialidade do corpo. Trata-se,
então, de uma noção de gênero que coloca de início
uma pergunta sobre o sujeito e o corpo. Essas questões da obra de Butler – anteriores a Problemas de
gênero, livro em que esta autora apresenta pela primeira vez sua teoria de gênero (Butler 1990/2003)
– tangenciam as discussões sobre essencialismo
versus construtivismo e entram no debate sobre a
relação entre sexo e gênero. Butler (2003) se aproximaria de uma noção de corpo de Merleau-Ponty,
superando o dualismo consciência/corpo (Femenías, 2003).
De acordo com Femenías (2003), encontra-se
em Butler uma negação da concepção de sujeito
como “agente”, “fazedor”, unidade metafísica. Contrariamente a uma posição construtivista, o corpo
seria o sujeito das ações. Não se poderia pensar
num “gênero” que se constrói porque não se poderia conceber um agente que se apropriaria de um
gênero desde um lugar sem gênero ou pré-gênero.
Já estaríamos desde sempre “generizados”. As normas de gênero recebidas seriam atuadas através do
corpo. Corpo e sexualidade seriam expressões concretas da existência.
Se, de fato, Butler se aproxima de Merleau-Ponty e, de acordo com Femenías, mais especificamente de sua posição em Fenomenologia da Percepção, pode-se entender aí uma concepção de corpo
que lhe permite dispensar as ideias de intenção,
interpretação e escolha em relação a gênero, porque dispensa um sujeito que escolhe algo para seu
corpo e sua sexualidade e, em seu lugar, concebe
um conjunto que experiências e vivencia os fatos.
Merleau-Ponty propõe que a existência biológica
está engrenada na existência humana. A existência
se realiza no corpo: “nem o corpo nem a existência podem passar pelo original do ser humano, já
que cada um pressupõe o outro e já que o corpo é
a existência imobilizada ou generalizada, e a existência uma encarnação perpétua” (Merleau-Ponty,
1994, p.230). No entanto, o modo de existência
é adquirido. Tudo é contingência no homem, no
sentido de que a maneira humana de existir não
está garantida a quem quer que seja, nem mesmo a
qualquer criança por alguma essência que ela teria
recebido em seu nascimento. Além disso, o modo
de existir realizado no corpo inclui também a sexualidade. Um estilo de vida é, talvez, uma expressão generalizada de determinado estado da sexualidade, dirá Merleau-Ponty (1994). Mas este autor
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adverte: não se pode reduzir a existência ao corpo
ou à sexualidade e também não se pode reduzir a
sexualidade à existência (Idem, p. 230).
Esse curto parágrafo expressa algumas ideias
que se encontram em Butler (2003; 2004). Primeiramente, a concepção de que o “ser” é concebido sempre em conjunto, não se separa mente e
corpo. E, quando se fala em sexualidade, o corpo
que a vive está sempre pressuposto. Não há uma
preocupação em se referir a cada momento ao que
acontece com o corpo no processo de assunção das
normas de gênero, pois há uma vivência dos fatos
que é realizada pelo conjunto corpo-existência.
Ao final de Problemas de gênero, Butler (2003)
parece retomar essa ideia ao dizer que o corpo não
é um “ser”, no sentido de ter algo a expressar. Na
verdade, é “uma fronteira variável, uma superfície
cuja permeabilidade é politicamente regulada, uma
prática significante dentro de um campo cultural
de hierarquia do gênero e heterossexualidade compulsória” (Butler, 2003, p.198). O gênero está na
superfície, pode-se dizer que se trata de um “corpogênero”. Buscando uma herança filosófica, ela faz
um paralelo com o que Sartre chamaria de “estilo
de ser”, Foucault de “estilística da existência”. Já
Butler fala de “estilos da carne” referindo-se à sua
leitura de Beauvoir. É impossível não lembrar aqui
da brincadeira que um grupo brasileiro de teatro e
dança fez na década de 1970, intitulando-se “Dzi
Croquettes”, em referência aos croquetes de carne –
gente é feita de carne, dizem eles, em entrevista no
documentário realizado pela diretora Tatiana Issa
(Issa; Alvarez, 2010).
Voltando ao ponto de partida deste artigo, podese dizer que, sem colocar em xeque concepções por
demais simplificadas de sujeito e da própria existência humana, dificilmente se poderá compreender
fenômenos contemporâneos de sexo e de gênero.
O paradigma da patologia
O segundo limite detectado para a atuação do
psicólogo foi o de como tratar sem patologizar. Não
se refere aqui apenas às patologias do tipo Transtorno de Identidade de Gênero ou Distúrbio de Identidade de Gênero, encontradas no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), da
Associação Americana de Psiquiatria, ainda necessárias junto aos órgãos públicos para enquadramento dos indivíduos numa categoria que lhes permita
acessar os serviços de saúde (tratamento hormonal,
cirurgias de redesignação sexual). Refere-se tam-
bém à possibilidade de escutar o sujeito em sua
singularidade, sem os efeitos advindos de diagnósticos com psicóticos, perversos ou neuróticos, tal
qual propõe uma determinada perspectiva da obra
do psicanalista francês Jacques Lacan, que marcou
fortemente a Psicanálise no Brasil.
Em relação ao primeiro grupo de patologias,
cabe aqui um comentário referente a alguns pacientes que procuraram suporte psicanalítico por terem
se autodiagnosticado possuidores de Transtorno
de Identidade de Gênero. Depois de lerem textos
específicos na internet, “descobriam” a patologia
que possuíam e tinham dificuldade de ver qualquer
singularidade neles e na sua própria história. Encaixavam-se com exagerada facilidade no perfil da
doença traçado pelos manuais diagnósticos, artigos
científicos e divulgados por profissionais em programas de televisão. É curioso ver que aqui não se
trata de um profissional da psicologia com limitação
em sua capacidade de avaliar e refletir sobre o que
se apresenta, mas do próprio indivíduo, que não
se vê ou não quer se ver como um sujeito único.
A própria “patologia” se torna uma espécie de cartão de visitas, pelo qual eles passam a se apresentar
para o serviço médico, psicológico e para o mundo.
Destaca-se igualmente uma grande “produção” de doentes verdadeiros que possam melhor
se enquadrar nas expectativas médicas e jurídicas.
Sabendo dos testes psicológicos a que serão submetidos, alguns pacientes aprendem quais serão as
respostas corretas para que não haja dúvidas acerca
de sua doença. Muitos já sabem que serão perguntados sobre sua infância, a relação com seus pais, a
relação com seu próprio corpo, com o sexo oposto,
etc. Criam um personagem de si mesmos. O “transexual verdadeiro”, ao qual devem corresponder,
tem ojeriza a seus genitais, não aceita seu corpo,
não se masturba, é assexuado e espera a cirurgia
de transgenitalização para enfim poder se relacionar
sexualmente. Ser doente e obter um número que
corresponda a determinada classificação no manual
de doenças é o próprio passaporte para realizar uma
transição de um corpo-gênero a outro. Mas o que
está em jogo é a ideia de que o transexual oficial ou
verdadeiro é uma ilusão criada pelo próprio aparato
médico-jurídico.
Por último, pode-se dizer que a Psicanálise também contribui para tomar a patologia como paradigma para as questões de gênero e de sexualidade, ainda
que tenha avançado no sentido de não diagnosticar
alguém pelos sintomas, diferindo assim de boa parte
da Psiquiatria contemporânea. A Psicanálise avançou
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no sentido de fazer um diagnóstico por meio daquilo
que se apresenta como estrutura do sujeito manifesta
em seu discurso. Nesses termos, todos nós seríamos
neuróticos, psicóticos ou perversos.
Para além da querela dos diagnósticos entre as
diversas correntes psicanalíticas em relação aos indivíduos em geral, quando se trata das identidades
trans, esse problema atinge um grau muito complexo e delicado. Houve um tempo em que não haveria dúvida em diagnosticar as identidades trans
como psicóticas, mais especificamente os e as transexuais (existem outras identidades trans, como
travestis, transgêneros, crossdressers, como o cartunista Laerte, por exemplo). Considerou-se também
a necessidade de um diagnóstico preciso relativo à
posição do sujeito em relação à castração simbólica.
Essa avaliação permitiria vislumbrar as condições
psíquicas de enfrentamento de uma cirurgia de mudança de sexo sem correr o risco de um surto psicótico (Millot, 1992; Shepherdson, 2000). A crise, ou
seja, o desencadeamento de um surto, entretanto,
em nada mudaria o diagnóstico de psicose para os
transexuais. A melhor tradução para eles, na visão
de Millot (1992), diz respeito ao fato de pensarem
que pertencem ao “sexo dos anjos”. Simplesmente
estão fora do sexo porque não existiria essa denominação. Há homens e há mulheres, não haveria
terceiro sexo. O que não se situa como homem e
nem mulher está destinado à patologia, no caso, à
psicose (Millot, 1992).
Bento (2006) e Butler (2004) acreditam que
muitos indivíduos que buscam a cirurgia o fazem
pela necessidade de conformação ao discurso predominante: ter de pertencer necessariamente a um
sexo ou outro, isto é, como se tivessem que se submeter à ideia de que a cirurgia garantiria ou seria
uma espécie de última palavra sobre o gênero – um
homem ou uma mulher de verdade. Para isso, precisam se acreditar ou se fazer de doentes.
Hoje as dúvidas existem na Psicanálise e é possível encontrar posições que admitem transexuais
neuróticos, psicóticos ou perversos. Contudo, entre
pares, essa conversa poderia ser considerada legítima, afinal, como já se disse, todos seríamos ou neuróticos ou psicóticos ou perversos. Mas cabe perguntar: qual a consequência do uso desse tipo de
terminologia quando se dialoga com a sociedade?
As palavras, os termos usados e os conceitos têm
um peso, produzem efeitos. O uso da linguagem
não é sem ideologia. Para uma sociedade que tende
ao preconceito em relação às diferenças, sejam elas
quais forem – sabe-se que toda e qualquer socieda-
de tende a excluir o diferente (Lévi-Strauss, 1950)
– usar termos como psicose e perversão (pois neurose já se aceita bem melhor), no caso específico de
pessoas trans, é dar munição para o inimigo e também para si próprio. É difícil se livrar de preconceitos tão bem construídos dentro de nós mesmos.
Uma grande referência para a análise da construção de preconceitos na psicologia é a obra Estigma, de Goffman (1978). O autor afirma que a
sociedade estabelece categorias para as pessoas e
atributos considerados comuns e naturais para os
membros de cada uma dessas categorias, ou seja,
“as rotinas de relação social em ambientes estabelecidos nos permitem um relacionamento com
‘outras pessoas’ previstas sem atenção ou reflexão
particular” (Goffman, 1978, p.11). Nesse sentido,
pode-se dizer que os indivíduos trans, com seus
atributos particulares, provocam sempre a atenção
e a reflexão e, por isso mesmo, incomodam. Quando um estranho nos é apresentado, diz Goffman,
os primeiros aspectos nos permitem prever sua
categoria e seus atributos, sua “identidade social”,
ou seja, “transformamos essas pré-concepções em
expectativas normativas, exigências apresentadas
de modo rigoroso. Fixamos afirmativas em relação
ao que o indivíduo deveria ser e nem nos damos
conta”. (Idem, p.13). Goffman explica o que Butler
chama de exigência de “coerência do gênero”. Segundo ele, a sociedade tenderia a se organizar de
modo a evitar a formação de incoerências e até mesmo de percebê-las.
Cabe a pergunta: por que as categorias construídas para a compreensão ou talvez a incompreensão
dos indivíduos trans seriam categorias patológicas?
Pode-se arriscar uma resposta a partir de Butler
(2003): o imperativo heterossexual cria uma esfera
de identificações permitidas e, simultaneamente,
uma esfera do abjeto. O abjeto se traduz por aquilo
que é jogado fora, excluído, produzindo um campo
de ação a partir do qual se estabelece a diferença.
Essa zona de exclusão delimita o campo do sujeito
e o campo das identificações temidas. Esse exterior
que constitui o sujeito é também seu “interior”, enquanto uma exclusão de si próprio que o funda.
Sem esse repúdio o sujeito não poderia emergir
(Butler, 2003). Se o abjeto funda o sujeito, os indivíduos trans poderiam ser apenas os excluídos,
os marginais. Por que seriam então doentes? Que
poder opera na definição de doença como trânsito
entre gêneros?
Essa pergunta pode ser traduzida da seguinte forma: se identidades trans são diagnosticadas
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tidade (no sentido social ou psíquico). Supunhase, naquela época, a expectativa de uma coerência
entre o sexo anatômico e o gênero. A não coerência
era atribuída à patologia. Ao longo dos anos, Stoller
continuou buscando compreender as origens, o desenvolvimento, a dinâmica e a patologia da identidade de gênero – masculinidade e feminilidade – e
investiu no estudo das perversões. Após 25 anos,
seu pensamento a respeito da identidade de gênero
permaneceu vinculado à preocupação com a patologia (Stoller, 1985).
A partir de Stoller e das psicanalistas feministas,
que igualmente se debruçaram sobre as questões
da masculinidade e da feminilidade, os estudos de
gênero no interior da psicanálise percorreram caminhos que levaram sempre às mesmas questões:
o que é ser homem? O que é ser mulher? O que é a
feminilidade? Como se tornar uma mulher? O que
quer uma mulher? (Porchat, 2007). Curiosamente,
as inquietações giravam mais em torno da mulher,
como se houvesse certa obviedade em relação ao
corpo, à subjetividade e ao mundo masculino. O
resultado dessas investigações e especulações serviu pouquíssimo para a compreensão da transexualidade e da travestilidade. Nesses termos, os estudos sobre as pessoas transexuais e sobre qualquer
outro grupo que não se encaixa nos tradicionais
gêneros masculino e feminino (em acordo com seu
sexo anatômico) somente ganharam profundidade
com a entrada em cena da filósofa americana Judith
Butler, que passa a ser uma das principais interlocutoras da psicanálise para as questões de gênero.
Passa-se, então, agora ao terceiro limite da Psicanálise, que, aliás, Butler (2003) critica, e que
consiste em trabalhar exclusivamente com uma
concepção binária de gênero. Encontram-se nas
correntes psicanalíticas e psicológicas noções mais
ou menos essencialistas e universalistas e noções
mais ou menos construtivistas. Ainda assim, gênero é sempre pensado em sendo dois, pois, afinal, a
maioria considera o sexo anatômico como referência para gênero. Pode-se admitir uma discordância
entre o sexo anatômico e o gênero, mas, sendo dois
sexos anatômicos, acredita-se que serão dois os gêneros (masculino e feminino). Judith Butler alarga
a noção de gênero, num primeiro momento, pois
dirá que, além de anatomia e identidade de gênero,
existem o desejo e a prática sexual e esses dois elementos também deveriam compor o que se chama
gênero – ficaríamos então com quatro elementos
(Butler, 2003). Mas Butler também questiona a anatomia, pois temos órgãos externos, órgãos internos,
como doentes e, nesse sentido, fundam o campo da
saúde, esse campo da saúde é habitado por indivíduos extremamente bem adaptados ao seu gênero,
de acordo com os cânones da masculinidade, no
caso de seres machos e com os cânones da feminilidade, no caso dos seres fêmeas. Qualquer tipo
de ambiguidade ou dúvida no sentido do gênero
já seria alguma forma de desvio. A patologização
do gênero cria um perigoso campo ideal de sexo
e de gênero. Nem mesmo a homossexualidade aí
caberia, pois já seria uma inadequação do desejo
ao campo ideal, ao campo da saúde. Mas esse campo necessariamente fracassará em sua tentativa de
manter um ideal. Seguindo o raciocínio de Butler
(2003), aquilo que foi excluído como abjeto e funda o campo do sujeito é também seu “interior”. Em
resumo, a ambiguidade de gênero, o trânsito entre
os gêneros, é o nosso próprio interior, excluído, jogado fora. Repudiamos aquilo que nos funda enquanto seres supostamente ideais.
Como e em nome do que esse poder de definir doenças é exercido? Ele é exercido em nome
da saúde: em nome da medicina, da psicologia e
da própria psicanálise. Outrora foi exercido em
nome da religião católica (e, de certa forma, ainda
é). A Psicanálise, por exemplo, é criticada quando
considera exclusivamente o Complexo de Édipo
para compreender a construção de gênero. Poucos
destinos identificatórios são possíveis se seguimos
por esse caminho. É inevitável chegar à ideia de padrões e desvios. Já a Psicologia segue um viés mais
desenvolvimentista, alcança a medicina em termos
de rigidez de possibilidades de gênero.
Em resumo, o segundo limite seria a difícil e
complexa utilização dos diagnósticos na Psicologia e na Psicanálise, especificamente no caso das
pessoas trans. O mau uso de termos presentes no
diagnóstico estrutural da psicanálise, por exemplo,
induz a um grande sofrimento. O risco é o apagamento da singularidade, na medida em que se
deixa de escutar o específico de cada pessoa trans.
Para além do binarismo ou o
limite do dois
Quando a Psicanálise começou a se interessar
pela questão transexual, ela o fez sob a perspectiva
da doença, ou seja, do transexualismo, associada
ao conceito de identidade de gênero, na década de
1960 (Stoller, 1993). O objetivo principal do psiquiatra e psicanalista americano Robert Stoller era
distinguir o sexo (no sentido anatômico) da iden200
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PORCHAT, Patrícia. Psicanálise, gênero e singularidade
cromossomos, hormônios, enfim, a cada vez aumentam o número de elementos que fazem tender
nossa percepção de um ser como mais ou menos
masculino ou feminino. Entre a concordância e a
discordância desses elementos, acrescentando-se aí
os aspectos de criação e circunstanciais que interferem na vida de uma pessoa, como avaliar o quantum
de masculinidade ou de feminilidade presentes num
indivíduo?
Um caso frequentemente usado para se refletir sobre as questões de gênero e de sexo é o de
Herculine Babin. O historiador e filósofo francês
Michel Foucault, assim como Butler, comentam o
caso. Herculine é um hermafrodita do século 19,
vive como menina num convento até que um dia,
aos 20 anos, confessa a padres e, posteriormente, a médicos, que seus desejos e práticas eróticas
se dirigem às meninas. A partir desse momento é
obrigado a assumir legalmente um sexo masculino,
vestir-se como homem e a se afastar das meninas
com quem vivia, inclusive sua amante. Na sequência desses acontecimentos, ele se suicida. Foucault
escreve uma introdução aos diários de Herculine
em que aponta para o fato de que um corpo hermafrodito ou intersexuado denuncia e rejeita implicitamente as estratégias que regulam as categorias
sexuais (Foucault apud Butler, 2003). Não há sexo
inteligível. Os prazeres sentidos e experimentados
por Herculine escapam à inteligibilidade imposta
pelos sexos unívocos na relação binária. Para Foucault, Herculine viveria num mundo feliz de uma
não identidade. Ainda segundo Foucault, essa felicidade teria sido possível graças à sua história específica, ou seja, à sua convivência quase exclusiva
com meninas e mulheres numa situação em que havia a sugestão de um amor homossexual ao mesmo
tempo estimulado e proibido. Foucault considera
a sexualidade de Herculine uma expressão fora de
qualquer convenção e, portanto, livre das identidades. Uma sexualidade múltipla, “antes” da lei ou,
mesmo, “fora” da lei.
Butler (2003) se opõe a essa ideia de felicidade,
quando afirma que Herculine sofre com a injunção de ter que pertencer a um dos dois sexos. Herculine, em seus escritos, deposita em seu corpo a
causa do sofrimento. Um corpo anômalo, causa de
seus desejos e aflições, fomentando confusões de
gênero e estimulando prazeres transgressivos. Mas
a causa do sofrimento de Herculine não estaria no
corpo, afinal Herculine é “signo de uma ambivalência insolúvel, produzida pelo discurso jurídico
sobre o sexo unívoco” (Butler, 2003, p.147). Em
seu caso, a ambivalência é fatal. A ênfase de Butler
é na cobrança médica, religiosa, jurídica e social de
um gênero inteligível, enquanto Foucault enalteceria as possibilidades de prazer por se estar fora das
convenções. Herculine não poderia ser mulher ou
homem “por inteiro”, como idealizavam seus interlocutores da época. Então, não lhe restava o que
ser. Não havia uma opção, intermediária, que se
poderia chamar de terceiro sexo, ou a possibilidade
de ser/criar um quarto, quinto, sexto... de acordo
com todas as combinações possíveis entre corpo,
gênero, desejo e práticas sexuais.
Butler tenta mostrar – e esse parece ser um limite da psicanálise – que trabalhar com uma noção
de gênero binária empobrece a capacidade de lidar com o outro ser humano. Faremos eternamente
uma comparação dessa pessoa a um determinado
ideal, a um estereótipo. É precisamente isso que a
sociedade tende a exigir dela, e a Psicologia, como
disciplina das Ciências Humanas, não deveria jamais adotar essa mesma perspectiva, qual seja, a de
uma lógica da adaptação. É a busca de uma singularidade para o indivíduo que chega com todos os
seus atravessamentos (do discurso, do imaginário
social, daquilo que emana de seu corpo e em relação ao qual ele não sabe o que faz) que deve nortear
o trabalho da Psicanálise e da Psicologia.
Referências
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MERLEAU-PONTY, M. (1994). O corpo como ser sexuado. In: Fenomenologia da Percepção. São Paulo:
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PORCHAT, P. (2007). Gênero, psicanálise e Judith Butler – Do transexualismo à política. Tese – Doutorado
em Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
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1985.
Patrícia Porchat é psicanalista e professora do Departamento de Psicologia da Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista (FC/UNESP). E-mail: <[email protected]>.
Recebido para avaliação em março de 2013. Aprovado para publicação em julho de 2013.
202
Resenhas
Memórias de um criminoso
Resenha: NETTO, Marcelo; MEDEIROS, Rogério. Memórias de uma Guerra Suja. Cláudio Guerra em depoimento a
Marcelo Netto e Rogério Medeiros.
Rio de Janeiro: Topbooks, 2012. 291 p. ISBN: 8574752045.
LOSNAK, Célio J.
Como o título sugere, o livro apresenta a memória do agente Cláudio Guerra, que foi policial civil
no Espírito Santo, posteriormente delegado e então
passou a coordenar o Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops) do Estado. Em 1972,
começou a trabalhar para o Serviço Nacional de Informações (SNI) em conjunto com agentes do Destacamento de Operações de Informações – Centro
de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), grupo
especial formado para investigar e prender os militantes políticos de esquerda do período. Teria atuado
em diversas operações armadas e secretas por cerca de quinze anos, incluindo os atentados visando à
desestabilização do processo de abertura durante os
mandatos dos presidentes Geisel e Figueiredo.
O tema em pauta não é novo, alguns aspectos
da repressão militar e tortura de presos políticos já
foram detalhados pela pioneira obra Brasil: nunca
mais,1 de 1985. Vários livros posteriores, com pesquisas, depoimentos e memórias, exploraram as entranhas da ditadura militar e as trajetórias dos presos
e exilados. Apesar da difusão de razoável manancial
de informações em torno do assunto, o livro é impactante e fascina pelos detalhes que desvela.
Guerra não abstrai, fala de si, o que fazia, via e
ouvia, descreve seu trabalho com pormenores, narrando operações, citando nomes e lugares, revelando
rotinas, descrevendo perfis pessoais de militares e
policiais. Enfatiza que atuou como matador; ocultou e destruiu cadáveres; executou pessoas, além de
planejar outras execuções; traficou e distribuiu armas; arquitetou, acompanhou e executou atentados à
bomba; falsificou documentos; conviveu com grupos
de esquadrões da morte; colaborou com as equipes
de tortura e participou da operação Condor; trabalhou como segurança para chefes do jogo do bicho,
do qual depois se tornou banqueiro. Ele agia com
codinome, tinha duas contas bancárias, uma oficial,
para o salário e com o seu nome e, outra, com o codinome, pela qual recebia altas somas para pagar as
despesas das operações.
Guerra afirma que era comandado pelo coronel
Freddie Perdigão, que atuara no Centro de Informações do Exército (CIE), e, depois, como agente do
SNI e do DOI-CODI. Suas estratégias misturavam a
formação vinda dos militares norte-americanos, dos
1 Brasil: nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1985.
205
revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 205-207, out. 2012/mar. 2013.
LOSNAK, Célio J. Memórias de um criminoso
grupos ingleses combatentes do IRA,2 e o apoio de
membros de organizações parapoliciais atuantes em
esquadrões da morte e outros tipos de crime. Outro
superior imediato era o comandante Antônio Vieira,
do Centro de Informações da Marinha (Cenimar),
e atuava no SNI carioca com Perdigão. Um terceiro
oficial importante no grupo era o coronel do Exército Ênio Pimentel da Silveira, o doutor Ney, que teria
ingressado no esquema por meio da Operação Bandeirantes (Oban) e mantinha relações estreitas com
o delegado Sergio Paranhos Fleury. Parte das operações também estaria ligada à chefia do coronel Carlos
Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-CODI
paulista no início dos anos 1970.
O entrevistado coloca-se em vários acontecimentos importantes do período. Os principais casos foram: participação na reunião desse grupo de líderes
quando decidiram eliminar Fleury, e Guerra teria
sido indicado para a ação, mas posteriormente houve mudança nos planos e outros agentes concluíram
o trabalho; atuação em duas tentativas frustradas de
assassinato do jornalista Alexandre Baumgarten, sobre a qual revela detalhes da execução finalizada por
outro grupo; apoio à chacina da Lapa (quando líderes
do PCdoB foram executados), ocorrida em 1976, liderado por Fleury, doutor Ney e Perdigão; colaboração com o atentado do Riocentro, em 1981; criação
de uma forma segura de eliminar cadáveres de torturados usando a fornalha de uma usina de açúcar em
Campos (RJ), transportando e queimando corpos,
com destaque para os dos militantes David Capistrano, Rosa Kucinski e seu marido Wilson Silva.
A justificativa para os atos descritos é o anticomunismo. O agente afirma que era conservador e
considerava o comunismo uma grande ameaça à sociedade. Em nome da luta de defesa do país e dos
valores tradicionais, ele teria sido cooptado e passou
a atuar em um grupo autodenominado de extrema
direita. Não questionava as ordens, muitas vezes sequer sabia quem era a pessoa a ser executada, apenas
cumpria, em nome do dever cívico e preservação do
grupo que deveria estar incólume para continuar a
defender a ordem.
O texto usa o recurso da narração em primeira
pessoa mesclada com explicações e detalhes factuais sobre ações, acontecimentos, órgãos e atores. As
perguntas foram eliminadas e os jornalistas organizaram os capítulos por assuntos, indicando o recurso
da edição pela qual a ordem original da entrevista foi
remodelada. As notas no pé da página e no fim do
livro completam algumas lacunas informativas.
Muitas dúvidas surgem no decorrer da leitura,
como, por exemplo, em relação à veracidade dos
depoimentos e aos objetivos do policial que decidiu
falar e denunciar. As lembranças do entrevistado
nem sempre são precisas, muitas datas e lugares estão enevoados, há certa dificuldade para definir uma
cronologia dos fatos. Por outro lado, ele tem certeza
de rostos vistos há mais de trinta anos. A comprovação das informações apresentadas pelo ex-policial
é parcialmente indicada pelo trabalho dos dois autores, Marcelo Neto e Rogério Medeiros, jornalistas
experientes com longa trajetória de atuação em grandes veículos. Eles conviveram com o entrevistado
durante quase dois anos, realizaram longa negociação dos termos do depoimento e do livro, checaram
as informações em arquivos oficiais e de imprensa,
confrontaram documentos oficiais produzidos por
órgãos diferentes e que tratavam do mesmo caso,
levantaram nomes, usaram livros publicados sobre
os presos políticos, as prisões, torturas e mortes nas
dependências do aparato repressivo, inclusive a obra
Direito à Memória e à Verdade,3 usada para o entrevistado se lembrar de pessoas que matou ou dos cadáveres que transportou.
Outro indício de veracidade pode ser encontrado
na internet. Pouco tempo depois do lançamento da
obra, Alberto Dines veiculou uma entrevista com o
ex-policial e, por meio dela, é possível perceber as
expressões faciais, as ênfases do depoimento, o tom
de voz, a assertividade e os argumentos.4 No período
de prisão, Guerra teria mudado de vida, converteu-se
à fé cristã e se tornou pastor da Assembleia de Deus.
Por isso, afirma querer resolver o passado de pecados,
mas a reconciliação com Deus não foi considerada
suficiente. Guerra declara que é preciso prestar contas aos homens, denunciar a estruturas desumanas
e pedir perdão aos familiares dos mortos. Tornar-se
cristão significaria, para ele, ajudar os familiares com
informações e alguns detalhes para, quiçá, atenuar
a dor da incerteza do que teria acontecido com os
3 BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à verdade e à memória.
Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos
Políticos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos
Humanos, 2007.
4Entrevista veiculada no programa Observatório da Imprensa e disponível na Internet no endereço: <http://www.youtube.com/
watch?v=pCBlh0NKs0o>.
2 Sigla em inglês do Exército Republicano Irlandês,
no original Irish Republican Army.
206
revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 205-207, out. 2012/mar. 2013.
LOSNAK, Célio J. Memórias de um criminoso
entes queridos desaparecidos. E como demonstração
de disposição, Guerra já havia prestado depoimento
a uma equipe de promotores públicos federais e a um
delegado da Polícia Federal, tendo declarado que iria
apresentar-se à Comissão da Verdade para dar mais
informações além daquelas contidas no livro.
Além disso, outro elemento de plausibilidade das
informações é a riqueza de detalhes descritos sobre
os bastidores das ações dos grupos clandestinos. E
esses detalhes estão ligados a casos, lugares e a acontecimentos conhecidos, delineando lógicas já explicitadas, pesquisadas e narradas por presos e torturados políticos. Como último ponto, realço a validade
do depoimento de Guerra relembrando Alessandro
Portelli quando defende que a memória e a história
oral se centram mais nos significados, nos sentidos
da história do que nos detalhes factuais.5
Ainda assim, pairam dúvidas, principalmente
pela falta de precisão factual em alguns momentos
e ausências de fontes. O livro carece de metodologia
de pesquisa e elaboração editorial. Não há relação de
documentos consultados, arquivos visitados, livros
lidos, pessoas entrevistadas, matérias jornalísticas
publicadas que já apontavam a trajetória criminal do
agente, falta também uma cronologia das datas dos
julgamentos e períodos de prisão. A despeito desses
problemas, várias questões são intrigantes.
A primeira é sobre a participação de policiais civis nas operações. Ele argumenta que os militares
não tinham grande experiência na investigação, de
campanas nas ruas, interrogatórios e torturas. A polícia civil, sim, acumulava longa tradição dessas práticas legais e ilegais. Daí a colaboração de agentes civis
principalmente da área de roubos e furtos. O delegado Fleury seria um expoente dessa colaboração.
A segunda questão importante é a estratégia de
queima de arquivo: matar membros dos grupos secretos que se tornariam perigosos para a segurança
do esquema e para o SNI, em uma primeira fase, e
para garantir o anonimato dos militares que poderiam ser denunciados, numa segunda fase, nos anos
1980. Os casos mais famosos seriam o assassinato do
delegado Fleury e o do jornalista Baumgarten com
detalhes estarrecedores. Guerra questiona o suicídio
do doutor Ney e aponta falhas da versão oficial, menciona a eliminação de um grupo inteiro de policiais
militares do Rio de Janeiro e narra a execução, por
ele mesmo, do tenente Odilon, um especialista em
explosivos e companheiro de trabalho.
A terceira questão é sobre a participação de setores civis, empresários, artistas e jornalistas que
financiaram e apoiaram as atividades repressivas,
beneficiaram-se por esquemas legais e extralegais e
eram coniventes às ações violentas. O livro sugere a
participação intensa de empresários no financiamento das atividades clandestinas, questão já conhecida
e divulgada pela bibliografia, mas a diferença são os
indícios de que essa prática era muito mais comum
do que se sabia e não ocorria apenas nos grandes
centros. Enfim, a violência política teria apoio significativo de civis.
Como último ponto, essas questões indicam que
os grupos de repressão relatados por Guerra atuavam fora da lei, de maneira clandestina e criminosa,
não só por negar os direitos legais dos presos políticos, e cometerem atentados de extrema direita que
atingiam civis, mas por criarem um poder paralelo
ao Estado e ao espaço público, realizando atividades
típicas de crime comum, tais como assassinato, contravenção, tráfico, formação de quadrilha, escutas
clandestinas. As arbitrariedades não se resumiam à
prisão ilegal, à tortura e à morte forjada. Em nome do
combate ao comunismo, qualquer estratégia era válida. Guerra revela que os agentes formados no esquema clandestino e ilegal apoiaram o Estado e, depois,
com o processo de abertura, lutaram contra ele. Apesar de derrotados, depois do fim dos governos militares, passaram a atuar como criminosos comuns
independentes e ainda hoje estariam organizados
como “irmandade”. Passaram a usar a expertise para
interesses privados, tais como assassinatos e explosões de encomenda, espionagem e escutas, atuação
no jogo do bicho.
O mais significativo do livro é a explicitação da
tese de que, além de a ditadura gerar violência e autoritarismo nas instituições legais, recebeu apoio de
segmentos da sociedade civil e criou grupos ilegais
que permaneceram, anos depois, atuando como criminosos e à revelia do Estado democrático.
5 PORTELLI, A. O que faz a história oral diferente. Projeto História. São Paulo. n. 14, p. 25-39, 1997. p. 31.
Célio José Losnak é historiador doutorado pela FFLCH/USP e professor da Faculdade de Arquitetura, Artes
e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (FAAC/UNESP). E-mail: <[email protected]>.
Recebido para avaliação em março de 2013. Aprovado para publicação em maio de 2013.
207
Futebol, política e religião:
a vingança do reacionário
Resenha: MARQUES, José Carlos. O futebol em Nelson
Rodrigues. O óbvio ululante, o Sobrenatural de Almeida e
outros temas. 2. ed. São Paulo: Educ, 2012. 194p.
ISBN: 978-85-283-0446-6.
TOLEDO, Luiz Henrique de
severamos sobre as ideias e ideais de nação, prática
intermitente na história brasileira; a religião escancara a diversidade onde se contrapõem, se amalgamam e se fundem expressões religiosas as mais diversas, fruto das peculiaridades na formação de um
país feito mestiço desde os tempos da colonização.
Clamamos a intervenção dos santos e pastores por
dias melhores, porém, mais do que essa demanda,
convivemos com eles num pacto cultural assimétrico que não deixa de ser um exercício político
posto a serviço das nossas convicções inabaláveis.
Por fim, o que nos detém nesse texto, o futebol,
consiste num fenômeno lúdico que se transformou num megaevento universal a enfeixar vontades torcedoras arrebatadas por milhares de clubes
de futebol que compõem um mosaico de paixões
a sociabilidade, dando alguns dos contornos mais
nítidos do jeito de ser de um povo, de suas expressões estéticas, de seus manejos plásticos da língua,
dos trejeitos corporais que se multiplicaram em
expressividades que foram além das quatro linhas
originalmente destinadas à prática daquele que em
alguns países simplesmente recebe a denominação
de esporte.
Quem, já fatigado, nunca disparou em meio a
pelejas verbais intermináveis com os amigos a frase
decisiva e um tanto retranqueira, Futebol, política,
religião não se discutem, na vã tentativa de dar cabo
da artilharia contrária?
Que potências misteriosas guardariam tal frase
que atravessa nossos tempos e que, ao expressar
a vontade sincera de alguém ansioso por encerrar
uma discussão perdida numa acirrada conversa de
boteco, acaba por produzir efeitos contrários, inflamando ainda mais as tomadas de posição dos demais interlocutores? Por que, ao afinal das contas,
ao se supor o término da discussão proferindo tal
máxima, muitas vezes o resultado acaba trazendo à
tona e escancarando ainda mais posições ideológicas, ou convicções íntimas da fé ou ainda paixões
clubísticas feéricas? E por que, ao final das contas,
futebol, religião e política apareceriam como regiões intocáveis, verdadeiros tabus, que habitariam
nossa subjetividade? Há algo de sacralizado em
toda a frase.
A política consiste na arena pública por excelência onde se dão os embates permanentes sobre
as convicções que continuamente elaboramos e as209
revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 209-211, out. 2012/mar. 2013.
TOLEDO, Luiz Henrique de. Futebol, política e religião: a vingança do reacionário
Nessa frase tão popular quanto profunda, estamos diante das potências simbólicas mais arrebatadoras que fazem – e tomo de empréstimo e modifico um título de livro do antropólogo Roberto
Da Matta – o Brasil, Brasis. Profunda porque a uma
penada parece totalizar o universo cultural que
chega às nossas soleiras e invade nossa privacidade,
salientando algumas das dimensões mais cruciais
da experiência de ser brasileiro. Experiência e aventura tão bem capturadas por autores como Nelson
Rodrigues em sua prosa visceral, agora dissecada
por José Carlos Marques, que se pôs a investigar
outro Nelson, o míope, porém, visionário cronista
esportivo que arrebatou tantos e tantos leitores.
José Carlos Marques mostrará que, para Nelson Rodrigues, o futebol está muito além dessa
definição tecnicista, cientificista e empobrecedora
porque não traça os melhores contornos do modo
como clamamos por nosso jogo maior. Aqui, pois,
o futebol instiga, mistura e convive com tantas outras dimensões da cultura, do político, do religioso.
Apresenta-se, portanto, não como mais um esporte,
mas peleja que se transforma num jogo da vida, daí
a profundidade popular que o realoca numa frase
tão sintética como aquela, tornando-o tão decisivo
para a nossa existência quanto o governo dos homens e o governo dos deuses. Ao lado da política e
da religião, portanto, se insistirmos em desvendar
tal máxima, o futebol apareceria formando uma espécie de trindade cultural nacional.
Mas o futebol pode ser tomado ainda como o
governo da vontade popular. Vontade estética, corporal e existencial do homem comum que dita parte
dos rumos da cultura e da ideia de nação dominada
por poderosos representantes dos céus e da terra.
Certamente, ninguém ousaria proferir adaptações da máxima, tais como Política, religião e vôlei
não se discutem, em que pese importantíssima adesão popular conquistada por essa outra modalidade
na história esportiva recente do país. Porque não
se trata apenas de popularidade, algo facilmente
mensurado em estatísticas expressas na frieza dos
números. O futebol organiza, classifica simbolicamente, dinamiza a sociabilidade, produz continuamente as formas de adesão que invadem nosso
cotidiano, nossa linguagem, nossa música, nosso
gosto em dispor palavras e coisas, nossas formas de
religiosidade e constitui, por fim, uma das linguagens da grande política travada pelo e no país.
O legado do futebol no Brasil já está alinhavado
no domínio popular, tal como assevera a aludida
máxima, mas poucos como Nelson Rodrigues, aqui
protagonista da escrita atenta de José Carlos Marques, deram tanta vazão e visibilizaram no fluxo da
memória escrita tamanha vontade que, dispersa no
cotidiano, poderia ainda suscitar alguma dúvida em
relação à sua importância. Nelson soube reposicionar os rumos de uma cultura e celebrar um modo
de viver inscrito na óbvia relação entre povo e futebol. E José Carlos Marques mostrará nesse livro
como o tricolor Nelson atiçou todas as dimensões
vislumbradas num jogo a partir do esmero da narrativa, ateando ainda mais fogo ao rico simbolismo
cultural emanado pelo futebol no Brasil.
O livro segue um movimento que parte do futebol como fato cultural para se centrar num recorte
mais particular, o conjunto criterioso e expressivo
de crônicas recolhidas pelo autor, e retorna para a
argumentação mais geral que, por fim, reposiciona as crônicas esportivas rodrigueanas no registro
mais expressivo e elevado dos fenômenos culturais
brasileiros, donde aflora um particular nacionalismo – muitas vezes e mecanicamente tomado por
reacionário.
O futebol, cuja onipresença na sociedade brasileira se faz notar por inúmeras manifestações populares – e mais tardiamente eruditas, sobretudo, pela
intelectualidade acadêmica, possivelmente uma das
últimas frações da intelectualidade a redescobrir o
futebol como fenômeno relevante – impacta Nelson desde sua infância. E a força de persuasão de
suas crônicas, faz notar José Carlos, estão ancoradas num desequilíbrio mais estrutural e histórico,
conceitualmente definido no livro como de longa
tradição barroca, e que descortina o embate sem
solução de continuidade entre razão e emoção.
Razão e emoção que se engalfinham em vários
níveis: primeiro, dentro da própria fatura mais geral da escrita rodrigueana, revelada com ineditismo
por José Carlos a partir de uma bela análise semiológica das crônicas esportivas e, segundo, enunciando temas sociológicos ancorados em várias outras
dicotomias, tais como esporte e jogo, futebol força
e futebol arte, amadorismo e profissionalismo, mas
também profano e sagrado, objetividade e subjetividade, tradição e modernidade, individualidade e
coletividade, progressista e reacionário, e a já citada
popular e erudito.
A análise realizada com vivacidade por José Carlos revela todo o potencial expressivo desse desequilíbrio na profusão de figuras de linguagem como
metáforas, metonímias, hipérboles que exageram e,
por vezes, erotizam a narrativa esportiva. Daí o turbilhão quase descontrolado de imagens que com210
revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 209-211, out. 2012/mar. 2013.
TOLEDO, Luiz Henrique de. Futebol, política e religião: a vingança do reacionário
põem a opção deliberada de Nelson pelo conotativo, enfatiza José Carlos, esse, aí sim, subversivo
e transgressor recurso de escrita que incomoda a
objetividade administrativa jornalística, mas cujo
resultado acaba oferecendo ao leitor um modo de
ler e perceber o futebol pelas lentes de uma grande
angular, tornando-o ainda mais espetacular. Nelson
promove um reles jogo em acontecimento extraordinário: jogadores se tornam titãs, a bola ganha
subjetividade, o óbvio se torna singular, estádios
ganham personalidade, partidas se elevam à condição de sagas mitológicas, instauram-se atemporalidades num esporte que, por força das regras, está
confinado aos 90 minutos.
E ao enunciar tais dicotomias dentro de uma
tradição barroca impregnada de desequilíbrios, artificialismos e oximoros, José Carlos vai mostrando
que Nelson, ao mesmo tempo, parece escapar a todas elas na medida em que inverte ou simplesmente brinca com suas valências valorativas, tal como
faz notar o autor quando mostra que certas conveniências ditam seus argumentos que ora pendem
para a emoção, ora para alguma razão. Exemplo
claro disso é o modo como desdenha da tecnologia
(o videoteipe, mas, sobretudo daqueles que fazem
contínua e irrefletida apologia das técnicas para verificar a ocorrência de certas jogadas controversas),
mas também, e por conveniência, reivindica-o para
afirmar sua percepção que, de resto, é sempre guiada por sua apreensão subjetiva. Não importam os
fatos e suas versões, mas o jogo assimétrico e contraditório que se instaura na relação entre eles, daí
a falação interminável sobre uma partida porque,
acima de tudo, em Nelson o futebol parece alcançar a narrativa mais sublime da eternização da controvérsia, razão última da apreciação estética das
grandes jogadas, dos gols impossíveis, dos placares
improváveis.
O infinitesimal e o singular é que interessam,
desconfia-se do coletivo, da ordem e do normativo,
seja de direita ou de esquerda, pois Nelson desdenhou das patrulhas políticas, esportivas ou religiosas. E se reivindicou algum arroubo revolucionário
foi justamente para recolocar o homem comum e
sua sabedoria na fatura de sua prosa renovada. E
se ainda, por motivos técnicos e táticos, tais singularidades (que não precisam necessariamente ser
as jogadas) não brindarem uma partida, a narrativa se incumbe de inventá-las para bem do próprio
jogo. E se nada de interessante ocorrer numa peleja
que seja digno de nota, apela-se para a cusparada
metafísica, convoca seres imaginados, tais como o
Sobrenatural de Almeida, joga-se na trama da intertextualidade a convidar um Cervantes, um Camões,
um Dostoievsk e tantos outros titãs da literatura
para jogarem conosco e nas bases de nossa brasileira sabedoria vinda dos pés, um jogo decisivo e
demasiado humano.
Enfim, todo esse universo rodrigueano e sua potência narrativa são oferecidos por José Carlos Marques num texto tão leve quanto denso, recheado de
bons insights que nos convida a retornar, sempre,
aos jogos que nunca vimos, às jogadas que nunca
fizemos nos campinhos e arrebaldes, ao segundo
tempo daquela partida que jamais terminou com o
trilar que saiu da boca de um árbitro.
Luiz Henrique de Toledo é antropólogo, professor do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de
Pós-graduação em Antropologia Social e coordenador do Laboratório de estudos das práticas e sociabilidade
(LeLuS) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: <[email protected]>.
Recebido para avaliação em março de 2013. Aprovado para publicação em maio de 2013.
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