revista v. 2 | n.2 | out. 2012/mar. 2013 | ISSN 2236-3424 Sociedade, Comunicação e Linguagem Célio J. Losnak Dorival Campos Rossi Francisco Pinheiro Javier Marzal-Felici Jefferson Agostini Mello Luiz Henrique de Toledo Marcel Verrumo Patrícia Porchat Ricardo Souza de Carvalho Samanta Aline Teixeira revista ISSN 2236-3424 revista faac | publicação semestral | Bauru | v. 2, n.2 | p. 111-212 | out. 2012/mar. 2013 revista Editoria JEFFERSON O. GOULART [Editor Executivo] ARLINDO REBECHI JR. [Editor Associado] Camila de Oliveira Goncalves/Thales Schimdt de Borba [assistentes-bolsistas] Comitê Editorial JEFFERSON O. GOULART [Suplente: Maria Angélica S. R. Martins] LUIZ CLÁUDIO BITTENCOURT [Suplente: Renata Cardoso Magagnin] MARIA DO CARMO J. P. PALHACI [Suplente: Luiz Antonio Vasques Hellmeister] ADENIL ALFEU DOMINGOS [Suplente: Ângelo Sottovia Aranha] MILTON KOJI NAKATA [Suplente: Osmar Vicente Rodrigues] Revista Faac é uma publicação eletrônica semestral e interdisciplinar vinculada à Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (FAAC/UNESP). O periódico tem como missão principal publicar estudos relevantes e inéditos, na forma de artigos, ensaios, resenhas e similares, nacionais e internacionais, contribuindo para o debate intelectual face à excelência acadêmica e científica de sua produção e diversidade temática, voltada prioritariamente à comunidade acadêmico-científica. Sem prejuízo de acolhimento e difusão de contribuições de outros campos do conhecimento, suas áreas preferenciais são: arquitetura e urbanismo; artes e representação gráfica; desenho industrial; ciências humanas; comunicação social. Os artigos são de responsabilidade exclusiva dos autores. É permitida sua reprodução, total ou parcial, desde que seja citada a fonte. Conselho Editorial DERRICK KERCKHOVE – University of Toronto [Canadá] FRANCISCO JAVIER GOMÉS TARÍN – Universitat Jaume I [Espanha] GUSTAVO CIMADEVILLA – Universidad Nacional de Río Cuarto [Argentina] JEREMY MYERSON – Royal College of Art [Reino Unido] JORGE ZAFFORE – Universidad Nacional de La Matanza [Argentina] JULIÁN SOBRINO SIMAL – Universidad de Sevilla [Espanha] RUI ANTONIO RODRIGUES RAMOS – Universidade do Minho [Portugal] ADALBETRTO RETTO JR. – Universidade Estadual Paulista ANAMARIA DE MORAES – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro ANTONIO NELSON RODRIGUES DA SILVA – Universidade de São Paulo GLÁUCIA ENEIDA DAVINO – Universidade Presbiteriana Mackenzie ITIRO IIDA – Universidade de Brasília JONAS GONÇALVES COELHO – Universidade Estadual Paulista JOSÉ AMALIO PINHEIRO – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo JOSE CARLOS PLÁCIDO DA SILVA – Universidade Estadual Paulista LUCIO F. F. KOWARICK – Universidade de São Paulo MARCIO PIZARRO NORONHA – Universidade Federal de Goiás MARIA ANTONIA BENUTTI – Universidade Estadual Paulista MAURO VENTURA DE SOUZA – Universidade Estadual Paulista NELLY DE CAMARGO – Universidade de São Paulo Revista FAAC / FAAC - Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação - v.1, n.1, abr. 2011. – Bauru, SP: a Instituição, 2011- . Semestral ISSN 2236-3424 1. Ciências Humanas - periódico I. Revista FAAC. II. FAAC Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação. CDD: 070 CDD: 370 CDD: 720 Copyright© FAAC, 2012 Produção Gráfica Canal6 Projetos Editoriais <www.canal6.com.br> Capa e Diagramação Erika Woelke Revisão Julia de Lucca Esta edição foi copatrocinada pela Pró-Reitoria de Extensão Universitária da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – PROEX/UNESP revista faac • Av. Luiz Edmundo Carrijo Coube, nº 14-01 • Centro de Estudos Multidisciplinares, Sala 69 • Vargem Limpa CEP 17.033-360 • Bauru/SP • Telefone: [+ 55 14] 3103.6172 • E-mail: <[email protected]> Sumário 115 117 Sociedade, Comunicação e Linguagem Chamada de Artigos Cultura e Imagem DOSSIÊ TEMÁTICO Sociedade, Comunicação e Linguagem 121 131 145 151 165 La convergencia mediática como ideología – algunas reflexiones sobre la evolución de la narrativa audiovisual en la era digital Javier Marzal-Felici Duplicidades e contradições em Bernardo Carvalho: o estético e o político; o universal e o particular Jefferson Agostini Mello Os heróis do ensaio de Euclides da Cunha Ricardo Souza de Carvalho Jornalismo Narrativo em tempos de Belle Époque Marcel Verrumo Origami científico: a linguagem das dobraduras dentro do design contemporâneo Dorival Campos Rossi; Samanta Aline Teixeira ARTIGOS LIVRES 181 195 Portugal de calções – para uma gênese do desporto enquanto fenômeno mediático Francisco Pinheiro Psicanálise, gênero e singularidade Patrícia Porchat RESENHAS 205 209 Memórias de um criminoso Célio J. Losnak Futebol, política e religião: a vingança do reacionário Luiz Henrique de Toledo Sociedade, Comunicação e Linguagem A contemporaneidade reservou um lugar privilegiado a algumas áreas do conhecimento e, dentre elas, a Comunicação ocupa um espaço singular. A constatação parece óbvia: como dizíamos na chamada desta edição, “a velocidade e a profundidade das mudanças contemporâneas têm desafiado diversas disciplinas a interpretá-las adequadamente, esforço nem sempre bem-sucedido em razão da complexidade desses fenômenos cujos sentidos e significações ainda estão por serem desvendados”. Nesses tempos desafiadores, expressões incorporadas à rotina (“sociedade global”, “mundo sem barreiras”, “terceira revolução industrial”, “novas tecnologias da informação e comunicação”, “mundo digital”, etc.) muitas vezes carecem de fundamento e conceituação, sob pena de soarem ocas. O esforço aqui empregado consistiu em absorver a reflexão de pesquisadores de diferentes áreas com o propósito de melhor equacionar a diferença existente entre o conhecimento que se produz e as desafiadoras demandas advindas dos novos fenômenos sociais, comunicacionais e tecnológicos que marcam o tempo presente. Evidentemente, desafio dessa monta não se esgota em uma edição, mesmo porque as engrenagens sociais, além de complexas, lançam mão de múltiplas linguagens e discursos que se transformam em conteúdos e significados igualmente diversos. Nossa edição é aberta justamente com o dossiê Sociedade, Comunicação e Linguagem. Em La convergencia mediática como ideología – algunas reflexiones sobre la evolución de la narrativa audio- visual en la era digital, o pesquisador espanhol Javier Marzal-Felici faz uma revisão do conceito de re-mediación, por meio do qual examina algumas práticas transmedia e crossmedia no cinema contemporâneo e analisa hibridizações e discursos de interdependências. No plano da estética e da semiótica, Marzal-Felici observa a clara hegemonia do discurso e da linguagem da publicidade. De forma complementar, sob a abordagem da economia política da comunicação, a ampliação das hibridizações discursivas e o fenômeno da convergência midiática se mostram claramente subordinados à ideologia dominante, o neoliberalismo de escala global. Para manter a fidelidade ao artigo, o texto foi mantido no original, em espanhol. Na sequência, em Duplicidades e contradições em Bernardo Carvalho: o estético e o político; o universal e o particular, Jefferson A. Mello analisa o lugar de Bernardo Carvalho na literatura brasileira e no espaço literário mundial. Síntese de pesquisas realizadas no Brasil e no exterior desde 2006, o ponto de partida é a análise de um dos romances de Carvalho, O sol se põe em São Paulo, buscando relacioná-lo com os textos de crítica do romancista e, assim, lançar elementos para uma compreensão mais substancial do suposto projeto literário deste autor. Para Mello, a construção do romance e as referências adotadas por Carvalho explicitam a perspectiva cosmopolita deste autor. Em Os heróis do ensaio de Euclides da Cunha, Ricardo Souza de Carvalho faz a releitura de um autor e de uma obra clássica da literatura nacional. 115 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, out. 2012/mar. 2013. Apresentação Embora tenha absorvido a representação histórica proposta por Carlyle, argumenta Carvalho, Euclides teria modificado essa matriz em razão do contexto nacional em torno do emblemático estudo do herói. Entre outras coisas, Carvalho ainda constata que o autor de Os sertões viu na imprensa um modo para o ensaio de suas ideias, espécie de esboço para uma obra mais acabada e, portanto, duradoura. Seguindo essa senda de estudos literários em sua relação com a cultura e os fenômenos da vida social moderna, Marcel Verrumo analisa a obra do repórter Benjamim Costallat em Jornalismo narrativo em tempos de Belle Époque. O contexto do registro jornalístico se dá por ocasião do processo de modernização da então capital do Brasil, o Rio de Janeiro dos anos 1920. Nota-se que a observação arguta de Costallat é multissocial, lança sua lupa tanto às elites quanto aos estratos mais baixos. A linguagem erótica e o jornalismo sensacionalista são analisados com fina perspicácia no contexto da Belle Époque. Origami científico: a linguagem das dobraduras no design contemporâneo, de Dorival Rossi e Samanta Teixeira, analisa as funções mais abrangentes assumidas pelo origami, ou seja, como este se expressa enquanto linguagem contemporânea aplicada aos processos projetuais. A conclusão dos autores é que o origami é dotado de uma funcionalidade tangível intrínseca que favorece o pensamento criativo. Já na seção de Artigos livres, o pesquisador lusitano Francisco Pinheiro percorre o caminho da historiografia para interpretar o futebol como fenômeno midiático em Portugal de calções – para uma génese do desporto enquanto fenómeno mediático. O autor analisa a emergência do futebol como fenômeno de massas e o comportamento da mídia desde sua formação, em meados do século 20, interpretando a proliferação de periódicos esportivos e futebolísticos daquele período. Em respeito à fidelidade ao original, o texto foi mantido sob a forma do português europeu. Fechando essa seção, Psicanálise, gênero e singularidade, de Patrícia Porchat, percorre o panta- noso terreno da sexualidade e do preconceito sob o olhar da psicologia e da psicanálise. O texto assinala que, cada vez, mais a psicologia em geral e a psicanálise em particular têm sido desafiadas a se manifestarem sobre as questões de gênero e de sexualidade. Normativo, o texto constata que a atuação desses profissionais carece de reflexão e explicitação sobre a concepção de sujeito que adotam, base a partir da qual a autora contesta as tendências à patologização e ao caráter reducionista da concepção binária de gênero. Por fim, na seção de resenhas, Célio Losnak revisita o espinhoso tema da tortura em Memórias de um criminoso. O livro resenhado, Memórias de uma guerra suja, dos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros, traz depoimento de Cláudio Guerra, um ex-agente dos serviços de repressão durante a ditadura militar (1964-1985). O resenhista destaca que há um farto material histórico sobre o tema, mas destaca a singularidade do relato de Guerra pela riqueza de detalhes e pelo indigesto tema do apoio que o regime autoritário recebeu de diversos segmentos da sociedade civil. Finalmente, em Futebol, política e religião: a vingança do reacionário, Luiz Henrique de Toledo analisa o livro O futebol em Nelson Rodrigues. O óbvio ululante, o Sobrenatural de Almeida e outros temas, de José Carlos Marques. O universo rodrigueano e seus recursos hiperbólicos servem como referência para uma tentativa mais ousada que a “simples” interpretação do futebol, ou seja, na verdade haveria nesse empreendimento um esforço mais ousado de compreender a própria sociedade brasileira. Toledo observa que o trabalho de Marques, ao invocar a tradição barroca presente na crônica de Nelson Rodrigues, percebe que o futebol transcende qualquer definição reducionista e empobrecedora, instituição da mesma estatura que a religião ou a política. Os Editores 116 Chamada de artigos Cultura e Imagem Revista Faac convida pesquisadores de diversas áreas do conhecimento a colaborarem com textos inéditos para sua próxima edição (v.3, n.1), cujo dossiê temático versará sobre Cultura e Imagem. Ao longo de nossa história moderna, impulsionados por um espectro amplo de práticas sociais, os termos cultura e imagem obtiveram diferentes sentidos e os seus desdobramentos são ainda motivo para uma reflexão permeada de complexidades e debates intelectuais intensas. Cultura, como alertou Raymond Williams, um dos grandes teóricos culturalistas do século XX, tornou-se, após o processo de modernização do mundo ocidental, uma palavra que passou a ser utilizada para se referir a conceitos basilares ambientados em contextos disciplinares diferentes e em sistemas de pensamento diametralmente opostos, quando não incompatíveis. Imagem, por sua vez, apresenta o mesmo grau de complexidade no tocante às suas acepções e aos seus usos. Ao seu conceito mais geral, gênese de outros sentidos modernos, pode-se notar tanto a relação com sua raiz latina imago, ligando-se à ideia e visão, como uma possível conexão à raiz arcaica imitate, de onde se podem extrair os sentidos de cópia, imitação, imaginação e imaginário. No atual estágio de modernização, independente da formas metodológicas e das perspectivas teóricas adotadas, o alcance dos dois termos, quando postos lado a lado, propõe ao campo mais geral das Humanidades uma equação de múltiplas respostas. Não é exagero dizer que, no mundo contemporâneo – com suas performances sociais e constantes estímulos visuais – cultura e imagem caminham pari passu e, cotidianamente, este binômio se redefine, trazendo à tona novas práticas sociais de interação e novos usos de linguagem para a vida social em transformação. Nesse horizonte reflexivo de peculiar intervenção intelectual, tendo em vista o seu caráter interdisciplinar e multidisciplinar, Revista Faac quer estimular o debate sobre os significados assumidos por cultura e imagem em múltiplos âmbitos científicos, tanto nos dias de hoje, quanto em formas do passado ou ainda no que se refere às tendências futuras. O convite encoraja a reflexão sob três eixos gerais: (1) contribuições metodológicas e de caráter teórico que formulem uma conceituação e uma ampliada discussão dos termos imagem e cultura, considerando os seus possíveis desdobramentos – reunidos sob as formas de cultura das mídias, a cultura das imagens, as formas produzidas e/ou reproduzidas das imagens da cultura, a crítica cultural, as marcas do imaginário na cultura contemporânea, os meios de comunicação e suas formas de assimilação da cultura imagética, dentre outras possibilidades; (2) análises críticas que contemplem as formas de representação das imagens e os seus produtos visuais e culturais produzidos no mundo contemporâneo, abarcando contribuições próprias e singulares do campo do design, dos conhecimentos da arquitetura e do urbanismo, das discussões literárias, cinematográficas e dos campos 117 artísticos e culturais de modo geral; (3) exames críticos dos diferentes processos constitutivos de produção de imagens no mundo cultural contemporâneo, com vistas à análise dos fluxos contemporâneos de produção e circulação de objetos culturais imagéticos, e também às formas de consumo e recepção de imagens, às formas imagéticas contrastantes entre uma suposta produção mais central e outra periférica, às formas de atuação e disputas de instituições culturais e sociais e seus grupos, num mundo predominantemente imagético. Além do dossiê temático sobre Cultura e Imagem, também podem ser encaminhados artigos, ensaios, críticas e resenhas de temas livres. As normas de submissão e análise estão disponíveis aqui. Os trabalhos serão recebidos por meio eletrônico até 28/02/2014, e os autores poderão acompanhar o progresso de sua submissão através do sistema eletrônico da revista. Dossiê Temático La convergencia mediática como ideología – algunas reflexiones sobre la evolución de la narrativa audiovisual en la era digital MARZAL-FELICI, Javier Resumo Nestas páginas, revisamos a noção de re-mediación, propomos o exame de algumas práticas transmedia e crossmedia no cinema contemporâneo e analisamos uma série de hibridizações e interdependências discursivas que ocorrem no campo dos games. Nossa análise conclui com uma reflexão que segue dois eixos distintos: de um ponto de vista semiótico e estético, é proposto, como hipótese de trabalho, que o verdadeiro discurso hegemônico do nosso tempo, característica da convergência de mídias, é a linguagem da publicidade; por sua vez, do ponto de vista da economia política da comunicação, salientamos que o aumento das hibridações discursivas e o fenômeno da convergência midiática devem estar relacionados à escala planetária da ideologia dominante, o neoliberalismo, o que explica, finalmente, o cenário midiático que está sendo desenhado em nível global. Palavras-chave: Convergência midiática – Narrativa audiovisual – Videojogos – Publicidade – Economia política da comunicação. Resumen En estas páginas se revisa la noción de re-mediación, se propone un examen de algunas prácticas transmedia y crossmedia en el cine contemporáneo y se analiza una serie de hibridaciones e interdependencias discursivas que se están produciendo en el campo de los videojuegos. Nuestro examen finaliza con una reflexión que sigue dos ejes diferenciados: desde un punto de vista semiótico y estético, se propone como hipótesis de trabajo que el auténtico discurso hegemónico de nuestro tiempo, característico de la convergencia mediática, es el discurso publicitario; por otro, desde el punto de vista de la economía política de la comunicación, se subraya que el auge de las hibridaciones discursivas y el fenómeno de la convergencia mediática debe ponerse en relación con la ideología dominante a escala planetaria, el neoliberalismo, que explica, en última instancia, el escenario mediático que se está dibujando a nivel global. Palabras clave: Convergencia mediática – Narrativa audiovisual – Videojuegos – Publicidad – Economía política de la comunicación. Abstract In these pages we review the notion of re-mediation, we propose a review of some transmedia and crossmedia practices in contemporary cinema and analyzed a series of hybridizations and interdependencies discourse 121 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 121-129, out. 2012/mar. 2013. MARZAL-FELICI, Javier. La convergencia mediática como ideología – algunas reflexiones sobre la evolución de la narrativa audiovisual en la era digital taking place in the field of gaming. Our review concludes with a reflection that follows two distinct axes: from a semiotic point of view and aesthetic, is proposed as a working hypothesis that the true hegemonic discourse of our time, characteristic of media convergence, is the language of advertising, on the other, from the point of view of political economy of communication, it is stressed that the rise of the hybridizations discursive and media convergence phenomenon must be related to the planetary scale dominant ideology, neoliberalism, which explains ultimately the media landscape is being drawn globally. Keywords: Convergence media - visual narrative - Games - Advertising - Political economy of communication. Introducción: el contexto de la revolución digital naturaleza diferente al cine. Mientras el cine “socializa”, “forma sentido de comunidad”, “satisface un imaginario” y “promete una realización sexual” (Cherchi, 2001, p.54), la imagen digital tiende a ocultarse mejor en la memoria del espectador, “por su relativa simplicidad tecnológica, el bajo nivel de atención exigida y la naturaleza incompleta de la imagen” (Cherchi, 2001, p.80). Podemos señalar que la virtud del ensayo de Cherchi es sacar a la luz una polémica que en el contexto de la historiografía cinematográfica está totalmente ausente. Durante años, todos los que nos dedicamos a la investigación y a la docencia de la teoría e historia de la imagen hemos insistido ante nuestros estudiantes en la necesidad de establecer una nítida separación entre la naturaleza de la imagen cinematográfica y de la imagen electrónica. La tecnología digital ha hecho posible la convergencia entre medios de comunicación, hasta el punto de que hoy no puede hablarse del cine como fenómeno comunicativo independientemente de otros medios o formas de comunicación como la fotografía, la televisión, la publicidad, internet, los videojuegos o los discursos multimedia, en general, ya que estamos inmersos en el universo de lo audiovisual (Company & Marzal-Felici, 1999), expresión del mundo globalizado –en especial, en los planos ideológico, económico y político– en el que vivimos. Hemos introducido el debate en torno a la imagen digital a través de las provocativas y polémicas reflexiones de Paolo Cherchi acerca del futuro (ahora presente) del cine. No obstante, el fenómeno de la convergencia mediática inunda y afecta a todas las formas de comunicación audiovisual, por lo que creemos necesario realizar un breve examen, cuanto menos, de algunos campos de reflexión que nos parecen especialmente interesantes, por ser muy fértiles a la hora de generar ideas y reflexiones acerca del estatuto de la imagen en la sociedad contemporánea. Hace poco más de 12 años, en 2001, Paolo Cherchi Usai publicaba un breve ensayo titulado The Death of Cinema. History, Cultural Memory and the Digital Dark Age / La muerte del cine. Historia y memoria cultural en el medievo digital (Cherchi, 2001). No sería muy destacable este hecho si no fuera porque Paolo Cherchi Usai era entonces Restaurador Senior del Departamento de Cinematografía en la George Eastman House (Kodak) y Director del “L. Jeffrey Selznick School of Film Preservation”, un centro de formación de restauradores y conservadores de cine, responsabilidades que abandonó poco después, y a las que ha regresado en 2011. Este breve y peculiar ensayo de Paolo Cherchi está estructurado como una colección de breves reflexiones –52 textos que van desde una sola linea a una página completa– a propósito de la naturaleza del cine, más allá de lo que significa el trabajo de conservación y restauración de las películas. En la introducción, Cherchi señala cómo la revolución digital se ha convertido en una “ideología persuasiva”, sobre la que parece existir un consenso definitivo, ya que poner en duda sus “virtudes” sería una actitud tan atrevida como oponerse al “progreso científico”. La cuestión de fondo tratada por el autor es la caracterización del objeto de la historia del cine y de las implicaciones filosóficas y culturales del trabajo de conservación y restauración cinematográficas. Paolo Cherchi señala que “la destrucción de las imágenes en movimiento es lo que hace posible la historia del cine” (Cherchi, 2001, p.19). Es cierto que si todos los objetos cinematográficos estuvieran disponibles, sería muy difícil establecer criterios de relevancia. Con respecto a la imagen digital, Cherchi señala que su destino es el mismo que el de la imagen fotoquímica. La imagen electrónica, nos recuerda Cherchi, posee una 122 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 121-129, out. 2012/mar. 2013. MARZAL-FELICI, Javier. La convergencia mediática como ideología – algunas reflexiones sobre la evolución de la narrativa audiovisual en la era digital Aclaraciones necesarias: algunos conceptos básicos propio espacio de significado cultural de forma separada y autónoma. Así pues, el término re-mediaciones viene a describir el actual contexto de la convergencia mediática. Estamos inmersos en un escenario audiovisual en el que predominan las hibridaciones discursivas: las influencias entre el cine y la televisión, la fotografía y el cine, el cómic y el cine, el cine y los videojuegos, los videojuegos y la televisión, la publicidad y el cine, la publicidad y la televisión son constantes actualmente. Son influencias que se detectan en los modos de representar, narrar, consumir y comerciar las imágenes. Sin duda alguna, la transmutación de la imagen en digital ha facilitado y acentuado mucho más el mestizaje entre los discursos audiovisuales contemporáneos, aunque este asunto venga realmente de bastante atrás, mucho antes de la irrupción de las tecnologías digitales. La pregunta inicial que cabe hacerse es “¿de qué hablamos cuando nos referimos a la convergencia de medios?”. Es evidente que la irrupción de las tecnologías digitales ha hecho posible la convergencia mediática: el cine digital, la fotografía digital, la TV digital, la radio digital, la música digital, la pujante industria de los videojuegos, la prensa digital, etc., han ido convergiendo, adoptando unos estándares tecnológicos comunes, y configurando además un nuevo universo –el de lo audiovisual– que parece ser, en apariencia, bastante homogéneo. No obstante, el verdadero cambio cabe situarlo sobre todo en la forma de consumir estos bienes culturales, a través de internet y de las redes sociales. En muchos casos, se ha pasado de una manera colectiva de consumo –especialmente evidente en el caso del cine (en las salas de exhibición) y de la televisión (el modelo dominante durante décadas ha sido el de las televisiones generalistas comerciales)– a un consumo individualizado. Actualmente, el escenario de la convergencia de medios ha sido descrito como un terreno de “remediaciones”. El término “re-mediación”, desarrollado por Bolter y Grusin en su libro Remediation. Understanding New Media (1999) designa la lógica por la que los nuevos medios remodelan medios anteriores valiéndose de una doble estrategia, aparentemente contradictoria: la inmediatez y la hipermediacidad. Como punto de partida, destacan que la idea de re-mediación se fundamenta en el concepto de genealogía de la imagen propuesto por Foucault: no se trata de hallar el origen de la imagen digital, sino de realizar un ejercicio que pretende explorar las relaciones que se han dado entre diferentes medios a lo largo de los últimos siglos para entender la forma en la que se relacionan hoy en día. La re-mediación, pues, no nació con la introducción de la imagen digital, sino que ésta sólo ha alterado la velocidad a la que se producen los intercambios entre medios. La inmediatez y la hipermediacidad son manifestaciones contrarias de un mismo deseo, el deseo de sobrepasar los límites de la representación y de alcanzar lo real. Bolter y Grusin afirman que, en este momento histórico, todos los medios funcionan como re-mediadores y, por tanto, la re-mediación ofrece una vía para interpretar los medios anteriores también. De esta forma, ningún medio puede funcionar de forma independiente y establecer su Prácticas transmedia y crossmedia en el cine contemporáneo Cabría matizar que, en un contexto de creación como el cine, el término crossmedia se refiere específicamente a la puesta en marcha de proyectos multiplataforma con una temática que aglutina materiales muy variados que los propios usuarios pueden compartir, especialmente, a través de la creación de portales o sitios web creados a tal efecto, siempre dependiendo del planteamiento del proyecto y del grado de interactividad prevista por la dirección de dicho proyecto. En contraposición, un proyecto transmedia es asimismo “un proyecto multiplataforma que cuenta con una trama clara, compuesta por varias historias que pueden desarrollarse en diferentes formatos como videojuegos, blogs, películas o juegos de rol, y que, a su vez, pueden distribuirse a través de plataformas distintas como móviles, cines uordenadores” (Sanmartin, 2012, p. 35), donde el usuario tiene la posibilidad de elegir entre diferentes propuestas para seguir o participar en el desarrollo de la historia, donde cada una de ellas posee una forma y sentido propios. Los proyectos transmedia cuentan con una tradición importante en el ámbito del cine: desde La guerra de las galaxias (Star Wars, Georges Lucas, 1977), que ha conocido sus versiones como serie de dibujos animados para televisión, videojuegos, cómic, novelas, etc., hasta Avatar (James Cameron, 2009), también con su videojuego correspondiente, y un extraordina123 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 121-129, out. 2012/mar. 2013. MARZAL-FELICI, Javier. La convergencia mediática como ideología – algunas reflexiones sobre la evolución de la narrativa audiovisual en la era digital rio despliegue de productos de merchandising, que han dado más beneficios que las propias películas en ambos casos. Nos hallamos, pues, en un nuevo contexto en el que han empezado a cobrar un especial protagonismo las redes sociales, el auge de los videojuegos en línea y de los juegos de rol, lo que ha llevado al desarrollo de historias que se desarrollan de forma viral. En definitiva, estamos ante un fenómeno que Henry Jenkins define como “convergencia mediática”, concepto a relacionar con el de cultura participativa y la noción de inteligencia colectiva. Por “convergencia”, Jenkins entiende “el flujo de contenido a través de múltiples plataformas mediáticas, la cooperación entre múltiples industrias mediáticas y el comportamiento migratorio de las audiencias mediáticas, dispuestas a ir casi a cualquier parte en busca del tipo deseado de experiencias de entretenimiento. ‘Convergencia’ es una palabra que logra describir los cambios tecnológicos, industriales, culturales y sociales en función de quienes hablen y de aquello a lo que crean que están refiriéndose” (Jenkins, 2008, p.14). Por un lado, podemos hallar ejemplos tan elocuentes de hibridaciones discursivas como el found footage (literalmente, el metraje encontrado), en cuyo contexto numerosos artistas emplean materiales hallados para su reciclaje y adaptación, como podrían ilustrar los trabajos de Luis Fernández Pons –Desfile militar. Madrid, 12 de octubre de 2002, 2003, pieza mostrada en un contexto diferente al original–, Eugeni Bonet –A Spanish Delight, 2007, apropiación de un material ajeno, en la lógica del objet trouvé o del duchampiano readymade–, Sonia Armengol –ABC pornographique, 2007, con la manipulación química de la película hallada–, Gerard Freixes –Alone, 2008, basado en la manipulación digital de imágenes–, David Ferrando –Night of the Living Dead, 2006, ejemplo de remonaje audiovisual–, Enrique Piñuel –The Dancer’s Cut, 2007, experimentación de sincronización de imágenes y música–, Gerard Gil –Miralls, 2006, como ejemplo de utilización poética del found footage–, Alberto Cabrera Bernal –Matar a Hitchcock, 2008, collage audiovisual que expolia fragmentos clásicos como provocación–, entre muchos otros ejemplos, que han sido estudiados con rigor y exhaustividad (Gloria Vilches, 2010). Por otro lado, es muy notable la aparición de numerosas prácticas cinematográficas o audiovisuales en la red, que se enmarcan tradicionalmente en un contexto amateur, si bien la cuestión parece mucho más compleja. La pieza clave que ha cambiado en el nuevo contexto de la convergencia mediática es, sin duda, la instancia receptora, el consumidor del cine y de productos audiovisuales que se ha tansmutado en algo bien diferente: el llamado prosumer (producer + consumer), un tipo de espectador que ya no se limita a consumir lo que le ofrecen los canales de distribución tradicionales, sino que desea participar activamente en su producción, de forma colaborativa. Se pueden citar, en este contexto, distintos trabajos como los de Vicent Moon y la banda de música Efterklang, cuyo proyecto de producción An Island (2011), junto a otros como Les petites planètes (2011), se propone desafiar los sistemas de distribución y exhibición tradicionales, al facilitar a quien lo desee el material de exhibición en DVD, a condición de que éste se comprometa a organizar proyecciones del material en público y de forma gratuita (López Riera, 2011). Uno de los proyectos colaborativos más conocidos es la reciente producción de Ridley y Tony Scott, La vida en un día (Life in a Day, Kevin MacDonald, 2010), a través de su productora “Scott Free”, film resultado del montaje de 4.500 horas de vídeo, cuyas imágenes grabadas el 24 de julio de 2010 fueron enviadas por personas procedentes de 192 países. También la red ha sido testigo de la transformación de algunos portales tradicionalmente centrados en la distribución ilegal de películas – como BitTorrent o Vodo – que empiezan a distribuir producciones cinematográficas independientes (Menotti, 2012). Como han señalado distintos autores (Lasica, 2005; Lessig, 2008), el futuro de las industrias culturales y, en especial, del cine pasa por la red, una idea que empieza a ser asumida (todavía tímidamente) por los grandes estudios de Hollywood. De este modo, asistimos a la proliferación de portales para el consumo de productos audiovisuales en línea, desde el pionero servicio Movielink (impulsado en 2002 por algunas majors como Universal Studios, Warner Brothers, Sony Pictures, Paramount Pictures y Metro Goldwing Mayer, y adquirido en 2007 por la empresa Blockbuster), junto a otros como Vudu, Cinemanow, Hulu, iTunes, Netflix, Filmotech, etc., cuyo negocio va creciendo lentamente mientras infinidad de portales ofrecen descargas gratuitas de películas, series de televisión y otros contenidos audiovisuales. Sin duda, una de las preguntas que surgen inmediatamente es cómo se pueden financiar propuestas de found footage o de producción colabora- 124 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 121-129, out. 2012/mar. 2013. MARZAL-FELICI, Javier. La convergencia mediática como ideología – algunas reflexiones sobre la evolución de la narrativa audiovisual en la era digital los últimos años una explosión de versiones cinematográficas como Iron Man (Jon Favreau, 2008), Capitán América (Joe Johnston, 2011), X-Men (Bryan Singer, 2000), Daredevil (Mark Steven Johnson, 2003), Hulk (Ang Lee, 2003), por no citar otras franquicias importantes como Batman, iniciada en 1989 por Tim Burton, Spiderman, saga cuyo primer film fue dirigido por Sam Raimi en 2002, o Superman, otra conocida saga iniciada en su momento bajo la dirección de Richard Donner en 1978. El empuje del cine ha sido aprovechado por el sector de los videojuegos de manera intensiva, ofreciendo la posibilidad al espectador de que éste se convierta, temporalmente, en jugador que puede así “vivir” la experiencia protagonizada por sus personajes favoritos de la ficción cinematográfica (Sáez et al., 2011, p.1101-17). Algunos de los videojuegos basados en películas muy conocidas son El Señor de los Anillos, La batalla por la Tierra Media, inspirado en la saga de Peter Jackson (2001, 2002, 2003); Spiderman 3, inspirado en el film de Sam Raimi (2007); 007. Quantum of Solace, inspirado en el film de Marc Foster (2008); El increible Hulk, basado en las versiones cinematográficas de Ang Lee (2003) y Louis Leterrier (2008), inspirado en el cómic de Stan Lee y Jack Kirby (1962); Los 4 Fantásticos, basado en el film de Tim Story (2005), y en el cómic de Jack Kirby (1961); Piratas del Caribe en el Fin del Mundo, adaptación al formato de videojuego del film dirigido por Gore Verbinski (2003); etc. En todos los casos, se cuenta con la ventaja de que el jugador está familiarizado con el entorno gráfico del videojuego, inspirado en los films citados, con el fin de conseguir una inmersión del espectador-jugador gracias a la intensificación del realismo cinematográfico, al tener éste la oportunidad de decidir adónde va y qué es lo que hace (Darley, 2002, p.249). Para conseguir tales efectos en el jugador, se busca una recreación fidedigna de personajes, escenarios y ambientes que ya aparecen en el film correspondiente e, incluso, se emplean técnicas de planificación de cada “secuencia” (o “pantalla”) similares o equivalentes a la película que sirve de inspiración, a través del uso del mismo tipo de escala de planos, de duración, de movimientos de cámara, efectos de sonido, etc., que recuerdan el estilo fílmico de la película que sirve de referente. De manera general, tiva a las que hemos hecho referencia. La respuesta la tenemos (sólo parcialmente) a través del llamado crowdfounding, sistema de financiación colectiva y voluntaria que permite captar fondos gracias a la contribución de miles de internautas que así se convierten en coproductores de estas producciones. En efecto, en los últimos años hemos asistido a una multiplicación de iniciativas en este sentido, que exceden el ámbito de la producción cinematográfica y también se han dado en el campo de la moda (www.catwalkgenius.com), la música (www.sellaband. com) o la televisión (www.myspace.com/crowdedreality). En el ámbito español, destacan algunas iniciativas como www.lanzanos.com, que se ofrece como plataforma para captar recursos económicos para el sostenimiento de proyectos en campos como la producción de videojuegos, películas, documentales, cortometrajes o películas de ficción, el lanzamiento de revistas culturales, la financiación de iniciativas empresariales, de proyectos solidarios, etc. Algunos films producidos según este sistema son The Age of Stupid (Franny Armstrong, 2009), documental sobre el cambio climático nominado en los British Independent Film Awards, que consiguió recoger más de medio millón de euros, o el caso de El cosmonauta (Nicolás Alcalá), que en estas fechas (mayo de 2013) ha finalizado ya el rodaje del film y su postproducción, y está pendiente de su estreno en salas. El film que ha conseguido recoger más de 400.000 euros en donaciones de más de 3.800 productores y de 500 inversores. De este modo, se puede afirmar que este tipo de iniciativas sólo son posibles gracias a una economía híbrida, como diría Lawrence Lessig (2008), para cuyo sostenimiento se buscan las más variadas fuentes de financiación, tradicionales y de la red 2.0. Cine y videojuegos: un espacio para las hibridaciones discursivas Hemos señalado cómo el mercado del entretenimiento ha adoptado como estrategia empresarial y comercial la producción de contenidos crossmedia y transmedia. De la producción de películas para cine se ha pasado a la producción de versiones de films conocidos para televisión, bajo el formato de series como Las aventuras del jovel Indiana Jones (George Lucas, 1992); de cómics muy conocidos y denostados por la alta cultura en los años setenta como los héroes de Marvel, hemos asistido en 125 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 121-129, out. 2012/mar. 2013. MARZAL-FELICI, Javier. La convergencia mediática como ideología – algunas reflexiones sobre la evolución de la narrativa audiovisual en la era digital se puede afirmar que en el contexto de estos videojuegos “adaptados” de films muy conocidos lo fundamental ya no es la calidad de imagen o el realismo de la puesta en escena: mucho más importante es la interactividad que define en cada caso el propio videojuego. Sin lugar a dudas, el estudio del videojuego como texto audiovisual merece ser estudiado con especial atención, dado que el sector de los videojuegos ha pasado a ser uno de los más importantes de las industrias culturales, siendo más relevante en facturación que los sectores de la música y el cine juntos en estos momentos. Creemos con Aarseth (2001) que el universo de los videojuegos debe ser atendido de manera específica y autónoma respecto a otras formas de representación como el cine. Coincidimos con Dovey y Kennedy (2006: 86), cuando afirman que en tanto que objeto cultural, que guarda una estrecha relación con otros medios tradicionales como la fotografía, el cine o la televisión, cabe abordar el estudio del universo de los videojuegos a través de la aplicación de metodologías híbridas. Sin duda, nos hallamos ante un objeto de estudio que desafía al analista de manera muy notable, incluso en cuestiones tan elementales como el hecho de que nos hallamos ante textos –los videojuegos– de naturaleza totalmente cambiante y mutable, al depender su materialidad de la interacción del propio consumidor del videojuego (Dovey & Kennedy, 2006, p.99). y mejor conocimiento del consumidor final, lo que facilita la posibilidad de elaborar mensajes cada vez más personalizados y específicos. Dentro de esta coyuntura, se observan cambios y adaptaciones que la publicidad está experimentando en sus estrategias, en sus medios y formatos, en la confección de sus mensajes e incluso en la propia concepción de la publicidad y la agencia tradicional. Y en esta reorientación, asistimos también a un proceso de acercamientos, hibridaciones y fusiones en formas, géneros y sistemas de los ámbitos del periodismo, la comunicación audiovisual y la publicidad, interrrelaciones que favorecen la adaptación del lenguaje publicitario al nuevo contexto digital. En cierto modo, se podría afirmar que la tecnología digital aplicada a los discursos audiovisuales permite construir, por un lado, imágenes más creíbles y verosímiles, más “reales”, si se quiere, que las fotoquímicas, puesto que con ella es más fácil ocultar las huellas de la mirada enunciativa. En segundo lugar, la tecnología digital favorece y alienta la producción de más y mejores imágenes, es decir, alienta el consumo de fotografías, con lo que vida de estas imágenes es más efímera que nunca, en sintonía con la cultura del “fast food” que vivimos. Finalmente, la tecnología digital aplicada a los discursos audiovisuales permite construir imágenes más espectaculares e impactantes, algo característico del discurso publicitario, con lo que se potencia así la cultura del entretenimiento y la sociedad del espectáculo (Debord, 1999 [1967]; Casero-Ripollés & Marzal-Felici, 2011) en la que estamos inmersos. Por lo que respecta a la evolución actual del discurso publicitario, es evidente que Internet está suponiendo un cambio en la forma de comunicar de las marcas que está favoreciendo la aparición de nuevas formas y formatos publicitarios para llegar al consumidor de forma más eficaz y más próxima, mediante la búsqueda de estrategias para ganar la confianza online de los consumidores y la adaptación del lenguaje publicitario a las nuevas formas de comunicación digital, en especial a través de las redes sociales. En segundo lugar, el panorama digital está motivando la emergencia de nuevos soportes y medios publicitarios, como respuesta a la aparición de nuevas formas de consumo, que conducen al desarrollo de nuevas formas de narrar las historias publicitarias (cada vez más próximas a la realidad e intereses del consumidor) como sucede con el “advertainment” y el “advergaming”, formas de comunicación publicitaria que constituyen casos para- La publicidad como discurso hegemónico en la era de las hibridaciones discursivas Creemos necesario finalizar este apresurado recorrido haciendo referencia muy brevemente a la imagen publicitaria, forma de hibridación discursiva absolutamente hegemónica en el contexto de la cultura visual contemporánea, no sólo por su naturaleza íntrinsecamente intertextual, sino sobre todo porque, en cierto modo, la imagen publicitaria contemporánea constituye una suerte de espejo sobre el que se reflejan todas las formas de expresión anteriormente citadas, al ser la publicidad un tipo de comunicación paradigmática en lo que a eficacia y capacidad seductora se refiere. El contexto contemporáneo ha propiciado toda una serie de cambios y transformaciones del discurso publicitario, en especial en lo referente al desarrollo de estrategias para facilitar el acercamiento 126 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 121-129, out. 2012/mar. 2013. MARZAL-FELICI, Javier. La convergencia mediática como ideología – algunas reflexiones sobre la evolución de la narrativa audiovisual en la era digital este parece ser un auténtico principio rector que explica el gran éxito de público del cine hegemónico, al reconocer y reconocerse éste en las referencias a otros films y a otras formas de expresión y comunicación. Creemos conveniente destacar que, en el actual contexto de la cultura digital, es fundamental prestar atención a la actitud de los consumidores, en cuyo contexto la convergencia de medios representa la búsqueda de nuevas informaciones y el establecimiento de conexiones entre esos contenidos mediáticos dispersos. Es interesante subrayar que dicha convergencia no se produce por la sofistificación de los aparatos mediáticos (PDAs, consumo de televisión, radio e internet a través del teléfono móvil, etc.), sino que es algo que “se produce en el cerebro de los consumidores individuales y mediante sus interacciones sociales con otros” (Jenkins, 2008, p.15). El auge de las hibridaciones discursivas se produce, por tanto, en un contexto de convergencia cultural, de una gran amplitud. La imagen digital constituye, en la nueva economía del entretenimiento, un producto perfectamente adaptado a las leyes del mercado: favorece su rápido consumo, que debe ser atendido con una gran rapidez también en su producción y circulación; facilitado enormemente la circulación y el consumo de imágenes; da lugar a la disminución de los costes de distribución y a la aparición de nuevas fuentes y fórmulas de financiación. Sostenemos que esta mutación de los medios guarda una estrecha relación con la expansión de la economía de mercado y la circulación de capitales especulativos en nuestro mundo moderno. Las imágenes circulan por el ciberespacio como los flujos de capitales monetarios. La convergencia de medios ha sido posible gracias a una profunda revolución tecnológica que ha tenido efectos indudables en la forma misma de concebir la cultura como producción simbólica y, al tiempo, tiene importantes consecuencias en la configuración del espacio público que compartimos, ya no sólo físicamente sino también en los nuevos espacios virtuales que han construido las redes sociales e internet, transformando así el imaginario social. digmáticos de hibridación discursiva. Por un lado, el “advertainment” supone la utilización creativa y publicitaria del storytelling, mediante la narración de historias donde la marca y/o producto tienen un protagonismo emergente o una presencia significativa y perfectamente imbricada en la historia relatada. Por otro lado, el “advergaming” se sirve del videojuego como estrategia para aproximarse al público, a través del juego y del contexto que a éste le rodea (distendido, cercano y con gran implicación del usuario), con el fin de llegar al consumidor y trasmitirle una imagen positiva de la marca. En este sentido, el discurso publicitario es, en sí mismo, un ejemplo canónico de hibridaciones discursivas. La convergencia mediática como ideología: las hibridaciones discursivas y la economía híbrida del entretenimiento remix El examen del auge de las hibridaciones discursivas, debe llevar a preguntarnos por qué es tan relevante, en especial, en el audiovisual contemporáneo esta tendencia. La respuesta podría venir de la mano del concepto de reconocimiento, también conocido en la retórica clásica como anagnorisis (Aristóteles) o anamnesis (Platón), en tanto que tentativa de explicación del funcionamiento textual de cierto tipo de relatos (Cave, 1988; Balló & Pérez, 2005), y que hemos estudiado en otro lugar, a propósito del melodrama cinematográfico (Marzal-Felici, 1998). En cierto modo, el reconocimiento es en sí mismo una fuente de placer o gratificación para el espectador que refuerza el efecto de identificación. La redundancia y serialidad (una propiedad decididamente metafórica) del cine de acción contemporáneo, como del melodrama fílmico (en su producción y consumo como espectáculo) repite hasta la saciedad las mismas fórmulas retóricas un número ilimitado de veces. A nuestro juicio, el reconocimiento o familiaridad de las estructuras antes enunciadas nos ayuda a comprender que numerosos films del cine mainstream son fruto de una rica y compleja hibridación de discursos audiovisuales y textos que terminan tejiendo la compleja trama de las películas, que así consiguen cautivar y seducir al espectador. En el contexto de la cultura popular contemporánea, Román Gubern ha subrayado, asimismo, la profunda revolución que supone la aparición de la imagen digital en nuestra cultura, en tanto que “ha devuelto la libertad de imaginación del pintor al ciudadano de la era fotográfica” (Gubern, 1996: 127 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 121-129, out. 2012/mar. 2013. MARZAL-FELICI, Javier. La convergencia mediática como ideología – algunas reflexiones sobre la evolución de la narrativa audiovisual en la era digital Europa un política de desregulación neoliberal que ha alimentado la idea de que las nuevas tecnologías de la información son la nueva “panacea de todos los males humanos”. De este modo, se ha terminando imponiendo el “discurso sobre la convergencia como nuevo motor tecnoutópico de la sociedad de la información”. La digitalización y la convergencia se han convertido en las claves que harán posible el “progreso económico y social”. Es necesario reconocer, desde una perspectiva crítica, que la llamada “Sociedad de la Información”, perfectamente sancionada por las Instituciones públicas y privadas de todo el mundo occidental, se ha convertido en una nueva mitología que alimenta “las ideologías y las utopías”, y “cómo ambas pueden armar a los gobernantes y estimular la obediencia de los gobernados” (Bustamante, 1998, p.45). Las hibridaciones discursivas, por su parte, han facilitado, como hemos visto, la producción de textos audiovisuales, así como su rápido consumo por una audiencia insaciable de nuevas imágenes, que en el fondo no son tan “nuevas”. Por todo ello, parece más necesario que nunca adoptar una posición crítica ante las imágenes, de lo que depende, no sólo la construcción de una ciudadanía crítica, sino también el futuro mismo de las democracias y del mundo en el que vivimos. 148), cuyas tecnologías icónicas se caracterizaban hasta ahora por su capacidad para “documentar” la realidad más que para “inventarla”, ya que su funcionamiento se basa en el registro de la luz en un soporte fotoquímico o electrónico. En el caso de la imagen infográfica, creadora de realidades virtuales, nos hallamos ante la aparición de una “nueva antropología de lo visible”, en palabras de Gubern. La función del lector / espectador es absolutamente transformada, mientras que la función y figura del narrador se desvanece. Todo ello provoca un brutal replanteamiento “entre sensorialidad y narratividad, entre mímesis y diégesis, entre percepción y estructura” (Gubern, 1996, p. 172). Probablemente, el campo que ha conocido más aplicaciones de la realidad virtual es el universo del videojuego, donde se ha explotado muy hábilmente el juego de gratificaciones y desahogos emocionales que nuestra sociedad “neurótica” necesita. La explosión cibercultural, cuyo máximo exponente es la realidad virtual, sólo posible gracias al desarrollo de las nuevas tecnologías de la información, lleva a Román Gubern a realizar la siguiente reflexión, que suscribimos: Es hoy una evidencia que la industria está basada en la tecnología, pero es activada por el poder financiero, que a su vez se moviliza por la expectativa de beneficios económicos, en razón de que sus productos industriales satisfagan deseos y apetencias colectivas, que a veces son generados o acelerados artificialmente por tales industrias (Gubern, 2000, p.218). Nota El presente estudio ha sido financiado con la ayuda del Proyecto de Investigación de la convocatoria Universitat Jaume I-Bancaja, titulado “Análisis de los flujos de transferencia de conocimiento entre los sistemas educativos superiores y la industria del videojuego”, código 11I301.01/1, para el periodo 2012-14, bajo la dirección del Dr. Javier Marzal-Felici. Estas palabras de Gubern parecen especialmente pertinentes, ya que subrayan la importancia de las fuerzas económicas como auténtico protagonista de la revolución digital que estamos viviendo. Lenta pero implacablemente se ha introducido en toda Referências AARSETH, E. (2001). Computer Games Studies, Year One. Revista Game Studies: The International Journal of Computer Game Research, v. 1, n.1. Disponible em: <http://www.gamestudies.org/0101/editorial. html>. Consultado el 20/07/2013. BALLÓ, J. & PÉREZ, X. (2005). Yo ya he estado aquí. Ficciones de la repetición. Barcelona: Anagrama. BOLTER, J.D. & GRUSIN, R. (2000). Remediation: understanding new media. Cambridge, Massachusstes y London, England: MIT Press. BUSTAMANTE, E. (1998). La sociedad de la información: Un largo camino de pensamiento utópico y crítico. In: PABLOS PONS, Juan de & JIMÉNEZ SEGURA, J. (Coord.). Nuevas tecnologías, comunicación audiovisual y educación. Madrid: CEDECS. 128 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 121-129, out. 2012/mar. 2013. MARZAL-FELICI, Javier. La convergencia mediática como ideología – algunas reflexiones sobre la evolución de la narrativa audiovisual en la era digital CASERO-RIPOLLÉS, A. & MARZAL-FELICI, J. (2011). Periodismo en televisión: nuevos horizontes, nuevas tendencias. Sevilla; Zamora: Comunicación Social, Ediciones y Publicaciones. CAVE, T. (1988). Recognitions. Oxford: Clarendon Press. CHERCHI USAI, P. (2001). The Death of Cinema. History, Cultural Memory and the Digital Dark Age. Londres: British Films Institute. [CHERCHI USAI, Paolo. La muerte del cine. Historia y memoria cultural en el medievo digital. Barcelona: Laertes, 2005]. COMPANY-RAMÓN, J.M. & MARZAL-FELICI, J. (1999). La mirada cautiva. Formas de ver en el cine contemporáneo. Valencia: Conselleria de Cultura de la Generalitat Valenciana. DARLEY, A. (2002). Cultura visual digital. Espectáculo y nuevos géneros en los medios de comunicación. Barcelona: Paidós. DEBORD, G. (1999) [1967]. La sociedad del espectáculo. Valencia: Editorial Pre-Texto. DOVEY, J. & KENNEDY, H. W. (2006). Game Cultures. Computer Games as New Media. Londres: Open University Press, McGraw-Hill Education. GUBERN, R. (1996). Del bisonte a la realidad virtual: la escena y el laberinto. Barcelona: Anagrama. GUBERN, R. (2000). El eros electrónico. Madrid: Taurus. JENKINS, H. (2008). Convergence Culture. La cultura de la convergencia de los medios de comunicación. Barcelona: Paidós. LASICA, J. D. (2005). Darknet. La guerra de las multinacionales contra la generación digital y el futuro de los medios audiovisuales. Madrid: Nowtilus. LESSIG, L. (2008). Remix: Making Art and Commerce Thrive in the Hybrid Economy. New York: Penguin Press. LÓPEZ RIERA, E. (2011). Nuevas prácticas audiovisuales e internet por un cine de autor. L’Atalante. Revista de estudios cinematográficos, Valencia, n. 13, p. 40-45. MARZAL-FELICI, J. (1998). David Wark Griffith. Madrid: Cátedra MENOTTI, Gabriel. (2012). Distribución digital de películas: compromiso tecnológico, transgresión institucional y experiencia mediática en el estreno en línea de Steal This Film II. L’Atalante. Revista de estudios cinematográficos, Valencia, n. 13, p.12-19. SÁEZ SORO et. al. (2011). Del cine al videojuego ¿Evolución, simbiosis o parasitismo? In: BORT GUAL, I. et. al. (Eds.). Actas del IV Congreso Internacional sobre Análisis Fílmico, Nuevas tendencias e hibridaciones de los discursos audiovisuales en la cultura digital contemporánea. Madrid: Ediciones de las Ciencias Sociales, p.1101-1117. SANMARTIN, J.F. (2012). Media, Crossmedia, Transmedia. L’Atalante. Revista de estudios cinematográficos, Valencia, n. 13, p. 34-39. VILCHES, G. Usos, estilos y formatos contemporáneos del audiovisual de apropiación en España. Disponible en: <http://www.foundfootagehoy.com>. Consultado el 20/07/2013]. Javier MARZAL-FELICI é catedrático de Comunicação Audiovisual e Publicidade e diretor do Departamento de Ciências da Comunicação da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Jaume I (Castellón, Espanha). E-mail: <[email protected]>. Recebido para avaliação em março de 2013. Aprovado para publicação em abril de 2013. 129 Duplicidades e contradições em Bernardo Carvalho: o estético e o político; o universal e o particular1 MELLO, Jefferson Agostini RESUMO O presente artigo visa a entender o lugar de Bernardo Carvalho no campo literário brasileiro e no espaço literário mundial. O ponto de partida é a análise de um dos seus romances, O sol se põe em São Paulo. Em seguida, depois de se depreender a estrutura do romance, busca-se relacioná-la com o suposto projeto literário do escritor, evidenciado em seus textos de crítica. Nota-se, assim, da leitura do conjunto, a ênfase do autor a referências literárias modernistas internacionais. Finalmente, analisa-se a recepção desse projeto literário cosmopolita na França, um dos centros da literatura mundial onde a obra do autor tem sido traduzida. A hipótese é de que tanto a construção do romance quanto essas referências explícitas são formas do autor brasileiro cosmopolita se inserir no espaço literário mundial e, ao mesmo tempo, combater a literatura brasileira marcadamente heterônoma, estabelecendo, assim, uma competição com seus pares locais. Palavras-chave: Ficção brasileira contemporânea – Bernardo Carvalho – O sol se põe em São Paulo – Literatura Mundial – Cosmopolitismo. ABSTRACT This article intends to place the author Bernardo Carvalho both in the Brazilian literary field and the world literary space. We start analyzing one of his novels, O sol se põe em São Paulo. In the following, after apprehending the novel structure, we try to connect it to the supposed writer’s literary project, presented in his texts of literary criticism. It will be revealing the author’s quotations of literary texts and authors from the international modernist canon. Finally, we analyze the reception of Carvalho’s cosmopolitan work in France, one of the centers of the world literary space and where many his novels were translated and published. Our hypothesis is that both the novel construction and those references are forms that the Brazilian cosmopolitan writer finds to put himself in a world literary space and, at the same time, to fight in Brazilian literary field, strongly heteronymous, establishing then a competition with his local pairs. Keywords: Brazilian contemporary fiction – Bernardo Carvalho – O sol se põe em São Paulo – World Literature – Cosmopolitanism. 1 Este artigo é a síntese de duas pesquisas. A primeira, realizada entre 2006 e 2008, em torno de quatro autores representativos da ficção brasileira contemporânea, entre eles Bernardo Carvalho, obteve auxílio do CNPq. A segunda, executada no primeiro semestre de 2012, visou ao estudo da inserção da obra Bernardo Carvalho no espaço literário internacional, mais especificamente no campo literário francês, e contou com uma bolsa de pós-doutorado da Fapesp. O autor agradece às duas agências. 131 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 131-144, out. 2012/mar. 2013. MELLO, Jefferson Agostini. Duplicidades e contradições em Bernardo Carvalho: o estético e o político; o universal e o particular A proposta deste ensaio é a de observar a produção de Bernardo Carvalho, um dos mais prestigiados ficcionistas brasileiros da atualidade, a partir das dinâmicas do campo e do espaço literários. Se, de um lado, ela tende a resultar de tensões particulares à literatura brasileira contemporânea – historicamente caracterizada por uma escrita política e socialmente interessada e por um mercado literário restrito, apesar da crescente profissionalização do escritor, de outro, mais do que simples documento do tempo presente, a obra de Carvalho deve ser lida como instância fundamental no processo de legitimação em um espaço literário cada vez mais globalizado, mas nem por isso simétrico ou isento de debates específicos.2 Em termos gerais, as narrativas e os ensaios de Bernardo Carvalho possuem temáticas up to date, escrita inventiva e um repertório internacional de referências. As repetidas menções explícitas e implícitas a ícones da literatura do século 20, a escritores do chamado alto modernismo, ao lado da atenção à forma, contribuem para o autor se diferenciar tanto da literatura mais próxima do grande público quanto daquela com forte teor político e/ou que visa a discutir questões brasileiras.3 Por meio de uma produção cujo foco é a linguagem, de uma leitura atualizada do que se está produzindo fora do país, na literatura e nas outras artes, e advogando em prol de uma literatura a serviço da imaginação e da própria literatura, Carvalho tem obtido destaque no campo literário brasileiro contemporâneo. As filiações estéticas de Bernardo Carvalho são perceptíveis tanto em seus textos de crítica quanto em seus textos ficcionais. Nesses, o elogio a uma literatura que nega o referente se dá menos pelo recurso da citação do que pela própria forma literária: além da dificuldade de compreensão da fábula, seus romances são repletos de enigmas, incongruências e aforismos que buscam desviar a atenção do leitor da história que está sendo contada. Ademais, na ficção de Carvalho, tudo parece se espelhar: o autor lança mão de recursos como a mise en abyme e a homologia; insere uma história dentro da outra; apaga a relação de causa e efeito entre os eventos; apresenta visões múltiplas de uma mesma personagem, que pode, eventualmente, compartir semelhanças com outras, inventa narradores que mais 2 Os conceitos de campo e espaço literário aqui utilizados têm como base as obras de Pierre Bourdieu (1996) e Pascale Casanova (2002). Campo se refere à relativa autonomia da produção e dos produtores literários e às tensões e disputas entre os agentes em sua busca de legitimação dentro de um determinado país. Espaço amplia essa ideia para uma escala mundial. Assim, Casanova (2002) argumenta que produções literárias particulares têm como norte o que ela chama de espaço literário mundial, um espaço onde autores competem entre si tendo como parâmetro as noções de autonomia e cosmopolitismo, capitais simbólicos próprios da cidade com mais acúmulo literário, Paris. Nesse modelo teórico por ela proposto, o campo literário francês dita os rumos e as modas literárias a serem seguidos por outros campos. Características como particular e universal, heterônomo e autônomo, regional e cosmopolita se tornam tempos diferentes de um mesmo espaço, mundial, e as obras literárias só se manifestam em sua singularidade a partir da totalidade da estrutura que permitiu seu surgimento. Cada livro escrito no mundo, e declarado literário, seria uma parte ínfima da “combinação” de toda a literatura mundial, que, por sua vez, seria o resultado do embate entre os autores, críticos e editores no afã de se aproximar cada vez mais de Paris. Da mesma forma, maior acumulação corresponderia a maior autonomia e a maior proximidade aos valores cosmopolitas, isto é, a uma linguagem literária mundial. Por outro lado, menor acumulação corresponderia a maior heteronomia e a maior dependência dos valores nacionais, políticos e ideológicos. Há, certamente, alguns problemas na proposta de Casanova, tais como o eurocentrismo e a ideia de embate, que, segundo ela, permearia qualquer ato estético. Cristopher Prendergast (2001) resenha o livro de Casanova e questiona se, além de embate, não haveria também negociação entre os autores. Queixa-se, ademais, da falta de análise interna dos textos de que Casa- nova se vale para construir seu modelo teórico. As críticas de Prendergast a Casanova estão de certo modo incorporadas neste ensaio. 3 Ao responder à questão proposta pelo jornal francês Libération, “O que é ser brasileiro hoje?”, Carvalho afirmou: “Esta questão é um antigo clichê, um antigo dilema da cultura brasileira. Ao contrário do que acontece em um país como a França, escritores, cineastas, artistas plásticos e músicos brasileiros aplicaram-se muito tempo, com mais ou menos ambição e sucesso, para produzir uma manifestação artística que fosse a expressão da identidade nacional deles. Evidentemente, esse fenômeno gerou incontáveis equívocos e todos os tipos de cabotinagens megalomaníacas, tirando a atenção do que era puramente artístico em nome de programas ideológicos e políticos que serviam para escamotear a mediocridade do que era apresentado como arte” (Carvalho, 2000). Optei por traduzir para o português todos os fragmentos de textos estrangeiros citados neste artigo. 132 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 131-144, out. 2012/mar. 2013. MELLO, Jefferson Agostini. Duplicidades e contradições em Bernardo Carvalho: o estético e o político; o universal e o particular complicam do que explicam. Enfim, pede do leitor mais atenção ao modo como a narrativa foi construída do que aos significados que ela pode trazer. São traços gerais que perpassam quase todos os textos desse ficcionista com “desejo de mundo” e se encontram ressaltados no romance O sol se põe em São Paulo (2007).4 Embora se passe em um espaço transnacional, essa narrativa tem seu início nos bairros da Liberdade e do Paraíso, na cidade de São Paulo. Ali, uma senhora japonesa, chamada Setsuko, que na segunda parte o leitor descobre se chamar Michiyo, conta para o narrador, um publicitário que frequentava seu restaurante, uma história de amor, ciúme e imposturas que ela teria vivido no Japão, antes, durante e logo depois da Segunda Guerra Mundial. Quem se encarrega de juntar as peças é esse publicitário, dublê de escritor e descendente de japoneses, que Setsuko-Michiyo acaba contratando para transcrever a sua história, a qual termina abruptamente com o desaparecimento dela. Divido em duas partes, o romance é completado com uma carta que ela deixou a uma das personagens, um ator de kyogen, Masukichi, por quem se apaixonou na juventude. Junto a um enredo labiríntico está a dificuldade de se periodizar os eventos em termos de uma sequência que nos permita apreender causas e efeitos. Em vez de advir da realidade social, a mudança drástica da trajetória das personagens, embora localizada historicamente no drama da Segunda Guerra Mundial, será resultado de ficções, internas à própria ficção. Num primeiro momento, a protagonista Michiyo, cega de ciúme e suspeitando se tratar de um caso amoroso, não consegue perceber que a relação de intimidade do seu marido Jokich com Masukichi, o ator, por quem ela também era apaixonada, vinha do passado em comum dos dois, isto é, do ódio de ambos ao nacionalismo extremista durante a guerra. Desesperada, sem entender a situação, ela narra suas desconfianças a um velho escritor para quem trabalha, para que este as publique em uma revista na forma de romance-folhetim. O efeito da paranoia (que para Bernardo Carvalho é também uma forma de ficção) e da vingança de Michiyo, assim como o da história publicada pelo escritor, levará as personagens ao desterro, mudará completamente seus destinos e possibilitará o que será narrado no conjunto do romance. Ou seja, a ficção precede o vivido. Essa ideia é, aliás, introduzida logo no início do romance, por meio de uma piada que o narrador faz de si próprio, mencionando um projeto pessoal que, retrospectivamente, considera estapafúrdio: uma dissertação de mestrado sobre a literatura como premonição, que antecipa os fatos a serem vivenciados pelos que a escrevem. A anedota, que poderia passar despercebida, é corroborada pela menção de que a história que estamos lendo, a qual o narrador escutou e transcreveu é a mesma presente nos romances de Junichiro Tanizaki, importante escritor japonês (um amigo seu, do departamento de línguas orientais de uma universidade, ressaltara-lhe a semelhança entre o que ele lhe contava e os romances de Tanizaki), de modo que a história, em princípio vivenciada por Michiyo e narrada em São Paulo ao narrador-publicitário, já teria sido escrita. Além disso, há a semelhança do velho escritor com Tanizaki, também explorada pelo narrador, e que teria vindo a São Paulo visitar a sobrinha. Segundo o publicitário, “não podia ser mera coincidência que o que ela [Setsuko-Michiyo] narrava [...] parecesse tanto com seus romances [de Tanizaki]”. A antecipação do ficcional à realidade, perceptível na voz do narrador, aparecerá também no plano do narrado, pela voz de uma das personagens. Na primeira parte do romance, quando Setsuko-Michiyo está trabalhando para o velho escritor, esta, que nunca lera uma obra dele, ganha da mulher dele um dos seus romances, reconhecendo ali a própria história: 4 O que não se dá sem contradições, como demonstrou Ivan Marques em artigo recente. Segundo a conclusão de Marques, que lê Nove noites, de Carvalho, em relação ao romance indianista de Alencar, mais especificamente Iracema, “com seu indianismo às avessas, Nove noites exprime, ao cabo, o mesmo dilema representado pelo romance de Alencar. Como descendente de Iracema, o escritor se sente dividido entre as raças invasoras e a sua própria gente, entre a admiração pelo estrangeiro e a procura (ressentida, contrariada) da sua frágil identidade” (Marques, 2010, p.250). [Setsuko] identificou-se de imediato com os personagens. Via correspondências sem fim com a sua própria vida. A começar pelas relações familiares, sobretudo com as irmãs. Aquele era o seu mundo. E ao mesmo tempo o mundo onde gostaria de viver. Seu entusiasmo pela descoberta foi tão grande que, mesmo não tendo coragem de manifestá-lo, deve ter sido visível. Tanto que na semana seguinte já ganhara outros dois volumes. E agora as correspondências entre os livros e a vida se estendiam também ao que tinha visto (ou suposto ver) nos últimos meses, nas 133 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 131-144, out. 2012/mar. 2013. MELLO, Jefferson Agostini. Duplicidades e contradições em Bernardo Carvalho: o estético e o político; o universal e o particular relações entre Michiyo, Masukichi e Jokichi (Carvalho, 2007, p.81). Portanto, seja no plano da narração ou no plano do narrado, reitera-se a mesma ideia de ficção como um universo autônomo, que ora determina, ora antecipa o vivido. Além disso, o romance cria um universo de correspondências (“entre os livros e sua vida”) que esmaece o que se costuma chamar de “real” e o ficcionaliza, em busca de um outro tipo de real. É o que o narrador quer dizer por meio de uma citação do próprio Tanizaki, bem ao final do romance: N’O elogio da sombra, Tanizaki diz que a beleza oriental nasce das sombras projetadas no que em si é insignificante. O belo nada mais é do que um desenho de sombras. Os ocidentais são translúcidos; os orientais são opacos. Ninguém veria a beleza da lua de outono se ela não tivesse imersa na escuridão (Carvalho, 2007, p.164). O que faz a lua de outono intrigante e bela é o fato de estar obscurecida. Eis o trabalho da ficção: não consiste em dizer algo a respeito de um objeto; mas compô-lo, alterando-o. E é nessa composição, isto é, “desenho de sombras”, signos, traços, que não levam a lugar algum fora dele, que ele, o objeto, vive. Ao receber o tratamento do artista, deixa de se referir (de ser translúcido) para ser ficção, em toda a sua potência. Com efeito, essa ideia de que a ficção faz viver um objeto, ou a realidade, ou, então, de que os determina, aparece em vários planos do romance (narrador, personagem, enredo). Forma-se, então, uma rede de homologias, que contribui para estruturar um universo sem saída, autorreferente. O sol se põe em São Paulo não apenas trata da ficção como um mundo à parte (ou do mundo como ficção). É estruturado em torno da ideia de que o referente está perdido, a única consistência real é a própria linguagem. Isso é perceptível na breve menção à dissertação de mestrado do narrador, na relação entre as personagens, que parecem estar dentro de uma peça de teatro; na correspondência das narrativas do escritor com a história de Michiyo. E mesmo o tempo “em que as mentiras se revelam”, no qual Michiyo contou sua história para o velho escritor, corresponde não apenas à casa do bairro do Paraíso (onde ela própria teria conta a “sua” história ao narrador-publicitário), mas à própria ficção, um tempo onde as mentiras (e não as verdades) se revelam, isto é, onde as mentiras são contadas, e permanecem sendo mentiras. Ao analisar os romances Nove noites e Mongólia, Yara Frateschi Vieira percebeu neles os espelhamentos a que o narrador submete o leitor, artifícios que acabam criando suspense, deixando o “leitor sempre à espera da grande revelação” (Vieira, 2004, p.203). Esta seria, segundo a autora, a homossexualidade de Carvalho, que ela percebe refratada pela estrutura narrativa. Para ela, o jogo de espelhos e reflexos, as distorções, as identidades diluídas ou esgarçadas, os painéis folhetinescos, tudo isso parece constituir o esconderijo possível para o autor situar “um mundo secreto cheio de sinais e momentos, medos e preconceitos”, na esteira de um passado literário que “não é puro [...]; é dúbio e escorregadio, e requer uma enorme dose de solidariedade e de compreensão”, conforme reflete Colm Tóibín ao referir-se ao passado homossexual expresso na literatura (Vieira, 2004, p.206). Vieira toca em dois aspectos centrais da narrativa de Carvalho: os espelhamentos, que, como vimos, criam um universo tautológico, de correspondências, em nome da ficção, e a impureza, reveladora de uma faceta que valeria explorar também em O sol se põe em São Paulo. Aqui, a impureza remeterá, sobretudo, aos párias, ao desacordo entre as personagens, e à incompletude dessas. De fato, as personagens desse romance dependem de suas histórias para existir. Mais do que isso, dependem dos outros para contar suas histórias. Michiyo se apresenta ao narrador como Setsuko, leva-o para uma casa que mais parece um teatro japonês e fala de Michiyo, de si mesma, como se fosse de outra pessoa. O leitor e o narrador também acreditam que ela se chama Setsuko, e não passa de uma testemunha de uma história de amor vivida por outra pessoa. Tal recurso, antes de ser um artifício para enganar leitor e narrador, remete ao que Sophia Beal, ao estudar o romance Nove noites, entendeu como agenciamento, construção identitária que se dá pelo viés da ficção. Michiyo se transforma em personagem para assim reconstruir, por meio da história de Jokichi, tanto a própria identidade quanto a dele, com a ajuda de outro, isto é, do narrador, que, por meio deles, também construirá a sua, tornando-se escritor. De acordo com Beal, nossas histórias não são construídas apenas por nós ou apenas pelos outros. Elas são negociadas entre nós e os outros. Ao tratar do personagem Buel Quain, de Nove noites, Beal assinala: “o foco de Carvalho não são as questões epistemológicas sobre quem era Quain, mas, 134 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 131-144, out. 2012/mar. 2013. MELLO, Jefferson Agostini. Duplicidades e contradições em Bernardo Carvalho: o estético e o político; o universal e o particular antes, questões sobre como Quain e o narrador negociam, performatizam e constroem as suas identidades” (Beal, 2005, p.136). Portanto, nas histórias de Carvalho, as ficções inventam a realidade. Mais ainda, elas contribuem para compreendermos que, além de resultar de narrativas, as identidades – e as verdades – não são estáveis. Ao contrário, são incompletas e transitórias. No caso específico do narrador, este não apenas busca reconstruir as trajetórias de Michiyo e Jokichi como também depende daquelas: sua frustração por não ser um escritor será provisoriamente cancelada, graças à missão a que foi designado. Mas, ao mesmo tempo em que a narrativa alheia pôde fazê-lo reviver um sonho – e ajudá-lo a compreender o seu passado – ela acaba por revelar o que os discursos falseiam: a incompletude. Ao final do romance, na viagem de volta do Japão, depois de ter cumprido seu desígnio, ele reconhecerá a incompletude de todos os indivíduos: “De repente, como se estivesse esquecido tudo, tive vontade de chorar por todos no mesmo avião, indo para algum lugar, acreditando em alguma coisa, todos com um passado, com alguma coisa perdida e talvez pouca por encontrar” (Carvalho, 2007, p.162-163). Constatação não muito diferente da de Jokichi, que encomenda sua história para Setsuko, que a encomenda ao narrador-publicitário, pois “ninguém nunca vai poder contar nada. Quem conta são os outros” (Carvalho, 2007, p.160). As relações entre as personagens acionam não mais do que provisoriamente seu modo de ser. Ou seja, este vai depender de como e com quem negociam: Masukichi é amante de Michiyo, a quem submete seus caprichos; concomitantemente, é aliado do marido desta, numa missão nobre, para salvar a honra de Jokichi. Na constituição de sua identidade de jogador-ator teriam sido fundamentais não só o teatro kyogen, mas principalmente o ódio aos ultranacionalistas, que trataram sua família e sua companhia de teatro como párias. Em uma sociedade que o rejeitava, não lhe dava lugar, Masukichi agia por reação e atuava (jogava) com Michiyo; de sua parte, uma filha-família fascinada por ele, mas que, ao mesmo tempo, precisava encontrar um marido, que vai amar apenas quando a este, Jokichi, será impossível amá-la, pois ele precisará desaparecer para se vingar de quem lhe roubou a honra. Assim, todas as personagens do romance estão perpassadas pelos signos do trânsito, da incompletude e da contradição. São párias, como outras personagens de Nove noites e Mongólia. Segundo a voz do narrador, o que Michiyo me propôs foi um aprendizado e um desafio. Deve ter reconhecido em mim a insatisfação que também a fez correr até onde o sol se põe quando devia nascer e nasce quando se pôr, para revelar tempos sombrios. Deve ter reconhecido o desacordo em mim. Quis me tomar por escritor, o que não sou. E me fazer escrever na frente de batalha, “onde a civilização encontra a barbárie e deixa entrever o que dela traz em si”, nesta cidade que não pode ser o que é, uma história de homens e mulheres tentando se fazer passar por outros para cumprir a promessa do que são: um ator a quem proíbem atuar; um homem que precisa deixar de ser quem é para lutar pelo país que o rejeita; outro que já não pode viver com o próprio nome, pois morreu numa guerra de que não participou; uma mulher que só ama quando não podem amá-la; um escritor que só pode ser enquanto não for. Uma história de párias, como eu e os meus, gente que não pode pertencer ao lugar onde está, onde quer que seja, e sonha com outro lugar, que só pode existir na imaginação em nome da qual ela me contou uma história que pergunta sem parar a quem ouve como é possível ser outra coisa além de si mesmo (Carvalho, 2007, p.163-164). “O oposto é o que mais se parece conosco”, sugere o narrador nas linhas finais do romance. Ou, ainda, o “si mesmo” pressupõe seu outro, aquele que peremptoriamente se nega, mas o que, ainda que na sombra, acaba constituindo o sujeito. Não há termos positivos, definitivos, e, numa inversão surpreendente, notamos que, no romance, são os párias os responsáveis pela construção de sentidos. De um lado, há, em O sol se põe em São Paulo, imanência, espelhamentos, uma máquina textual aparentemente engrenada e sem brechas. De outro, há os párias, que remetem a modos de ser em desacordo, uma crítica aos discursos totalitários e totalizantes. Trata-se de duplicidade que reverbera também nos textos de crítica do ficcionista, nos quais se vê uma concepção de literatura baseada tanto na autossuficiência da linguagem e da literatura, quanto na importância desta para revelar o que há de paradoxal e contraditório no humano. Dito de outro modo, a reivindicação do impuro, em Carvalho, se liga, contraditoriamente, à firme defesa da literatura enquanto espaço autônomo, não contaminado por outros discursos. Em seu texto “Impasse da consciência”, publicado em O mundo fora dos eixos, a literatura é vista como uma linguagem de exceção, que revela o desconhecido. 135 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 131-144, out. 2012/mar. 2013. MELLO, Jefferson Agostini. Duplicidades e contradições em Bernardo Carvalho: o estético e o político; o universal e o particular Para Blanchot, nomear é a morte das coisas, a impossibilidade de confrontar o desconhecido que é o próprio homem, e a palavra literária seria uma forma de escapar desse círculo ao levar em conta e afirmar seu próprio vazio, sua descontinuidade, os paradoxos, as contradições que a linguagem de uso corrente tenta excluir e dissimular. O desconhecido só poderia ser conhecido por uma linguagem que é posta em jogo (Carvalho, 2005, p.213). crise dos universais e à busca de um individualismo radical. Contudo, a reiteração de um cânon modernista e de uma pureza literária não seria o oposto da crítica pós-moderna e desconstrucionista aos meta-relatos, entre eles os universais literários? A que se deve essa combinação no mínimo contraditória? E, na sequência do argumento, o desconhecido, os paradoxos e as contradições surgem outra vez na linguagem. Agora, seguindo Foucault, é a vez de diferenciá-la do que este autor entende como discurso. Uma hipótese é a de que subjaz ao ideário estético, de culto da forma e elogio da ficção, por meio do qual o desconhecido se descortinaria, o vínculo conflituoso do nosso autor com outros modos de se fazer literatura no Brasil, com os quais ele parece dialogar o tempo todo, embora tenda a desconsiderá-los em quase todos os seus ensaios e entrevistas. Essa concepção de arte e de literatura, da qual Bernardo Carvalho seria um dos jovens representantes, pode ser fruto de disputas com outros autores, outras posições, muitas delas radicalmente distintas da dele. São disputas em torno de projetos literários, relativamente novas no Brasil, e talvez se refiram à maior profissionalização do campo literário, mais livre, pelo menos desde os anos de 1980, das injunções da política e do Estado, apesar de mais cerceado pelas forças do mercado. Em um texto recente, publicado na Luso-Brazilian Review, ele explicita a ideia de uma literatura de reação a leitores que só querem ver a realidade figurada na obra e enuncia o lugar central de O sol se põe em São Paulo nesse projeto: *** Num belo texto sobre Blanchot intitulado La pensée du Dehors [...], Michel Foucault diz: “Na verdade, o acontecimento que fez nascer o que em sentido estrito chamamos ‘literatura’ só é da ordem da interiorização para um olhar artificial; trata-se muito mais de uma passagem ao ‘exterior’: a linguagem escapa ao modo de ser do discurso – isto é, à dinastia da representação –, [...] o ser da linguagem só aparece por si mesmo no desaparecimento do sujeito” (Carvalho, 2005, p.213-214). Oposta à dinastia da representação, a literatura se tornará uma existência superior, mas, ao mesmo tempo, reveladora das profundezas contraditórias do humano. Essa ideia, que é central no pensamento e na arte de Bernardo Carvalho, já pode ser lida em uma resenha dele sobre Paul Valéry, de 1999. Ali, a arte literária, tanto para o resenhista quanto para o resenhado, é o oposto da indústria cultural, do gosto médio, da cultura de massas. Ela é uma linguagem dentro da linguagem, “que resiste à linguagem usual, da simples comunicação” (Carvalho, 2005, p.196). Para Valéry, segundo Carvalho, a literatura não se conforma com o que existe, mas anseia pelo que não existe. O que se depreende, seja da forma literária de O sol se põe em São Paulo, seja do discurso crítico de Bernardo Carvalho, é que, para ele, em primeiro lugar, a literatura está além da linguagem corrente e das contingências da realidade, condicionada cada vez mais à sociedade de consumo. Em segundo lugar, a literatura que resiste, isto é, se mantém pura, afastada do cotidiano, consegue revelar o que a linguagem corrente ou o discurso não conseguem ou tentam esconder: o desconhecido, as incongruências e, da mesma forma, a identidade como falta. Não seria difícil vincular essa concepção dúplice de literatura ao alto modernismo e à teoria da desconstrução, cujas derivações nos conduzirão à Para meu completo espanto, esses livros (principalmente aquele que trazia o antropólogo e os índios [Nove noites] e aquele escrito depois de uma viagem à Mongólia [Mongólia]) acabaram sendo lidos retrospectivamente como autobiografia e diário de viagem. E isso se deu em parte porque relacionei a experiência do antropólogo à minha própria infância com meu pai no Amazonas e porque realmente viajei para a Mongólia antes de escrever um romance chamado Mongólia. Dei-me conta de que aquilo com o que estava lutando era mais forte do que pensava. Foi então que comecei a conceber, em reação a tudo isso, um livro chamado O sol se põe em São Paulo, como um artificial, deliberado e elogioso manifesto à ficção como uma ferramenta de libertação. Nesse livro, todas as personagens são ou japonesas ou descendentes de japoneses, de modo que não há aparentemente nenhum traço do autor no relato, nenhuma possibilidade de reduzir o romance à experiência imediata do autor ou a seu passado. É um livro sobre os poderes da literatura tal como os viemos percebendo através da moderna tradição ocidental, 136 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 131-144, out. 2012/mar. 2013. MELLO, Jefferson Agostini. Duplicidades e contradições em Bernardo Carvalho: o estético e o político; o universal e o particular enquanto força criativa potencial de uma singularidade subjetiva e radical (Carvalho, 2010, p.4-5). de James Joyce, o exemplo máximo da literatura entre seus contemporâneos. Também não é à toa que tenha escrito os romances que escreveu. É preciso ir contra o seu tempo para alcançá-lo. Ulisses, por exemplo, cria uma “realidade antecipatória”. Não basta à literatura fazer a ilustração da sua época (ou da ciência da sua época). Não basta observar e descrever a realidade. Não basta representar a atualidade. É preciso ir além. Forma e conteúdo devem estar integrados. A forma já é a ideia, o que permite que o relato de uma pacata dona de casa seja eventualmente muito mais forte e violento que as memórias do mais implacável dos matadores. É isso o que há de mais surpreendente e libertário em literatura (Carvalho, 2005, p.90). Antes de qualquer coisa, cabe notar nesse trecho a preocupação do autor com a recepção de sua obra no Brasil, o que ajuda a confirmar a hipótese de um diálogo e de uma disputa que se travam entre agentes de um espaço literário nacional. Ainda, fica evidente que, ao optar por uma estética de exceção, no Brasil, Carvalho precisa ao mesmo tempo se associar, como forma de validar sua escolha, ao que há de mais prestigioso fora daqui e, principalmente, ao que é mais universal, ou seja, à já estabelecida tradição ocidental moderna. Porque, segundo Pascale Casanova, “em termos literários, um clássico se coloca além de toda a competição temporal (e desigualdade espacial)” (Casanova, 2005, p.76). E será justamente essa opção pelo que estaria acima do tempo e do espaço que acabará por situá-lo historicamente – a despeito de ele mesmo negar qualquer relação passada ou presente com sua biografia. Para melhor qualificar a empreitada estética de Bernardo Carvalho, que se liga à sua inserção avançada no campo literário brasileiro, podem ser úteis os argumentos de Fredric Jameson, na conclusão de O pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Escreve Jameson que o artista modernista podia pensar sua carreira a partir do desejo de se tornar o “‘maior pintor’ (ou poeta, ou romancista, ou compositor) ‘da época’” (Jameson, 1996, p.311), e isso porque a temporalidade moderna era desigual: “Algumas partes da economia são arcaicas, há enclaves de produção artesanal; algumas são mais modernas e futuristas do que o próprio futuro” (Jameson, 1996, p.311), a ponto de ser possível a utopia de uma sociedade diferente da que se desenhava, sugerindo-se, inclusive, retornos a formas arcaicas de produção. Assim, o modernismo, para Jameson, ainda era um tempo de gigantes com poderes lendários não mais ao nosso alcance. Em uma primeira visada, os posicionamentos de Bernardo Carvalho poderiam ser lidos a partir dessa perspectiva heroica do modernismo, já que sua verve, em seus textos sobre arte e literatura, é disparada contra o mercado e contra o consumo fácil, em nome de uma escrita inventiva, que aponte para o inusitado. Coerente com esse ideário descrito pelo teórico estadunidense, veja-se o que Carvalho depreende da leitura de Ulisses, feita por Hermann Broch: Vale atentar aí para expressões como “realidade antecipatória”, “é preciso ir além”, ou “é isso o que há de surpreendente e libertário em literatura”, que se contrapõem à ideia de uma escrita conformada, que serve de exemplo de algo, que apenas observa a realidade e ou a atualidade. O trabalho formal, em vez do conteúdo e das boas intenções, liberta, traz-nos a verdade mais profunda e nos abre novas perspectivas em nosso tempo. Em outro texto, sobre Agape Agape, de William Gaddis, Carvalho torna precisa a diferença entre o moderno e pós-moderno, diminuindo este. Embora, segundo o ficcionista brasileiro, Gaddis, “um dos principais inovadores da prosa americana nos anos 50”, tenha aberto o caminho “para o que acabou conhecido, de forma simplista e generalizada, como literatura pós-moderna” (Carvalho, 2005, p.25), seria um equívoco lê-lo como um escritor pós-moderno, já que, pelo que se depreende do texto, esse termo se vincula à literatura de falsificações, e feita para agradar. Em oposição a isso, o que Agape Agape revela é a nostalgia do que era mais caro e fundamental ao projeto da literatura moderna, a nostalgia da juventude de uma arte e de uma literatura verdadeiras, capazes de tudo. Em seu “canto do cisne”, Gaddis lembra apenas o que os seguidores da escola das convenções tentam ocultar: a liberdade do romance (Carvalho, 2005, p.27). Mas é possível à literatura do presente recuperar essa face heroica e libertária do modernismo? É possível, como quer Carvalho, aplicar ao momento em que vivemos a lógica de resistência modernista vinculada a um tempo de monopolismo capitalista que, no entanto, ainda deixava brechas para a resistência se instalar? Contudo, o projeto de Bernardo Carvalho não Não é por acaso que ele [Broch] via em Ulisses, 137 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 131-144, out. 2012/mar. 2013. MELLO, Jefferson Agostini. Duplicidades e contradições em Bernardo Carvalho: o estético e o político; o universal e o particular visa apenas a isso. Há outras ambições em jogo, fazendo com que o elogio do pária e da incongruência fiquem pormenorizados em seus escritos. Idealmente, o autor parece querer se inserir no que poderíamos chamar de uma sociedade mundial da literatura. Se não consegue, ao menos tal reivindicação pode aumentar as condições do escritor brasileiro antenado de se fazer ouvir internamente, em um espaço literário como o nosso, bastante marcado pela literatura socialmente interessada. a editora já publicou dois livros de Luiz Ruffato, um de Cristóvão Tezza, um de Silviano Santiago, e acaba de publicar Adriana Lisboa e João Almino. A sua proprietária, Anne Marie Métailié, que das ciências humanas migrou para as literaturas lusófona e hispânica,5 conheceu Carvalho quando ele, correspondente da Folha de S. Paulo em Paris, entrevistou-a. Ela ficara impressionada com sua inteligência e acabaram se tornando amigos. Ele só entraria para a editora dela a partir do quarto livro lançado na França, Mongólia – os três primeiros, Aberração, Bêbados e Sonâmbulos e As iniciais, foram publicados pela editora Rivages. Mas, desde que tomara conhecimento de sua literatura, Anne Marie Métailié, que faz questão de dizer que não publica aquilo pelo qual não se apaixona, buscava trazer Carvalho para a própria editora.6 Para ela, independentemente da reputação que o autor possa ter em seu país de origem, a opção por traduzir uma obra passa necessariamente pelo seu crivo crítico, e a literatura de Carvalho teria caído bem no gosto dela. Entre os aspectos da sua *** No texto “As coleções de literatura estrangeira”, Gisèle Sapiro argumenta que “as formas de universalização [em termos de estratégia dos atores, mas também dos modos de valorização de suas obras] variam das mais politizadas às mais despolitizadas”: “o modo de universalização politizado sublinha a dimensão moral ou ainda a dimensão histórica e memorial da literatura”. Em oposição a este, o modo de universalização despolitizado consiste em valorizar a potência geral e a qualidade literária da obra sem levar em conta qualquer particularismo, quer se trate as suas qualidades formais, de sua inscrição na literatura universal (pela referência mais ou menos implícita aos clássicos do passado), de sua dimensão auto-referencial, ou ainda da expressão de ponto de vista individualistas ou subjetivistas reenviando a experiências que podem ser partilhadas além das fronteiras geográficas ou temporais (Sapiro, 2008, p.207). 5 Em entrevista a Isabelle Roche, ela explica: “[...] comecei publicando obras de ciências humanas. Depois me dei conta de que havia lacunas na literatura: alguns livros estrangeiros, que eu havia lido, não existiam em francês, ou, se existiam, as traduções eram péssimas. Era preciso agir, e foi com a publicação de escritores brasileiros que me lancei à publicação de textos literários”. Disponível em: <http://.lelitteraire.com/article1149.html>. Acesso em: 3 maio 2012. Em entrevista a mim concedida, em abril de 2012, que transcorreu em português, língua em que, aliás, se expressa muito bem, Anne-Marie Métailié disse que seu interesse pela literatura brasileira viria do curso de graduação em Letras que ela teria feito na juventude, quando foi aluna de Marlise Meyer. À época, ela teria assistido, igualmente, a uma disciplina ministrada por Antonio Candido, quando da passagem dele por Paris. Ela também traduzirá Candido para o francês (Littérature et sous-développement. L’endroit et l’envers, Paris, Métailié; Unesco, 1995). Quando não referenciadas, as informações referentes a Anne-Marie Métailié são provenientes dessa entrevista. 6 Assim ela me relatou o encontro com Carvalho: “Ele me entrevistou e o achei muito, muito inteligente e nos demos muito bem. Ficamos mais ou menos em contato, e quando ele publicou os primeiros livros eu fiquei muito decepcionada por ele não tê-los me proposto. Ele passou por uma rede de amigos meus e seus livros foram publicados pela Rivage”. Do ponto de vista da estratégia do autor, é possível afirmar que a obra de Bernardo Carvalho busca participar desses dois universalismos, pois, apesar de reivindicar a literatura como um tipo de linguagem superior, desinteressada, sobre os espaços muitas vezes indeterminados e fluidos, está também em jogo, em seus escritos, a crítica das identidades fixas e estáveis, como, por exemplo, o nacionalismo e o compromisso da literatura com a realidade brasileira. Com efeito, é justamente esse caráter universal duplo (politizado/despolitizado) das narrativas de Carvalho que será notado por uma parte da crítica cultural da França, país onde o autor brasileiro tem conseguido boa inserção. Lá, ele é hoje publicado pela editora Métailié, considerada pequena, mas com boa reputação entre os leitores mais exigentes. Dos ficcionistas brasileiros contemporâneos de maior prestígio atualmente, 138 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 131-144, out. 2012/mar. 2013. MELLO, Jefferson Agostini. Duplicidades e contradições em Bernardo Carvalho: o estético e o político; o universal e o particular São Paulo, cujo lead é: “Um milhão de descendentes de imigrantes japoneses vivem em São Paulo. O romancista brasileiro descreve de forma magnífica essa comunidade que não se esquece de onde vem” (Lapaque, 2008). No geral, contudo, as análises da obra de Carvalho na França semelham a esta, sobre Bêbados e sonâmbulos: literatura que mais chamam atenção de Anne-Marie Métailié estão o medo e a paranoia, que o autor explora tanto como elemento de criação, quanto tema. Ademais, segundo ela, Carvalho sabe contar histórias: Ele trabalha de uma maneira muito inteligente o tema do medo. Ele se coloca sempre, por meio dos seus textos, em situações de medo. E é muito, muito... Tem muito talento. Por outro lado, ele conta histórias, e isso para mim é muito importante. Acho que a literatura não é só estilo. Então, ele constrói uma obra... O seu português é um encanto. Eu gosto. Elaborada como um quebra-cabeça e conduzida com um virtuosidade suficientemente alucinada, não se consegue resumir a intriga; ela funciona tanto como suspense quanto como metáfora da ficção, que multiplica os efeitos de espelho e as myses en abyme, para significar, no fim das contas, o arbitrário poético de toda fábula (Gabriel, 1998, p.62). Em contraste com Anne-Marie Métailié, que tem como critério para a escolha dos seus autores a capacidade deles de narrar, isto é, de contar uma história,7 os críticos franceses valorizam, sobretudo, os traços estéticos – narrativos – e políticos (político entendido a partir da tipologia de Sapiro) da obra de Carvalho. Elogiam o trabalho formal, em quase todas as resenhas de todos os romances. Escrevem, igualmente, sobre o parentesco da obra do autor brasileiro com a de Jorge Luis Borges, sobre a técnica da mise en abyme, sobre o detetivesco, que inclui, no caso, a investigação sobre a própria forma literária. Ainda, são trazidos à baila aspectos relativos à autobiografia em Nove noites, como, por exemplo, no lead da resenha do jornal Le Monde – “Bernardo Carvalho segue a pista de um antropólogo e remonta em direção a seus próprios fantasmas” (Cortanze, 2005, p.V) – ou no artigo de Michele Gazier, para o Télérama, sobre o mesmo romance: “Carvalho não pinta seu próprio coração, atribuindo-o a um outro, mas vai ao limite de sua própria busca” (Gazier, 2005, p.34). Ainda, no caso de O sol se põe em São Paulo, Véronique Rossignol, do Livres Hebdo, ao mesmo tempo em que ressalta a complexidade da estrutura do romance, chama-o de “uma história de honra e humilhação” (Rossignol, 2008, p.4). No conjunto da recepção crítica francesa da obra de Bernardo Carvalho, que é, talvez, o ficcionista brasileiro contemporâneo mais resenhado na França, há poucos artigos sobre o conteúdo explícito dos romances. Exceções seriam as publicadas no jornal Le Fígaro, como essa, sobre O sol se põe em Nesse sentido, para a mídia cultural francesa, ou ao menos parisiense, Bernardo Carvalho aparece como um autor de forma difícil, cosmopolita, comparado eventualmente com outros escritores já consagrados, como Borges, Beckett e Conrad. E não deixa de ser curioso que essas leituras por assim dizer universalizantes e positivas de suas obras venham seguidas de notas biográficas sobre o seu domínio do idioma francês e sobre sua relação com a cultura francesa, o que parece reforçar, junto ao público francês, o cosmopolitismo do autor. Por exemplo, Claude Michel Cluny, no Le Figaro, inicia seu artigo da seguinte forma: “Brasileiro nascido em São Paulo, íntimo de Paris, Bernardo Carvalho começa pelo mais difícil: os contos” (Cluny, 1997); já, na revista Les Inrockuptibles, Fabrice Gabriel escreve: “Bernardo Carvalho é um falso tímido, mas um verdadeiro romancista e um autêntico viajante. O que não significa que os livros desse brasileiro perfeitamente francófono (ele foi correspondente da Folha de São Paulo em Paris) sejam assimiláveis a simples relatos exóticos... (Gabriel, 1998, p. 62)”; também Véronique Rossignol destacará o “francês perfeito” de Carvalho (Rossignol, 2008, p. 4). Em maio de 2005, ano do Brasil na França, a revista Le Magazine Littéraire publicou um artigo sobre a literatura brasileira contemporânea em que é ressaltada, justamente, a faceta cosmopolita da nova produção, tendo como destaque, no caso, o romance Budapeste, de Chico Buarque, e também Mongólia, de Bernardo Carvalho. Segundo Erwan Desplanques, 7 “Digamos que as preferências acabarão desenhando uma linha editoral, porque as preferências, não as temos do nada, é óbvio. Se precisasse definir um fio condutor, eu diria que publicamos livros que contam histórias”. Entrevista a Isabelle Roche (op. cit.). no momento em que a França eleva as cores do país deles, com reforço de muito samba e clichês ameríndios, os autores parecem desgostar suas origens. Nenhuma palavra sobre os jogadores de futebol, nem sobre os dançarinos (sic) de capoeira. Fim 139 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 131-144, out. 2012/mar. 2013. MELLO, Jefferson Agostini. Duplicidades e contradições em Bernardo Carvalho: o estético e o político; o universal e o particular cebe o jornalista de Le Magazine Littéraire, gostaria de frisar que a representatividade da língua literária de Carvalho pode, ao fim, limitá-lo à condição de autor nacional. E isso graças às especificidades do espaço de recepção, no caso, o francês. Como se sabe, no Brasil, atualmente, o consumo frequente de uma literatura mais rebuscada se deve, praticamente, aos leitores especialistas (escritores, professores universitários, alunos de graduação e pós-graduação de cursos de letras e ciências humanas) e as instancias de consagração são formadas, sobretudo, por esse tipo de leitor. Já, na França, além dos críticos – que podem ser tanto os jornalistas culturais quanto os acadêmicos, além dos próprios escritores9 – as livrarias têm um papel crucial na difusão, divulgação e seleção das obras, e o livreiro, mais do que um mero vendedor, é um mediador importante. De acordo com Priscilla Clark, para quem o estatuto da literatura na França tem a ver com raízes aristocráticas ainda hoje presentes: do realismo social. Os homens de letras desertaram o Brasil, renegando tanto suas tradições quanto seus estereótipos. O destino é a terra de ninguém literária onde, desvinculados das preocupações identitárias dos mais velhos, eles podem enfim propor o universal (Desplanques, 2005, p.80). Apesar de certo exagero, caso se observe de perto a produção literária contemporânea, com suas coleções “estrangeiras” como a Amores Expressos (Companhia das Letras), com suas participações em feiras de livro internacionais, e com seus romances “desterritorializados”, o comentário parece correto: aponta para uma das tendências da literatura brasileira contemporânea, que, como estou tentando demonstrar, é ressaltada na produção de Bernardo Carvalho. No entanto, como se verá, esse desejo de buscar o universal se choca na maioria das vezes com a realidade local, quer dizer, com o espaço de recepção estrangeiro. Assim, duplicidades e contradições aparecem não apenas na obra de Carvalho, mas também no modo como seus leitores a recebem. Em seu texto “Consagração e acumulação de capital literário: a tradução como câmbio desigual”, Pascale Casanova divide em quatro grupos as línguas dominadas: as orais ou aquelas cuja escrita foi fixada recentemente; as de criação ou recriação recente, que se tornaram em um momento de independência uma língua nacional; as de cultura ou de tradição antiga ligadas aos países “pequenos”, como o holandês, o dinamarquês; as de grande difusão, com muitos falantes, mas pouco conhecidas no mercado literário internacional, sendo, portanto, literariamente dominadas. Assim, o português – ou o “brasileiro”, como é divulgada pela editora Métailié, a língua na qual Bernardo Carvalho escreve – faz parte desse último grupo. Apesar de uma suposta mudança de posição de nossa literatura no espaço literário mundial, agora talvez mais autônoma, isto é, mais próxima do centro desse espaço,8 como per- Apesar dos avanços técnicos e de um mercado bastante expandido, a comercialização em larga escala chegou à França relativamente tarde, e uma razão certamente recai na percepção de editores e livreiros de que a sua tarefa é “nobre”, portanto distante do comercialismo vulgar do mercado (Clark, 1979, p.1066-1067). Anne-Marie Métailié corrobora essa observação. Mesmo em um momento em que a França se depara com a massificação do mercado cultural, a editora de Bernardo Carvalho na França privilegia literários melhores dotados de capital e, de outro, os campos nacionais desprovidos ou em formação e que são dependentes no que toca as instâncias políticas – nacionais na maioria dos casos. Podemos notar uma homologia de estrutura entre cada campo nacional e o campo literário internacional: os campos nacionais se estruturam também segundo a oposição entre um polo autônomo e cosmopolita, e um polo heterônomo, nacional e político. Essa oposição se encarna, notadamente, na rivalidade entre os escritores ‘nacionais’ e os escritores ‘internacionais’” (Casanova, 2002/2004, p.8). 9 Em texto que abre uma edição de 2012 da revista Les Temps Modernes, em número dedicado à crítica – Les Critiques de la Critique –, Antoine Compagnon reevoca Thibaudet para abordar o estado das três críticas, ainda válidas na França de hoje: de jornalistas, escritores e professores universitários (Compagnon, 2013, p.11). 8 De acordo com essa autora, em fragmento que, aliás, resume bem as teses de seu livro A república mundial das letras, “a partir da revolução nacional herderiana, o campo literário mundial, formado da quase totalidade dos campos literários nacionais, estrutura-se de modo durável, ao mesmo tempo segundo o volume e a antiguidade do capital e segundo o grau correlativo de autonomia relativa de cada campo literário nacional. O espaço literário internacional é, portanto, ordenado segundo a oposição entre, de um lado, um polo autônomo, os campos 140 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 131-144, out. 2012/mar. 2013. MELLO, Jefferson Agostini. Duplicidades e contradições em Bernardo Carvalho: o estético e o político; o universal e o particular o trabalho dos livreiros: tradição com a propensão, na França, em classificar as literaturas de acordo com as línguas e os países, o que reenvia ao postulado de uma autonomia relativa das literaturas nacionais, enquanto as obras que se referem mais à literatura universal que à tradição nacional são cada vez mais numerosas, em particular nas literaturas periféricas (Sapiro, 2008, p.205). Focalizamos no trabalho dos livreiros! Então, mandamos o serviço de imprensa até os livreiros, discutimos com eles. Eles convidam os autores, fazem debates com o público porque eles têm credibilidade. Têm um papel importante na cultura e têm um papel social muito importante porque agora as livrarias que funcionam bem se tornam lugar de encontro, de sociabilidade. Então, trabalhamos diretamente com o leitor. E também tem as Feiras de Livro.10 O verbo “reenviar”, empregado aqui por Sapiro, aponta para uma marca que é raramente apagada e é a que prevalecerá quando se olha para o autor estrangeiro da periferia do espaço literário mundial, com raras exceções. Geralmente, o que o público francês busca nesse tipo de autor é a expressão de uma cultura nacional (Sapiro, 2008, p.203).11 Isso explicaria, em boa medida, a escolha das capas de dois livros de Carvalho para a edição francesa, em que o específico ganha o lugar do universal. Por exemplo, a foto da contracapa de Nove noites, da edição brasileira, em que se vê um Bernardo Carvalho criança, de mãos dadas com um índio – este em indumentária típica – será a capa da edição francesa. Trata-se, assim, do oposto do que sugerem o conjunto da capa e da contracapa da edição brasileira. Na capa brasileira, de autoria de um fotógrafo francês apaixonado pelo Brasil, Marcel Gautherot, intitulada Porto, temos uma imagem em primeiro plano de um navio ancorado, ao lado dos guindastes, e, em segundo plano, navios no horizonte, partindo e chegando. Assim, a viagem, na capa brasileira, com todas as metáforas que ela carrega (deslocamento, desidentificação), em uma foto sem a presença da figura humana, dá lugar, na capa francesa, a uma imagem tipificada, em que se ressalta a figura de um índio enorme com uma criança. Essa foto, ao ser colocada, na edição brasileira, como antítese da foto da capa, permite ver no conjunto certa ironia, na exploração do contraste entre o geral e o particular. Com efeito, a mesma mudança do universal ao particular parece valer para as capas de O sol se põe em São Paulo, em que a imagem de uma megalópole, que poderia ser tanto São Paulo quanto Tóquio, Portanto, além de receber uma resenha em um jornal de prestígio, dá reputação a um autor, na França, o fato de sua obra ocupar as estantes das livrarias tradicionais, que, no caso, distinguem-se das do tipo “grande surface”, como as FNAC. Melhor ainda se ocupar as primeiras bancadas, onde são expostos os lançamentos e as preferências dos livreiros, que são, antes de vendedores, leitores e selecionadores dos produtos que oferecem. O problema para os autores estrangeiros é que, em Paris, as livrarias separam os autores por línguas e nacionalidades. Por mais cosmopolita que seja, só por escrever em português, um autor como Bernardo Carvalho terá sua obra colocada na parte, sempre reduzida, destinada à literatura lusófona. Sobre essa contradição, escreve Gisèle Sapiro: As estratégias de universalização podem variar, do apagamento das referências de tempo e espaço à sua acentuação de uma maneira distanciada, irônica, estetizante ou exótica, com piscadas de olhos aos símbolos de uma cultura “mundial” em formação, que se elabora e se difunde largamente a partir de Nova Iorque. Elas invariavelmente entram em con10Christian Roblin, diretor da SOFIA (Société Française des Interets des Auteurs de l’écrit), em entrevista concedida a mim, afirma que o que sustenta o funcionamento do mercado do livro e da edição na França são as livrarias “e o fato de termos uma rede de livrarias. A edição é essencialmente um mercado de oferta. É isso! Isso conta muito! Portanto, o livreiro tem seu papel ainda. Ainda porque, com a edição digital, essas livrarias estão fragilizadas e têm menos chance de sobreviver. O dia em que desaparecer o circuito de livrarias independentes haverá muita dificuldade para a edição. Porque a edição vive também dessa proximidade, do calor das pessoas que passam por lá. Aí está! Mas, de todo modo, é um pouco impactante [...]. Eu vou bastante às livrarias para ver, porque é sempre interessante. Vejo que há sempre pessoas dentro delas. Elas estão sempre cheias”. 11Na conversa que tive com Olivier Desmettre, coordenador do festival Lettres du Monde, de Bordeaux, este destacou que o público que assiste aos escritores estrangeiros no festival constitui-se, em grande parte, de interessados ou no país, ou na sua cultura, ou, ainda, no seu idioma. Em 2005, o Lettres du Monde homenageou o Brasil. Estiveram presentes na ocasião, entre outros, Luiz Ruffato e Betty Mindlin, ambos autores publicados pela Métailié. 141 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 131-144, out. 2012/mar. 2013. MELLO, Jefferson Agostini. Duplicidades e contradições em Bernardo Carvalho: o estético e o político; o universal e o particular da edição brasileira, é substituída pela fotografia de uma mulher japonesa em luto, reenviando o leitor ao conteúdo explícito do romance e jogando contra as duplicidades – São Paulo/Tóquio, dia/noite, luminosidade/obscuridade – que, como se viu, o romance parece explorar, sem resolver. Assim, a capa “autoriza” a leitura que o resenhista do Figaro faz do romance. De modo que as edições francesas ressaltam o que Sapiro entende como a dimensão exótica, chamada por alguns editores de etnográfica, a qual, segundo ela, remete a um particularismo despolitizado, próximo de uma lógica heterônoma, mas que tem sido o olhar sobre as literaturas estrangeiras na França (Sapiro, 2008, p.206). A própria editora, Anne Marie Métailié, escolheu pessoalmente as duas capas para as edições francesas e optou pelo particular em detrimento do universal, pensando talvez no mercado potencial para os romances de Bernardo Carvalho. Como assinala Pierre Bourdieu, em artigo sobre a circulação internacional das ideias (Bourdieu, 2008), o sentido e a função de uma obra estrangeira são determinados tanto pelo campo de chegada quanto pelo campo de origem, e isso por duas razões: porque o sentido e a função no campo de origem tendem a ser completamente ignorados e porque a transferência de um campo a outro se faz por meio de uma série de operações sociais, como, por exemplo, a seleção e as estratégias de valoração, que vão desde a escolha do tradutor à do prefaciador, nas quais se podem aplicar categorias de percepção e problemáticas próprias de um campo de produção diferente. No caso de Bernardo Carvalho, há certa homologia entre sua obra e a editora na qual ela é publicada, no sentido de ambas fazerem parte do polo de produção restrita. Por outro lado, trata-se de editora conhecida, sobretudo, por ser especialista em literaturas nacionais e línguas semiperiféricas (o espanhol) e periféricas (o português). As tradutoras dos romances de Carvalho, que poderiam, também, imputar maior valor à obra dele, não são figuras destacadas no campo literário francês.12 Amenizaria, quem sabe, a recepção desigual, quando comparada à sua posição de destaque no Brasil, o fato de Carvalho conseguir ele mesmo se posicionar na mídia cultural francesa, controlando, de certo modo, a recepção de uma obra de ambição cosmopolita.13 Em um espaço literário dominante como o francês, Bernardo Carvalho acaba tendo um lugar dúplice: autor universal, por boa parte da crítica cultural, e autor específico, de uma língua e de uma literatura dominadas, por parte de outros mediadores e, supõe-se, do público leitor, com o reforço das estratégias da editora francesa, por onde sua obra é publicada. Como explica Pascale Casanova, “a inegalidade linguístico-literária implica que o valor de um texto literário – seu valor no mercado dos bens literários – depende, ao menos em parte, da língua na qual ele é redigido” (Casanova, 2002/2004, p.14). *** Ao acionar o referencial estrangeiro já consagrado, ao se filiar ao grand monde da literatura mundial, demonstrando suas credenciais aos de dentro, Bernardo Carvalho se constrói, internamente, como o mais cosmopolita dos nossos escritores. Um dos efeitos desse empenho é que, para setores da crítica literária brasileira, Carvalho é visto como autor cosmopolita e, portanto, em tempos de mundialização literária, acaba sendo bem cotado aqui dentro. Para fora, contudo, ele figura como um autor brasileiro. Recuperando um fragmento do romance, sua história como escritor, dentro do espaço literário, é um pouco a de suas personagens, “gente que não pode pertencer ao lugar onde está, onde quer que seja, e sonha com outro lugar, que só pode existir na imaginação” (Carvalho, 2007, p.164). Referências BEAL, S. (2005). Becoming a character: an analysis máticas”, como, por exemplo, um Valérie Larbaud tradutor de Joyce, nem “consagradoras institucionais”. 13De acordo com Anne-Marie Métailié: “O Bernardo [Carvalho] tem uma vantagem enorme para um editor porque ele fala muitos idiomas, então, quando vem pode dar entrevistas diretamente, pode participar de debates, diretamente. E pode participar em emissões de rádio. Isto é importantíssimo para a recepção da obra pelos leitores!”. 12 As tradutoras de Carvalho na França são Marivonne Lapouge-Pettoreli, para Aberração, Bêbados e sonâmbulos e As iniciais; e Geneviève Leibrich, para Nove noites, Mongólia, O sol se põe em São Paulo e O filho da mãe. Segundo categorias de Casanova (2002/2004), não são nem “consagradoras caris142 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 131-144, out. 2012/mar. 2013. MELLO, Jefferson Agostini. Duplicidades e contradições em Bernardo Carvalho: o estético e o político; o universal e o particular of Bernardo Carvalho’s Nove noites. Luso-Brazilian Review, v. 42, n. 2, p. 134-149. BOURDIEU, P. (2002). As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras. _____. (2002). Les conditions sociales de la circulation internationale des idées. Actes de la recherche en sciences sociales, v. 145, p. 3-8. CARVALHO, B. (2007). O sol se põe em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras. _____. (2013). O que é ser brasileiro hoje? Libération, Paris, 17/04/2000. Disponível em <http://www.liberation.fr/tribune/0101331704-les-500-ans-du-bresil-qu-est-ce-qu-etre-bresilien-aujourd-hui-la-question-a-toujourshante-le-pays-qui-sombre-dans-un-desenchantement-sur-les-valeurs-o-que-e-ser-brasileiro-hoje>. Acesso: em 25 jul. 2013. _____. (2005). O mundo fora dos eixos: crônicas, resenhas e ficções. São Paulo: Publifolha. ______. (2010). A trama traiçoeira de Nove noites (entrevista). Disponível em <http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/1586,1.shl>. Acesso em: 11 jun. 2010. _____. (2010). Fiction as exception. Luso-Brazilian Review, v. 47, n. 1, p. 1-10. CASANOVA, P. (2002). A república mundial das letras. São Paulo: Estação Liberdade. _____. (2002-2004). Consécration et accumulation de capital littéraire: La traduction comme échange inégal. Actes de la recherche en sciences sociales, n. 144, p. 7-20, 2002/2004. _____. (2005). Literature as world. New Left Review, n. 31, p. 71-90. CLARK, P. P. (1979). Literary Culture in France and the United States. American Journal of Sociology, v. 84, n. 5, p. 1057-1077. CLUNY, C. M. (1997). Récits diaboliques. Le Figaro, Paris, 15 maio. COMPAGNON, A. (2013). Quand les écrivains ne s’aimaient pas. Les Temps Modernes, n. 672, p. 8-14. CORTANZE, G. (2005). Traque intérieure en Amazonie. Le Monde, Paris. DESPLANQUES, E. (2005). Pourquoi le Brésil. Le Magazine Littéraire. Paris, n. 442. GABRIEL, F. (1998). Faux-semblants. Les inrockuptibles. Paris, 25 mar. 1998. GAZIER, M. (2005). La fée anthropologie. Télérama, Paris, 24 ago. 2005. HOLLANDA, H. B. (2004). Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/1970. Rio de Janeiro: Aeroplano. JAMESON, F. (1996). Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática. LAPAQUE, S. (2013). Tokyo-Sao Paulo, aller-retour. Le Figaro Littéraire. Paris, 13/11/2008. Disponível em: <http://www.lefigaro.fr/livres/2008/11/13/03005-20081113ARTFIG00417-tokyo-sao-paulo-aller-retour-.php>. Acesso em: 30 jul. 2013. MARQUES, I. (2010). O rastro do caracol: o dilema da identidade em Bernardo Carvalho. Teresa: revista de Literatura Brasileira, n. 10-11, p. 236-248. MÉTAILIÉ, A. M. (2013). Entrevista a Isabelle Roche. Disponível em: <http://.lelitteraire.com/article1149. html>. Acesso em: 3 maio 2013. PRENDERGAST, C. (2001). Negotiating World Literature. New Left Review, n. 8, p. 100-121. RESENDE, B. (2008). Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no século XXI. Rio de Janeiro: Casa da Palavra; Biblioteca Nacional. ROSSIGNOL, V. (2008). Au pays du soleil couchant. Livres Hebdo, Paris. SAPIRO, G. (2008). Les collections de littérature étrangère. In. Translatio: le marché de la traduction en 143 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 131-144, out. 2012/mar. 2013. MELLO, Jefferson Agostini. Duplicidades e contradições em Bernardo Carvalho: o estético e o político; o universal e o particular France à l’heure de la mondialisation. Paris: CNRS Éditions. VIEIRA, Y. F. (2004). Refração e iluminação em Bernardo Carvalho. Novos Estudos CEBRAP, n. 70, p. 195206. Jefferson Agostini Mello é professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH/USP), atuando nos programas de pós-graduação em Estudos Culturais (EACH) e em Literatura Brasileira (FFLCH), ambos da Universidade de São Paulo (USP). E-mail: <[email protected]>. Recebido para avaliação em março de 2013. Aprovado para publicação em abril de 2013. 144 Os heróis do ensaio de Euclides da Cunha Carvalho, Ricardo Souza de Resumo A partir de menções esparsas que Euclides da Cunha fez ao escritor britânico Thomas Carlyle, entre 1894 e 1903, propõe-se uma concepção do gênero ensaio que orienta as obras Os Sertões e Contrastes e confrontos. Carlyle teria oferecido a Euclides uma representação da História emocionante como a literatura e baseada na figura paradigmática do herói. No entanto, o autor brasileiro modifica essa matriz devido às determinações do meio brasileiro. Palavras-chave: Euclides da Cunha – Thomas Carlyle – Ensaio – Herói. Abstract From Euclides da Cunha’s mentions about the British writer Thomas Carlyle, between 1894 and 1903, proposes a discussion about essay genre in the works Rebellion in the Backlands and Contrastes e confrontos. Carlyle would have offered to Euclides a representation of the history as literature, based on the paradigmatic figure of the hero. However, the Brazilian author modifies this perspective due to the Brazilian context. Keywords: Euclides da Cunha – Thomas Carlyle – Essay – Hero. do Recife”, a exemplo dos livros Ensaios e estudos de Filosofia e crítica (1875), de Tobias Barreto e Ensaio sobre a Filosofia do Direito (1895), de Silvio Romero. Os títulos geralmente trazem outros termos para realizações que podem ser entendidas como ensaio, a exemplo dos livros Aspectos da Literatura Colonial Brasileira (1896), de Oliveira Lima, e Escritos e discursos literários (1901), de Joaquim Nabuco. Contudo, a fortuna crítica euclidiana tem se valido do termo ensaio com certa frequência para caracterizar textos que transitam entre a literatura e outros campos do conhecimento, em consonância Ao que se saiba, Euclides da Cunha nunca utilizou a palavra ensaio para designar sua obra em prosa não ficcional, Os Sertões (1902) e as coletâneas que reúnem parte de sua produção jornalística, Contrastes e confrontos (1907) e À margem da História (1909). Essa ausência da denominação ensaio não seria exclusividade de Euclides, pois no Brasil não havia um uso extensivo como na Europa do século 19. Tomando apenas os títulos das obras, a palavra estaria circunscrita ao estudo de uma área mais específica e de viés cientificista, propostos sintomaticamente pelos membros da chamada “Escola 145 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 145-150, out. 2012/mar. 2013. Carvalho, Ricardo Souza de. Os heróis do ensaio de Euclides da Cunha com um gênero variável na forma e nas intenções. Além disso, tal abordagem vincula-se mais a uma tradição ensaística do pensamento brasileiro, em detrimento das relações dos escritos de Euclides com uma prática literária que se consolidava na Europa do século 19. A imprensa promoveu a expansão do que se pode chamar ensaio.1 Como indício de seu reconhecimento literário, os ensaios poderiam ser publicados em livro, formando uma obra coesa ou uma coletânea. Mas, ao que tudo indica, Euclides desconfiava da relevância do livro que nascia das páginas efêmeras dos jornais. Em grande parte, os textos produzidos para o jornal representavam para ele uma espécie de esboço para uma obra mais bem acabada. Dessa maneira, a série “Canudos (diário de uma expedição)”, que enviou como correspondente de guerra a O Estado de São Paulo, entre agosto e outubro de 1897, é uma preparação – ou ainda ensaio – para Os Sertões. Aliás, o próprio jornal anunciara que, além das reportagens, também faria estudos para “escrever um trabalho de fôlego”, um “valioso documento para a história nacional” (Andrade, 2002, p.130). Cioso quanto ao impacto que sua obra de estreia causaria, o escritor apenas se permitiu divulgar um “Excerto de um livro inédito”, em 19 de janeiro de 1898, referente ao capítulo III da parte O Homem. Talvez a percepção de uma literatura fácil e fragmentária tenha afastado Euclides da divulgação jornalística e do termo ensaio, preferindo a dignidade do livro inédito, ancorado na ciência e na historiografia. Por esses motivos, não seria de se estranhar um aparente desprezo com que Euclides comentou a primeira coletânea de seus textos jornalísticos, em carta de 31 de dezembro de 1906 ao amigo Escobar: Um editor português (com a mania do suicídio) reuniu uns vinte artigos meus, pespegou-lhe o título Contrastes e confrontos, pediu um prefácio ao Bruno – o fantástico Pereira de Sampaio – e arranjou um livro que dentro de 15 dias aqui chegará. Não será bem um livro – mas agradeço ao Joaquim Leitão (o tal descabeçado) o pensamento. Tais artigos são uma espécie de filhos naturais do espírito, mais descuidados, talvez, porém às vezes dignos do nosso amor (Galvão; Galotti, 1997, p.322). Por um lado, existe um esforço em desqualificar uma publicação que não chega a ser um livro e se eximir de qualquer responsabilidade: os textos são minimizados como “uns vinte artigos” publicados por um terceiro longínquo e não confiável. Por outro, contraditoriamente, Euclides releva a falta do “descabeçado” editor português, ao confessar certo sentimento para com esses “filhos naturais do espírito, mais descuidados, talvez, porém às vezes dignos do nosso amor”. Embora não se trate do livro “vingador” e bem planejado de 1902, tal linguagem familiar, não usual em Euclides, pode trair uma ilustre filiação. Na advertência ao Leitor, Michel de Montaigne, que em 1595 lançara o gênero ensaio reverenciado pelos séculos seguintes, apresentava-se sem pretensões: “[...] eu não me propus a nenhum fim, a não ser doméstico e privado [...] Eu quero que me vejam em minha maneira simples, natural e ordinária, sem estudo e artifício. [...] Assim, Leitor, sou eu mesmo a matéria de meu livro [...].” (Montaigne, 2001, p.53). Tal perspectiva subjetiva da tradição do ensaio pode justificar a inclusão em Contrastes e confrontos do texto inédito “A Esfinge”, que traz a indicação “De um diário da revolta” e a data de 8 de fevereiro de 1894. Em meio ao narrador da história e do analista da política internacional, predominantes nos demais ensaios, surge o próprio Euclides aos 28 anos registrando o encontro furtivo na calada da noite com o presidente Floriano Peixoto, quando dirigia as obras de fortificação em plena Revolta da Armada, deflagrada no ano anterior. Em lugar do discurso sobre um momento crucial para o regime republicano ao feitio do jornalista militante, o diário estimula o experimento do narrador que faz as vezes de um ficcionista em torno da tensão das tarefas em terra firme, da ameaça dos navios ancorados na baía mergulhada na escuridão e de suas conjecturas. Não se sabe se “A Esfinge” seria a recuperação de um diário da juven- 1 Alexandre Eulalio (1992, p.50) comentou a interdependência entre ensaísmo e jornalismo no Brasil: “[...] Sinônimos imperfeitos, articulismo e ensaísmo são obrigados a coincidir de todo nas condições do Brasil; [...] Daí a importância das seções fixas ou da colaboração constante em jornais e revistas, coletadas mais tarde em volume. [...] Muito mais corrente em nossa literatura pode parecer ao primeiro momento, e por isso aceita como irremediável, o universal da prática fez com que o articulismo de ensaio fosse com o tempo considerado a forma mesma da expressão do gênero, votando a uma irrecorrível efemeridade mesmo aquilo que de mais importante pudesse aparecer debaixo dessa forma. Sem ter sido o único, Sílvio Romero foi o ensaísta que de maneira mais veemente se recusou a esse fragmentarismo consagrado, preferindo seccionar, revistas e folhas afora, seus estudos quase todos eles de dimensões ponderáveis”. 146 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 145-150, out. 2012/mar. 2013. Carvalho, Ricardo Souza de. Os heróis do ensaio de Euclides da Cunha tude não preservado, reconstrução da memória ou até mesmo uma interseção dos dois; o que importa é considerá-la peça seminal para a compreensão do ensaio de Euclides. Ainda no começo, ele expõe o dilema entre as atribulações da profissão de engenheiro e a dedicação às letras, que marcaria sua trajetória. Diante da mudança das obras de fortificação do morro da Saúde para as Docas Nacionais, uma afeição literária o redimiria de uma situação tão adversa às suas inclinações: “Acompanhei-os; e não esqueci um adorável companheiro e mestre, Thomas Carlyle, em cujas páginas nobremente revolucionárias me penitencio do uso desta espada inútil, deste heroísmo à força e desta engenharia mal-traçada...” (Cunha, 1995, p.200). A menção tão destacada ao escritor britânico Thomas Carlyle (1795-1881) pode explicar alguns parâmetros da obra euclidiana. Muito lido e discutido no século 19, Carlyle, assim como Euclides, enveredou-se pela prosa não ficcional, mas com estreitos vínculos literários. Na melhor tradição de um gênero que nesse momento tinha a Inglaterra como principal modelo, publicou inúmeros ensaios sobre os mais variados assuntos em periódicos como o prestigioso Edinburgh Review, que depois comporiam uma série de volumes. A história é um de seus maiores interesses nos ensaios e em obras de maior fôlego, sendo French Revolution: a History (1837) uma das mais conhecidas. O elogio das “páginas nobremente revolucionárias”, feito por Euclides, talvez se refira a esse livro, uma vez que a Revolução Francesa estimulara os ideais republicanos de sua poesia de juventude. Portanto, em 1894, quando Euclides ainda se dividia entre a poesia e os textos jornalísticos como forma de expressão, a leitura de Carlyle pode ter sido reveladora de uma maneira empolgante e expressiva de se escrever sobre o que ocorreu, semelhante à de um poema épico ou de um romance. Enquanto na Europa, nesse final de século 19, a história se afastara da literatura para se especializar como disciplina legitimada pela ciência, tal recuo de Euclides a um escritor anterior à consolidação desse processo indica uma estratégia frente às condições de produção de conhecimento no Brasil ainda não propícias a essa separação. Além disso, por mais que se encarasse como homem de ciência, não se livrava de uma sensibilidade romântica que o fazia se identificar com autores e obras dos anos de 1830 e 1840. A biografia foi o gênero por excelência escolhido por Carlyle para combinar a história e a ficção narrativa: “A História do mundo nada mais é que a biografia dos grandes homens” (Dosse, 2009, p.163). Muitas vezes, a forma do ensaio, em livres pinceladas, criava um quadro ou um perfil da personagem histórica tomada como um herói superior a todos e condutor dos acontecimentos. Ao contrário do distanciamento entre o autor e seu objeto exigidos pela história científica, Carlyle ansiava por uma interpenetração entre as partes: “Não basta julgar o herói, é preciso também transfundir nele o próprio eu” (Dosse, 2009, p.164). O autor britânico idealizou uma tipologia de heróis em seis categorias representadas por figuras proeminentes: o herói como divindade (Odin, da mitologia e do paganismo escandinavos); profeta (Maomé); poeta (Dante e Shakespeare); predicador (Lutero e John Knox); homem de letras (Rousseau, Johnson e Burns); e soberano (Cromwell e Napoleão). Este último encarnaria um espírito revolucionário, que reuniria em si as possibilidades da perfeição política: “Que em todos os países encontremos o homem que, que o elevemos ao patamar supremo da nação e que o tratemos com a mais leal deferência: eis o único meio de instaurar um governo perfeito” (Dosse, 2009, p.165). Ao acreditar na nobre concepção de herói proposta por Carlyle, o jovem Euclides não a reconheceria em seu entorno, a começar pelo seu “heroísmo à força”. E, acima de todos, Floriano Peixoto decepcionaria esse ideal. Como se fosse uma aparição fantasmagórica, o presidente surge sorrateira e anonimamente apenas no fecho do ensaio. O narrador se fixa em sua fisionomia, cujo desenho esboça em traços incisivos um parecer sobre a personagem: “A meia penumbra da claridade em bruxuleios, lobriguei um rosto imóvel, rígido e embaciado, de bronze; o olhar sem brilho e fixo, coando serenidade tremenda, e a boca ligeiramente refegada num ríctus indefinível – um busto de duende em relevo na imprimidura da noite, e diluindo-se no escuro feito a visão de um pesadelo.” A derradeira frase reduz a alusão mitológica à constatação prosaica: “... e a Esfinge, quebrando a imobilidade da pedra, veste um paletot burguês e vem – desconfiadamente confiante – rondar os lutadores...” (Cunha, 1995, p.204). Dez anos depois, Euclides voltaria a Floriano no ensaio “O Marechal de Ferro”, divulgado inicialmente em O Estado de São Paulo, e recolhido em Contraste e confrontos. Mesmo sem citá-lo diretamente, Euclides ainda considerava o tipo do “herói-soberano” de Carlyle. Ao contrário da fama de Floriano em seu tempo, o atributo não lhe cor147 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 145-150, out. 2012/mar. 2013. Carvalho, Ricardo Souza de. Os heróis do ensaio de Euclides da Cunha responderia sob um exame recuado, tornando-se uma espécie de “herói negativo”, uma vez que seu crescimento pressupunha a queda do país: Segundo Euclides, o poeta satírico teria se sobressaído por ser o fruto mais expressivo de um Brasil em formação: O herói, que foi um enigma para os seus contemporâneos pela circunstância claríssima de ser um excêntrico entre eles, será para a posteridade um problema insolúvel pela inópia completa de atos que justifiquem tão elevado renome. É um dos raros casos de grande homem que não subiu, pelo condensar no âmbito estreito da vida pessoal as energias dispersas de um povo. Na nossa translação acelerada para o novo regímen ele não foi uma resultante de forças, foi uma componente nova e inesperada que torceu por algum tempo os nossos destinos. Assim considerado, é expressivo. Traduz de modo admirável, ao invés de sua robustez, a nossa fraqueza. O seu valor absoluto e individual reflete na história a anomalia algébrica das quantidades negativas: cresceu, prodigiosamente, à medida que prodigiosamente diminuiu a energia nacional. Subiu, sem se elevar – porque se lhe operara em torno uma depressão profunda. Destacou-se à frente de um país, sem avançar – porque era o Brasil quem recuava, abandonando o traçado das suas tradições... (Cunha, 1995, p.129). Mais do que o homem, biologicamente falando, Gregório de Matos foi um admirável órgão social quase passivo, feito uma alavanca, cuja força eram as próprias forças coletivas: uma máquina simples em que se corporizaram muitas tendências da raça nova que surgia. Foi “herói” na alta significação dada à palavra pelo dramático Carlyle: prefigurou, fundindo-se na sua individualidade isolada, muitos aspectos de um povo. E passou pela vida obedecendo à fatalidade mecânica de uma resultante intorcível: incorrigível, rebelde sempre à visão estreita dos que pensavam morigerá-la, como se houvesse preconceitos ou regras para estes avant-coureurs das nacionalidades, títeres privilegiados, arrebatados pelas leis desconhecidas da história. Foi um grande sacrificado o desenvolto folgazão! E maior que os seus êmulos, de Juvenal a Bocage, a sua sátira, em que pese ao tom ferocíssimo e maligno, pertence-lhe menos do que às rebeldias nascentes e relaxamentos inevitáveis de uma sociedade em que se chocavam os vícios de um povo velho, agravados pela “bebedeira tropical” e os instintos inferiores de duas raças bárbaras. Desta alquimia horrorosa, tendo como reagentes o deslumbramento solar, a canícula mordente e a terra fecunda, só podia surgir naquela retorta Bahia desmedida aquele precipitado. Foi tão natural e espontâneo que ainda não se extinguiu. Difundiu-se em dois séculos, e aí está, impressionante, nesta adorável capadoçagem nacional que atenua em boa hora a nossa melancolia de semibárbaros... (Cunha, 1997, p.155). Euclides, no entanto, vislumbrou no período colonial alguns “heróis” na acepção de Carlyle em duas figuras antípodas. A primeira delas seria “Anchieta”, matéria do ensaio publicado em O Estado de São Paulo, em 9 de junho de 1897, por ocasião das comemorações do quarto centenário da morte do jesuíta, e reunido em Contrastes e confrontos. A “missão evangelizadora” com os indígenas faria de Anchieta “síntese de uma época”, uma espécie de “herói-predicador”: um “Grande homem, segundo a definição profunda de Carlyle, a sua história abrange um largo trecho da nossa própria história nacional” (Cunha, 1995, p.145). Mais tarde, entusiasmado com o “perfil literário” sobre Gregório de Matos escrito por Araripe Junior, remontou mais uma vez a Carlyle, à luz das condições do meio brasileiro, trocando a “Providência divina” pela “fatalidade biológica”. A carta ao amigo, de 12 de março de 1903, expande-se em um ensaio, cuja forma, mais livre do que os textos publicados, é percebida e interrompida pelo próprio Euclides: “Mas noto a tempo o desgarrão que me desorienta, escrevendo, rápido, estas linhas, tomando-lhe o tempo e expondo aí, desalinhadas e em flagrante, a impressão ou antes uma das impressões que me deixou seu belo livro.” (Cunha, 1997, p.155-156). Insinuaria Euclides uma categoria brasileira, a do “herói-capadócio”? De todos os modos, uma outra Bahia, a dos sertões, obrigara Euclides a ampliar a tipologia dos heróis de Carlyle, a do “herói-pelo avesso”. A reportagem de 23 de agosto de 1897 enviada a O Estado de São Paulo, como muitas outras, configura-se na forma de ensaio para o livro em gestação. O retrato do líder dos canudenses, Antonio Conselheiro, oscila entre a ojeriza do “monstro” e o fascínio pelo “herói-profeta” que liderava uma multidão de fanáticos: 148 [...] À medida que nos avantajamos no passado aparecem de um modo altamente expressivo as diversas fases da existência desse homem extraordinário – fases diversas, mas crescentes e sempre numa sucessão harmônica, lógicas nas suas mais bizarras ma- revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 145-150, out. 2012/mar. 2013. Carvalho, Ricardo Souza de. Os heróis do ensaio de Euclides da Cunha Mesmo não sendo a Arábia, Euclides escreveu um “capítulo fulgurante” sobre Antonio Conselheiro ao estilo de Carlyle, o capítulo IV da parte “O Homem” d’Os Sertões. O gênero biográfico delimita a personagem como súmula de toda uma coletividade: “A sua biografia compendia e resume a existência da sociedade sertaneja.” (Cunha, 2001, p.257). E assim como os heróis positivos de Carlyle, mas no sentido inverso, Antonio Conselheiro ao mesmo tempo conduz a todos e é conduzido por uma força maior: nifestações, como períodos sucessivos da evolução espantosa de um monstro. Diante de tudo isto, é singular a teimosia dos que de algum modo o querem nobilitar, alteando-o ao nível de simples mediocridade agitada ou maníaco imbecil, quase inofensivo – arrancando-o, erguendo-o da profunda depressão em que jaz como homem fatal, tendo diametralmente invertidos todos os atributos que caracterizam os verdadeiros grandes homens. Tudo é relativo; considerá-lo um fanático vulgar é de algum modo enobrecê-lo. A matemática oferece-nos neste sentido uma apreciação perfeita: Antonio Conselheiro não é um nulo, é ainda menos, tem um valor que aumenta segundo o valor absoluto da sua insânia formidável. Chamei-lhe por isto, em artigo anterior – grande homem pelo avesso. Gravita para o minimum de uma curva por onde passaram todos os grandes aleijões de todas as sociedades. Mas está em evidência; não se perde no anonimato da mediocridade coletiva de que nos fala Stuart Mill, embora seja inferior ao mais insignificante dos seres que a constituem. (Cunha, 2000, p.122-123). O evangelizador surgiu, monstruoso, mas autônomo. Aquele dominador foi um títere. Agiu passivo, como uma sombra. Mas esta condensava o obscurantismo de três raças. E cresceu tanto que se projetou na História. (Cunha, 2001, p.268). Parcimonioso em revelar suas fontes, Euclides não menciona Carlyle em Os Sertões como fizera nos ensaios esparsos. Contudo, para Joaquim Nabuco, leitor familiarizado com o ensaio inglês, era fácil detectar a sombra de Carlyle em Euclides. A rejeição d’Os Sertões, externada em carta a Graça Aranha de 1903, relaciona-se a uma diversa recepção de Euclides e Nabuco do ensaio inglês do século 19: Desta vez, as imposições do meio seriam muito mais perversas do que no caso de Gregório de Matos; mas subsistiria em Antonio Conselheiro um valor que poderia ter florescido em um ambiente mais favorável: [...] Não é o caso somente de empregar a expressão tão expressiva Les arbres empêchent de voir la forêt; aqui a floresta impede também de ver as árvores. É um imenso cipoal; a pena do escritor parece-me mesmo um cipó dos mais rijos e dos mais enroscados. Tudo isso precisa ser arranjado por outro, ou de outra forma. Eu nunca pude me afeiçoar a Carlyle, e este tinha o gênio por si! Esse livro caberia em poucas boas páginas. Não fico esperando nada do que se anuncia. Decerto, talento há nele, e muito, mas o talento, quando não é acompanhado da ordem necessária para o desenvolver e apresentar, há alguma coisa em mim que me faz fugir dele. Como lhe digo, falta-me a compreensão do cipoal (Nabuco, 2006, p.527). Além disto, as condições mesológicas nas quais devemos acreditar, excluídos os exageros de Montesquieu e Buckle, firmando um nexo inegável entre o temperamento moral dos homens e as condições físicas ambientes, deviam formar, profundamente obscura e bárbara, uma alma que num outro meio talvez vibrasse no lirismo de Savonarala, ou qualquer outro místico arrebatado numa idealização imensa. Porque, afinal, impressiona realmente essa tenacidade inquebrantável e essa escravização a uma ideia fixa, persistente, constante, nunca abandonada. Que diferença existe entre ele e os grandes meneurs de peuples de que nos fala a história? Um meio mais resumido e um cenário mais estreito apenas. Dominando há tanto tempo, irresistivelmente, as massas que cegamente lhe obedecem, sua influência estranha avolumou-se, cresceu sempre numa continuidade perfeita e veio bater de encontro à civilização. Se recuássemos alguns séculos e o sertão de Canudos tivesse a amplitude da Árabia, por que razão não acreditar que o seu nome pudesse aparecer, hoje, dentro de um capítulo fulgurante de Thomas Carlyle? (Cunha, 2000, p.123-124). Nabuco leu com atenção os Ensaios, de Francis Bacon, fundador do gênero entre os britânicos por volta do final do século 16 e começo do 17. Uma edição de 1896 em dois volumes que lhe pertenceu integra hoje o acervo da Fundação Joaquim Nabuco, em Recife, trazendo destaques e notas em alguns ensaios. Vale lembrar que, em 1896, o escritor esteve imerso na realização do monumental Um estadista do Império e, portanto, a tradição do 149 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 145-150, out. 2012/mar. 2013. Carvalho, Ricardo Souza de. Os heróis do ensaio de Euclides da Cunha na sua principal obra, The History of England (18481861), uma das bases dos retratos do pai de Nabuco e dos outros estadistas do Segundo Reinado, culminando no de D. Pedro II. Por consequência, os políticos brasileiros são tratados com a mesma deferência de Macaulay pela Monarquia Britânica. Já Euclides, como se viu, preferiu o herói na forma vibrante de Carlyle, mas adaptada às determinações – ou melhor, imperfeições – do meio brasileiro. O ensaio entre a reflexão histórica e a ficção literária de Os Sertões e Contrastes e confrontos constituem uma “galeria subterrânea” da história brasileira: assim, haveria o “herói-capadócio” Gregório de Matos, o “herói-negativo” Floriano Peixoto ou o “herói-ao avesso” Antonio Conselheiro. ensaio de Bacon pode ter lhe inspirado, entre outros. No século 19, o grande modelo de Nabuco foi Thomas Macaulay (1800-1859), enaltecido em Minha formação: “A frase, a eloquência, o retrato e a encenação histórica de Macaulay foram também uma influência permanente que se imprimiu em meu espírito;” (Nabuco, 2012, p.87-88). Por isso, ao condenar o estilo d’Os Sertões, Nabuco, de certa forma, estaria opondo Carlyle a Macaulay: de um lado, a “frase” e a “eloquência”, entendidas como exemplares; de outro, a linguagem cerrada e retorcida à maneira de um “imenso cipoal” que comprometeria tanto o objeto quanto o talento. O “retrato” de Macaulay alude à reconstituição dignificante das figuras políticas em seus ensaios e Referências ABBOTT, E. A. (1986). Bacon’s essays. London: Longmans, Green and Co. ANDRADE, O. S. (2002). História e interpretação de Os Sertões. 4. ed. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras. CUNHA, E. (1995). Obra completa. 2. ed. Afrânio Coutinho. (org.). Rio de Janeiro: Nova Aguilar. v. 2. _____. (2000). Diário de uma expedição. Edição de Walnice Nogueira Galvão. (org.). São Paulo: Companhia das Letras. _____. (2001). Os sertões (campanha de Canudos). In: BERNUCCI, L. M. (org.). São Paulo: Ateliê Editorial, Imprensa Oficial do Estado, Arquivo do Estado. DOSSE, F. (2009). O desafio biográfico: escrever uma vida. Trad. Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: Edusp. EULALIO, A. (1992). O ensaio literário no Brasil. In: Waldman, Berta; Dantas, Luiz (orgs.). Escritos. Campinas: Editora da Unicamp; São Paulo: Editora da Unesp. GALVÃO, W. N.; GALLOTI, O. (orgs.). (1997). Correspondência de Euclides da Cunha. São Paulo: Edusp. MONTAIGNE, M. (2001). Les Essais. Paris: Le Livre de Poche. NABUCO, J. (2006). Diários. Edição de Evaldo Cabral de Mello. (org.). Rio de Janeiro, Bem-Te-Vi. _____. (2012). Minha formação. São Paulo, Editora 34. Ricardo Souza de Carvalho é professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), atuando no Programa de Literatura Brasileira (FFLCH). E-mail: <[email protected]>. Recebido para avaliação em março de 2013. Aprovado para publicação em abril de 2013. 150 Jornalismo Narrativo em tempos de Belle Époque VERRUMO, Marcel Resumo Este artigo analisa a série de reportagens Mistérios do Rio, escrita pelo repórter Benjamim Costallat, na qual há um registro jornalístico da modernização do Rio de Janeiro dos anos 1920 durante a Belle Époque. Em um primeiro momento, observa-se como o narrador-repórter Costallat, já assumindo traços do jornalista moderno, registra as principais transformações que marcaram a modernização da então capital federal, atentando tanto para as camadas altas quanto para as baixas de sua sociedade. A segunda parte destina-se à analise da linguagem das reportagens eróticas da série e, em um terceiro momento, pensam-se possíveis relações entre as reportagens e o chamado jornalismo sensacionalista. Em última instância, analisa-se como se dá a representação da modernização de uma cidade brasileira no início do século 20. Palavras-chave: Jornalismo – Benjamim Costallat – Modernização – Belle Époque – Rio de Janeiro. Abstract This article analyzes the series of reports from Rio Mysteries, written by reporter Benjamin Costallat, in which there is a journalistic record of the modernization of Rio de Janeiro during the Belle Époque. At first, there was as the narrator-reporter Costallat since assuming traits of modern journalist, records the major transformations that the then federal capital has modernized, paying attention both to the upper layers for when the casualties of their society. The second part intends to analyze the language of erotic stories in the series, and a third time, think up possible relationships between the reports and called sensationalist journalism. Ultimately, we analyze how the representation of a Brazilian city in the early twentieth century is. Keywords: Journalism – Benjamin Costallat – Modernization – Belle Époque – Rio de Janeiro. 151 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 151-164, out. 2012/mar. 2013. VERRUMO, Marcel. Jornalismo Narrativo em tempos de Belle Époque Introdução Quando o arquiteto Jacques Ignace Hittorff mostrou a Haussmann seus planos para uma nova avenida, Haussmann os atirou de volta, dizendo: “Não é bastante larga (...). O senhor quer 40 metros de largura, e eu quero 120.” [...] Haussmann arrasou os velhos cortiços parisienses, usando o poder de expropriação do Estado em nome do progresso e da renovação cívica. Ele organizou deliberadamente a remoção de grande parte da classe trabalhadora e de outros elementos indisciplinados do Centro da cidade, onde constituíam uma ameaça à ordem pública e ao poder político. Criou um desenho urbano no qual se acreditava que haveria um nível de vigilância para garantir que os movimentos revolucionários fossem dominados facilmente (Harvey, 2012, p.38-43). A Belle Époque carioca inicia-se com a subida de Campos Sales ao poder em 1898 e a recuperação da tranquilidade sob a égide das elites regionais. Neste ano registrou-se uma mudança sensível no clima político, que logo afetou o meio cultural e social, as jornadas revolucionárias haviam passado. As condições para a estabilidade e para uma vida urbana elegante estavam de novo ao alcance da mão (Needell, 1993, p.39). Influenciado por valores e paradigmas importados da Europa – mais acentuadamente da França e da Inglaterra –, o Rio de Janeiro do início do século 20, então capital federal, era palco de transformações políticas, econômicas, sociais, culturais e arquitetônicas. A cidade, quando comparada à do período colonial, era caracterizada, por exemplo, por “menos patriarcalismo, menos absorção do filho pelo pai, da mulher pelo homem, do indivíduo pela família, da família pelo chefe, do escravo pelo proprietário; e mais individualismo: da mulher, do menino, do negro” (Freyre, 2003, p.126). No entanto, essa transformação na mentalidade dos cidadãos ainda era pequena frente às mudanças que o governo republicano almejava implantar no território. Movido por um ideal positivista impresso na bandeira nacional, Ordem e progresso, e indo de encontro ao patriarcalismo colonial, os governos federal e municipal queriam aproximar, física e simbolicamente, as ruas do Distrito Federal das de outras capitais, como as de Paris e Buenos Aires. O “Rio Civiliza-se”, como esse período de reformas ficou conhecido, foi uma tentativa de imprimir um caráter cosmopolita à metrópole (O’Donnell, 2008, p.32). Uma das principais alterações assistidas pelos transeuntes do Rio de Janeiro foram as reformas urbanas promovidas pelo prefeito Pereira Passo e claramente inspiradas nas Grandes Obras de Paris, realizadas pelo engenheiro Haussmann no território francês. As reformas francesas ocorreram durante o governo de Napoleão III e incluíram a construção de ferrovias por diversas regiões da Europa e dentro da França; a edificação de grandes obras, como o canal de Suez; a abertura de portos em território francês; a drenagem de pântanos que causavam epidemias e a reconstrução da malha urbana de Paris, que veria, por exemplo, serem abertas 12 avenidas em torno do Arco do Triunfo. Essas grandes avenidas talvez sejam o grande ponto urbanístico associado à figura de Haussmann: Marshall Berman, em Tudo o que é sólido desmancha no ar, afirma que a transformação da infraestrutura das ruas resultou em reconfigurações do modo de vida dos franceses e da construção de um novo modelo urbano. Paris tornou-se, a partir daí, conhecida como a Cidade Luz, e se transformaria em um centro turístico mundial com seus cafés, lojas de departamento, indústria da moda, grandes exposições de arte, etc. Seu tráfego fluía sem dificuldade por toda a malha urbana, grandes marcas instalavam-se nas regiões centrais e ficavam aos olhos da multidão consumidora, os mais pobres eram empurrados para as periferias para não “sujar” a imagem moderna que os políticos buscavam transmitir (Berman, 2007, p.180). Em 1902, quando o Presidente da República, Rodrigues Alves, e o Prefeito do Rio de Janeiro, Pereira Passos, assumiram seus respectivos cargos, criaram o projeto de aproximar a capital brasileira da francesa. Iniciaram, então, as famosas reformas do período. Nicolau Sevcenko elencou os quatro pilares nos quais elas se sustentaram a reforma carioca do início do século 20: A condenação dos hábitos e costumes ligados pela memória à sociedade tradicional; a negação de todo e qualquer elemento de cultura popular que pudesse macular a imagem civilizada da sociedade dominante; uma política rigorosa de expulsão dos grupos populares da área central da cidade; e um cosmopolitismo agressivo (Sevcenko, 2003, p.43). Em 15 de novembro de 1905, quando se comemoravam os 16 anos da proclamação da república, o prefeito entregou aos cidadãos cariocas um dos símbolos, talvez o maior, que marcariam a modernização do Distrito Federal: a avenida Central (atual Rio Branco). A obra foi o principal marco do seu 152 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 151-164, out. 2012/mar. 2013. VERRUMO, Marcel. Jornalismo Narrativo em tempos de Belle Époque governo. Iniciadas em 1903, as reformas da avenida, assinadas pelo engenheiro Paulo de Frontin, implicaram a demolição de 1.600 residências, entre elas casas antigas e cortiços, ao longo de 1.800 metros. Como as parisienses, a avenida carioca também ganhou em extensão e o pedestre que quisesse cruzá-la teria de andar 33 metros. A modernização imposta do Rio de Janeiro teve seu preço social. Muitos dos moradores dessas casas foram expulsos e ficaram sem residência, sendo obrigados a se transferirem para regiões mais periféricas da cidade – e onde a especulação imobiliária era menor. Historicamente, verifica-se aí a ampliação do processo de favelização observado no Rio de Janeiro, iniciado anos antes: então capital federal, este artigo faz uma análise interpretativa da principal obra do repórter Benjamim Costallat, a série de reportagens narrativas Mistérios do Rio. Em um primeiro momento, observa-se como o narrador-repórter registra aS principais transformações pelas quais a cidade passou no período de modernização, atentando tanto para as camadas altas quanto para as baixas de sua sociedade. A segunda parte destina-se à analise da linguagem das reportagens eróticas da série e, em um terceiro momento, pensam-se possíveis relações entre as reportagens e o chamado jornalismo sensacionalista. Um repórter do “Rio Civiliza-se” Ao passar por diferentes ambientes e tempos dos anos 1920, a reportagem de Benjamim Costallat em Mistérios do Rio está associada, em primeira instância, ao real. Distanciando-se do paradigma jornalístico característico do século 19 – marcado por textos em que o “repórter” não presencia o real aparente, apenas expõe sua opinião sobre fatos cotidianos –, a série afirma princípios da reportagem moderna ao ter um repórter-narrador in loco em busca de informação. Seus textos aproximam-se dos de outro repórter do período ou, como alguns pesquisadores preferem classificá-lo, historiador social: João do Rio. Esse, como se verifica em obras como A alma encantadora das ruas e As religiões do Rio, registrou as transformações do Rio de Janeiro nas décadas de 1900 e 1910, em textos publicados nos principais diários da época e nos quais também registrava o alto mundanismo das elites e a exclusão e os costumes dos pobres. Ao analisarem sua obra, alguns historiadores classificam-no como o primeiro repórter moderno brasileiro: As favelas, conjuntos de barracos amontoados nos morros, haviam sido erguidas perto da nova área de docas ao norte, no final do século XIX, e foi para lá que se dirigiram muitos desabrigados das habitações decadentes da Cidade Velha, demolidas com as reformas de 1903-06. [...] nas reformas de Rodrigues Alves, conforme entendidas por ele e por sua platéia de elite, o impacto negativo se subordinava naturalmente ao impacto positivo almejado (Needell, 1993, p.71-73). O “Rio Civiliza-se” também é verificado, por exemplo, na proibição de antigos hábitos, como o de ordenhar vacas em espaços públicos, urinar e cuspir nas ruas. Outra imposição bem polêmica e que resultou em revoltas urbanas foi a da vacina obrigatória, a qual buscou combater as frequentes epidemias que mutilavam a população, como a de varíola, febre amarela, malária e tuberculose. Imerso nesse contexto de transformações físicas e costumes da cidade, o jornalista-escritor Benjamim Costallat, um dos principais repórteres do período, escreveu a série de reportagens Mistérios do Rio, na qual descreveu como se caracterizavam as diversas camadas da sociedade carioca do período. Nesse material, convivem o registro da urbanização, verificada nas ruas por onde passava a burguesia, e o comentário sobre a exclusão de proletários explorados socialmente e, cada vez mais, “empurrados” para as favelas. Ao construir textos em que está presente um mosaico de diferentes grupos sociais e diversas realidades, o repórter Benjamim Costallat legou uma obra indicativa da modernização da Belle Époque carioca, um período em que, não apenas a partir de valores franceses, se moldou a sociedade do Rio de Janeiro. Conscientes da necessidade de pensar a linguagem jornalística em tempos da modernização da O método de apuração de João do Rio já era o de um repórter moderno: o questionamento das fontes, a circulação por diversos bairros em busca de diversidade, o uso privilegiado da descrição in loco. A curiosidade do repórter era semelhante à dos leitores, confirmada pelo sucesso de seus livros e de suas séries de reportagens (Costa, 2006, p.42). Estudiosos pontuam que sua influência não se restringiu a seu tempo e se verificaria em narrativas como a de Benjamim Costallat: Morto em 1921, a marca de seu legado [de João do Rio] não seria discreta. Tanto que nos anos 1920 assistiu-se a uma espécie de proliferação de escritores-repórteres marcados por ressonâncias, formais 153 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 151-164, out. 2012/mar. 2013. VERRUMO, Marcel. Jornalismo Narrativo em tempos de Belle Époque e estéticas, dos textos de João do Rio. Trata-se de jornalistas-escritores hoje praticamente esquecidos, representantes de uma vertente decadentista e “escandalosa” da crônica social, seja nas próprias seções fixas do jornal diário, seja em romances ou livros de contos lançados nas primeiras décadas do século XX (Bulhões, 2007, p.103). Retornando ao repórter-escritor analisado, Benjamim Costallat, pode-se afirmar que, em sua obra, não por acaso ele adota um repórter-narrador-testemunha em algumas reportagens. Tratava-se de um modelo de narrador capaz de atender aos anseios de um jornalismo que, introduzido no Brasil por João Rio na primeira década do século, começava a amadurecer. Já era um tempo em que o profissional da imprensa saía das redações e ia às ruas à busca de informação. Essa era também a configuração de um repórter ideal para registrar as transformações da cidade. Em uma entrevista que o escritor Benjamim Costallat concedeu ao Jornal do Brasil na véspera da estreia da série Mistérios do Rio, já esclarecia que os textos pautavam-se na realidade e situações vividas pelo narrador repórter. Estabelecia-se, assim, um contrato inicial entre o jornalista e os leitores a respeito da factualidade dos conteúdos: Hoje o que o escritor procura dar, e que o próprio público leitor exige, é a – verdade. A verdade nos ambientes, a verdade na ação e a verdade nos personagens. [...] Apenas olhei e narrei. A composição literária, às vezes, exige certa fantasia. Mas eu peço ao público que acredite que todos, absolutamente todos, os ambientes por mim descritos são verdadeiros, e as personagens que passam pelos Mistérios foram observadas de perto. Não houve exagero, nem imaginação da minha parte. E daí ter sido a minha tarefa dobrada – fazer um trabalho sugestivo e interessante dentro da verdade, guardando uma grande medida na composição... (Costallat, 1924, p.11). Ao sair pela cidade à busca de informações, o repórter de rua, Benjamim Costallat, aproxima a vivência jornalística com um elemento típico da ficção literária de seu contexto discursivo: o flâneur. Importado à moderna reportagem brasileira por João do Rio, o flâneur, componente migratório da literatura finissecular 19 e presente em Oscar Wilde e Jean Lorrain, por exemplo, seria “um passeante ocioso, um andarilho que caminha a esmo” (Bulhões, 2005, p.115). Quando Walter Benjamim analisa a obra de Charles Baudelaire, por exemplo, identifica a figura do flâneur como um ser errante em contato com a multidão (Benjamim, 1989). Há um flâneur em Mistérios do Rio que perambula por lugares obscuros da cidade de seu tempo, desce aos infernos buscando desvendar realidades proibidas e perigosas. Trata-se do narrador-personagem que atravessa o morro do cotovelo e vai ao bairro chinês para registrar como vivem “Os fumantes da morte”, viciados em ópio; do narrador-personagem que vai ao bairro de Ramos para participar de uma cerimônia de candomblé. Sua postura profissional é a do repórter que, desvendando uma realidade sombria, promete revelá-la ao seu leitor ao transformá-la em um texto jornalístico. Dando um passo à frente em relação ao flâneur em João do Rio, esse elemento no narrador-repórter dos Mistérios já assume um caráter mais profissional, caminhando pelas ruas cariocas da Belle Époque com uma pauta e realizando entrevistas já planejadas. Portanto, já não há mais um flanar ociosamente pela cidade, como se verifica em alguns textos de João do Rio, o pai da reportagem no Brasil, mas um andar buscando situações cotidianas sobre as quais o repórter já possui conhecimento. Fundamentalmente, o flâneur caracteriza-se em Costallat como um modelo para a afirmação do ofício jornalístico de um caminhante que, passando pelas multidões da cidade e descendo aos seus infernos, transforma-se em um autêntico voyeur: Não podia ser mais inesperada a visão que tínhamos diante de nós. Estávamos em um dos mais perigosos antros do Rio de Janeiro. Imaginem um espécie de porão, a luz ali é de porão, uma espécie de alcova, sem uma janela, sem ar, sem luz, uma alcova cimentada e fétida, terrivelmente fétida – um fedor de urina acumulada, de vespasiana, de mictório sujo – estreita – tendo como parede, de um lado, uma divisão de madeira – com um tanque, uma bica d’água, uma mesa feita por dois cavaletes e algumas tábuas, um pequenino pano verde roto e manchado, sobre esse trapo verde um baralho usado e sebento, alguns níqueis, e ao redor de tudo isso umas caras, atentas e febris... E que caras!... Que fisionomias! Que máscaras patibulares e sinistras! (Costallat, 1924, p.112-113). Marcado por traços do noturnismo decadentista do final do século 19 – vertente literária que assimilou e renovou traços do Romantismo –, o voyeur em Costallat é um repórter que caminha tanto pelos bas-fonds quanto pelas instituições de elite da sociedade carioca, inserindo nos retratos da cidade uma plasticidade a partir de impressões e sensações subjetivas. 154 É um caminho de cabras. Não se anda, gravita-se. Os pés perdem a função natural de andar, revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 151-164, out. 2012/mar. 2013. VERRUMO, Marcel. Jornalismo Narrativo em tempos de Belle Époque transforma-se em garras. Primeiro é uma rampa forte, talhada na própria rocha. Depois são pequenos degraus – e que degraus! – esperanças de degraus, degraus esboçados na rocha viva, escorregadios, perigosos, traiçoeiros; e lá embaixo é a rua, o precipício, a grande possibilidade de se quebrar o pescoço. Anda-se. Sobe-se. Vai-se para diante como por um milagre. E quanto mais se sobe, mais se arrisca a um tombo fatal, a uma queda na pedreira imensa, a uma morte instantânea, de pernas para o ar (Costallat, 1924, p.74-76). que o senhorio, o aluguel nunca é pago. Se o senhorio for o mais valente, então, sim, a casa é paga, pontualmente, todos os começos de mês... É a lei de inquilinato da Favela! A bofetada e a navalha resolvem tudo... (Costallat, 1924, p.83-84). Ao retratar a realidade do submundo carioca e reportar o cotidiano de seus populares, parece haver uma identificação positiva entre o narrador-repórter e a temática. Ainda na reportagem citada, por exemplo, o narrador pede a proteção divina para a favela, por ela ser “alegre na sua miséria” e que tem uma gente que “não tem nada” e “dá uma profunda lição de alegria àqueles que têm tudo”. “A favela que samba, quando deveria chorar, é um maravilhoso exemplo para aqueles que têm tudo e que ainda não estão satisfeitos... Pobre e admirável favela!...” (Costallat, 1924, p.79). O olhar que o repórter dispensa a bairros pobres é outra no texto “Na noite do subúrbio”. Na reportagem em que o narrador-repórter conta o que se passou na noite em que foi a um barracão no bairro de Ramos, há o retrato de um local triste, abandonado, de um povo exausto que vive uma vida suburbana e monótona. O texto trabalha com componentes melodramáticos como estratégia para sensibilizar o leitor. Para criticar a exploração desses trabalhadores, há um contraste da noite que se vive na favela e da noite que se vive na “cidade”: Adentremos nas realidades retratadas pelo narrador-repórter na série analisada. Como já mencionado, o Rio de Janeiro do início do século 20 passou por diversas transformações devido à tentativa de se afrancesar a cidade, arquitetônica e culturalmente. Remodelar a velha capital federal a partir de uma estrutura francesa, tornando as ruas e avenidas mais parecidas com as parisienses, refletiu em mudanças sociais maiores, como o surgimento de favelas e bairros proletários. O ambiente no qual o repórter flanou, portanto, era um mosaico de realidade. Em seus textos, misturavam-se festas e costumes “civilizados” e “chics”– influenciados por valores europeus – com situações degradantes que se desenrolam nos bas-fonds da capital federal, como nas favelas “recém-criadas”. Enquanto no texto “A criatura do ventre nu” o narrador-repórter descreve o baile dos artistas – imitação de uma festa parisiense – e os costumes e sports da elite carioca, em “A favela que eu vi” verifica-se um registro do cotidiano dos moradores de uma favela carioca e das características desta. Nessa reportagem, a ideia de mosaico é tão acentuada que o narrador-repórter identifica a favela como um lugar “fora do mundo”: Os habitantes daquelas tristes e pequeninas casas vivem no Rio o dia todo nas suas ocupações. Só voltam ao subúrbio para dormir. O Rio, distante, como um monstro insaciável, absorve nas suas usinas, nos seus escritórios, nas suas repartições, aquela população inteira que, à noite, ele devolve, exausta, aos seus lares. Enquanto a grande cidade, numa orgia de luz, espreguiça-se pelas suas avenidas lindas e floridas, passa a noite nos seus “cabarés” luxuosos, bebendo e cantando, fuma “havanas” nos “bungalows” do Leblon, joga “bridge” nos palacetes da Avenida Atlântica, ama nas pensões “chics”, ouve música no Municipal e dança o “shimmy” por toda a parte – os subúrbios, soturnos e tristes, dormem estafados, uma noite curta que acabará cedo, pela madrugada, ao apito do primeiro trem... (Costallat, 1924, p.197-198). Estávamos, em plena favela, fora do mundo. Vinha-me, então, ao espírito, a crônica terrível do morro terrível, o morro do crime. Encravada no Rio de Janeiro, a favela é uma cidade dentro da cidade. Perfeitamente diversa e absolutamente autônoma. Não atingida pelos regulamentos da prefeitura e longe das vistas da polícia. Na favela ninguém paga impostos e não se vê guarda civil. Na favela, a lei é a do mais forte e a do mais valente. A navalha liquida os casos. E a coragem dirime todas as contendas. Há muito crime, muita morte, porque são essas as soluções para todos os gêneros de negócios – os negócios de honra como os negócios de dinheiro. Na favela não há divórcios porque ninguém se casa. Não se fazem contratos. Não há inquilinos, nem senhorios. Não há despejos. Se o inquilino for mais forte do Na reportagem “Uma história de ‘manicure’”, também se critica a exploração de camadas pobres, ao ser apontada a convivência de duas realidades antagônicas do Rio: a riqueza de um hotel e de seus hóspedes é contrastada com a exploração e submissão de uma de suas funcionárias, a manicure Anita. 155 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 151-164, out. 2012/mar. 2013. VERRUMO, Marcel. Jornalismo Narrativo em tempos de Belle Époque Nesse texto, também há a necessidade de se atentar para o registro das mudanças pelas quais passavam a cidade: costumes, manchando a moral e ocasionando a exploração de alguns estratos sociais. Na reportagem “A criatura do ventre nu”, o narrador-repórter retrata o baile dos Artistas, uma festa que, segundo ele, é “um plágio do baile dos ‘Quatz-Arts, de Paris”. Há a consideração de que o baile francês é “nababesco, espetaculoso e imoral”. Importante observar como Costallat constrói o ambiente dos bailes noturnos e os costumes das pessoas que os frequentam. A música que predomina nessas festas é o jazz-band e o fox-trot, como se pode apreender lendo a reportagem citada e “Quando os cabarés se abrem”. Um dos sports modernos praticado pelos jovens nas festas é o éter-party, que consiste em “molhar o lenço com um lança-perfume – ou com um frasquinho que se traz no bolso – e respirar, respirar o éter, até que os olhos fiquem injetados de sangue e o cérebro povoado de sonhos...” (Costallat, 1924, p.184). Em se tratando dos vícios que caracterizam a sociedade carioca do início do século 20, Costallat reportou diversas situações que desvendam como drogas ilícitas eram vendidas e utilizadas. Retratou que isso também não acontece apenas durante a noite e em lugares específicos, mas durante todo o dia e em praticamente todos os bairros da cidade. Um dos textos mais emblemáticos sobre o assunto é “No bairro da cocaína”, reportagem em que o narrador-repórter se finge de cocainômano para adquirir três frascos de cocaína. Além de divulgar “senhas” e locais em que se encontram pontos de venda da droga, a reportagem faz uma verdadeira “radiografia” da distribuição da cocaína na cidade do Rio de Janeiro: O Rio sofria, então, a sua formidável transformação. De cidade provinciana transformava-se, em poucos anos, em grande centro cosmopolita. De cidade bem brasileira, com as suas chácaras como as da Tijuca e suas casas como as de Botafogo, sempre com a velha e esguia palmeira dizendo o número de boas e pacatas gerações que por ali passaram – o Rio começou a ser a grande cidade internacional com Copacabana, e com Leblon, construídos à americana, feitos de “bungalows” e de jardinetes simétricos e asfaltados. Grandes hotéis surgiram. Enormes formigueiros humanos, luxuosos, confortáveis, de criadagem irrepreensível. “Concierges”, “grooms”, “chasseurs”, “someliers” – toda uma população nova de criados fardados e encasacados que o velho Rio ignorava, o velho Rio só conhecia, para fazer todos esses serviços ao mesmo tempo, a tradicional “bá” preta, que foi, mais ou menos, a ama seca de todos nós, ou a velha portuguesa de lenço vermelho à cabeça... Mas no Rio os grandes palácios iluminados se construíram. Uma nova vida surgia. A antiga cidade bem brasileira passava a ser a cidade de todo o mundo. Todas as raças e todos os povos desembarcavam nas suas docas, com os seus vícios e a sua civilização requintada (Costallat, 1924, p.215-216). Note-se que, ao comentar as mudanças sofridas pela capital federal, o repórter comenta a perda do caráter “bem brasileiro” do Rio ao se afrancesar. Observa-se em outros textos, como quando o narrador-repórter comenta a respeito de prostituição e cabarés, uma condenação de valores considerados tradicionais pela sociedade da época. Na sua mais conhecida obra, Mademoiselle Cinema, a modernidade e os valores estrangeiros – particularmente os franceses – também são abordadas negativamente, uma vez que, quando a personagem Rosalina abandona a tradição brasileira e se influencia por costumes europeus, acentua-se a ideia de que a personagem agiu contra as instituições burguesas e se desvirtuou. A própria justificativa de que Costallat utilizou para defender seu romance no banco dos réus está em consonância com essa tese. Segundo ele, o livro que narra a transformação sofrida por Rosalina – desvirtuar-se ao entrar em contato com a cultura europeia – deveria ser publicado para servir de exemplo às jovens e auxiliar na sua educação. A modernidade e o afrancesamento social, tanto na série quanto no romance, portanto, remetem à ideia de decadência social, de ir contra os bons O bairro da cocaína estava, naquele momento, em plena efervescência. Dos cafés da Lapa às pensões elegantes da Glória, passando pelos becos nojentos da prostituição taximétrica, o bairro da cocaína vibrava de luzes, de risos de mulheres, de espasmos humanos... O bairro da cocaína! Botafogo, Copacabana, Avenida Atlântica, Santa Tereza, Leblon, também tomam cocaína. Até Madureira já está contaminada... Mas a zona de irradiação do vício, a zona do comércio miserável do terrível tóxico, é a Lapa e a Glória. Entre dez meretrizes, nove são cocainômanas. E a zona de prostituição não podia deixar de ser a zona de vício da “poeira” terrível. Nos “clubs”, nas alcovas das horizontais, nos cafés noturnos, nas pensões “chics”, toda a Lapa e toda a Glória tomam cocaína em suas noites lúbricas e inquietas (Costallat, 1924, p.136-137). O encerramento da reportagem é indicativo de uma ideia frequente nos textos do jornalista: en156 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 151-164, out. 2012/mar. 2013. VERRUMO, Marcel. Jornalismo Narrativo em tempos de Belle Époque tre os cocainômanos há uma lealdade, uma espécie de confraria segundo a qual os viciados se ajudam quando estão com abstinência da droga. É essa a tese presente na afirmação de que Gaby – uma parisiense viciada que auxilia cocainômanos quando lhes falta a droga – é “a sacerdotisa de uma nova religião – a cocaína” e que “se alguém estiver morrendo de fome, talvez Gaby não o socorra com uma esmola. Mas se for de tóxico de que alguém necessitar, Gaby será capaz de vender a sua última “toilette” e a sua última “joia” (Costallat, 1924, p.140). A lealdade existente entre os viciados também é reportada no texto “O segredo dos sanatórios”, quando o narrador-repórter aponta para a necessidade de se ter cuidado para que enfermeiros e médicos não levem drogas aos pacientes internados. Portanto, percebe-se que, flanando por uma cidade em constantes mutações, Costallat registrou como vivem personagens dos bas-fonds cariocas e se voltou também para os costumes e vícios das elites da época, criticando sua postura de buscar afrancesar a própria brasilidade. Porém, a pena desse jornalista-escritor também reportou outras temáticas, como o erotismo e a violência. Passar-se-á agora à análise interpretativa de como se constroem as narrativas eróticas da série de reportagens. década do século XX, criavam uma cultura diferente dos padrões vigentes, resultado de suas próprias escolhas frente ao que era importante ou possível de acontecer. Sem deixarem de receber influências e limites, até pela força, dos valores e normas burgueses, os trabalhadores construíam uma cultural relativamente autônoma [...] decorrente de uma prática cotidiana de vida (Esteves, 1989, p.120-121). Diante da adoção de padrões diferentes dos vigentes, muitos dos comportamentos dos populares eram considerados imorais e patológicos, segundo a autora, como as jovens que perdiam a virgindade antes de se casarem e as mulheres que se “divorciavam” dos maridos. Ao se entrar em contato com a série Mistérios do Rio, porém, pode-se considerar que algumas fatias da elite carioca, tendo contato com a cultura europeia e sendo influenciadas por seus valores, também começaram a assumir comportamentos conflitantes com os aceitos pela moral vigorante. O próprio narrador-repórter, ao longo das narrativas, tece comentários moralistas e que parecem estar em consonância com os valores instituídos e aceitos pela sociedade da época. Consequentemente, em muitos momentos se identificam comentários que parecem condenar comportamentos “desviantes”. Isso pode ser verificado, por exemplo, na reportagem “Casas de amor”, quando o narrador comenta a respeito do fim do “expediente” das prostitutas em uma casa de rendez-vous: “a maioria vai continuar a prostituição fora dali. Outras não; depois das 7 horas são honestas... Estranhos costumes de uma estranha época! Meninas de família, senhoras casadas, quanta desgraça e quanto mistério” (Costallat, 1924, p.107). Ao opor as mulheres que continuarão a prostituição fora da casa às que serão “honestas”, fica clara a concepção moralista do narrador a respeito das mulheres que se prostituem. Ainda nessa reportagem, o narrador-repórter afirma que a profissão do amor no seu tempo é associada ao exercício da dissimulação, ou seja, afirma-se que as prostitutas se fazem de ingênuas para satisfazerem e incitarem os desejos de seus pretendentes, homens taxados como “imbecis” pelo narrador: O cotidiano do amor segundo a pena de um jornalista-escritor Uma temática muito frequente na série Mistérios do Rio é a do amor. Das treze reportagens, quatro trabalham com o componente erótico: “Quando os cabarés se abrem”, “Casas de amor”, “A criatura do ventre nu” e “Uma história de ‘manicure’”. Diante da expressividade do assunto e considerando que o nome de Benjamim Costallat é frequentemente associado ao componente erótico – por ele ter feito grande sucesso com o romance Mademoiselle Cinema –, carece-se de compreender como as reportagens retratam o cotidiano do amor. No livro Meninas Perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque, Martha de Abreu Esteves analisa a problemática sexual das camadas mais baixas da população nessa sociedade. Para isso, a autora faz um estudo dos processos judiciais relacionados à questão. Ao pensar a moral e os comportamentos dos populares, Martha afirma que: Noventa por cento dessas senhoras que eu chamo de funcionárias públicas do amor – porque frequentam as casas de amor com a mesma pontualidade do funcionário que tem de assinar o ponto, dentro de um horário preestabelecido e imutável – noventa por cento dessas ilustres senhoras são Enquanto agentes de sua própria história, os populares da cidade do Rio de Janeiro, na primeira 157 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 151-164, out. 2012/mar. 2013. VERRUMO, Marcel. Jornalismo Narrativo em tempos de Belle Époque vem que foi trabalhar em um hotel e foi violentada por um hóspede. O narrador-repórter associa nessa reportagem a exploração sexual da trabalhadora à modernização: brilhantes profissionais da carreira que abraçaram. Mas dizem-se amadoras. Fazem-se de ingênuas. Dizem-se casadas. Meninas de famílias. Normalistas. Praticam, finalmente, uma série de mentiras com o único intuito de provocar a generosidade do homem, satisfazendo-lhe a vaidade. Mentiras perigosas que vêm dar uma impressão ainda mais nefasta dos costumes, já bem nefastos, da época (Costallat, 1924, p.102-103). No ambiente cosmopolita do grande hotel; na imensidade daqueles corredores brancos e daquelas portas de números dourados; naquele “hall” onde todas as nacionalidades estavam representadas e se sentavam nos mesmo “maples” de couro; no “bar”, à hora do “cocktail”; no salão, à hora das refeições, onde uma orquestra gemia entre os barulhos dos talheres; nos terraços, à noite, quando os charutos “Havana” se acendiam e os homens, fazendo a digestão, começavam a sonhar diante da noite e diante das estrelas – pairava um desejo único, uma preocupação única... Anita!... Os quinze anos ingênuos da pequena “manicure”! Começou, então, a tremenda perseguição (Costallat, 1924, p.220). A relação entre dissimulação e ato sexual também está presente na reportagem “Quando os cabarés se abrem”, texto em que o narrador-repórter situa o componente erótico como um elemento muito utilizado pelas casas da época para atrair seus clientes. A mentira não é identificada apenas na falsa relação prostituta-cliente, mas também nos desejos e bebidas que essa utiliza para agradá-lo. Praticados no exercício da dissimulação, a reportagem situa o sexo e o jogo em escala máxima de reificação: Ao analisar essa reportagem, Marcelo Bulhões afirma que, impregnada pelo componente erótico e com uma série de estereótipos – virgem, ingênua, pura, vítima – o texto assinala o erótico como componente da corrupção dos tempos modernos e identifica uma postura moralizante em Benjamim Costallat: Quase todas essas mulheres já têm horror ao “champagne”, porque o bebem sem vontade, por obrigação, todas as noites, e do tal “champagne” falsificado, feito na rua do Núncio. Essas pobres Vênus do “cabaré” não mentem só com a boca, não vendem só os seus beijos – mentem com o estômago, vendem os seus pobres estômagos, para dar consumo a um “champagne” caro e detestável, de rótulo falso, que as envenena, mas que enche os bolsos dos interessados. - “Garçom”, “champagne”! Elas já pedem a bebida falsificada e cara, mecanicamente... Muitas delas prefeririam mil vezes um copo d’água cristalina (Costallat, 1924, p.48). Aqui, o jornalista Benjamim Costallat mostra-se moralizador. Todavia, há sempre marcas de uma irrevogável ambiguidade. No interior da denúncia ou da moralização, insurge-se um discurso ambíguo, sinuoso, em que a voz do narrador, com o pretexto de moralizar, fornece o ingrediente do apetitoso erótico. Associado como item dos vícios que compõem a modernidade urbana, o componente erótico é fornecido ao leitor em um exercício de instigação. Condenado, apresenta-se no discurso como algo que seduz (Bulhões, 2008, p.138). Ainda nesse texto, assim como em “A criatura do ventre nu”, há a exibição dos painéis do alto mundanismo dos salões cariocas da época, nos quais o narrador-repórter revela a associação entre luxo e luxúria. Nessa última reportagem, há um acesso franco ao erótico, com o exercício do exibicionismo e do voyeurismo, em que a riqueza e o prazer sexual parecem andar juntos. Conduz-se o erotismo ao centro da narrativa, a qual busca escandalizar o leitor no seu desfecho, ou seja, objetiva produzir um espetáculo narrativo quando a jovem cortesã que contava sua história revela sua identidade masculina. A homossexualidade é escandalizada ao ser trabalhada para criar uma atmosfera que surpreenda o leitor. A exploração sexual das camadas mais baixas da população pelas elites da época também é retratada na reportagem “Uma história de ‘manicure’”. O texto narra a história da ingênua manicure Anita, jo- A sedução nessas reportagens também é construída para ser o meio através do qual o narrador-repórter fornece ao leitor a possibilidade de acessar um universo deportado, banido. Além disso, utiliza-se o componente erótico através de uma sedutora estratégia discursiva: a de velar para desvendar, esconder para revelar e proibir para incitar. Assim, condenando comportamento e escondendo realidades no início dos textos e, posteriormente, desvendando esses universos para além da fronteira do que a estampa da moral fornece à vista, o jornalista Benjamim Costallat criou um discurso no qual o erotismo aparece como um elemento discursivo potencialmente sedutor. 158 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 151-164, out. 2012/mar. 2013. VERRUMO, Marcel. Jornalismo Narrativo em tempos de Belle Époque Em última instância, ao utilizar o erotismo e acentuar componentes discursivos melodramáticos e passionais, objetivando seduzir leitores e tornar os textos mais populares, Benjamim Costallat teria trabalhado com uma temática e um discurso que estão inseridos na trilha seguida por jornalistas considerados sensacionalistas. Porém, não nos adiantemos. Estudemos esse assunto mais detidamente. não se presta a informar, muito menos a formar. Presta-se básica e fundamentalmente a satisfazer as necessidades instintivas do público, por meio de forma sádica, caluniadora e ridicularizadora das pessoas. [...] O trinômio escândalo-sexo-sangue aponta, pois, para os três níveis de maior enfoque do jornal sensacionalista, senda a moral, o tabu e a repressão sexual e, por fim, a liberação das tendências sádicas dos leitos o fundo sociopsicológico, desse tipo de jornalismo [Grifo nosso] (Marcondes Filho, 1986, apud Angrimani, 1994, p.15-17). Um repórter das massas A série de reportagem Mistérios do Rio parece já ter sido idealizada com base em produções textuais com forte apelo popular. O próprio Benjamim Costallat reconheceu em uma entrevista a influência do popular romance de folhetim, Os mistérios de Paris. Por outro lado, os textos parecem também pertencer à estirpe de Les petites religions de Paris, popular série que Jules Bois escreveu para o jornal Le Figaro, em 1898, sobre as religiões de Paris, a qual teria influenciado João do Rio nas suas As Religiões do Rio. Portanto, no cerne das influências da série estão obras populares. Marcelo Bulhões também identifica marcas de outros autores nas reportagens: Na mesma linha de pensamento, Danilo Angrimani Sobrinho, no livro Espreme que sai sangue: um estudo do sensacionalismo na imprensa, afirma que sensacionalismo é tornar sensacional um fato jornalístico que, em outras circunstâncias, não mereceria esse tratamento. Veja-se: Pode, ainda, aventar para ela uma distante consanguinidade com escritas dedicadas à escória do submundo urbano, o que nos faz lembrar, longuiquamente, os exemplos das obras de Dickens, Baudelaire, Poe ou Dostoievski, exemplares literários notáveis, interessados pelo território imundo e oculto das grandes cidades, Paris, Londres, São Petersburgo, com suas ruas escuras, becos, sórdidos e perigosos e um contingente humano pútrido e fascinante (Bulhões, 2008, p.138). Como o adjetivo indica, trata-se de sensacionalizar aquilo que não é necessariamente sensacional, utilizando-se para isso de um tom escandaloso, espalhafatoso. Sensacionalismo é a produção de noticiário que extrapola o real, que superdimensiona o fato. [...] O meio de comunicação sensacionalista se assemelha a um neurótico obsessivo, um ego que deseja dar vazão a múltiplas ações transgressoras – que busca satisfação no fetichismo, voyeurismo, sadomasoquismo, coprofilia, incesto, pedofilia, necrofilia – ao mesmo tempo em que é reprimido por um superego cruel e implacável. É nesse pêndulo (transgressão-punição) que o sensacionalismo se apóia. A mensagem sensacionalista é, ao mesmo tempo, imoral-moralista e não limita com rigor o domínio da realidade e da representação [Grifo nosso] (Angrimani, 1994, p.16-17). A influência popular, somada aos temas e ao discurso envolvente, talvez sejam os componentes que fizeram com que a série tivesse alta receptividade junto às massas. Em relação à referida temática e ao discurso utilizado, parece prudente atentar para suas possíveis relações com o chamado jornalismo sensacionalista, linha editorial que dispensa um tratamento passional aos assuntos retratados para aumentar sua atração junto ao público consumidor. Surgido, segundo muitos teóricos, no final do século 19 na histórica disputa travada entre o New York World e o Morning Journal, o sensacionalismo pode ser definido, sumariamente, como uma cobertura jornalística que objetiva valorizar os traços passionais de notícias associadas, geralmente, a sexo, violência e morte. Ciro Marcondes Filho afirma que a imprensa sensacionalista Os dois trechos citados anteriormente e suas partes grifadas, sobretudo, indicam características que já mencionamos estarem presentes na série Mistérios do Rio. Porém, carece-se de analisar mais detidamente como a temática e a linguagem de um jornal sensacionalista se relacionam com as reportagens da série. Para isso, será utilizado o livro citado de Danilo Angrimani Sobrinho e a obra A construção do discurso de sedução em um jornal sensacionalista, de Rosa Nívea Pedroso, para entender as temáticas mais características do sensacionalismo e analisar seus possíveis traços no corpus. Antes, porém, atente-se para uma estrutura bastante associada ao jornalismo sensacionalista: os fait divers. O fait divers é um termo francês que se refere às notícias do dia (crimes, roubos, acontecimentos extravagantes) que têm importância circunstancial 159 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 151-164, out. 2012/mar. 2013. VERRUMO, Marcel. Jornalismo Narrativo em tempos de Belle Époque e se constituem como a principal fonte de informação do jornalismo sensacionalista. São notícias que encontram no insólito sua maior influência. Para Maffesoli: dedo não havia meios de sair. Os bandidos envidavam todos os esforços, a própria vítima os ajudava e o anel seguro ao dedo, apreso à carne não saía. Os bandidos já estavam furiosos e se consideram pela segunda vez roubados, quando um deles sugeriu... - Que lhe cortem o dedo! Um grito agudo de dor, um esguicho de sangue e uma navalha, rapidamente, fez a operação... (Costallat, 1924, p.151). Em uma sociedade de massa, mas também de comunicação, o fait divers é uma informação quente e circunstancial, localizada [...] ele emana de um lugar datado, ele é carne e sangue em sua origem. [...] Como o conto, o carnaval, o jogo pueril, o comentário do fait divers permite falar, sem falar, da violência, do sexo, das leis e de suas transgressões (Maffesoli, 1988, apud Angrimani, 1994, p.25). Pedroso também afirma que os fait divers, geralmente, são associados a imagens que contribuem para acentuar o caráter sensacional do acontecimento. Também é possível identificar isso na mesma reportagem, uma vez que, na ilustração que acompanha o texto, abaixo do desenho de um carro adentrando no túnel, aparecem três homens cortando o dedo de um homem engravatado e muito sangue escorrendo do dedo. A valorização da violência, inclusive, levava a uma falsa correspondência inicial entre o conteúdo da reportagem e a imagem, porque o crime desenhado se referia apenas a uma micronarrativa dentro de uma narrativa maior, a aventura do narrador-repórter no túnel do pavor. O leitor que pegasse o Jornal do Brasil, porém, poderia supor inicialmente que o crime retratado pela imagem teria sido contra o jornalista-escritor Benjamim Costallat. Estabelece-se, portanto, uma falsa correspondência entre texto e imagem. Outro fait diver inserido na série está presente na reportagem “Casas de amor” e valoriza o componente sexual e humorístico de um acontecimento de forte interesse humano, devido ao seu caráter insólito. Trata-se de um dos casos narrados que se passam na casa da Judith, casa de prostituição: O fait divers, como informação autossuficiente, traz em sua estrutura imanente uma carga suficiente de interesse humano, curiosidade, fantasia, impacto, raridade, humor, espetáculo, para causar uma tênue sensação de algo vivo no crime, no sexo e na morte. Consequentemente, provoca impressões, efeitos e imagens (que estão comprimidas nas formas de valorização gráfica, visual, espacial e discursiva do fato-ficção) [Grifo nosso] (Pedroso, 2001, p.106). As considerações de Pedroso podem ser basilares para se visualizar traços desse “gênero” nas reportagens de Costallat. No corpus analisado, o trinômio sexo-violência-escândalo nomeia os fait divers presentes. Esse “gênero” não aparece isoladamente na série, mas inserido em reportagens, criando, assim, textos híbridos. Em “O túnel do pavor”, por exemplo, narrativa em que o narrador-repórter conta sua ida ao túnel do rio Comprido, perigoso local da cidade na época, Costallat também narra um assalto que se passou naquela área. O crime foi contra um advogado que, por não conseguir retirar o anel para entregar aos ladrões, teve o dedo decepado para que esses conseguissem o objeto. A narração valoriza o sensacional e a violência, buscando fazer com que o leitor se sensibilize com o discurso. Sendo um crime cotidiano da cidade, a narração do assalto, seguido de violência física, pode ser considerada um fait diver por valorizar componentes passionais do acontecimento, como se pode observar: Ela é muito linda. Ele muito feio. Mas são casados... Ele se diz advogado e se chama G. P. Ela, a senhora V. P., comparece, todas as tardes, à hora regulamentar, das 3 às 6 horas, à casa de Judith. O marido tem conhecimento disto. E quando, por acaso, ele precisa de mulher para alguma coisa, não hesita em telefonar para o própria “rendez-vous”: - É o XXXX Central? - Sim, senhor. - Casa da Judith? - Sim, senhor. - Faça o favor de chamar V. Diga a ela que é G., o marido, que está chamando! - Olha, Dr. G. P. queira desculpar, mas V. não pode atender. Está ocupada... - Bom. Eu telefonarei mais tarde!... (Costallat, 1924, p.106-107). Contam que nos inúmeros assaltos no túnel do Rio Comprido a vítima era um advogado, um bacharel em direito. Os malandros ao assaltarem-no nada encontraram. [...] Os bandidos já se julgavam roubados e iam soltar o pobre bacharel, depois de alguns trancos, qual viram reluzir em seu dedo um grande e rico anel de grão, o anel símbolo de rubi com seu chaveiro de brilhante. Mas o anel preso no 160 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 151-164, out. 2012/mar. 2013. VERRUMO, Marcel. Jornalismo Narrativo em tempos de Belle Époque Essa micronarrativa não é uma informação de interesse público, apenas uma situação de grande interesse humano por trabalhar com aspectos humorísticos relacionados à temática sexual. Em relação aos temas mais presentes em jornais sensacionalistas, Angrimani Sobrinho cita a morte, a violência, a homossexualidade, o fetiche e o voyeurismo. Sobre o primeiro ponto citado, o autor reconhece que a morte está presente em todos os jornais, sejam eles sensacionalistas ou não, porém, a forma como os dois retratam o assunto se difere: Outro tema frequente em coberturas sensacionalistas é a violência, ou seja, destacar assassinatos, suicídios, estupros, vinganças, brigas, situações conflitantes, agressão sexual, tortura e intimidação, por exemplo. Pode-se identificar essa temática no fait diver a que nos referimos anteriormente (o roubo, seguido de agressão física, na reportagem “O túnel do pavor”). A homossexualidade é outro assunto comum em jornais sensacionalistas, sendo que, segundo Angrimani Sobrinho, o tratamento que o jornal dispensa ao tema é “preconceituoso, marginalizante, ofensivo e retrógrado. O homossexual aparece como um perverso degenerado, cuja conduta fere a ‘normalidade’ e coloca em risco as instituições” (Angrimani, 1994, p.66). Pedroso, na mesma linha, completa que esse tipo de jornal faz do homossexual algo escandaloso, cômico, provocador, perturbador e agressivo. Pode-se identificar esse tratamento na reportagem “A criatura do ventre nu”, a qual também possui mais duas características sensacionalistas: o fetichismo e o voyeurismo. O texto tem um desfecho que surpreende o leitor com a situação escandalosa e espetacular. Os personagens homossexuais, ironizados por meio de seus apelidos e características físicas, são estereotipados para construir um discurso humorístico: A morte relatada pelo jornal sensacionalista é diferente da morte comum, essa que envolve sofrimento, saudades, choque, traumatismo, dor, angústia, separação. A morte no jornal sensacional é perturbadora, porque a imagem do cadáver impressiona, mas ao mesmo tempo atua no sentido inverso: “mata” o outro e “preserva” o leitor. A morte não só é “saboreada como espetáculo”, mas aparece como ato simbólico que garante a integridade do observador (Angrimani, 1994, p.116). O autor completa que a morte no jornal sensacionalista é narrada em linguagem-clichê e admite nuclearização, por se referir a vários “tipos” de morte (Angrimani, 1994, p.56). Pode-se identificar a exploração da morte por meio de uma linguagem melodramática e que explora componentes passionais na reportagem “A pequena operária”, da série Mistérios do Rio. Nesse texto, o repórter-jornalista cria uma personagem que é o estereótipo de uma trabalhadora explorada e constrói um espetáculo narrativo para contar toda a exploração da operária que resultou em sua morte. No final da reportagem, por exemplo, depois de um hospital se recusar receber a operária, a qual foi trazida pela ambulância, a personagem é encontrada morta. Os adjetivos presentes na descrição contribuem para criar um ambiente dramático e passional: Se um raio tivesse caído na cabeça de Flávio Guimarães não teria provocado maior estrondo do que aquela fantástica revelação. Um homem! Estava diante de um homem! A deliciosa Salomésinha de ventre nu era um homem, era um Adolfo, um Adolfosinho, um Adolfinho qualquer... Mas Flávio Guimarães não teve tempo de protestar. Mais dois “moços bonitos”, companheiros de Adolfo, se aproximavam. Um vestido de rajah, outro de “bailado russo”, segundo sua própria informação. Adolfo fez as apresentações: - Meu novo amigo... E apontando o homem do “bailado russo”: - Jaimesinho! Não conhece? O Jaimesinho da Lapa!... Depois foi a vez do “rajah”: - Este aqui é o Ernestosinho, apelidado por “Mimi”. Nunca ouviu falar no “Mimi” da Glória? Não, Flávio Guimarães não tinha honra de conhecer aqueles distintos cavalheiros – o Sr. Mimi e o Sr. Jaimesinho. Cumprimentou-os com todas as homenagens, ainda meio tonto. Mas Adolfinho não deu tempo a Flávio Guimarães de respirar e continuou: - Foi por causa do Mimi e do Jaimesinho que o meu amigo brigou comigo. Ele não queria que eu Na escuridão do carro, o corpo pequenino de Helena estava imóvel, sem vida. Um lindo sorriso de criança sonhando inundava-lhe a fisionomia magra e esquelética. Helena parecia sonhar. Mas estava morta! Morta, gelada! O “chauffeur”, calejado por esses espetáculos, murmurou entre os dentes: - Esta, pelo menos, teve espírito. Adivinhou que a Santa Casa não a receberia. E então se foi... E fez muito bem!... Na ambulância tétrica e negra como uma prisão, a pequena operária sorria, meigamente, para o céu! (Costallat, 1924, p.35-36). 161 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 151-164, out. 2012/mar. 2013. VERRUMO, Marcel. Jornalismo Narrativo em tempos de Belle Époque Belle Époque carioca: do alto mundanismo ao universo dos bas-fonds. Ao sair pela cidade em busca de informação para representar seu espaço-tempo, Costallat teria aproximado sua vivência jornalística de um elemento típico da ficção literária de seu contexto discursivo: a do flâneur. Influenciado pelo noturnismo decadentista finissecular e relacionado a uma espécie de voyeur, essa figura, na série, visita perigosos locais, desce aos infernos para buscar informações e desvendar realidades ocultas e surpreendentes da capital federal. Quando o narrador-repórter retrata a realidade do submundo carioca e reporta o cotidiano de seus populares, parece se identificar positivamente com a temática. Por outro lado, quando se volta para as elites da época, comentando a respeito da modernização e do afrancesamento da sociedade, Costallat parece associar esses temas à decadência social, a ir contra os “bons costumes”. Em seus textos, impressos em um momento de modernização da cidade e da imprensa, também pôde ser identificado o amadurecimento do embrião do repórter da modernidade, surgido com João do Rio. Se esse repórter, considerado por alguns pesquisadores o iniciador da reportagem no Brasil, foi o primeiro a sair da redação em busca de informação nas ruas, Benjamim Costallat dá um passo à sua frente: vai às ruas à busca do registro do cotidiano; no entanto, já não é um flâneur ocioso, mas um repórter pautado à busca de temáticas e personagens específicos. É o profissional dos jornais acompanhando a cidade e entrando em uma nova era – a era das máquinas, da informação, da velocidade. A era moderna. dançasse com eles. Chegou a me proibir. Ciúmes, apenas ciúmes. E ciúmes tolos. Ora, eu não me sujeitei. A gente não pode ser grosseiro, principalmente com colegas, não acha? Jaimesinho e Mimi, com as suas vozesinhas de falsete, aplaudiram (Costallat, 1924, p.35-36). Portanto, por meio de uma linguagem popular e trabalhando com temas que remetem ao trinômio sexo-violência-escândalo, a série de reportagens Mistérios do Rio parece apresentar traços do chamado jornalismo sensacionalista. O que, décadas depois, desembocaria em produções radiofônicas e em jornais como o Notícias Populares, parece já estar presente na série analisada. É claro que não se está afirmando que Benjamim Costallat teria sido o iniciador do jornalismo sensacionalista no Brasil, afinal, definir uma matriz textual em apenas uma produção parece até ser imprudente e inadequado. O que se afirma é que a série de reportagens, ao buscar retratar o cotidiano das elites e os bas-fonds cariocas da década de 1920, parece integrar uma cadeia de textos jornalísticos que utilizam atributos narrativo-ficcionais sensacionalistas para ter grande apelo junto às massas. Considerações finais Desvendar como Benjamim Costallat, na série Mistérios do Rio, representou a modernidade carioca e como se caracterizava a linguagem de suas reportagens foi o objetivo deste artigo. Publicada em um contexto de transformações políticas, sociais e culturais, a série Mistérios do Rio faz um registro de diferentes camadas sociais da Referências BAHIA, J. (1990). Jornal, história e técnica: história da imprensa brasileira. São Paulo: Ática. BERMAN, M. (2007). Tudo o que é sólido se desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Cia. das Letras. BRAIT, B. (1985). A personagem. São Paulo: Ática. BROCA, B. (1975). A vida literária no Brasil – 1900. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio (Documentos brasileiros, v.108). _____. (1993). Teatro das letras. Campinas: Unicamp. BULHÕES, M. M. (2005). Jornalismo, literatura e violência: a escrita de João Antônio. Bauru: Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação. (Coleção FAAC, Série Docência). _____. (2007). João do Rio e os gêneros jornalísticos do início do século XX. Revista Famecos. Porto Alegre: Famecos. 162 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 151-164, out. 2012/mar. 2013. VERRUMO, Marcel. Jornalismo Narrativo em tempos de Belle Époque _____. (2007). Jornalismo e literatura em convergência. São Paulo: Ática. CANDIDO, A. et al. (1995). A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva. CASTRO, G.; GALENO, A. (orgs.). (2002). Jornalismo e literatura: a sedução da palavra. São Paulo: Escrituras (Coleção Ensaios Transversais). COIMBRA, O. (1993). O texto da reportagem impressa: um curso sobre sua estrutura. São Paulo: Ática. COSTA, C. (2005). Pena de aluguel: escritores jornalistas no Brasil 1904-2004. São Paulo: Companhia das Letras. COSTALLAT, B. (1923). Mademoiselle cinema. Rio de Janeiro: Benjamim Costallat & Miccolis. _____. (1924). Mistérios do Rio. Rio de Janeiro: Benjamim Costallat & Miccolis. DIMAS, A. (1994). Espaço e romance. São Paulo: Ática. D’ONOFRIO, S. (1983). O texto literário: teoria e aplicação. São Paulo: Duas Cidades. EDMUNDO, L. (1938). O Rio de Janeiro do meu tempo. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional. EL FAR, A. (2004). Páginas de sensação: literatura popular e pornográfica no Rio de Janeiro (1870-1924). São Paulo: Companhia das Letras. ESTEVES, M. A. (1989). Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra. FREYRE, G. (2003). Sobrados e mucambos. São Paulo: Global. HARVEY, D. (2012). O direito à cidade. Revista Piauí, São Paulo, n. 82, p. 38-43. JOÃO DO RIO. (1904). As religiões do Rio. Paris: Garnier. _____. (1908). A alma encantadora das duas. Paris: Garnier. _____. (1911). Vida vertiginosa. Paris: Garnier. LAGE, N. (1986). Estrutura da notícia. 7. ed. São Paulo: Ática. _____. (1993). Linguagem jornalística. 4. ed. São Paulo: Ática (Série Princípios, v. 37). _____. (2000). A reportagem: teoria, técnica de entrevista e pesquisa jornalística. 2. ed. São Paulo: Record. LEITE, L. C. M. (1985). O foco narrativo. São Paulo: Ática. MEDINA, C. A. (1978). Notícia: um produto à venda (Jornalismo na Sociedade Urbana e Industrial). São Paulo: Alfa-Ômega. _____. (1995). Entrevista, o diálogo possível. São Paulo: Ática. MOISÉS, M. (1987). A análise literária. São Paulo: Cultrix. NEEDELL, J. D. (1993). Belle Époque Tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. Trad. Celso Nogueira. São Paulo: Companhia das Letras. NUNES, B. (1988). O tempo na narrativa. São Paulo: Ática. O’DONNELL, J. G. (2008). De olho na rua: a cidade de Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. PEDROSO, R. N. (2001). A construção do discurso da sedução em um jornal sensacionalista. São Paulo: Annablume. PORTOLOMEOS, A. (2005). Um best-seller esquecido. Revista Nossa história, Rio de Janeiro. REIS, C.; LOPES, A. C. M. (2000). Dicionário de Narratologia. 7. ed. Lisboa: Almeida. ROSSI, C. (1986). O que é jornalismo. 7. ed. São Paulo: Brasiliense. 163 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 151-164, out. 2012/mar. 2013. VERRUMO, Marcel. Jornalismo Narrativo em tempos de Belle Époque ROSSUM-GUYON, F.; HAMON, P.; SALLENAVE, D. (1976). Categorias da narrativa. Cabral Martins (Trad.). Lisboa: Veja. SEVCENKO, N. (2003). Literatura como missão. São Paulo: Companhia das Letras. SILVA, V. M. A. (1976). Teoria da Literatura. São Paulo: Martins Fontes. SODRÉ, M.; FERRARI, M. H. (1986). Técnicas de reportagem: notas sobre a narrativa jornalística. 4. ed. São Paulo: Summus Editorial (Coleção Novas Buscas em Comunicação, v. 14). SODRÉ, N. W. (1999). História da imprensa no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Mauá. SUE, E. (1913). Os mistérios de Paris. Lisboa: Guimarães & Cia. Marcel Verrumo é jornalista, repórter da Editora Abril e mestrando do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da Universidade Estadual Paulista (Unesp). E-mail: <[email protected]>. Recebido para avaliação em março de 2013. Aprovado para publicação em junho de 2013. 164 Origami científico: a linguagem das dobraduras no design contemporâneo ROSSI, Dorival Campos; TEIXEIRA, Samanta Aline Resumo Depois de atravessar inúmeras gerações e países, funções mais abrangentes estão sendo incorporadas ao origami além da simples confecção de objetos artísticos: o dobrar vem desencadeando uma série de novas construções dentro do projeto e da criação. Sob as novas representações e atuações que a arte de dobrar papel encerra, este artigo se propõe a investigar como o origami se configura nos dias de hoje e como se comporta como linguagem contemporânea aplicada aos processos projetuais das mais diversas naturezas. Relacionando teóricos, artistas, designers, etc., pode-se apontar a relevância de cada uma dessas áreas na configuração do origami científico e projetual. A modularidade, o coletivo, o construir consciente, o contemporâneo e a inovação são relações intrínsecas à práxis projetual que configuram um panorama adjacente e subordinado à estrutura principal. Aposta-se na essência do origami como uma funcionalidade tangível para o pensamento criativo. Palavras-chaves: Origami – Design – Processos – Transdisciplinaridade – Inovação. Abstract After crossing several generations and countries, broader functions are being incorporated to origami than simply making art objects: the fold initiates a series of new buildings within the design and creation. Under the new representations and performances that the art of paper folding keeps, this article aims to investigate how the origami is configured nowadays and how it behaves while contemporary language applied to projective processes of diverse natures. To better understand the actual origami, relations are used inside branch of math, conceptual and projectual. Relating theorists, artists, designers, etc., can point out the relevance of each of these areas in the configuration of cientific and projectual origami. The modularity, the collective, the conscious build, the contemporary and the innovation are relationships intrinsic to the praxis projectual that shape a landscape adjacent and subordinate to the main structure governing. It bets on the essence of origami as a tangible functionality for creative thinking. Keywords: Origami – Design – Processes – Transdisciplinarity – Innovation. 165 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 165-178, out. 2012/mar. 2013. ROSSI, Dorival Campos; TEIXEIRA, Samanta Aline. Origami científico: a linguagem das dobraduras no design contemporâneo Introdução • Em um primeiro momento, o foco se concentra no “esqueleto” do origami, como ele se dá, como se comporta, como se forma e o que essa formação implica, e o que dela se pode refletir e/ou aproveitar; • Em um segundo momento, depois de explanada a estrutura compositiva e filosófica das dobraduras, parte-se para a comunicação e o ensino do origami, que é interativo, emergencial e coletivo – processo que, por ser imanente às dobraduras, contribui significativamente para a sociedade por meio da transmissão horizontal e inovadora do conhecimento; • Por último, mas não menos importante, citam-se e se analisam alguns dos inúmeros processos criativos no mundo que utilizam a linguagem do origami como principal ferramenta em design. Sabe-se que o design vem enfrentando uma série de mudanças em sua essência e que essas mudanças estão sendo particularmente intensas no Brasil. Com a modificação de currículos e a oficialização da profissão, o design está aumentando suas atuações, intervenções e colaborações nas grandes e pequenas cidades. Ser designer já não significa mais atuar exclusivamente nas fábricas, passando-se do plano das ideologias vanguardistas para ações diretas na sociedade. Em nossa era pós-industrial, está-se diante de uma nova realidade em que as indústrias criativas estão ascendendo e ganhando força nas mais variadas áreas. São indústrias que cultivam paradigmas que fogem do senso tradicional, as quais buscam por janelas nunca antes notadas ou observadas com afinco. Algumas dessas janelas exploradas são as linguagens antigas, como os crafts. Estes, por sua vez, são hibridizados com as linguagens mais recentes (entre elas, a eletrônica), fomentando os mais diversos tipos de processos projetuais. Por processo projetual se entende o que seria a nova configuração do design, ou seja: “O projeto é um projetar contínuo, é exercer sempre uma crítica sobre a existência, e supor qualquer coisa de diferente e evidentemente melhor” (Argan, 2005, p.265). O projeto (ou design) é, então, nada menos do que um processamento de ações sucessivas de valorização que vão se atualizando conforme o tempo, o ambiente e a cultura (Rossi, 2003, p.95). O origami não somente entra nesta gama de resgates como tem sido atualizado como um dos objetos mais estudados e aplicados atualmente nos adventos contemporâneos. Origami conceitual: a nomenclatura, filosofia e composição das dobraduras Onde e como introduzir um fio entre dois fios, por onde passar, por qual espaço? É preciso ir de dimensão a dimensão para compreender melhor. Onde e como introduzir uma folha entre duas páginas, por onde passar, por qual espaço? (...) É preciso imaginar dobraduras, invaginações, situações extraordinariamente complexas que generalizam a prática e a noção de nó em todas as dimensões imagináveis (Serres, 2001, p.74-75). Serres (2001) introduz o princípio básico do conhecimento em gerar objetos complexos e pulsantes. Não são construções aleatórias nem mesmo com demasiada programação. Trata-se, antes, de saber explorar e fazer do ato de explorar a principal ferramenta para conceber ideias e objetos. Sendo assim, um dos raciocínios tangíveis ao designer é a dobra, pensamento vasto assim indicado: “As dobras estão na alma e só existem atualmente na alma. Isto já é verdadeiro no caso das ‘ideias inatas’: são puras virtualidades, puras potências, cujo ato acabado consiste em uma ação interior da alma” (Deleuze, 1991, p.44). A importância da cultura oriental, enquanto aglutinadora das filosofias portadoras das velhas e novas linguagens, é assim confirmada, pois “buscar inspiração na natureza é uma tarefa difícil nos tempos de hoje, mas os japoneses parecem lidar com a Figura 1: As escritas possíveis para origami Traduzido literalmente como “ato de dobrar papel”, o origami está se transformando de seu início singelo em cima de um papel para uma ferramenta de inovação palpável e reveladoramente potencializada dentro da transdisciplinaridade. Assim, este artigo postula três tipos de investigação sobre o origami: 166 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 165-178, out. 2012/mar. 2013. ROSSI, Dorival Campos; TEIXEIRA, Samanta Aline. Origami científico: a linguagem das dobraduras no design contemporâneo eletrônica com a mesma facilidade com que seus antepassados ouviam o vento” (Azevedo, 1994, p.75). Dentro da grande versatilidade da cultura japonesa, o origami ocupa um lugar considerável. Como objeto de estudo, foca-se na construção de origamis de acordo com princípios mais orgânicos, fazendo com que seja possível a aproximação destes com a teoria da subjetividade conhecida como rizoma. Para situar melhor essa conceituação, trata-se da teoria desenvolvida por Deleuze e Guattari (1995), que diferenciam o pensamento filosófico objetivo (dicotômico ou árvore) do pensamento filosófico subjetivo, que é o rizoma. A árvore carrega o verbo “ser” em si e possui raízes e radículas conceituais que giram em torno da dualidade, da linearidade/ ciclo e do clássico. Já o rizoma é diferente das raízes e radículas, pois sacode e desenraiza o “ser” para se configurar não como um começo ou um fim, mas um meio, um “entre”, ou ainda, um corpo sem órgãos. Como exemplo de um comportamento rizomático, Deleuze e Guattari citam a multiplicidade, que constitui uma realidade que deixa de se comportar como objeto ou sujeito para se tornar natural ou espiritual. As multiplicidades não possuem estruturas ou unidade, apenas linhas abstratas/linhas de fuga e são desterritoriais. Sua natureza mutante se conecta com outras multiplicidades e modificam a si mesmas constantemente: um rizoma pode se partir, quebrar-se e retomar seu lugar em uma ou outra linha. O origami, uma vez tratado de maneira apropriada, possui esse caráter construtivo, mutante e conectivo. Figura 3: Origami mutante “Fireworks”, de Yami Yamauchi Figura 4: Origami mutante “Magic Ball”, de Kade Chan Se se considerar um origami clássico, feito a partir de um único papel sem cortes ou cola, o que possibilita sua potencial complexidade é o arranjo como suas dobras vales e montanhas estarão dispostas ao longo do papel. E essa disposição diz respeito não apenas ao espaço ocupado por uma ou outra dobra ou aos seus diversos tamanhos, mas à trama maquinal que o origami demanda: é necessário torcer, explorar, construir, marcar, mapear, transformar o papel em algo incognoscível até então. Não se trata apenas de desenvolver gestos manuais, mas raciocinar sobre e com o objeto, de maneira que ele traga em si um devir origami. Assim, a análise pura da dobra denota que “dobrar-desdobrar já não significa simplesmente tender-distender, contrair-dilatar, mas envolver-desenvolver, involuir, evoluir” (Deleuze, 1991, p.21). Se se considerar, então, o “origami modular” ou ainda kusudama, além da exploração das dobras em si, também é preciso o raciocínio de construção e conexão dinâmica. Vejamos alguns modelos: Figura 2: Os dois tipos de dobras possíveis em origami De acordo com Lang (2010), há dois tipos de dobras primárias em origami: a “dobra vale” e a “dobra montanha”. Por mais complexo e detalhado que possa ser um origami, ele nada mais é do que uma composição de diversas dobras vales e montanhas. Mas como uma simples folha de papel pode se transformar em um objeto complexo utilizando somente essas duas configurações possíveis? Figura 5: Modelos “Icosaedro com curvas e ondas”, de Meenakshi Mukerji; “Ômega Star”, de John Montroll; e “Pluto”, de Makoto Yamaguchi 167 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 165-178, out. 2012/mar. 2013. ROSSI, Dorival Campos; TEIXEIRA, Samanta Aline. Origami científico: a linguagem das dobraduras no design contemporâneo Os modelos exibidos são origamis modulares, também chamados kusudama (くす玉), ou origamis-unidades (ユニット折り紙), espécie de dobradura que foge aos parâmetros tradicionais do origami japonês e é composta por módulos. Os kusudamas possuem diversas formas e naturezas particulares, mas todos os modelos modulares detêm uma característica em comum: sua estruturação se dá por meio da união de vários origamis independentes através de dobras, cola ou linha. Dobrar origamis modulares distintos significa necessariamente conduzir as dobras e a união das mesmas experimentalmente: “o rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza” (Deleuze e Guattari, 1995, Introdução: Rizoma, p. 31). Assim se pode associar a ideia de origami à noção de dobra, uma maneira particular de dobrar e encaixar um módulo ao outro que muda toda a estrutura em si. Existem vários “começos” comuns a diversos modelos de origamis diferentes, como mostra o esquema a seguir: Figura 6: Conexões entre origamis-bases e alguns possíveis modelos resultantes que, de certa forma, todos os origamis estão conectados uns aos outros enquanto formas de raciocínios abrangentes. Essa nova configuração conceitual faz o origami diferir de apenas uma dobradura. A dobra e a dobradura se juntam para construir novas linguagens e percepções possíveis em design. A solda e a costura se juntam na tentativa de fazer emergir novos processos de produtos em design. Portanto, entende-se por design aquilo que costura, faz a junção e não apenas a forma em si, desconectada – a aglutinação entre esses dois paradigmas complexos, origami e design, tornarse-á mais clara nos próximas sessões. Origami emergencial: comunicação e ensino das dobraduras Steven Johnson (2003) descreve o comportamento organizacional denominado emergência (ou bottom-up) que se aplica a alguns tipos de sistemas de auto-organização, tais como redes tecnológicas e grupos de seres vivos, como os cupins, formigas e mesmo grupos de seres humanos. O conceito da emergência possui considerável semelhança com a linguagem do origami enquanto peça comunicativa. Por meio de oficinas, vídeos e diagramas ilustrativos, observa-se que o origami é transmitido por meio do fazer coletivo, em que não há hierarquias. Nesses termos, a linguagem verbal torna-se desnecessária uma vez que os gestos, as ações e os desenhos são autoexplicativos. Figura 7: Reunião de fotos de oficina “Uma Dobra” na Unesp (2011) Os origamis-bases são muito comuns para inícios de diversos modelos diferentes em origami, sejam eles simples ou complexos. Se dobrar um origami-base em triângulo e não adicionar qualquer marca a mais, basta inverter seu eixo central de baixo para cima, e, com as mesmas marcas, têm-se o origami-base em losango. Apesar de ser o mesmo papel com as mesmas marcas, os origamis-bases são diferentes entre si e possuem caminhos distintos e particulares para obter resultados em dobraduras que nada se parecem umas com as outras. Pode-se perceber que, além das estruturas básicas de dobras vales e montanhas presentes em toda e qualquer dobradura, há também algumas bases em comum com diversos origamis. Esse fato evidencia 168 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 165-178, out. 2012/mar. 2013. ROSSI, Dorival Campos; TEIXEIRA, Samanta Aline. Origami científico: a linguagem das dobraduras no design contemporâneo Para melhor entender na prática como funciona a comunicação em dobraduras, aplicou-se durante quatro anos a oficina de origami “Uma Dobra”, ministrada por Samanta A. Teixeira, Junia Kimura e Maurício Rogério R. Ribeiro, alunos de design gráfico e de engenharia civil da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Bauru. A oficina foi ministrada durante o encontro local “Interdesigners”, consecutivamente nos anos de 2009, 2010, 2011 e, mais recentemente, em outubro de 2012. No decorrer das oficinas, fica claro que a transmissão de conhecimento é dada pelo mecanicismo indireto que Johnson (2003, p.23) descreve no comportamento das formigas. Em análise laboratorial, as formigas separavam instintivamente a parte ativa da colônia (onde trabalhavam e geravam comida), do cemitério (onde depositavam as formigas mortas) e da lixeira (onde jogavam restos de diversos materiais inutilizáveis e comida acumulada). Essa formação aconteceu em movimentos de bottom-up, ou seja, sem a necessidade da figura do líder, faziam com que o formigueiro se tornasse pulsante e organizado por si mesmo, apenas a partir das relações intrínsecas entre seus componentes. Johnson (2003) caracteriza também o comportamento emergencial com outro exemplo, além das formigas: a cidade de Manchester, na Inglaterra, que por 500 anos foi considerada uma cidade de domínio rural devido à falta de administração de alguma prefeitura, sem policiamento, sem autoridades da saúde pública ou qualquer órgão institucional próprio da gestão das cidades. Ironicamente ou não, a cidade se tornou um dos principais polos de tecnologia industrial de tecelagem do Império Britânico, ao mesmo tempo em que se tornava também uma cidade perigosa do submundo. Há, na emergência de feedbacks intensos entre seus componentes, padrões interativos, controles indiretos, uma mistura de anarquia e ordem. Figura 8: Reunião de fotos de oficina “Uma Dobra” na Unesp (2012) O mesmo ocorre com o ensino do origami em formato de oficina. Havia semilíderes de início, mas apenas para apresentar a proposta, que mudava constantemente de objetivos durante o decorrer da oficina. Pelo mapeamento de dobras, os participantes estavam livres para sugerir outros modelos de diferentes naturezas. Quando a oficina começava, já não se sabia quem era aluno e quem era o professor. Se em uma sala de aula comum essa divisão faz sentido, na oficina de origami ela perde todo o propósito. Ocorre um grande diálogo gestual e oral entre os membros da oficina, o limite entre quem orienta e quem é orientado se borra e se mescla. A troca de experiências é tão intensa que nenhuma pessoa que se habilitou a fazer a oficina saiu sem conseguir fazer todos os modelos propostos, alguns até de grande dificuldade e detalhismo, e isso ocorria mesmo que a maioria dos participantes nunca tivesse qualquer contato com as dobraduras até então. O mesmo comportamento ocorre com os diagramas ilustrativos, criados por Yoshizawa, que são de uma linguagem espantosamente simples e acessível. 169 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 165-178, out. 2012/mar. 2013. ROSSI, Dorival Campos; TEIXEIRA, Samanta Aline. Origami científico: a linguagem das dobraduras no design contemporâneo nosso tempo –, o físico e origamista Robert Lang fez um discurso inédito e extremamente cooperador para a seriedade do origami aplicado em nossa realidade atual. Lang afirmou que, em virtude de diversas pesquisas teóricas e projetos aplicados, o origami está presente não apenas na arte e na comunicação, mas também na medicina, microbiologia, arquitetura e astronomia. Uma das grandes inovações que o origami pôde fornecer para essas e tantas outras áreas do conhecimento é a facilidade com que as dobras podem ser mudadas de acordo com a situação. Nas palavras do próprio Lang, os objetos são pensados para serem pequenos para a “viagem”, pois se dobram e assim se compactam e, quando chegam ao seu destino, podem voltar à sua forma original, ou seja, desdobrarem-se e se expandirem. Um de seus exemplos é o heart stent. O pesquisador Zhong You, da Universidade de Oxford, aplicou o raciocínio da compactação por meio da dobra a um tubo que desobstrui as artérias coronárias do coração, impedindo a ocorrência do infarto nos pacientes – procedimento cirúrgico conhecido como angioplastia. Outro exemplo de aplicação do princípio do origami citado é o design de air bags: uma vez mais, o objeto precisa ser minúsculo para caber dentro do volante, e necessita se expandir rapidamente para proteger o motorista no caso de algum acidente, razão pela qual o air bag precisa ser dobrado não de forma aleatória, mas de uma maneira precisa, engenhosa, uma vez que sua expansão precisa ocorrer em menos de três segundos. Esse tipo de precisão com margem de erro extremamente diminuta é possível com o know-how do origami científico: saber onde e como dispor as dobras vales e as dobras montanhas. Outros estudos aplicados usando a dobra como principal ferramenta de trabalho são os telescópios espaciais da NASA: na Terra, são pequenos para economizar o combustível do foguete de lançamento e, no espaço, voltam ao seu tamanho original para poderem analisar com precisão constelações, planetas, meteoros, etc. O atual acidente do meteorito caído na Rússia, cujo impacto deixou mais de mil feridos, prova que esses tipos de pesquisas astronômicas estão se tornando cada vez mais importantes. Por fim, o último e mais surpreendente exemplo citado por Lang é o estudo do físico Paul Rothemund, do Instituto Tecnológico da Califórnia, que chegou a desenvolver técnicas para dobrar a forma do DNA. Todos esses citados projetos da área científica comprovam que o design pensado em dobra possui um potencial extremamente útil para a so- Figura 9: Diagrama da borboleta “Agehachôu”, de Akira Yoshizawa Os diagramas se tornaram o principal elemento comunicacional das dobraduras, revolucionando e disseminando popularmente o origami no mundo todo. Além dos diagramas, há hoje diversos vídeos tutoriais on-line realizados por fãs e conferências que investem no origami design como um dos principais veículos de arte e comunicação, trazendo vários origamistas talentosos e que, até então, eram desconhecidos. Johnson (2003) confirma que, atualmente, constroem-se sistemas de auto-organização com aplicação de softwares, video games, arte, música. Constroem-se sistemas emergentes para recomendar novos livros, reconhecer vozes. Nossa vida cotidiana foi invadida pela emergência artificial. Com o origami e sua transmissão não é diferente. Aponta-se na dobradura a configuração de uma linguagem independente e universal, que pode alcançar qualquer pessoa e não requer um conhecimento acumulativo ou prévio: “sem líder, ou líderes, as formigas, mediante relações colaterais (...), constroem e organizam ‘por si mesmas’ todo o trabalho do formigueiro” (ohnson, 2003, Capítulo 1: O Mito da Formiga-Rainha, p. 21). Essas trocas de informações permitem com que novos paradigmas de dobra e dobradura possam surgir e, com o design, possam fomentar os mais variados e inéditos processos científicos inovadores que serão exemplificados a seguir. Origami projetual 1: princípio do compacto para viagem e expandido para o destino Durante o Google Zeitgeist Minds de 2010 – evento com uma série de palestras on-line que objetivam explanar diversas perspectivas sobre questões globais a partir de alguns dos principais pensadores do 170 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 165-178, out. 2012/mar. 2013. ROSSI, Dorival Campos; TEIXEIRA, Samanta Aline. Origami científico: a linguagem das dobraduras no design contemporâneo ciedade como um todo. O origami carrega uma imanência mutante tão elevada que pode permear praticamente todos os tipos de inovação tecnológica. Utilizando o pensamento complexo indicado por Morin (2011) como alicerce analítico, buscamse maiores forças de atuação e configuração do que as visões unilaterais permitem observar. Nota-se, então, que, no âmago do trabalho de Tompa, há uma concepção visceralmente entrelaçada com a idealização de um origami, em especial os modulares, que ainda estão em processo de concepção. Há uma importância não apenas no objeto em si, mas principalmente no raciocínio que ordenou toda a sua estrutura. Tompa é um designer húngaro de telhas e azulejos (um ramo bem específico e até excêntrico do design); é formado na Universidade Húngara de Artes e Design (Magyar Iparművészeti Egyetem – MIE) na capital Budapeste, em 1993. Contou-se como melhor exemplo deste designer a caixa “Illusion Box”, trabalho que recentemente também serviu de referência para a concepção das luminárias “Flower Lamps”. Em uma conversa on-line, Tompa nos esclareceu diversos pontos sobre a concepção da “Illusion Box”: “A ideia veio à minha cabeça durante um projeto periódico de azulejos. Fiz experimentos com triângulos regulares e quadrados baseados em malhas (mosaicos).”1 Origami projetual 2: processos criativos em dobra e com a dobra A arte não consiste mais, aqui, em compor uma “mensagem”, mas em maquinar um dispositivo que permita à parte ainda muda da criatividade cósmica fazer ouvir seu próprio canto. Um novo tipo de artista aparece, que não conta mais história. É um arquiteto do espaço dos acontecimentos, um engenheiro de mundos para bilhões de histórias por vir. Ele esculpe o virtual (Lévy, 1996, p.149). Lévy traz para o designer uma série de novas possibilidades em diferentes naturezas quando apresenta o virtual em todo o seu juízo. O virtual representa “um modo de ser fecundo e poderoso, que põe em jogo processos de criação, abre futuros, perfura poços de sentido sob a platitude da presença física imediata” (Lévy, 1996, p.12). É a partir desse novo leque de paradigmas que as criações contemporâneas podem se apoiar e se compor, trazendo projetos híbridos extremamente ricos em conceitos, linguagens, estruturas e materiais. Alguns desses projetos serão tratados nesta sessão com o objetivo de verificar a potência do pensamento em origami quando lançado ao design processual atuante no mercado. Tomou-se o designer Laszlo Tompa como exemplo de aplicação dos módulos e encaixes precisos, tal como os kusudamas, para conceber seus processos de produto: Figura 12: umas das unidades de telhas, por Tompa Figura 10: “Illusion Box”, por Laszlo Tompa Tompa prossegue: “Eu desenvolvi essas formas para transformá-las em telhas 3D: são objetos cortados na metade (meio cone, meia esfera, etc.) que eu consegui unir através do encontro dos seus eixos. Foi então que obtive um eixo de rotação maleável entre essas formas.” Figura 11: “Flower Lamps”, por Laszlo Tompa 1 Tradução feita pelos autores. 171 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 165-178, out. 2012/mar. 2013. ROSSI, Dorival Campos; TEIXEIRA, Samanta Aline. Origami científico: a linguagem das dobraduras no design contemporâneo demonstrou ao designer como ele deveria se formar e não o contrário. Esse comportamento é pouco explorado hoje em nossa cultura, especialmente no ramo da criação e do projeto, como Flusser pontua: a cultura oriental deixa emergir da matéria a forma enquanto seu devir próprio: Figura 13: Telhas-mosaicos concebidas a partir da união de eixos, por Tompa Podemos observar como surgem formas entre as mãos dos orientais, por exemplo, ideogramas escritos com pincel, flores de papel (...). Em todos esses casos não se trata de uma ideia imposta sobre algo amorfo; trata-se de fazer surgir de si mesmo e do mundo circundante uma forma que abarque ambos (Flusser, 2007, p.208). Conclui o designer húngaro: “Durante o desenvolvimento das telhas, eu percebi que três quartos dos elementos podiam ser usados como suporte nos cantos e a superfície total da parede poderia ser coberta com as telhas através dessa ligação. Quando trabalhei com esses elementos de canto, uma pergunta veio: ‘E se um cubo for coberto com esses elementos em espaços não correspondentes?’ A coisa mais importante durante um projeto é fazer as perguntas certas. Desde então, pude começar a desenvolver progressivamente a ideia básica. Eu já fiz outras caixas com madeira antes de poder dizer que eu deveria fazer caixas com essa ideia. Eu projetei 16 variedades no computador até chegar neste modelo final (a “Illusion Box”) que se tornou o melhor protótipo feito por mim. Então, foi dessa forma que a telha de parede se transformou em uma caixa de madeira”. Basicamente, o que Laszlo pretende dizer é que, por meio de seu raciocínio em ligar diferentes formas por seus eixos e rotações, foi possível transpor suas telhas do plano bidimensional para o plano tridimensional – os cantos das paredes, o cubo-caixa e as luminárias. Percebe-se que há dois segmentos importantes no raciocínio de Tompa. Primeiro: a simplicidade de suas formas, trabalhadas apenas no arredondamento, na união, no aumento e na diminuição de quadrados e triângulos, cones e círculos. Segundo: a precisão de encaixe, uma forma complementa o espaço vazio da outra: há uma interdependência entre as diferentes formas que compõem o todo. Mesmo sendo formas completamente diferentes, de tamanhos e formas também diferentes, elas se comportam tal como módulos de origami, e é exatamente essa diferença entre os módulos que garante a plasticidade da “Illusion Box”. Outro fator importante é a transposição da orientação 2D para 3D – da maneira como Tompa descreve, foi o objeto que Um exemplo oriental de grande influência do origami está no trabalho do designer de moda japonês Issey Miyake: Figura 14: Coleção outono/inverno Eco-origami (20122013), por Issey Miyake Figura 15: Transformação do pano-origami inicial para a peça final, a roupa Realizado com sua equipe de laboratório Reality 172 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 165-178, out. 2012/mar. 2013. ROSSI, Dorival Campos; TEIXEIRA, Samanta Aline. Origami científico: a linguagem das dobraduras no design contemporâneo trabalhos do LAVA: a vitrine de La Rinascente, feita com 1.500 origamis em papéis reciclados que incorporam a dinâmica dos recifes de corais. Segundo Bosse, um dos criadores da vitrine, os corais possuem um comportamento organizacional inteligente, regido plenamente pela sustentabilidade. O desenvolvimento sustentável não diz respeito somente à gestão em prol da preservação da natureza, elenca maiores fatores do que aparenta de início, confere feedback tanto para o meio quanto para o usuário, ao mesmo tempo em que reforça a importância do papel do designer nos estudos criativos: Lab e com o origamista e cientista computacional Jun Mitani, Miyake projetou a coleção Eco-origami: peças de roupas que possuem uma forma inicial em duas dimensões tal qual um origami e que, quando desdobradas, passam a ter três dimensões e adquirem a forma da roupa em si, como vestidos, bolsas, blusas e calças. A ideia possibilitou a reutilização de vários tecidos que foram descartados anteriormente; além disso, maximizou o conceito de “dobrar roupas”, ou seja, o estado de guardar uma roupa em um armário passou a ter tanta importância estética quanto o momento de usá-la. As engenhosas dobras também possibilitaram um tingimento extremamente particular e interessante aos tecidos, possível apenas quando dobrados de tal forma precisa e geométrica. A seguir, como exemplo aplicado ao design e à arquitetura e de referência clara às dobraduras, constatam-se determinados edifícios que desafiam tanto a gravidade quanto os limites de formato. Tais edificações pertencem ao Laboratório de Arquitetura Visionária (LAVA). Fundado em 2007, por Chris Bosse e Tobias Wallisser, a empresa possui sedes na Alemanha, Austrália e Emirados Árabes Unidos e vincula pesquisas de diversas áreas às equipes profissionais, em busca de inovação, tecnologia e diferencial. Nesse ínterim, nota-se um padrão: assim como o origami desafia os formatos do papel, o LAVA desafia os formatos construtivos urbanos, fazendo com que os limites entre a engenharia dos materiais e os ideais do design estejam cada vez mais estreitos. Uma das propostas da empresa é gerar uma ponte entre o sonho/desejo e o mundo real por meio do não conformismo. Se o desejo é o motor do desenvolvimento sustentável, a criatividade é seu combustível: é a criatividade que dará o impulso ao empreendedor para imaginar um produto ou serviço que ofereça mais (satisfação às necessidades) com menos (recursos e trabalho). (...) É a criatividade que vai permitir ao pesquisador encontrar soluções elegantes para problemas cada vez mais complexos (Thierry Thouvenout apud Kazazian, 2005, p.8). A sustentabilidade, em convergência com raciocínios da natureza e a linguagem dos crafts como o origami é uma das muitas conexões que o LAVA se dispõem a elaborar em seus projetos. Outro exemplo de uso claro à linguagem do origami é o abrigo para emergências Digital Origami Shelter, baseado na molécula de água e nos hotéis-cápsulas japoneses. Figuras 17 e 18: Digital Origami Shelter, por LAVA Figura 16: Vitrine de uma loja italiana, origamis elaborados pelo LAVA A imagem mencionada anteriormente é um dos 173 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 165-178, out. 2012/mar. 2013. ROSSI, Dorival Campos; TEIXEIRA, Samanta Aline. Origami científico: a linguagem das dobraduras no design contemporâneo da China, o Ano Novo Lunar Chinês. Instalados no pátio de Customs House, em Sydney, a empresa projetou os gigantes tigres com 2,5 metros de altura por 7 metros de comprimento e ambos possuem 200 quilos. Os tigres foram feitos apenas com materiais recicláveis, alumínio e barrisol, e a adição da iluminação de baixa energia das lâmpadas LED. As esculturas também simbolizam a preocupação com a extinção de diversos animais, entre eles os tigres. Esse projeto reflete a possível interação entre as tradições culturais com as experimentações e tecnologias atuais. Além do aspecto de conexão interativa que a linguagem do origami resguarda, aponta-se uma nova mudança de paradigma também sobre o craft, que literalmente significa “ofício”, “habilidade”, e designa o fazer manual, artesanal. O craft é uma técnica que remonta aos tempos mais longínquos da Pré-História, mas vem sendo resgatado e utilizado em muitos processos de projetos contemporâneos. Diferentemente da concepção do antigo desenho industrial – em que o manual e o maquinário se encontravam em grupos distintos e insolúveis entre si e no qual o que era design tinha de passar pelas máquinas e o que era feito à mão constituía meramente um objeto artesanal –, hoje esse retorno ao contato direto com o material, com estudos e manuseios experimentais táteis estão voltando a fazer parte do design contemporâneo. Esse retorno não constitui apenas um resgate de técnicas, mas uma atualização destas em conexão com as novas tecnologias, como as mídias digitais. O novo e o antigo aglutinam suas diferentes atuações e formações e trazem à tona novas linguagens contemporâneas. O craft atualizado se evidencia em empresas criativas como o Mode/modeLab, estúdio e laboratório experimental de design e investigação coletiva com sede no Brooklyn, em Nova Yorque. Fundado por Ronnie Parsons e Akos Gil, o estúdio se propõe a formar e informar diversas pesquisas aplicadas em conexões com materiais e processos. Mode/modeLab promove diversos workshops, experimentações e estudos sobre módulos, materiais diversos e prototipagem híbrida entre hardwares e softwares. Nos workshops, são utilizadas ferramentas digitais como os programas Grasshopper, Rhino, Maya e microcontroladores de Arduino. Dentre as propostas experimentais, um dos objetivos é construir protótipos físicos e virtuais que se comuniquem com as pessoas e com o mundo ao redor. Há uma relação íntima dentro do estúdio Mode na utilização transdisciplinar das linguagens digitais (diversos progra- Figura 19: O abrigo planificado, por LAVA O abrigo tem a versatilidade de ser pequeno, fácil de ser construído e carregado por helicópteros em situações de emergência. Possui um espaço suficiente para abrigar dois adultos e uma criança, além de outro espaço menor parar fazer refeições e leitura. O LAVA procura uma contínua definição de novas expansões na criação dos espaços metropolitanos e nas visões arquiteturais. A empresa acredita que cada novo projeto de arquitetura comporta uma ampliação da tecnologia contemporânea e, por isso, carrega também uma grande responsabilidade com o público e o meio ambiente. Figura 20: Dois tigres em forma de origami para celebrar o Ano Novo Lunar Chinês, por LAVA Figura 21: Esquema de planificação dos tigres, por LAVA Utilizando a linguagem do Festival das Lanternas Chinesa, mais a combinação do zhezhi (dobradura em chinês), o LAVA criou, em 2010, as esculturas demonstradas nas Figuras 20 e 21: dois tigres agachados para celebrar o feriado mais importante 174 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 165-178, out. 2012/mar. 2013. ROSSI, Dorival Campos; TEIXEIRA, Samanta Aline. Origami científico: a linguagem das dobraduras no design contemporâneo mas de computador para modelagem, programação e mapeamento matemático) com as tecnologias físicas (sensores remotos e máquinas industriais de corte a laser – CNC) e as linguagens tradicionais (kirigami e craft). Ao aglutinar inúmeros processos diversificados como os citados, o resultado é uma grande esfera sígnica que contém em seu âmago a estética relacional (Bourriaud, 2009), a pulsação das antigas e das novas linguagens e paradigmas híbridos. Um dos trabalhos mais relevantes do estúdio Mode/modeLab é a exposição The business of Aura (O Negócio da Alma), em Nova Yorque, onde há uma forte presença do kirigami (ramo à parte do origami que utiliza dobras e recortes diversos). Figuras 24 e 25: Estudos de encaixes, manuseios e geometria, pelo estúdio Mode/modeLab Figuras 22 e 23: Alguns protótipos da instalação “The business of Aura”, por Mode/modeLab Outro trabalho do estúdio Mode/modeLab, em colaboração com o estúdio Tietz-Baccon, é o Material Inteligence, que ofereceu grande contribuição no âmbito do craft e da experimentação de materiais diversos, além também da exploração das formas, texturas, cores e padrões de mosaicos em formas orgânicas. O Material Inteligence é uma oficina de prototipagem que acontece no mês de agosto, em Nova Yorque, desde 2010, e envolve o trabalho tanto de profissionais quanto de estudantes na concepção de uma variada gama de objetos orgânicos. Figuras 26 e 27: Oficina Material Inteligence, por estúdio Mode/modeLab A exposição inclui pintura, desenho, fotografia, protótipos esculturais e instalação. Nela, buscou-se trazer à tona o potencial do estúdio no processo de produzir a aura, ou alma, e focar metodologicamente sobre elementos como a qualidade de materiais, tato superficial, geometrias marcantes, formas animadas e a luz. 175 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 165-178, out. 2012/mar. 2013. ROSSI, Dorival Campos; TEIXEIRA, Samanta Aline. Origami científico: a linguagem das dobraduras no design contemporâneo Figuras 28 e 29: Oficina Material Inteligence, por estúdio Mode/modeLab disseminação quanto em estruturação propriamente dita. Um dos grandes objetivos foi a destinação do pensamento complexo às dobras e dobraduras, sem cortar o nó górdio das problemáticas de investigação, de maneira a complementar de forma rica e transdisciplinar o que é o origami enquanto raciocínio científico e projetual. Na área acadêmica brasileira há pouquíssimas pesquisas que buscam o origami no escopo do pensamento científico, social e criativo. Em contrapartida, o origami contemporâneo (objeto mutável em dobra que permeia sobre milhares de projetos artísticos, urbanos e tecnológicos) está sendo utilizado e incorporado por americanos, europeus, japoneses, entre outros países, já há algum tempo. Daí a importância e o pioneirismo desta pesquisa por elencar, descrever e oficializar o origami científico em diversos dos seus âmbitos e aspectos constitutivos. Validar os projetos que ocorrem em massa pelo mundo afora também se tornou um dos objetivos desta investigação, de modo a ampliar as referências de mercado para os estudantes e pesquisadores do design. O recorte aqui adotado é bastante limitado dentro do grande campo do origami contemporâneo, assunto de diversas teorias matemáticas, aplicações computacionais e numerosos projetos criativos/sociais em todo o mundo. Merecem registro muitos outros O Material Inteligence possui como briefing a relação entre o objeto projetado e as forças perceptíveis/ táteis que giram em torno desse objeto e, por meio desse processo, navega entre as multiplicidades de força. Os protótipos servem como links ativadores entre o design inovador e materiais de pesquisa, unindo estrategicamente a fabricação digital, tecnologias contemporâneas e ambientes associativos. Para se obter o kirigami ilustrado pelo estúdio Mode, já não há mais necessidade de tesoura e cola, são usadas máquinas de corte a laser e princípios de união modular intensos e associativos. Entre as forças que resguardam os protótipos do Material Inteligence, há uma gestão em particular que carrega intenso raciocínio sobre a modulação e a conexão, importante também para o origami modular. O origami dos dias hoje é uma constante exploração de formas e atuações que nem sempre estão condensadas na figura do papel. Isso acontece porque o origami/kusudama/kirigami transcende a limitação do material, ou seja, ele é, antes de tudo, uma ideia e a principal ferramenta do designer. colaboradores desse tema, tais como Erik Demaine (Estados Unidos), Tom Hull (Estados Unidos), Eric Joisel (França), Paul Jackson (Israel) e Satoshi Kamiya (Japão). Demaine, por exemplo, é considerado atualmente um dos maiores intelectuais reconhecidos nos estudos sobre o origami científico: professor e pesquisador do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), Demaine vem contribuindo significativamente para a seriedade do origami em projetos aplicados, como nos estudos nanotecnológicos do origami transposto sobre estruturas proteicas, algoritmos, geometria das dobraduras e softwares simuladores de crease patterns. No Brasil, a professora Mari Kanegae é uma das principais percussoras no ramo da arte do origami, liderando o Grupo de Estudos de Origami (GEO), em São Paulo, a partir do qual chegou a atuar em nível mundial com a exposição sobre imigração japonesa no Brasil. Portanto, são muitas as referências. A pesquisa sobre o origami é muito ampla, praticamente infindável, a dobradura faz links com diversas outras áreas, transfigurando-se em uma natureza expansivamente maior do que sua singela origem nas mãos de um origamista. Considerações finais Essa reflexão investigativa procurou estender ao máximo o paradigma origami, seus comportamentos, estruturas e, principalmente, as contribuições que podem compor com o design e a inovação. Um ponto importante é se fazer notar que, como outros objetos sensíveis (Rossi, 2003, p.99), o origami está sendo atrelado às linguagens eletrônicas, tanto em sua 176 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 165-178, out. 2012/mar. 2013. ROSSI, Dorival Campos; TEIXEIRA, Samanta Aline. Origami científico: a linguagem das dobraduras no design contemporâneo Referências ARGAN, G. C. (2005). História da arte como história da cidade. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes. AZEVEDO, W. (1988). O que é Design. São Paulo: Brasiliense. _____. (1994). Os Signos do Design. São Paulo: Contato Imediato. BOURRIAUD, N. (2009). Estética relacional. São Paulo: Martins Editora. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. (1995). Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de Janeiro: Edições 34. DELEUZE, G. A. (1991). Dobra: Leibniz e o barroco. Campinas: Papirus. FLUSSER, V. (2007). O mundo codificado – Por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac Naify. JOHNSON, S. (2003). Emergência – a vida integrada de formigas, cérebros, cidades e softwares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. KAWARAZAKI, M. (1978). Nihongo: Kana – An Introduction to the Japanese Syllabary. Japan: Bonjinsha. KAZAZIAN, T. (2005). Haverá a idade das coisas leves – Design e desenvolvimento sustentável. 2. ed. São Paulo: Senac. LÉVY, P. (1996). O que é o virtual? São Paulo: Edições 34. MORIN, E. (2011). Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre, Sulina. ROSSI, D. C. (2003). Transdesign: Folias da Linguagem. Anarquia da Representação. Um estudo acerca dos objetos sensíveis. São Paulo. Tese – Doutorado em Comunicação e Semiática, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. SERRES, M. (2001). Os cinco sentidos – Filosofia dos corpos misturados. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. Webgrafia 132 5. ISSEY MIYAKE. (2012). (Domínio Decyng). Disponível em: <http://www.shdnsm.com/2012/06/08/isseymiyake-132-5-eco-origami-collection/>. Acesso em: 2 nov. 2012. BEIGUELMAN, G. O processo e a obra. (Site pessoal). 2011. Disponível em: <http://www.desvirtual.com/oprocesso-e-a-obra/>. Acesso em: 27 mar. 2012. Blog oficial do Laboratório de Arquitetura Visionária. (2012). Disponível em: <http://l-a-v-a.blogspot.com/>. Acesso em: 28 nov. 2010. Budapest universities: Universities, colleges and schools in Budapest. Disponível em: <http://www.inhungary.com/links/budapest_universities.html>. Acesso em: 15 mar. 2012. DEMAINE, E. (2012). Short Biography. (Site pessoal). Disponível em: <http://erikdemaine.org/about/#bio>. Acesso em: 31 mar. 2012. FABRICATED HARVEST par John Adams et Ricki Dwyer. (2011). (Blog Reflexdeco). Disponível em: <http:// blog.reflexdeco.fr/2010/09/fabricated-harvest-par-john-adams-et-ricki-dwyer/>. Acesso em: 28 mar. 2012. Issey Miyake 132 5. Eco-Origami Collection. (2012). (Domínio Shedonism). Disponível em: <http://blog. decyng.com.ar/?s=issey+miyake>. Acesso em: 2 nov. 2012. LANG, Robert. (2010). Origami Design. Estados Unidos, US Zeitgeist. (Domínio Youtube). Disponível em: <http://youtu.be/-9EvAY8xCBc>. Acesso em: 5 jan. 2012. LANG, Robert. (2012). (Site pessoal). Disponível em: http://www.langorigami.com/>. Acesso em: 28 mar. 2012. 177 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 165-178, out. 2012/mar. 2013. ROSSI, Dorival Campos; TEIXEIRA, Samanta Aline. Origami científico: a linguagem das dobraduras no design contemporâneo Material Intelligence: Intensive Design and Prototyping Workshop. (Site afiliado ao estúdio modeLab). Disponível em: <http://materialintelligence.nu/>. Acesso em: 28 fev. 2011. PL 1391/2011 – Projetos de Lei e outras proposições. (2012). (Site oficial da Câmara dos Deputados). Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=502823>. Acesso em: 4 abr. 2012. Site oficial do estúdio modeLab. (2012). Disponível em: <http://modelab.nu/>. Acesso em: 28 fev. 2011. Site oficial do Laboratório de Arquitetura Visionária. (2012). Disponível em: <http://www.l-a-v-a.net/>. Acesso em: 27 nov. 2010. Lista de Figuras Figuras 1 a 8: produzidas e editadas pela autora do artigo por meio dos softwares Adobe Photoshop e Adobe Illustrator. Os modelos de origami também foram feitos pela autora, assim como as fotos dos mesmos. Figura 9: extraída de: YOSHIZAWA, A. Sosaku Origami: Creative Origami. 1. ed. Japão: NHK, 1984. p. 22, 23, 29 e 54. Figuras 10 a 13: fotos cedidas por Laszlo Tompa, acervo pessoal. Figura 14: retirada de: Issey Miyake 132 5. Eco-Origami Collection. (2012). (Domínio Shedonism). Disponível em: <http://blog.decyng.com.ar/?s=issey+miyake>. Acesso em: 2 nov. 2012. Figura 15: retirada de: 132 5. ISSEY MIYAKE. (2012). (Domínio Decyng). Disponível em: <http://www. shdnsm.com/2012/06/08/issey-miyake-132-5-eco-origami-collection/>. Acesso em: 2 nov. 2012. Figuras 16 a 21: retiradas de: Site oficial do Laboratório de Arquitetura Visionária. (2012). Disponível em: <http://www.l-a-v-a.net/>. Acesso em: 27 nov. 2010. Figuras 22 a 25: retiradas de: Strips Morphologies Workshop. (2010). (Site oficial modeLab). Disponível em: <http://modelab.nu/?p=3307>. Acesso em: 16 mar. 2012. Figuras 26 a 29: retiradas de: Material Intelligence Workshop. (2010). (Site oficial modeLab). Disponível em: <http://modelab.nu/?p=3866>. Acesso em: 16 mar. 2012. Dorival Campos Rossi é professor do Departamento de Design da Universidade Estadual Paulista (UNESP) e criador do programa de pós-graduação Lato Sensu em Game Design da mesma instituição. E-mail: <[email protected]>. Samanta Aline Teixeira é bacharel em Design Gráfico pela Universidade Estadual Paulista. E-mail: <[email protected]>. Recebido para avaliação em março de 2013. Aprovado para publicação em agosto de 2013. 178 Artigos Livres Portugal de calções – para uma génese do desporto enquanto fenómeno mediático PINHEIRO, Francisco Resumo O desporto, sobretudo o futebol, é o fenómeno mediático mais marcante da sociedade portuguesa contemporânea. Pensar a origem deste fenómeno de popularidade, a partir do processo evolutivo da imprensa desportiva, é o objetivo deste artigo. Palavras-chave: Portugal – Desporto – Imprensa – Popularidade. Abstract Sport, especially football, is the most mediatized phenomenon in the Portuguese contemporary society. Thinking about the origin of this phenomenon of popularity, from the perspective of the sport press history, is the major goal of this article. Keywords: Portugal – Sport – Press – Popularity. Introdução E quais as razões subjacentes a isso? Recordamos que atualmente o desporto, sobretudo o futebol, é o maior fenómeno mediático em Portugal. Em 2011, por exemplo, dos 20 programas de televisão mais vistos pelos portugueses, 17 foram jogos de futebol ou programas relacionados com esta modalidade esportiva. Além disso, os três diários desportivos portugueses (A Bola, Record e O Jogo) vendem mais exemplares em conjunto que os três diários generalistas. Quando começou todo este processo e o que esteve na sua génese são questões às quais este artigo pretende responder, utilizando a perspetiva evolutiva da imprensa desportiva. Ao longo do século XX, os indivíduos e as sociedades passaram a viver grande parte das suas experiências culturais através dos media, na linha do que Thompson (1990) definiu como a “mediatização da cultura moderna”. O desporto em Portugal, enquanto “fenómeno social total” (Mauss, 1974), começou a conviver intensamente com essa mediatização a partir da década de 1920. E é precisamente sobre este encontro, entre desporto e media, que irá versar este artigo. Desde logo coloca-se uma questão: quando começou esta popularização do desporto português e a sua mediatização? 181 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 181-194, out. 2012/mar. 2013. PINHEIRO, Francisco. Portugal de calções – para uma génese do desporto enquanto fenómeno mediático Contexto internacional (Barcelona, 1923) e Aire Libre (Madrid, 1923). Passaram também a circular um vasto leque de revistas humorísticas especializadas em desporto, casos de El Guirigay (Oviedo), La Barrila Deportiva, Xut! e Sidral Sportiv (Barcelona). A esse cenário juntou-se o aparecimento dos primeiros diários desportivos, sinal da consolidação do desporto e deste ramo jornalístico, entre o público espanhol. O primeiro diário desportivo seria o Excelsior (Alcoba, 1999, p.67), lançado em Bilbao, em 31 de março de 1924, publicando-se regularmente até 1931. E, em 1926, seria a vez do El Mundo Deportivo, criado em Barcelona em 1906, passar de trissemanal a diário. Em Madrid, a primeira tentativa de criar um diário desportivo seria em 1930, através do Gran Sport, que duraria dois meses. O surgimento dos primeiros diários desportivos na Espanha foi tardio quando comparado ao caso inglês, francês ou belga. Convém recordar que a criação de diários desportivos na Europa remontava ao século anterior, iniciada em 1852 com o lançamento do Sportman, em Londres. Quatro décadas depois, em 1892, seria a vez da França estreiar no campo do jornalismo desportivo diário com Le Vélo. E a vizinha Bélgica avançaria com Les Sports, em 1907. A popularidade do desporto foi um fenómeno à escala europeia na década de 1920. Um pouco por toda a Europa assistiu-se ao aparecimento de novos clubes, competições, federações, infraestruturas e, obviamente, jornais desportivos, alguns deles umbilicalmente ligados às modalidades mais populares, como o futebol, automobilismo, boxe e ténis, entre outras. Na Alemanha, por exemplo, as revistas Der Kicker (Karlsruhe, 1920) e FuBball und Leichtathletik (Duisburg, 1920) marcariam o noticiário futebolístico alemão. E ao longo da década iriam destacar-se também o Das Weib in Sport (1924) e o Das Illustrierte Blatt (1930), tendo o desporto feminino como tema de fundo. O desporto automobilístico foi outra área mediática, num fenómeno que não foi exclusivo da Europa, como demonstrou o caso brasileiro, com três revistas importantes: Revista Automobilismo (S. Paulo, 1925), A Voz do Chauffeur (Rio de Janeiro, 1929) e Automóvel Club (Rio de Janeiro, 1930). Na Europa, o mundo do automobilismo levou ao aparecimento, na Bélgica, do Le Commerce Automobile Belge (1928), e na Itália do L’Auto Italiana (1927) e, na França, do Auto et Sports (1922-1931). O movimento desportivo cresceu fortemente em França, onde surgiram uma série de competições e publicações, em várias modalidades, casos da náutica (Le Yachtsman, 1922), pugilismo (Le Boxe et Les Boxeurs, 1921-1925), movimento olímpico (La France Olympique, 1921-1939), esgrima e tiro (L’Escrime et Le Tir, 1921-1939), aeronáutica (L’Aéro-Sport, 1922-1930) e futebol (Football, 1929-1944, e Football et Sports, 1922). E os franceses continuaram igualmente dinâmicos, apesar do domínio do diário L’Auto (1903), nascendo uma série de novos periódicos de qualidade, como a revista Le Sport Universel Illustré (1922-1935), Trés-Sport (1925) e Match – Le plus grand hebdomadaire sportif (1926-1938). Esse dinamismo do jornalismo desportivo francês estaria na génese da fundação da Association Internationale de la Press Sportive (AIPS), em julho de 1924, por ocasião dos Jogos Olímpicos de Paris. Na Espanha, o desporto teria também uma faceta diversificada, surgindo revistas como a Tennis (1921) e El Sport de Caza y Pesca (Madrid, 1929). A popularidade do desporto espanhol cresceu enormemente, tendo como reflexo o constante surgimento de novos periódicos desportivos generalistas, como Sporting (Madrid, 1922), Sports O primeiro diário desportivo português Em Portugal, o meio jornalístico desportivo só começou a ter alguma dimensão editorial e sustentabilidade noticiosa no início da década de 1920, o que justificava, em grande parte, a ausência até então de tentativas de criação de diários desportivos. Recordemos que, na década anterior, a média de novas publicações desportivas, lançadas anualmente, tinha rondado somente quatro a cinco periódicos (devido à guerra e à carestia de vida). Essa média só começou a aumentar a partir de 1921, com o surgimento de 11 novos jornais desportivos, seguido em 1922 por outros 15 e em 1923 por mais 17. Desse modo, no espaço de apenas três anos, surgiram 43 novas publicações desportivas em Portugal (34 generalistas, 6 órgãos de clubes e 3 especializadas), dando finalmente uma dimensão nacional e popular ao fenómeno do desporto e ao próprio jornalismo desportivo. A esse cenário de crescimento havia que acrescentar o facto de se ter conseguido, principalmente através de três periódicos (O Sport de Lisboa, de 1915; Os Sports, criado em Lisboa em 1919; e Sporting, no Porto em 1921), a consolidação editorial deste género de jornalismo 182 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 181-194, out. 2012/mar. 2013. PINHEIRO, Francisco. Portugal de calções – para uma génese do desporto enquanto fenómeno mediático nos dois principais centros urbanos do País (Lisboa e Porto). Esse panorama de euforia à volta do desporto e do jornalismo desportivo levaria diversas personalidades a ambicionar a criação do primeiro diário desportivo português. Contudo, era preciso que se reunissem vários fatores. Em primeiro, era fundamental que os principais periódicos desportivos de Lisboa (Os Sports) e Porto (Sporting) não estivessem em atividade, abrindo o espaço jornalístico necessário ao surgimento de um diário. Em segundo, tinha que ter como base um corpo redatorial capaz de produzir diariamente um noticiário eclético e de qualidade, tarefa extremamente complicada num meio onde imperava o amadorismo. Além disso, tinha que constituir um corpo redatorial em Lisboa e no Porto, principais centros desportivos e de leitura jornalística, criando depois uma rede de correspondentes nacionais e internacionais. Em terceiro, o diário teria que ser lançado numa altura em que o movimento desportivo estivesse em grande frenesi, gerando por si mesmo um vasto noticiário, facilitando a tarefa de produção jornalística e aumentando o interesse do público. A tudo isto tinha que se aliar uma boa empresa tipográfica, que conseguisse imprimir diariamente o jornal (sem falhas nem erros ortográficos, que descredibilizavam as publicações da época) e um alargado leque de postos de venda, assim como a adesão do público ao sistema de assinaturas (principal forma de venda de jornais na época) e do meio publicitário. Todo este leque de condicionantes reuniu-se em maio de 1924, levando uma das figuras que mais ambicionava criar um diário desportivo em Portugal, o portuense Oliveira Valença, fundador e chefe de Redação do jornal Sporting, a avançar finalmente com a ideia, aliando-se para isso a outra figura do desporto nacional, o lisboeta Salazar Carreira. Um dos principais motivos para o arranque do diário foi a paragem temporária do popular trissemanário lisboeta Os Sports, em abril de 1924 (com vista a uma remodelação) e a suspensão do semanário portuense Janeiro Desportivo, em maio de 1924. Com a saída de cena destes dois rivais, a direção do outro periódico importante da época, o Sporting, encabeçada por Oliveira Valença, decidiu suspender a publicação, em maio de 1924, e avançar definitivamente com um diário desportivo. A esse cenário juntava-se o facto de estarem a decorrer, desde maio, algumas provas com vista aos Jogos Olímpicos de Paris, cuja abertura oficial seria em 5 de julho (disputando-se até 27 de julho), aguar- dando-se com entusiasmo a participação da maior representação portuguesa em Olimpíadas, com 25 atletas em oito modalidades. Os Jogos Olímpicos de Paris-1924 asseguravam o volume noticioso e o interesse popular necessários para o arranque de uma publicação diária. Encontravam-se também na fase decisiva as principais provas futebolísticas, acompanhadas com expectativa por milhares de adeptos. Assente na ideia de se publicar diariamente, com duas edições (uma em Lisboa e outra no Porto), a direção do diário seria partilhada por Salazar Carreira, responsável pela redação lisboeta, e Oliveira Valença, que ficaria encarregue da redação portuense. Alicerçado na estrutura redatorial e tipográfica que até então tinha publicado consecutivamente 165 números do semanário Sporting, entre março de 1921 e maio de 1924, surgiu na quinta-feira, 22 de maio de 1924, o Diário de Sport. No dia seguinte, na capa da “edição-sul” do Diário de Sport, o diretor Salazar Carreira explicaria no editorial “Apresentação” que o novo jornal tinha como missão relembrar constantemente as vantagens e as necessidades do desporto em Portugal, para que assim “o sport viva e prolifere”. E as páginas do diário iriam servir para dar a conhecer “as exigências da causa (desportiva), a indispensabilidade da propaganda da cultura física e a apologia do sport como meio de fortificação da raça”. Apesar da “incredulidade do meio”1 e das vozes negativas que vaticinavam uma rápida extinção, o Diário de Sport conseguiria publicar 63 números. Futebol, remo, ciclismo, vela e boxe, assim como o acompanhamento diário dos Jogos Olímpicos de Paris, foram temas em destaque. Problemas de ordem financeira e de fornecimento de papel para impressão, aliados a alguma indefinição na empresa proprietária, fizeram com que o Diário de Sport anunciasse, em 3 de agosto de 1924, a suspensão temporária, esperando regressar brevemente. Mas esse regresso nunca se verificou, voltando sim o seu antecessor, o semanário Sporting, que a 14 de novembro de 1924 retomou a publicação, novamente de cariz semanal, em papel cor-de-rosa e com o mesmo grafismo e lema: “Pela Raça”. A propriedade, edição e direção cabiam a Oliveira Valença, que formou a empresa Sporting, Lda. A outra referência do jornalismo desportivo português, Os Sports, regressou a 25 de setembro de 1924 e continuou a sair três vezes por semana, lançando em 9 de no1 A Redacção (1924, 23 de Maio). O dever dos leitores do Diário de Sport. Diário de Sport, p.1. 183 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 181-194, out. 2012/mar. 2013. PINHEIRO, Francisco. Portugal de calções – para uma génese do desporto enquanto fenómeno mediático vembro um suplemento ilustrado ao domingo de manhã, que tinha como objetivo fazer uma antevisão dos jogos de futebol que se realizavam à tarde. Visões partilhadas sobre o desporto Entre 1924 e 1926, período no qual a imprensa desportiva conheceria um enorme crescimento, reflexo do que sucedia no próprio meio desportivo, o jornal lisboeta Os Sports e o portuense Sporting mantiveram-se como os pilares da imprensa desportiva portuguesa, isto apesar das suspensões e mudanças de proprietários e diretivas que sofreram. A estabilidade editorial de ambas publicações deveu-se, em grande medida, à qualidade dos seus corpos redatoriais e à própria estabilidade das competições desportivas, cada vez mais regulares e populares. Algumas antigas estrelas do desporto, sobretudo do futebol, começavam a transitar para as redações dos jornais, como sucedeu com Cândido de Oliveira (primeiro capitão da seleção nacional), que em novembro de 1925 assumiu a chefia de redação de Os Sports, depois de uma passagem pela revista Football, em 1920. Em maio de 1926, Cândido de Oliveira chegaria mesmo a diretor, apresentando o jornal um novo subtítulo no cabeçalho: “O Jornal Sportivo de Maior Tiragem e de Maior Expansão em Portugal”. Quanto ao Sporting, conhecido como “o rosa” por ser impresso em papel cor-de-rosa (tal como viria a suceder com o Jornal dos Sports, no Brasil), manteria uma linha editorial estável, assente na figura do diretor, Oliveira Valença. Em março de 1925, o trabalho semanal de preparação do Sporting assentava em 11 jornalistas e em 32 correspondentes espalhados por Portugal continental, numa clara demonstração de que “o entusiasmo pelo desporto enraizou-se e hoje temos o prazer de verificar que no mais recôndito canto do País os usos desportivos são moda corrente”.2 Foi baseado nessa estrutura redatorial que, em janeiro de 1926, o jornal decidiu passar de semanal a bissemanal, o que lhe permitia manter maior atualidade noticiosa e abranger mais temáticas desportivas e de ordem política e social. Além das tradicionais temáticas doutrinais sobre a importância do desporto e da educação física3 para a sociedade portuguesa, a linha editorial do Spor2 A Redacção (1925, 26 de Março). A Província afirma-se. Sporting, p.8. 3 Cf. Dr. Oliva (1925, 4 de Setembro). Educação Física. Sporting, p.3. ting foi igualmente incisiva na defesa do desporto feminino e de um novo papel social para a mulher portuguesa.4 Outro tema recorrente nos editoriais e crónicas5 do “Rosa” foi a decadência e o desânimo nacional, chegando a descrever Portugal como um país que “vegeta”6, que “não pensa, não sonha, nem realiza nada”7, e o português como uma “besta de carga”8, falto de “concepções grandes derivadas do trabalho mental”.9 Nesse contexto de desilusão, restava aos portugueses olharem para a França, que servia de “mestra, conselheira e exemplificadora a todos os outros povos”10, nos mais variados campos: “nas artes, na literatura, nas ciências, na indústria e também nos desportos”.11 Esse género de afinidade com a França estaria igualmente patente nas páginas de Os Sports ao longo dos anos 1920. Habitualmente, os eventos desportivos davam azo a reflexões sobre o desporto e a identidade nacional de cada um dos países envolvidos. Foi precisamente isso que sucedeu em 17 de abril de 1926, quando Os Sports aproveitou o primeiro encontro de futebol entre as seleções portuguesa e francesa, que se realizaria no dia seguinte em Toulouse (França), para fazer algumas reflexões sobre as relações luso-francesas, definindo, na capa, a nação gaulesa como “o farol ou berço da civilização moderna”, reconhecendo que era um país com quem Portugal tinha “notáveis afinidades”, ao contrário do que sucedia com a Espanha, que nos despertava “a recordação de prélios antigos” e “o sentimento nacionalista”. Entre 1925 e 1926, os sentimentos de desilusão nacional foram-se acumulando nos editoriais de Os Sports, que passou a criticar regularmente “o espírito nacional do ‘deixa andar’”12 e “os vícios que infestam os nossos hábitos de portuguezinhos 4 Cf. A Redacção (1925, 15 de Outubro). A mulher e o desporto. Sporting, p.3. 5 Um dos mais incisivos cronistas seria Sousa Martins, colunista habitual na secção “Modos de ver”. 6 James (1925, 5 de Novembro). A escola desportiva. Sporting, p.3. 7 Idem, ibidem. 8 Idem, ibidem. 9 Idem, ibidem. 10Martins, S. (1924, 20 de Fevereiro). Modos de ver – A França e a raça latina. Sporting, p.1. 11 Idem, ibidem. 12Vieira, H. (1925, 25 de Abril). Foot-ball – Portugal-Espanha. Os Sports, p.3. 184 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 181-194, out. 2012/mar. 2013. PINHEIRO, Francisco. Portugal de calções – para uma génese do desporto enquanto fenómeno mediático descuidados”13. O principal jornal desportivo do país chegaria mesmo a afirmar que “Portugal está desportugalizado”14, numa alusão à falta de novos feitos históricos, literários e científicos. O desapontamento para com o país, cada vez mais latente entre os jornalistas, redundava, muitas das vezes, em ataques ferozes à sociedade portuguesa. Um dos artigos mais acutilantes dos anos 1920 foi publicado na capa de Os Sports de 6 de dezembro de 1926, com o título “Salvemos os rapazes”, assinado pelo diretor, Cândido de Oliveira. Nessa reflexão sobre Portugal, o autor afirmava que os portugueses tinham de “marroquino” aquilo que lhes faltava de europeus e dava um exemplo: da, em grande medida, pelas páginas dos jornais desportivos das duas cidades, que viram as suas tiragens aumentar graças a essa conflitualidade. As contendas jornalísticas revestiram-se de diversas facetas. Em março e abril de 1925, a imprensa desportiva lisboeta envolveu-se numa troca de acusações com a imprensa portuense por causa da escolha do local (uns queriam Lisboa, outros o Porto) onde se devia realizar o quarto encontro de futebol entre as seleções de Portugal e Espanha (que acabou por se realizar na capital). O único jornal a manter uma postura apaziguadora foi O Sport de Lisboa, que fez vários apelos à paz, em abril de 1925. Um desses pedidos, com o título “Façamos a paz”, teria como resposta um contundente ataque no Sporting de 15 de abril de 1925, através do artigo “Vivamos em guerra!”, que defendia uma “guerra franca, guerra aberta”16 entre os desportistas e jornalistas desportivos do norte e do sul, questionando inclusivamente a necessidade de pacificação: “para quê a paz, se ela não tem sido mais que uma guerra de sapa, falsa, em que o brio deste bom povo do Norte, do Norte que vai desde o Minho até umas léguas aquém do Mondego, era a todo o momento espezinhado pelos ‘amigos’ do Sul? Antes a guerra, mil vezes!”17 Mas, entre os redatores desportivos portuenses, essa posição não era consensual. A seção desportiva do diário O Comércio do Porto, embora compreensiva com a postura do Sporting, veio acalmar os ânimos, insistindo na ideia de que acima dos interesses regionais estavam os do país, por isso deviam-se respeitar as decisões dos órgãos máximos do futebol português. Decorridos dois meses, em junho de 1925, rebentou um novo conflito entre os dois principais jornais das duas cidades, com efeitos na restante imprensa. Na origem esteve a controversa morte do pugilista Kid Augusto18, após um combate de Abandonemos em Paris um português – e não há ninguém que o não aponte a dedo… O ar pacóvio com que mira e remira tudo e todos, denuncia-o e provoca o riso… Coloquemo-lo a falar diante de estrangeiros e temos a risota pegada. Somos em tudo e por tudo motivo de risota – de chacota impiedosa. Mas devemos confessar que não merecemos outra coisa. A galhofa é o justo castigo para esta nossa condição de habitantes desta grande aldeia, que é o nosso País, à força de isolar-se do mundo inteiro, para marchar um século atrasado dos outros povos. A morte de um pugilista Apesar de partilharem princípios editoriais semelhantes, Os Sports e Sporting viveriam permanentemente de costas voltadas durante as décadas de 1920 e 1930, tal como o meio desportivo de Lisboa e Porto, que ambos representavam respectivamente. Na base dos constantes diferendos estiveram, quase sempre, os regionalismos exacerbados que rodeavam o futebol. As permanentes disputas pela hegemonia futebolística, entre os clubes de Lisboa e do Porto, e as suas respetivas associações regionais, criariam um clima que ficaria conhecido como “Guerra Norte-Sul”15, germinada e alimenta- Lisboa e do Porto, como demonstra o artigo “Vivamos em guerra!”, publicado em 15 de Abril de 1925. 16 Lobo, C. (1925, 15 de Abril). Vivamos em guerra!. Sporting, p.8. 17 Idem, ibidem. 18 Augusto dos Santos, nascido na África, era empregado do industrial portuense Sebastião Ferreira Mendes. Dotado de uma excelente estampa física, o jovem Kid Augusto (batizado assim no meio desportivo) tentou carreira no boxe, onde não teria sucesso. Num combate contra Piotin, em junho de 1925, no Porto, sofreu graves lesões, morrendo 13 Idem, ibidem. 14A Redacção (1925, 8 de Junho). Para quê tantos estrangeiros? Os Sports, p.1. 15As origens desse género de terminologia remontam aos primeiros jogos de futebol entre equipas das duas cidades, no início do século XX. Mas foise agravando a partir da década de 1910, com o início dos jogos entre as seleções de Lisboa e do Porto, geradores de polémicas e confrontações entre ambos os lados. Nos anos 1920, o jornal Sporting foi um dos que mais apelou ao sentimento de “guerra” entre o meio desportivo e jornalístico de 185 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 181-194, out. 2012/mar. 2013. PINHEIRO, Francisco. Portugal de calções – para uma génese do desporto enquanto fenómeno mediático boxe no Porto, organizado pelo jornal Sporting. A tragédia motivaria o artigo “‘Os Sports’ acusa! – A morte do negro Kid Augusto”, publicado na capa de Os Sports de 13 de junho, em que o articulista Aragão de Andrade acusou a Federação Portuguesa de Boxe e o organizador, Oliveira Valença (diretor do Sporting), de serem os principais responsáveis pela fatalidade que tirou a vida ao jovem pugilista. As mais de uma dezena de acusações graves apresentadas por Os Sports teriam réplica no Sporting de 17 de junho, no artigo “Um jornal de Lisboa abusando da impunidade da nossa terra brinca com a morte – Sempre os mesmos pulhas”. Nessa análise, a Redação do “Rosa” classificou as acusações de “infâmias”, contrapondo aos “Acusamos” de Os Sports uma série de “Mentem”. A amplitude do debate alastrou também às seções desportivas de outros jornais, como o Diário de Notícias, O Século, O Diário da Tarde, A Tarde, O Sport de Lisboa, O Correio da Manhã, O Diário do Povo, Domingo Ilustrado e Jornal de Notícias, entre outros. Em janeiro e fevereiro de 1926, novo duelo entre Os Sports e Sporting, desta vez por causa do regulamento do Campeonato de Portugal, principal prova do calendário futebolístico português. E em junho desse ano, o Sporting investiria contra aquilo que designava como “a ditadura tirânica da capital”19, no seio das principais federações desportivas do país, ataque que mereceu refutações duras nos jornais lisboetas. Esse permanente clima de hostilidade entre os periódicos teria as suas naturais repercussões no meio desportivo português, ainda pouco habituado a lidar com as críticas e polémicas jornalísticas. Em inícios de julho de 1926, o jornalista de Os Sports, Reinaldo Monteiro, especialista em esgrima, foi esbofeteado nas ruas de Lisboa pelo esgrimista Mário de Noronha, alvo de algumas críticas na seção de esgrima do jornal lisboeta. Nessa mesma altura, a direção do Sporting CP passou a impedir o livre acesso ao balneário por parte dos jornalistas, sendo o primeiro clube de futebol a fazê-lo, o que gerou uma forte onda de contestação nos jornais, encabeçada pelo correspondente lisboeta (Belo Redondo) do periódico Sporting.20 Como represália, alguns periódicos avisaram os leitores que “não poderiam contar com boas reportagens do que passasse no Campo Grande, visto que um diretor (Francisco Stromp) do Sporting CP se opunha à propaganda das provas desportivas”21 que se realizavam no campo do clube leonino. E lamentavam aquilo que designavam como “horror à letra redonda”22, um “mal tremendo”23 que afetava os dirigentes e desportistas portugueses, nada receptivos às críticas jornalísticas. Esse tipo de restrições à ação dos jornalistas desportivos, que em nome da “causa desportiva”24 se advogavam o direito a poder entrar em todos os locais e espaços ligados ao desporto, tiveram o condão, muitas das vezes, de unir uma classe de por si dividida e permeável a cisões. As poucas manifestações de união entre jornalistas desportivos traduziam-se nos torneios de futebol inter-jornalistas.25 A principal prova era a Taça Armando Machado (figura de renome do jornalismo desportivo no início do século XX), instituída pelo jornal O Século e disputada em Lisboa entre as equipas de futebol formadas pelos jornalistas dos periódicos desportivos. O Sport de Lisboa e Os Sports foram dominadores durante a década de 1920, protagonizando finais em que juntaram alguns milhares de pessoas e dezenas de colegas, como sucedeu em 13 de janeiro de 1924, no Campo de Palhavã, em Lisboa. Ironicamente, fora de campo, ambas publicações eram rivais constantes, sucedendo-se os pequenos conflitos jornalísticos. O primeiro Porto-Lisboa inter-jornalistas A falta de uma associação de classe – não faltaram tentativas de criação de um organismo uni20 Cf. Redondo, B. (1926, 9 de Julho). Os jornalistas e os clubs. Sporting, p.6. 21 Idem, ibidem. 22 Idem, ibidem. 23 Idem, ibidem. 24 Idem, ibidem. 25Em 16 de Março de 1924, no Campo Grande (estádio do Sporting CP), em Lisboa, realizou-se uma das mais emblemáticas festas desportivas dos jornalistas lisboetas, contando inclusivamente com a presença do presidente da República, Manuel Teixeira Gomes. Uma equipa de futebol formada por jornalistas de Lisboa enfrentou o Carcavelos Club, perante milhares de adeptos. pouco depois, no Hospital. Os Sports defendeu que foi em consequência dessas lesões que ele morreu, enquanto que o Sporting alegou uma queda acidental, fora do ringue, que lhe causou um traumatismo craniano fatal. 19A Redacção (1926, 8 de Junho). A política do exclusivismo. Sporting, p.3. 186 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 181-194, out. 2012/mar. 2013. PINHEIRO, Francisco. Portugal de calções – para uma génese do desporto enquanto fenómeno mediático ficador para os jornalistas desportivos –, a forte concorrência entre jornais, a instabilidade do meio desportivo, o escasso mercado de leitores e de notícias, e as regulares quezílias entre jornalistas criaram um ambiente volátil, pouco receptivo a campanhas ou iniciativas unificadoras entre uma classe profissional (a dos jornalistas desportivos) pouco solidária. Somente perante um objetivo maior26 (caso da popularização da ideia de desporto) ou uma causa nacional, como era, em meados da década de 1920, a seleção nacional de futebol (vista como um símbolo de representação nacional), é que a imprensa desportiva, ou pelo menos uma parte dela, tentava unir esforços. Em finais de abril de 1925, Os Sports e O Sport de Lisboa associaram-se e fizeram uma convocatória à restante imprensa desportiva lisboeta “a fim de deliberar sobre a forma de imprimir o máximo de propaganda e de brilhantismo ao próximo Portugal-Espanha em football”27, que se disputava a 17 de maio. Na noite de sábado, 2 de maio, nas instalações provisórias de Os Sports, em Lisboa, reuniu-se um elevado número de jornalistas desportivos, que decidiram unanimemente tomar três medidas conjuntas: Esta resolução conjunta – na linha do que a imprensa espanhola fizera com a sua seleção durante a eliminatória olímpica com a Itália no ano anterior –, foi cumprida na íntegra pela imprensa lisboeta, levando um dos organizadores e subscritores da iniciativa, O Sport de Lisboa, a congratular-se “pela maneira brilhante de civismo, de disciplina, de critério e de solidariedade”29 com que “os queridos camaradas da imprensa de Lisboa”30 desempenharam “tão nobre compromisso”31. E era de esperar que todos aqueles que numa “febre de bairrismo”32 não assumiram esse compromisso, deviam no final saber “reconhecer no espírito de classe e no gesto de civismo da imprensa lisboeta, um grande exemplo, muito digno de ser seguido”.33 Ausente deste acordo tinha ficado a imprensa portuense, que durante os meses anteriores tinha feito campanha a favor do jogo Portugal-Espanha se realizar no Porto, o que não veio a suceder. As feridas criadas por esse diferendo, aliadas à pouca presença de jogadores das equipas do Porto na Seleção Nacional, fizeram com que os jornalistas portuenses se tivessem mantido à margem da iniciativa conjunta da imprensa da Capital. Os ânimos exaltados entre a classe jornalística desportiva das duas cidades só acalmaram no início do ano seguinte, quando os órgãos máximos do futebol português decidiram escolher, pela primeira vez, a cidade do Porto para acolher o sexto jogo internacional da seleção nacional de futebol, marcado para 24 de janeiro de 1926, contra a Checoslováquia. A imprensa desportiva portuense rejubilou, permitindo uma aproximação à lisboeta (os principais jornalistas desportivos de Lisboa iriam deslocar-se ao Porto para fazer a cobertura do encontro). Desse modo, foi com naturalidade que surgiu a ideia de realizar a primeira partida de futebol Porto-Lisboa inter-jornalistas, iniciativa que teve “o melhor acolhimento por parte de todos os interessados”34, já que possibilitaria criar esperanças de “um próximo futuro de leal confraternização e estreita camaradagem entre todos os que, em Portugal, se consagram à delicada e fatigante tarefa de propagandear a causa da educação física”.35 1ª) Não discutir a constituição da ‘equipe’, para não produzir a costumada controvérsia desorientadora, deixando ao seleccionador uma perfeita liberdade, isenta de toda a sugestão. 2ª) Esmagar a campanha derrotista de defecção e intriga, que os bons patriotas se preparavam para levar a efeito e estava sendo particularmente alimentada por certos elementos irritados, de tal forma desejosos de uma derrota que recusaram toda a colaboração ao esforço nacional. 3ª) Criar em volta dos nossos jogadores uma atmosfera de confiança, fazendo-o, porém, “discretamente”, para que um possível desaire não pudesse criar-nos uma situação risível.28 26A imprensa refreava também as críticas quando podia estar em causa o prestígio nacional. Foi o que sucedeu com Os Sports, em Abril e Maio de 1926, quando estabeleceu um período de “Tréguas” (cf. edição de 28 de Abril de 1926) nas duras críticas ao presidente do Comité Olímpico Português, José Pontes, que apelidava ironicamente de “Grande Apóstolo”, durante a visita a Portugal do Comité Olímpico Internacional. 27 A Redacção (1925, 29 de Abril). Um convite à imprensa desportiva. Os Sports, p.1. 28 (A Redacção (1925, 3 de Junho). Dever cumprido. O Sport de Lisboa, p.2). 29 Idem, ibidem. 30 Idem, ibidem. 31 Idem, ibidem. 32 Idem, ibidem. 33 Idem, ibidem. 34 Martins, L. (1926, 20 de Janeiro). O I Porto-Lisboa inter-jornalistas. Os Sports, p.5. 35 Idem, ibidem. 187 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 181-194, out. 2012/mar. 2013. PINHEIRO, Francisco. Portugal de calções – para uma génese do desporto enquanto fenómeno mediático O jornal Os Sports, através do correspondente no Porto, Luís Martins, exultou com a possibilidade da confraternização, afirmando na secção “Página de Football”, de 20 de janeiro de 1926, que o encontro permitiria, finalmente, estabelecer entre os jornalistas desportivos portuenses e lisboetas “o indispensável convívio, espalhando uma atmosfera de confiança e transformando-os de adversários, que até agora têm sido, em amigos dedicados, aos quais não possa malquistar qualquer diversidade de opiniões que um ou outro entenda dever expandir”.36 O jogo acabaria por se realizar no Campo do Covelo, no Porto, a 23 de janeiro de 1926, véspera do Portugal-Checoslováquia, tendo juntado duas seleções que reuniam os nomes mais sonantes do jornalismo desportivo portuense e lisboeta. Seria uma “excelente afirmação da amizade existente entre os plumitivos das suas cidades”, como afirmaria a revista lisboeta Eco dos Sports de 7 de março de 1926, publicando inclusivamente uma fotografia com 21 jornalistas que participaram no evento (tirada no terraço do prestigiado diário portuense O Primeiro de Janeiro). Nesse contexto proliferava na imprensa desportiva a ambição de renovar a mentalidade da “mocidade portuguesa”, através de uma “educação espartana”. Um dos editoriais que melhor sintetizou este conjunto de aspirações ideológicas foi publicado em Coimbra no jornal Sport, em 13 de janeiro de 1924: Queremos uma raça intrépida, uma raça que sinta girar nas veias o sangue puro dos heróis. Queremos uma raça que constitua o alicerce da nossa independência, como já fora outrora a razão máxima da nossa existência no mundo tempestuoso das conquistas. Queremos uma Pátria de verdadeiros homens, cujo valor moral, físico e intelectual nos imponha no conceito das nações europeias e não uma capoeira de políticos cuja moralidade roça, por vezes, as fronteiras da depravação e do crime. O mens sana in corpore sano dos gregos será a nossa divisa eterna. O milagre da nossa ressurreição colectiva reside na sua aplicação racional e culta. A educação espartana, dando ao organismo a necessária preparação para a luta, a audácia, a combatividade, a resistência à fadiga e à dor, o culto pelos fortes, pelos estóicos e pelos heróis, impõe-se à juventude portuguesa, perfeitamente abandonada pela nossa pseudo-elite governativa e dirigente. Ai da nossa Pátria se não soubermos orientar a mocidade que descamba no caminho do vício e da desmoralização aterradora. (A Redacção (1924, 13 de Janeiro). O ‘Sport’ e a necessidade da sua existência. Sport, p.1) Apogeu desportivo e mediático Entre 1924 e 1926 continuou a verificar-se um crescimento da imprensa desportiva generalista, dando seguimento aos três anos anteriores (1921 a 1923), durante os quais tinham surgido 34 novos periódicos desse género em Portugal (Continente, Ilhas e Províncias Ultramarinas). A expansão regionalista do desporto, assente na popularidade do futebol, trouxe consigo um crescente interesse do público, o que aliado à ideia de que o “desenvolvimento da raça”37 dependia em “larga escala da cultura dos sports atléticos”38, fez com que mais entusiastas do desporto se aventurassem no jornalismo, de forma a promovê-lo. Além disso, existia a necessidade de combater aqueles para quem o exercício físico continuava a ser “um motivo de instintiva repugnância”39, desconhecendo “o alto valor da sua prática racional e inteligente”40, situando-se nesta esfera de pensamento uma parte considerável da intelectualidade portuguesa. Essa linha editorial seria transversal aos 42 jornais desportivos generalistas que surgiram em Portugal entre 1924 e 1926. Um número impressionante. Principalmente se tivermos em linha de conta as dificuldades com que se debatiam os periódicos: o desporto estava ainda numa fase de consolidação na sociedade portuguesa, ao que se juntava um número reduzido de leitores (a taxa de analfabetismo mantinha-se alta, com 67,8% em 1930) e os elevados custos de produção dos jornais. A tendência de criação de novos periódicos desportivos foi de constante crescimento entre 1921 e 1926, com exceção de 1925: 11 publicações em 1921, 15 em 1922, 17 em 1923, 25 em 1924, 17 em 1925 e 27 em 1926. Dessa forma, em apenas três anos (1924 a 1926) apareceria um total de 69 novos jornais desportivos (42 generalistas, 10 especializados, 14 institucionais e de clubes e três artístico-desportivos41), espalhados por todo o país (Continente e 36 Idem, ibidem. 37A Redacção (1924, 13 de Janeiro). O ‘Sport’ e a necessidade da sua existência. Sport, p.1. 38 Idem, ibidem. 39 Idem, ibidem. 40 Idem, ibidem. 41Em 1924 publicaram-se dois periódicos que juntavam desporto e cinema: o Cine-Sport – Mensário do Cinema, Circo e Sport e a Revista de Arte e Sport – 188 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 181-194, out. 2012/mar. 2013. PINHEIRO, Francisco. Portugal de calções – para uma génese do desporto enquanto fenómeno mediático Ilhas, nenhum nas Províncias Ultramarinas), com predominância de Lisboa (33 jornais), seguindo-se Porto (5) e Coimbra (3). O ano de 1924, com as suas 25 novas publicações desportivas, marcaria claramente um dos pontos altos da produção jornalística portuguesa dedicada ao desporto. Pela primeira vez se ultrapassou a vintena de novas publicações desportivas lançadas num só ano (o que apenas se voltaria a repetir uma outra vez em todo o século XX, em 1926), o que constituía uma novidade na história da imprensa desportiva portuguesa. Convém também salientar que nesse ano, além dos 25 novos jornais (um deles diário, o primeiro em Portugal), estavam em atividade regular mais 15 periódicos desportivos que tinham surgido em anos anteriores, destacando-se o trio formado por Os Sports (Lisboa, 1919-1945), O Sport de Lisboa (Lisboa, 1915-1934) e Sporting (Porto, 1921-1953). Desse modo, em 1924 registou-se a atividade de 40 publicações desportivas em Portugal – número impensável no final da década anterior. Seguindo a tendência dos três anos anteriores, a maior concentração de novos jornais desportivos em 1924 foi na área da imprensa desportiva generalista, publicando-se 16 novos títulos, espalhados por 12 cidades, claro indicador da popularização do desporto a nível regional. A maioria teria vida efémera, devido ao elevado preço do papel e dos custos de composição e impressão, a que se aliavam os problemas com a distribuição postal (com queixas regulares dos assinantes pela demora ou falha na entrega dos exemplares) e as dificuldades na cobrança das assinaturas. Havia ainda que acrescentar o facto de a maioria dos jornais desportivos regionais ter um mercado de vendas restrito, o mesmo sucedendo com o meio publicitário. Além disso, a propriedade, a direção e os corpos redatoriais dos jornais eram, habitualmente, constituídos por grupos de jovens que contavam com pouco poder económico e falta de experiência para enfrentar as dificuldades inerentes a publicar regularmente um periódico. Mas as dificuldades do jornalismo desportivo regional não se ficavam por aqui, tendo também que contornar “a pobreza em acontecimentos noticiáveis”42, vendo-se os jornalistas muitas vezes “atrapalhados com a preocupação do assunto a arranjar”43. Restava, em certas ocasiões, “inventar o assunto”44, recorrendo ao “espírito fantasioso dos jornalistas”45, a exemplo do que faziam “os grandes periódicos, os mastodontes da informação”.46 Questões ético-desportivas Em 1924, o avolumar de periódicos desportivos trouxe consigo as naturais reflexões ideológicas e éticas sobre o papel do jornalismo desportivo. Uma das ideias consensuais na imprensa desportiva era a de que esta devia “combater a decadência das raças”47, devendo para isso “encetar uma propaganda de regeneração dos costumes, moralizadora do meio e purificadora dos caracteres”.48 Era igualmente unânime, entre a classe jornalística desportiva, que se devia acabar com as “avultadas gorjetas”49 (subornos) que alguns jornalistas recebiam para favorecer ou criticar determinada fação ou clube, dando azo a sucessivas quezílias e desmentidos. Começou-se a ter consciência de que, para ganhar a confiança dos leitores, os jornalistas desportivos deviam “informar com a maior independência de vistas, imparcialidade e correção, qualidades reveladoras de são carácter e consciência limpa”.50 Alguns jornais começaram a fazer a defesa de uma “moral desportiva”51 aplicada ao jornalismo, incentivando a melhoria das análises jornalísticas, dominadas pela figura da “crónica-relato”52, em que se fazia apenas a mera exposição dos acontecimentos, “sem uma crítica severa contra os que pretendem levantar a confusão no meio, sem uma palavra de queixume para aqueles que querem assassinar a nossa obra verdadeiramente patriótica”.53 No en43 Idem, ibidem. 44 Idem, ibidem. 45 Idem, ibidem. 46 Idem, ibidem. 47A Redacção (1924, 29 de Junho). Taça Educativa. Porto Sportivo, p.1. 48 A Redacção (1924, 31 de Agosto). Insistindo. Porto Sportivo, p.1. 49 A Redacção (1924, 13 de Novembro). Da informação… Leiria Desportiva, p.1. 50 Idem, ibidem. 51 A Redacção (1924, 17 de Junho). A imprensa desportiva e os desportistas. O Arauto Desportivo, p.1. 52 Vasas (1924, 1 de Junho). O Sport – Coeficiente de correcção das raças. Porto Sportivo, p.1. 53 Idem, ibidem. Publicação Mensal de Teatro, Literatura, Coreografia e Sport. 42A Redacção (1924, 9 de Outubro). Do assunto… Leiria Desportiva, p.2. 189 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 181-194, out. 2012/mar. 2013. PINHEIRO, Francisco. Portugal de calções – para uma génese do desporto enquanto fenómeno mediático tanto, “censurar e atacar antes de tempo”54 nunca poderia ser “a missão da imprensa desportiva”55, já que assim se entraria no “campo da difamação”56, nefasta para a credibilidade jornalística. Uma das publicações que mais se dedicou à análise do jornalismo desportivo em 1924 seria o lisboeta Sport Ilustrado Jornal, pela pena do “Colaborador Z”. No número inaugural, de 17 de setembro de 1924, no artigo “Verdades”, publicado na capa, afirmava-se que para ser jornalista não bastava “saber escrever”, era necessário também “pensar”. E no jornalismo desportivo era “obrigatória mais uma qualidade: ser falso, hipócrita”. O “Colaborador Z” explicava: “Para ter cotação no meio dos chamados colegas é indispensável falsear como eles, aprender os sorrisos irónicos deles, saber receber num aperto de mão todo o rancor que lhes vai na alma. Um sorriso de alguns desses jornalistas corresponde a uma demonstração de ódio, um olhar a uma vibração de raiva”. Assim, ser jornalista desportivo significava “sujeitar-se a situações caricatas, a ataques de toda a espécie, a injúrias sem nome”. Na edição seguinte, de 27 de setembro de 1924, continuando a análise ao tema, o “Colaborador Z” defendia novamente na primeira página que existiam duas formas de fazer jornalismo desportivo: “Há o jornalismo torpe, de vendilhões, de cínicos, de hipócritas e de falsários. Este é o que vamos atacar. Há o outro, o honesto, o sincero, aquele que de todas as formas deve ser apreciado, discutido e admirado por aqueles que vêem no sport uma causa cheia de benefícios e de purezas, o sport tal qual é e deve ser. Os primeiros são uma, felizmente, reduzida alcateia de impostores, de miseráveis, cheios de impurezas na sua vida, corroídos pela podridão do seu pensar, do seu proceder”. E o que movia estes jornalistas não era a “amizade” à causa desportiva, mas sim a “necessidade de poder”, vivendo para isso “das campanhas e do escândalo”, seguindo uma estratégia bem definida: certo tempo, lhes tolher a língua e paralisar-lhes o braço. Fazem-se, alguns deles, sábios e doutores em matéria desportiva. Outros, vivem dos escudos com que foram pagas notícias publicadas em jornais de que são empregados, mas a quem não são passados recibos delas. Conhecemos de tudo, infelizmente. A fotografia desportiva Além do cariz reflexivo e doutrinário, o Sport Ilustrado Jornal foi também inovador no plano editorial, sendo um dos primeiros suplementos informativos criados por uma revista dedicada à fotografia desportiva, a Sport Ilustrado, que tinha como subtítulo: “Publicação Quinzenal de Fotografia de Sport”. Lançada em Lisboa, em 29 de março de 1924, as oito páginas inaugurais desta revista eram integralmente ocupadas por fotografias desportivas, em especial de futebol, em detrimento do texto jornalístico. As excelentes fotografias eram da autoria de Arnaldo Garcez e Norberto Diniz, aos que se juntou, pouco depois, Armando Silva, fotógrafo do Porto. E o inovador grafismo da revista coube ao desenhador António d’Almeida. Apesar do custo elevado (1$20 escudos), a edição inaugural da Sport Ilustrado esgotou-se, gerando enorme procura os números seguintes, que passaram a contar com cor na capa, uma novidade para a época. Em maio de 1924, dada a boa recetividade da publicação, a direção decidiu avançar com a criação de um placard informativo (frente à Estação do Rossio, em Lisboa), onde passou a afixar diariamente as principais notícias do desporto nacional e internacional. A popularidade do periódico aumentou de tal forma que em julho de 1924 já se definia como “a revista preferida pelo público que ao sport dedica um pouco da sua atenção”.57 Em 17 de setembro de 1924, de forma a colmatar o pouco espaço dado ao texto noticioso, a direção da Sport Ilustrado decidiu criar o Sport Ilustrado Jornal, saindo quinzenalmente, nos sábados em que não se publicava a revista. Assim, à Sport Ilustrado caberia a publicação de boas fotografias e frases simbólicas do desporto, ficando o Sport Ilustrado Jornal com os “artigos técnicos, críticas conscienciosas, comentários e noticiário diverso”.58. Ambas publicações terminaram em 15 de fevereiro de 1925. Igualmente inovadora, porém mais consistente, Escogitam nas profundezas da sua perversidade, os pontos iniciais dum ataque a uma obra, a uma vida, a uma criatura. Tentam depois manejá-la, darlhe vida, acalentá-la durante indeterminado tempo – o tempo suficiente para que haja alguém que, cheio de receios, ofereça dinheiro capaz de, por um 54 A Redacção (1924, 17 de Junho). A imprensa desportiva e os desportistas. O Arauto Desportivo, p.1. 55 Idem, ibidem. 56 Idem, ibidem. 57 A Redacção (1924, 26 de Julho). Os melhoramentos do Sport Ilustrado. Sport Ilustrado, p.10. 58 A Redacção (1924, 17 de Setembro). Sport Ilustrado. Sport Ilustrado Jornal, p.1. 190 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 181-194, out. 2012/mar. 2013. PINHEIRO, Francisco. Portugal de calções – para uma génese do desporto enquanto fenómeno mediático seria a revista quinzenal Foto-Sport, que apareceu duas semanas antes da saída da Sport Ilustrado, em 15 de março de 1924. A Foto-Sport centrou-se na publicação de fotografias desportivas, com realce para o futebol, contando com dois fotógrafos: Francisco Santos e A. Salazar Dinis, cujos nomes apareciam no cabeçalho como “redactores fotográficos”. A revista conciliava nas suas habituais 16 páginas (três dedicadas a anúncios de publicidade) um vasto número de fotografias desportivas, acompanhadas de um breve comentário. As suas excelentes capas fariam com que a Foto-Sport fosse bem acolhida no meio desportivo lisboeta, apesar do preço elevado (3$00 escudos), abrindo gradualmente as páginas a fotografias desportivas do Porto, Évora, Tomar e Coimbra, entre outras regiões, surgindo em finais de 1924 uma secção fotográfica dedicada ao desporto nas Províncias Ultramarinas, em África. Entre abril e maio de 1924, a revista aumentou o seu prestígio graças ao lançamento de um popular “Concurso de Fotografias”59 (com um prémio aliciante de cem escudos, que visava à eleição da melhor fotografia de futebol que fosse enviada para a revista) e à publicação de artigos de fundo sobre várias modalidades (atletismo, râguebi, boxe, natação, esgrima e ténis), assinados por alguns nomes sonantes do jornalismo desportivo. E nos meses seguintes iria sobressair na cobertura aos Jogos Olímpicos de Paris. Essa consistência editorial e redatorial faria com que a Foto-Sport aguentasse em atividade mais dois anos, até 1º de julho de 1926, tendo-se revelado uma das mais importantes publicações a conciliar a fotografia desportiva com brilhantes artigos de análise ao desporto português. fotografias na primeira página (destacou-se o fotógrafo José de Melo Araújo), uma alargada rede de correspondentes nacionais (Ilha do Pico, Fayal, Funchal, Lisboa, Porto, entre outros) e uma boa cobertura internacional, publicando regularmente traduções de artigos de jornais desportivos franceses. Embora Ponta Delgada fosse um meio pequeno, quer em termos desportivos e de leitores, O Sport dos Açores conseguiria ultrapassar o “cabo tormentoso”60 dos três meses61 (era comum os jornais desportivos, sobretudo os regionais, não durarem mais de um trimestre), embora tivesse sofrido logo uma interrupção, devido às habituais faltas de pagamento das assinaturas, entre 24 de maio e 2 de agosto de 1924. Retomada a publicação, teria como ponto alto a presença, em Ponta Delgada, do tenente e professor de educação física, Henrique Galvão, que em novembro de 1924 publicaria diversos artigos no jornal, dando três conferências sobre desporto no teatro local. Apesar das dificuldades, O Sport dos Açores manteve-se em atividade até 6 de junho de 1925, terminando após 52 edições, a última delas dedicada ao encontro internacional de futebol entre Portugal e Espanha, disputado em 17 de maio de 1925, em Lisboa. Entre a imprensa desportiva regional lançada em 1924 iria realçar-se outro título: Figueira Desportiva. Com um corpo redatorial formado por jovens jornalistas e colaboradores, o primeiro número deste semanário da Figueira da Foz (outra cidade com forte índole desportiva) saiu em 25 de dezembro de 1924, publicando-se a partir daí, de forma regular, todas as quintas-feiras, até setembro de 1927. Uma façanha para qualquer jornal desportivo regional, principalmente se tivermos em linha de conta que a redação era totalmente amadora. Além de promover o desporto e a educação física, a Figueira Desportiva encetaria também, em fevereiro de 1926, uma campanha a favor da criação de pequenas bibliotecas desportivas em todos os clubes, com o objetivo de melhorar os conhecimentos desportivos As dificuldades dos primeiros três meses O uso regular de fotografias no jornalismo desportivo passaria a estar patente não só na imprensa de referência, em Lisboa e no Porto, mas também em nível regional. Em março de 1924, para além das revistas lisboetas ilustradas (Sport Ilustrado e Foto-Sport), apareceria no dia 18 outra publicação desportiva que daria destaque à fotografia desportiva: O Sport dos Açores. Propriedade do Grupo de Amadores do Sport, com sede em Ponta Delgada, este periódico açoriano apresentava, além de boas 60Foi assim que o jornal Sol e Sombra (Porto, 1925) classificou a passagem dos primeiros três meses de edição (Cf. Cirne, R. (1925, 27 de Setembro). Bom rumo. Sol e Sombra, p.1). 61Na edição de 21 de Março de 1925, em que comemorava o primeiro aniversário, no editorial “Há um ano”, a Redacção de O Sport dos Açores afirmaria: “Jornal de pouco público e de terra pequena, verifica-se por durar um ano, o interesse despertado”. E lembrava que «a existência de jornais pequenos é na generalidade de três meses”. 59A Redacção (1924, 15 de Abril). Concurso de Fotografias. Foto-Sport, p.3. 191 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 181-194, out. 2012/mar. 2013. PINHEIRO, Francisco. Portugal de calções – para uma génese do desporto enquanto fenómeno mediático e culturais dos desportistas. Estaria ainda ligada à organização de diversas provas de atletismo (Taça Figueira Desportiva) e ciclismo (Circuito da Figueira em Bicicleta). E seria precisamente um problema derivado de uma dessas provas que estaria na origem do seu fim: em finais de agosto de 1927, a Câmara Municipal da Figueira da Foz, incompatibilizada com o jornal, decidiu impor-lhe uma multa de 200 escudos (cada exemplar custava 50 centavos) por causa de uma alegada estaca que a Figueira Desportiva havia colocado erradamente durante a organização de uma prova de ciclismo. A redação, em peso, decidiu suspender o periódico, em 1º de setembro de 1927, como forma de protesto contra a edilidade, resultando na sua suspensão definitiva. Ao contrário da Figueira Desportiva, que conseguiu publicar-se durante 141 semanas, a maioria dos periódicos desportivos criados em 1924 teve enormes dificuldades em aguentar muitos números em atividade, sobretudo as publicações ligadas aos clubes, sucumbindo durante os primeiros meses de edição. Esse problema de sustentabilidade editorial, de que enfermaram os órgãos de clubes criados em 1924, arrastou-se ao longo dos anos seguintes, afetando a generalidade das publicações. Além do futebol (com quatro publicações entre 1924 e 1926), mais três áreas do desporto contariam com periódicos especializados: o automobilismo, a tauromaquia e o campo das biografias desportivas, em voga nesta época, o que se devia, em grande medida, à necessidade de criar herois, geradores de esperança no seio de uma sociedade cada vez mais desiludida, como era a portuguesa. Mas quer os periódicos tauromáquicos, quer os biográfico-desportivos, teriam uma existência reduzida quando comparados às duas publicações automobilísticas lançadas em 1926. O Auto (Jornal Mensal de Automobilismo e Sport) seria apresentado em Lisboa, em janeiro de 1926, mantendo-se em atividade durante um ano. A outra publicação automobilística seria O Volante, que se converteria num dos mais importantes títulos do jornalismo automobilístico português no século XX, publicando-se regularmente (a primeira série) até meados de 1971. boletins de clubes e de instituições desportivas, a área jornalística desportiva dominadora seria a generalista (jornais que abordavam todo o género de desportos), com o aparecimento de 42 títulos. Após os 16 novos periódicos, espalhados por 12 cidades, que surgiram em 1924, seguiram-se no ano seguinte mais nove jornais, em cinco cidades, e em 1926 mais 17 novos periódicos desportivos generalistas, distribuídos por dez cidades. Nesse último ano, além desses 17 jornais generalistas, apareceram dez outras publicações desportivas: seis órgãos de clubes e de instituições desportivas, e quatro especializadas. Desse modo, em 1926 surgiram um total de 27 novos jornais desportivos em Portugal (continente e ilhas, nenhum nas províncias ultramarinas), número que superava o recorde de 1924, com 25 periódicos. Entre as 13 cidades que albergaram as 26 novas publicações desportivas generalistas criadas em 1925 e 1926, Lisboa seria a que contaria com mais jornais (12), seguindo-se o Porto e a Póvoa do Varzim (dois títulos cada), restando dez cidades com um periódico: Viana do Castelo, Tondela, Covilhã, Coimbra, Tomar, Torres Vedras, Barreiro, Faro, Funchal (Madeira) e S. Miguel (Açores). O protagonismo de Lisboa torna-se mais claro quando se observa o total de periódicos criados entre 1924 e 1926: das 69 publicações periódicas desportivas lançadas nesses três anos, 33 tiveram origem na capital. Dessas publicações destacaram-se duas. A primeira foi Os Sportsinhos, publicação semanal lançada pela Empresa Desportiva Gráfica (detentora de Os Sports), em 20 de agosto de 1925, tendo como público-alvo as crianças. Apresentado como o suplemento infantil de Os Sports, a nova publicação tinha o mesmo diretor (A. de Campos Júnior), custando 50 centavos, contando as suas oito páginas com seções específicas: “Sport Infantil”, “Os Contos de Acção”, “Adivinha, Adivinhão”, “Colaboração Infantil” e “Diga, que se responde…”. O seu primeiro número, de oito mil exemplares, esgotou, obtendo muito êxito entre os jovens. Para o sucesso inicial foi decisiva a forma como os jovens ardinas de Lisboa o promoveram, cativando a atenção do público de todas as idades, curioso para folhear o primeiro jornal desportivo infantil que se lançava em Portugal. Com uma abordagem gráfica e linguagem dirigidas às crianças e jovens portugueses, Os Sportsinhos faria 19 edições, cessando no dia de Natal de 1925. Igualmente inovadora, mas dirigida a um público adulto e apreciador de bom jornalismo despor- O recorde de 1926 Embora tivessem surgido, entre 1924 e 1926, dez novos periódicos desportivos especializados (quatro de futebol, dois automobilísticos, dois tauromáquicos e dois biográfico-desportivos) e 14 192 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 181-194, out. 2012/mar. 2013. PINHEIRO, Francisco. Portugal de calções – para uma génese do desporto enquanto fenómeno mediático tivo ilustrado, seria a revista Eco dos Sports, cujo primeiro número, de 20 páginas (três com publicidade), saiu no domingo, 7 de março de 1926, ao preço de 1$50 escudos, com o subtítulo de “Grande Revista Sportiva Semanal”. Na capa do número inaugural aparecia a fotografia, retocada a cor, de um sorridente Ribeiro dos Reis, uma das principais figuras do futebol português dos anos 1920. E a capa interior era dedicada ao jogo de futebol entre o Sporting CP e os húngaros do Szombathley, que tinham estado em Lisboa numa digressão. Ambas as imagens eram da autoria de F. Santos, que trabalhava para a Foto-Press, empresa fotográfica que contava com outros fotógrafos de prestígio, como S. Dinis, R. Reis e Ferreira da Cunha, todos eles com fotografias no número inaugural da Eco dos Sports. No editorial “À maneira de introito”, publicado na página dois, a direção esclarecia os leitores que não se tratava de uma revista de Lisboa, mas sim “uma revista de Portugal”. E não era “uma revista de foot-ball, simplesmente”, mas sim “de todos os sports, porque todos necessitam de propaganda e dum órgão gráfico que incite os novos e encoraje os atletas feitos”. No plano editorial, definia-se como “um órgão de crítica serena e desapaixonada” e “um repositório gráfico dos grandes acontecimentos sportivos, para criar estímulo, para criar energias, para numa palavra secundar a propaganda já iniciada, que tem como objetivo sublime, a criação de homens fortes, sadios, vigorosos, de homens que honrem uma raça que já deu mundos novos ao mundo!” A sua aparição no meio jornalístico desportivo representava “também uma bela afirmação do progresso das artes gráficas em Portugal”, ficando-se a dever a qualidade desse trabalho gráfico às Oficinas da Litografia Mata. Este número inaugural de 7 de março de 1926, além de publicar excelentes fotografias sobre futebol, ténis, vela, atletismo, remo e boxe, trazia na página três uma homenagem aos principais jornalistas desportivos da época. A Eco dos Sports rapidamente conquistou os leitores, devendo-o principalmente às magníficas capas e fotografias desportivas que passou a publicar, principalmente nas páginas centrais. Em junho de 1926 já ostentava o cabeçalho “A primeira revista sportiva e a de maior tiragem em Portugal”, revelador da célere popularização e crescimento nas vendas. No entanto, apesar da inegável qualidade redatorial e gráfica, a Eco dos Sports iria sofrer, em finais de 1927, uma forte instabilidade editorial. Porém, em janeiro de 1928, a revista faria uma das melhores coberturas fotográficas de sempre a um evento desportivo: para o sexto encontro de futebol entre Portugal e Espanha, disputado em Lisboa, em 8 de janeiro de 1928, o chefe dos serviços fotográficos da Eco dos Sports, Ferreira da Cunha, decidiu pedir a colaboração de mais três fotógrafos e realizar uma exaustiva cobertura fotográfica do jogo. A reportagem do VI Portugal-Espanha, repartida por duas edições da revista, totalizaria 44 fotografias (quatro feitas no Estoril na antevéspera, uma na bilheteira dos Restauradores na véspera e 39 no dia do encontro), repartidas pelos fotógrafos Arnaldo Silva (7), Cezar Antello (2), João dos Santos (5) e Ferreira da Cunha (30). Mas este episódico sucesso não lhe garantiu estabilidade, já que na edição 85, de 12 de fevereiro de 1928, anunciava uma interrupção, que viria a ser definitiva. Os efeitos imediatos da mudança política de 1926 O ano de 1926 seria de mudança política em Portugal, com implicações diretas no jornalismo desportivo. Chegou ao fim, de forma inglória, a I República (chamada de “Nova República Velha”), substituída por um golpe militar em 28 de maio de 1926 que impôs uma indefinida ditadura militar, a qual se transformaria numa ditadura civil (batizada de Estado Novo) com a chegada ao poder de Oliveira Salazar, em 1932. Assim, 1926 e os anos seguintes seriam tempos de instabilidade e indefinição política, em que primou a ausência de uma perspetiva estratégica, com a sociedade portuguesa a afundar-se, uma vez mais, num pântano de incertezas e incógnitas, levando a novas e profundas introspeções, quase sempre negativas, sobre a identidade nacional. Os editoriais dos jornais desportivos passaram a refletir essa mesma indefinição política. Na semana seguinte ao golpe militar, na edição de 4 de junho, um dos principais jornais desportivos portugueses, o Sporting, publicava o artigo “O momento político e o sport”, em que deixava claro essa mesma preocupação: “Mais uma revolução acaba de modificar por completo a direcção política da nossa terra, não se sabendo ainda, o que seguirá”. O que se seguiu, pouco tempo depois, foi a imposição da censura prévia à Imprensa, “assumida directamente pelos militares que chamaram a si, desde a primeira hora, a responsabilidade da organização e direcção dos Serviços e execução das respectivas tarefas censórias” (Azevedo, 1999, p.375), as quais executavam através das comissões instaladas nos Comandos da Guarda Nacional Republica193 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 181-194, out. 2012/mar. 2013. PINHEIRO, Francisco. Portugal de calções – para uma génese do desporto enquanto fenómeno mediático na e nos Governos Civis. Mas o seu funcionamento inicial começou por ser muito deficiente e “os critérios de aplicação da lei sobre o exercício do direito de liberdade de imprensa, entretanto promulgada (Decreto n.º 12.008 de 2 de Agosto de 1926), careciam de uniformidade” (Azevedo, 1999, p.375), gerando muita contestação entre a classe jornalística, situação que só começaria a ser resolvida em setembro de 1926, com uma série de medidas para uniformizar os serviços de Censura em todo o país. A totalidade dos jornais desportivos passou a apresentar, frequentemente na capa, outras vezes em páginas interiores, a nota: “Visado pela Comissão de Censura”. Mas era consensual entre os jornalistas desportivos que o dia-a-dia da imprensa desportiva não iria ser muito afetado pela censura, já que o jornalismo desportivo não era considerado prioritário, nem ideologicamente perigoso para o censor. Em 2 de julho de 1926, o editorial “Duas figuras”, publicado na primeira página do principal jornal desportivo português, Os Sports, dirigido por Cândido de Oliveira (que viria a ser preso nos anos 1940, acusado de espionagem), afirmava que as resoluções políticas do novo governo nada interessavam ao jornal, sabido como era que “todos os jornais de desporto são neutros em matéria política”. E reforçava a ideia, lembrando que “em desporto não há política” e por isso mesmo “as convulsões políticas da nossa terra não prendem grandemente a atenção da massa desportista. Somos assim, os desportistas, uma força organizada e orientada noutro sentido… E felizmente que assim é. No dia em que os desportistas se agruparem ou se distinguirem uns dos outros pelo credo político que professam, ter-se-á perdido o desporto”. Referências ANDERSON, B. Imagined Communities. Londres: Verso, 1983. CABRAL, J.P. Existe uma cultura portuguesa? In: JORGE, V.O & SILVA, A.S. (Eds.). Existe uma cultura portuguesa? Lisboa: Difel, 1993. COELHO, J.N. Portugal, A Equipa de Todos Nós – Nacionalismo, Futebol e Media, Porto, Edições Afrontamento, 2001. COELHO, J.N. & Pinheiro, F. A Paixão do Povo: História do Futebol em Portugal. Porto: Edições Afrontamento, 2002. HARGREAVES, J. Sport, Power and Culture. Cambridge: Polity Press, 1986. LOURENÇO, E. O Labirinto da Saudade. Lisboa: Dom Quixote, 1991. MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva. In: Sociologia e antropologia. São Paulo: Edusp, 1974. PINHEIRO, F. A Europa e Portugal na Imprensa Desportiva. Coimbra: MinervaCoimbra, 2006. _____. História da Imprensa Desportiva em Portugal. Porto: Edições Afrontamento, 2011. _____. República, Desporto e Imprensa. Porto: Afrontamento (Coleção História e Desporto), 2012. THOMPSON, J.B. Ideology and Modern Culture. Cambridge: Polity Press, 1990. SEIDMAN, S. Relativizing Sociology. In: LONG, E. Ed.). From Sociology to Cultural Studies. Londres: Blackwell Press, 1997. Francisco Pinheiro é investigador integrado do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS20) da Universidade de Coimbra, bolsista de pós-doutoramento da FCT e do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, além de coordenador do Grupo História e Desporto, em Portugal. E-mail: <[email protected]>. Recebido para avaliação em março de 2013. Aprovado para publicação em abril de 2013. 194 Psicanálise, gênero e singularidade PORCHAT, Patrícia Resumo A Psicologia e, mais especificamente, a Psicanálise vêm sendo chamadas a se manifestar acerca de fenômenos atuais sobre as questões de gênero e sexualidade. A demanda pela atuação diante dessas questões cresceu, em parte, por influência da mídia. É possível apontar limites na atuação desses profissionais por carecerem de uma reflexão sobre a concepção de sujeito que utilizam, dos efeitos de uma patologização de gênero e da utilização de uma concepção binária de gênero. Palavras-chave: Psicanálise – Gênero – Sexualidade – Transexualidade. Abstract Psychology, and more specifically Psychoanalysis have been called to manifest themselves about current phenomena regarding gender and sexuality issues. The demand for acting on these matters has grown, partly due to the influence of media. It is possible to point out limits on the performance of these professionals for lacking a reflection on the concept of subject, the effects of a pathologization of gender and the use of a binary conception of gender. Keywords: Psychoanalysis – Gender – Sexuality – Transexuality. Ultimamente, a Psicanálise tem sido chamada a se manifestar sobre fenômenos relativos às diversidades de gênero e de sexo, tais como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a adoção de crianças por casais homoparentais e, mais recentemente, sobre o processo transexualizador que engloba a terapia hormonal, o conjunto de cirurgias necessárias à redesignação sexual e à obtenção de documentação constando novo nome e novo sexo. Para além de uma intervenção técnica, sob a forma de laudos, pareceres, avaliações psicodiagnósticas e psicote- rapias (de caráter obrigatório para os transexuais), praticamente não há mais como se furtar a emitir uma opinião sobre o que acontece na nossa sociedade. O “fenômeno transexual”, como pode ser chamado, já está aí. Entendemos por “fenômeno transexual” o fato de, a cada dia, um número maior de pessoas autodiagnosticadas como transexuais se dirigirem a serviços públicos de saúde em busca de terapia hormonal ou cirurgia para adequar seu corpo ao gênero com o qual se identificam. Em 2010 foi cria195 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 195-202, out. 2012/mar. 2013. PORCHAT, Patrícia. Psicanálise, gênero e singularidade do o Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids-SP, na cidade de São Paulo, que atualmente tem uma fila de espera de dois anos para atendimento de pessoas vindas de todo o país. Nesse espaço, os interessados são acolhidos, recebem, avaliação médica, endocrinológica, proctológica, fonoaudiológica e atenção à saúde mental. A mídia tem sido uma das grandes colaboradoras para o aumento desse fenômeno. Se o silenciamento nos meios de comunicação acompanhou durante anos o tabu relativo às questões de gênero e diversidade sexual, os debates, em 2010, que precederam a revogação da lei Don’t ask, don’t tell, assinada pelo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, podem ser considerados um marco no desencadeamento da visibilidade dessas mesmas questões. A controversa lei – que em português foi traduzida por Não pergunte, não conte – existia há 20 anos e dizia respeito à política de restrição do Exército norte-americano para tentativas de descobrir ou revelar membros ou candidatos homossexuais e bissexuais. Num primeiro momento, pareceu interessante haver uma lei que protegesse aqueles que não queriam contar sobre suas vidas particulares e os que nada queriam saber da vida particular dos outros. Aos poucos se percebeu que essa política favorecia situações de discriminação e preconceito. Algumas sexualidades e identidades eram restritas ao espaço privado, sem direito à expressão pública de sua existência. Foi igualmente em 2010 que Léa T, estilista e modelo transexual, filha do ex-jogador de futebol brasileiro Toninho Cerezzo, ganhou fama como estrela de campanha da grife francesa Givenchy. Alguns jornais europeus deram destaque ao seu sucesso como modelo, bem como à sua transexualidade. Graças a Léa T, as discussões sobre a transexualidade conquistam espaço associadas à ideia de sucesso profissional. Em 2011, o escritor João W. Nery publicou Viagem Solitária, uma autobiografia sobre seus percursos e percalços antes e depois da transformação de mulher em homem. O aparecimento de seu livro produziu uma avalanche de convites para variados programas de entrevistas (Jô Soares, Marília Gabriela, Pedro Bial, Luciana Gimenez). No caso mais específico da homossexualidade, a declaração pública da cantora Daniela Mercury sobre seu amor por uma mulher, no início de 2013, também interferiu no aumento das discussões sobre sexualidade e gênero. É notório o aumento da procura nos serviços públicos de saúde e nas clínicas particula- res a partir dessas aparições públicas. Nos últimos cinco anos, a autora deste artigo participou de discussões junto a membros do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo e a grupos de psicanalistas acerca da especificidade de atender indivíduos que manifestam diferentes formas de sofrimento relativas à questão da identidade trans.1 Dois pontos aí se destacam: primeiramente, a necessidade de orientar ética e tecnicamente a categoria dos psicólogos para atuar junto a essa população. Em segundo lugar, a necessidade de colocar a Psicanálise e a Psicologia em contato com a realidade trans e questionar a teoria psicanalítica quanto à sua concepção de gênero. A noção de sujeito No encontro com alguns praticantes da psicanálise, e também com psicólogos de outras abordagens teóricas, é possível identificar limites de sua atuação diante das questões mencionadas anteriormente. O primeiro diz respeito à concepção de sujeito que os profissionais têm. O que é um sujeito? É a pessoa, é o Eu, é o indivíduo, é o sujeito do inconsciente, é o self? Abordagens humanistas, existenciais, comportamentais ou psicanalíticas criam seus diferentes sujeitos. A teoria, aqui, é necessária para deslocar o psicólogo ou psicanalista de sua visão comum do mundo, atravessada por sua religião e seus preceitos morais. Nesse sentido, a teoria utilizada para fundamentar a prática clínica precisa necessariamente fornecer uma resposta acerca de quem se está falando. Trata-se da mulher histérica do século 19, descrita inicialmente por Freud, que manifesta no corpo aquilo que não resolve psiquicamente? Trata-se de um sujeito livre e consciente das escolhas que faz, como aparece nas psicologias influenciadas pelo pensamento existencialista? Trata-se de um ser determinado pelas contingências ambientais, como mostra a Psicologia, que toma o comportamento por objeto de estudo? Pode ser um sujeito determinado pelo inconsciente, como pensava Freud ao dizer a célebre frase: “O homem não é senhor de sua própria casa”? Ou, ainda, trata-se de alguém cuja fala desperta pontos de identificação e a quem 1 O termo “identidade trans” refere-se a pessoas que não necessariamente se dizem transexuais, já que discordam do uso feito pela medicina e pelo direito dessa categoria, que listam itens necessários para identificar alguém como transexual. 196 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 195-202, out. 2012/mar. 2013. PORCHAT, Patrícia. Psicanálise, gênero e singularidade se começa a julgar como se fosse semelhante? Ora, se por um lado, por meio de sua visão comum de mundo, o profissional apaga a neutralidade que a visão teórica e científica poderia lhe dar (e, por isso, é preciso se livrar da visão comum), por outro lado, muitas vezes, esse profissional se esconde justamente atrás de sua visão teórica (que pode, por exemplo, ser conservadora e patologizante), para não querer ver as mudanças sociais e não querer pensar sobre sua concepção de ser humano. A pergunta aqui seria então: minha noção de sujeito é compatível com a noção de ser humano que tem direitos e necessidades? Utiliza-se aqui um determinado viés, o de determinados direitos humanos – direito a respirar, amar, sonhar e viver, tais como concebidos pela filósofa feminista americana Judith Butler (2004). Trata-se de um sujeito em busca de reconhecimento, em busca da possibilidade de existir. Pode-se encontrar em Butler (2004) uma maneira de se entender o que é um sujeito, a qual permite uma aproximação ao fenômeno transexual, assim como às diversidades sexuais e de gênero. Em sua teoria do gênero como ato performativo (Butler, 2003; Porchat, 2007), performatividade é definida como o veículo pelo qual efeitos ontológicos são estabelecidos. Não há uma essência ou substância por trás do gênero. Não há “ser”, não há um “fazedor”, não há unidade. As categorias de “ego”, “indivíduo” e “pessoa” – às quais se poderia acrescentar a de “gênero” – como forma de descrever os seres humanos, derivam de uma ilusão de substância. Não há necessidade de existir um “agente” por trás do ato. Trata-se da ideia de que existe uma produção do “ser” como substância, ou, melhor dizendo, “performatividade” é o modo de produção de uma aparência de substância, de uma ilusão de substância, um efeito de substância. O conceito de performatividade utilizado por Butler (2003) deriva de uma leitura que Derrida fez da teoria dos atos de fala de Austin (Derrida apud Butler, 2003). Considera-se performativa a prática discursiva que torna realidade ou produz aquilo que nomeia. A partir daí, Butler tomará a ideia de performatividade e de repetição como referências para o conceito de gênero. Usa “performatividade” para dizer que o ato performativo torna real e produz aquilo que nomeia ou atua (enquanto gesto e comportamento) e “repetição”, porque este ato é sempre uma citação de algo, é referido a um código e, por isso mesmo, é efetivo. São citações e repetições, entretanto, baseadas em convenções (Butler, 2003). A partir dessa hipótese de base, de que o ser é uma substância ilusória, imediatamente se coloca a questão quanto à materialidade do corpo. Trata-se, então, de uma noção de gênero que coloca de início uma pergunta sobre o sujeito e o corpo. Essas questões da obra de Butler – anteriores a Problemas de gênero, livro em que esta autora apresenta pela primeira vez sua teoria de gênero (Butler 1990/2003) – tangenciam as discussões sobre essencialismo versus construtivismo e entram no debate sobre a relação entre sexo e gênero. Butler (2003) se aproximaria de uma noção de corpo de Merleau-Ponty, superando o dualismo consciência/corpo (Femenías, 2003). De acordo com Femenías (2003), encontra-se em Butler uma negação da concepção de sujeito como “agente”, “fazedor”, unidade metafísica. Contrariamente a uma posição construtivista, o corpo seria o sujeito das ações. Não se poderia pensar num “gênero” que se constrói porque não se poderia conceber um agente que se apropriaria de um gênero desde um lugar sem gênero ou pré-gênero. Já estaríamos desde sempre “generizados”. As normas de gênero recebidas seriam atuadas através do corpo. Corpo e sexualidade seriam expressões concretas da existência. Se, de fato, Butler se aproxima de Merleau-Ponty e, de acordo com Femenías, mais especificamente de sua posição em Fenomenologia da Percepção, pode-se entender aí uma concepção de corpo que lhe permite dispensar as ideias de intenção, interpretação e escolha em relação a gênero, porque dispensa um sujeito que escolhe algo para seu corpo e sua sexualidade e, em seu lugar, concebe um conjunto que experiências e vivencia os fatos. Merleau-Ponty propõe que a existência biológica está engrenada na existência humana. A existência se realiza no corpo: “nem o corpo nem a existência podem passar pelo original do ser humano, já que cada um pressupõe o outro e já que o corpo é a existência imobilizada ou generalizada, e a existência uma encarnação perpétua” (Merleau-Ponty, 1994, p.230). No entanto, o modo de existência é adquirido. Tudo é contingência no homem, no sentido de que a maneira humana de existir não está garantida a quem quer que seja, nem mesmo a qualquer criança por alguma essência que ela teria recebido em seu nascimento. Além disso, o modo de existir realizado no corpo inclui também a sexualidade. Um estilo de vida é, talvez, uma expressão generalizada de determinado estado da sexualidade, dirá Merleau-Ponty (1994). Mas este autor 197 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 195-202, out. 2012/mar. 2013. PORCHAT, Patrícia. Psicanálise, gênero e singularidade adverte: não se pode reduzir a existência ao corpo ou à sexualidade e também não se pode reduzir a sexualidade à existência (Idem, p. 230). Esse curto parágrafo expressa algumas ideias que se encontram em Butler (2003; 2004). Primeiramente, a concepção de que o “ser” é concebido sempre em conjunto, não se separa mente e corpo. E, quando se fala em sexualidade, o corpo que a vive está sempre pressuposto. Não há uma preocupação em se referir a cada momento ao que acontece com o corpo no processo de assunção das normas de gênero, pois há uma vivência dos fatos que é realizada pelo conjunto corpo-existência. Ao final de Problemas de gênero, Butler (2003) parece retomar essa ideia ao dizer que o corpo não é um “ser”, no sentido de ter algo a expressar. Na verdade, é “uma fronteira variável, uma superfície cuja permeabilidade é politicamente regulada, uma prática significante dentro de um campo cultural de hierarquia do gênero e heterossexualidade compulsória” (Butler, 2003, p.198). O gênero está na superfície, pode-se dizer que se trata de um “corpogênero”. Buscando uma herança filosófica, ela faz um paralelo com o que Sartre chamaria de “estilo de ser”, Foucault de “estilística da existência”. Já Butler fala de “estilos da carne” referindo-se à sua leitura de Beauvoir. É impossível não lembrar aqui da brincadeira que um grupo brasileiro de teatro e dança fez na década de 1970, intitulando-se “Dzi Croquettes”, em referência aos croquetes de carne – gente é feita de carne, dizem eles, em entrevista no documentário realizado pela diretora Tatiana Issa (Issa; Alvarez, 2010). Voltando ao ponto de partida deste artigo, podese dizer que, sem colocar em xeque concepções por demais simplificadas de sujeito e da própria existência humana, dificilmente se poderá compreender fenômenos contemporâneos de sexo e de gênero. O paradigma da patologia O segundo limite detectado para a atuação do psicólogo foi o de como tratar sem patologizar. Não se refere aqui apenas às patologias do tipo Transtorno de Identidade de Gênero ou Distúrbio de Identidade de Gênero, encontradas no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), da Associação Americana de Psiquiatria, ainda necessárias junto aos órgãos públicos para enquadramento dos indivíduos numa categoria que lhes permita acessar os serviços de saúde (tratamento hormonal, cirurgias de redesignação sexual). Refere-se tam- bém à possibilidade de escutar o sujeito em sua singularidade, sem os efeitos advindos de diagnósticos com psicóticos, perversos ou neuróticos, tal qual propõe uma determinada perspectiva da obra do psicanalista francês Jacques Lacan, que marcou fortemente a Psicanálise no Brasil. Em relação ao primeiro grupo de patologias, cabe aqui um comentário referente a alguns pacientes que procuraram suporte psicanalítico por terem se autodiagnosticado possuidores de Transtorno de Identidade de Gênero. Depois de lerem textos específicos na internet, “descobriam” a patologia que possuíam e tinham dificuldade de ver qualquer singularidade neles e na sua própria história. Encaixavam-se com exagerada facilidade no perfil da doença traçado pelos manuais diagnósticos, artigos científicos e divulgados por profissionais em programas de televisão. É curioso ver que aqui não se trata de um profissional da psicologia com limitação em sua capacidade de avaliar e refletir sobre o que se apresenta, mas do próprio indivíduo, que não se vê ou não quer se ver como um sujeito único. A própria “patologia” se torna uma espécie de cartão de visitas, pelo qual eles passam a se apresentar para o serviço médico, psicológico e para o mundo. Destaca-se igualmente uma grande “produção” de doentes verdadeiros que possam melhor se enquadrar nas expectativas médicas e jurídicas. Sabendo dos testes psicológicos a que serão submetidos, alguns pacientes aprendem quais serão as respostas corretas para que não haja dúvidas acerca de sua doença. Muitos já sabem que serão perguntados sobre sua infância, a relação com seus pais, a relação com seu próprio corpo, com o sexo oposto, etc. Criam um personagem de si mesmos. O “transexual verdadeiro”, ao qual devem corresponder, tem ojeriza a seus genitais, não aceita seu corpo, não se masturba, é assexuado e espera a cirurgia de transgenitalização para enfim poder se relacionar sexualmente. Ser doente e obter um número que corresponda a determinada classificação no manual de doenças é o próprio passaporte para realizar uma transição de um corpo-gênero a outro. Mas o que está em jogo é a ideia de que o transexual oficial ou verdadeiro é uma ilusão criada pelo próprio aparato médico-jurídico. Por último, pode-se dizer que a Psicanálise também contribui para tomar a patologia como paradigma para as questões de gênero e de sexualidade, ainda que tenha avançado no sentido de não diagnosticar alguém pelos sintomas, diferindo assim de boa parte da Psiquiatria contemporânea. A Psicanálise avançou 198 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 195-202, out. 2012/mar. 2013. PORCHAT, Patrícia. Psicanálise, gênero e singularidade no sentido de fazer um diagnóstico por meio daquilo que se apresenta como estrutura do sujeito manifesta em seu discurso. Nesses termos, todos nós seríamos neuróticos, psicóticos ou perversos. Para além da querela dos diagnósticos entre as diversas correntes psicanalíticas em relação aos indivíduos em geral, quando se trata das identidades trans, esse problema atinge um grau muito complexo e delicado. Houve um tempo em que não haveria dúvida em diagnosticar as identidades trans como psicóticas, mais especificamente os e as transexuais (existem outras identidades trans, como travestis, transgêneros, crossdressers, como o cartunista Laerte, por exemplo). Considerou-se também a necessidade de um diagnóstico preciso relativo à posição do sujeito em relação à castração simbólica. Essa avaliação permitiria vislumbrar as condições psíquicas de enfrentamento de uma cirurgia de mudança de sexo sem correr o risco de um surto psicótico (Millot, 1992; Shepherdson, 2000). A crise, ou seja, o desencadeamento de um surto, entretanto, em nada mudaria o diagnóstico de psicose para os transexuais. A melhor tradução para eles, na visão de Millot (1992), diz respeito ao fato de pensarem que pertencem ao “sexo dos anjos”. Simplesmente estão fora do sexo porque não existiria essa denominação. Há homens e há mulheres, não haveria terceiro sexo. O que não se situa como homem e nem mulher está destinado à patologia, no caso, à psicose (Millot, 1992). Bento (2006) e Butler (2004) acreditam que muitos indivíduos que buscam a cirurgia o fazem pela necessidade de conformação ao discurso predominante: ter de pertencer necessariamente a um sexo ou outro, isto é, como se tivessem que se submeter à ideia de que a cirurgia garantiria ou seria uma espécie de última palavra sobre o gênero – um homem ou uma mulher de verdade. Para isso, precisam se acreditar ou se fazer de doentes. Hoje as dúvidas existem na Psicanálise e é possível encontrar posições que admitem transexuais neuróticos, psicóticos ou perversos. Contudo, entre pares, essa conversa poderia ser considerada legítima, afinal, como já se disse, todos seríamos ou neuróticos ou psicóticos ou perversos. Mas cabe perguntar: qual a consequência do uso desse tipo de terminologia quando se dialoga com a sociedade? As palavras, os termos usados e os conceitos têm um peso, produzem efeitos. O uso da linguagem não é sem ideologia. Para uma sociedade que tende ao preconceito em relação às diferenças, sejam elas quais forem – sabe-se que toda e qualquer socieda- de tende a excluir o diferente (Lévi-Strauss, 1950) – usar termos como psicose e perversão (pois neurose já se aceita bem melhor), no caso específico de pessoas trans, é dar munição para o inimigo e também para si próprio. É difícil se livrar de preconceitos tão bem construídos dentro de nós mesmos. Uma grande referência para a análise da construção de preconceitos na psicologia é a obra Estigma, de Goffman (1978). O autor afirma que a sociedade estabelece categorias para as pessoas e atributos considerados comuns e naturais para os membros de cada uma dessas categorias, ou seja, “as rotinas de relação social em ambientes estabelecidos nos permitem um relacionamento com ‘outras pessoas’ previstas sem atenção ou reflexão particular” (Goffman, 1978, p.11). Nesse sentido, pode-se dizer que os indivíduos trans, com seus atributos particulares, provocam sempre a atenção e a reflexão e, por isso mesmo, incomodam. Quando um estranho nos é apresentado, diz Goffman, os primeiros aspectos nos permitem prever sua categoria e seus atributos, sua “identidade social”, ou seja, “transformamos essas pré-concepções em expectativas normativas, exigências apresentadas de modo rigoroso. Fixamos afirmativas em relação ao que o indivíduo deveria ser e nem nos damos conta”. (Idem, p.13). Goffman explica o que Butler chama de exigência de “coerência do gênero”. Segundo ele, a sociedade tenderia a se organizar de modo a evitar a formação de incoerências e até mesmo de percebê-las. Cabe a pergunta: por que as categorias construídas para a compreensão ou talvez a incompreensão dos indivíduos trans seriam categorias patológicas? Pode-se arriscar uma resposta a partir de Butler (2003): o imperativo heterossexual cria uma esfera de identificações permitidas e, simultaneamente, uma esfera do abjeto. O abjeto se traduz por aquilo que é jogado fora, excluído, produzindo um campo de ação a partir do qual se estabelece a diferença. Essa zona de exclusão delimita o campo do sujeito e o campo das identificações temidas. Esse exterior que constitui o sujeito é também seu “interior”, enquanto uma exclusão de si próprio que o funda. Sem esse repúdio o sujeito não poderia emergir (Butler, 2003). Se o abjeto funda o sujeito, os indivíduos trans poderiam ser apenas os excluídos, os marginais. Por que seriam então doentes? Que poder opera na definição de doença como trânsito entre gêneros? Essa pergunta pode ser traduzida da seguinte forma: se identidades trans são diagnosticadas 199 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 195-202, out. 2012/mar. 2013. PORCHAT, Patrícia. Psicanálise, gênero e singularidade tidade (no sentido social ou psíquico). Supunhase, naquela época, a expectativa de uma coerência entre o sexo anatômico e o gênero. A não coerência era atribuída à patologia. Ao longo dos anos, Stoller continuou buscando compreender as origens, o desenvolvimento, a dinâmica e a patologia da identidade de gênero – masculinidade e feminilidade – e investiu no estudo das perversões. Após 25 anos, seu pensamento a respeito da identidade de gênero permaneceu vinculado à preocupação com a patologia (Stoller, 1985). A partir de Stoller e das psicanalistas feministas, que igualmente se debruçaram sobre as questões da masculinidade e da feminilidade, os estudos de gênero no interior da psicanálise percorreram caminhos que levaram sempre às mesmas questões: o que é ser homem? O que é ser mulher? O que é a feminilidade? Como se tornar uma mulher? O que quer uma mulher? (Porchat, 2007). Curiosamente, as inquietações giravam mais em torno da mulher, como se houvesse certa obviedade em relação ao corpo, à subjetividade e ao mundo masculino. O resultado dessas investigações e especulações serviu pouquíssimo para a compreensão da transexualidade e da travestilidade. Nesses termos, os estudos sobre as pessoas transexuais e sobre qualquer outro grupo que não se encaixa nos tradicionais gêneros masculino e feminino (em acordo com seu sexo anatômico) somente ganharam profundidade com a entrada em cena da filósofa americana Judith Butler, que passa a ser uma das principais interlocutoras da psicanálise para as questões de gênero. Passa-se, então, agora ao terceiro limite da Psicanálise, que, aliás, Butler (2003) critica, e que consiste em trabalhar exclusivamente com uma concepção binária de gênero. Encontram-se nas correntes psicanalíticas e psicológicas noções mais ou menos essencialistas e universalistas e noções mais ou menos construtivistas. Ainda assim, gênero é sempre pensado em sendo dois, pois, afinal, a maioria considera o sexo anatômico como referência para gênero. Pode-se admitir uma discordância entre o sexo anatômico e o gênero, mas, sendo dois sexos anatômicos, acredita-se que serão dois os gêneros (masculino e feminino). Judith Butler alarga a noção de gênero, num primeiro momento, pois dirá que, além de anatomia e identidade de gênero, existem o desejo e a prática sexual e esses dois elementos também deveriam compor o que se chama gênero – ficaríamos então com quatro elementos (Butler, 2003). Mas Butler também questiona a anatomia, pois temos órgãos externos, órgãos internos, como doentes e, nesse sentido, fundam o campo da saúde, esse campo da saúde é habitado por indivíduos extremamente bem adaptados ao seu gênero, de acordo com os cânones da masculinidade, no caso de seres machos e com os cânones da feminilidade, no caso dos seres fêmeas. Qualquer tipo de ambiguidade ou dúvida no sentido do gênero já seria alguma forma de desvio. A patologização do gênero cria um perigoso campo ideal de sexo e de gênero. Nem mesmo a homossexualidade aí caberia, pois já seria uma inadequação do desejo ao campo ideal, ao campo da saúde. Mas esse campo necessariamente fracassará em sua tentativa de manter um ideal. Seguindo o raciocínio de Butler (2003), aquilo que foi excluído como abjeto e funda o campo do sujeito é também seu “interior”. Em resumo, a ambiguidade de gênero, o trânsito entre os gêneros, é o nosso próprio interior, excluído, jogado fora. Repudiamos aquilo que nos funda enquanto seres supostamente ideais. Como e em nome do que esse poder de definir doenças é exercido? Ele é exercido em nome da saúde: em nome da medicina, da psicologia e da própria psicanálise. Outrora foi exercido em nome da religião católica (e, de certa forma, ainda é). A Psicanálise, por exemplo, é criticada quando considera exclusivamente o Complexo de Édipo para compreender a construção de gênero. Poucos destinos identificatórios são possíveis se seguimos por esse caminho. É inevitável chegar à ideia de padrões e desvios. Já a Psicologia segue um viés mais desenvolvimentista, alcança a medicina em termos de rigidez de possibilidades de gênero. Em resumo, o segundo limite seria a difícil e complexa utilização dos diagnósticos na Psicologia e na Psicanálise, especificamente no caso das pessoas trans. O mau uso de termos presentes no diagnóstico estrutural da psicanálise, por exemplo, induz a um grande sofrimento. O risco é o apagamento da singularidade, na medida em que se deixa de escutar o específico de cada pessoa trans. Para além do binarismo ou o limite do dois Quando a Psicanálise começou a se interessar pela questão transexual, ela o fez sob a perspectiva da doença, ou seja, do transexualismo, associada ao conceito de identidade de gênero, na década de 1960 (Stoller, 1993). O objetivo principal do psiquiatra e psicanalista americano Robert Stoller era distinguir o sexo (no sentido anatômico) da iden200 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 195-202, out. 2012/mar. 2013. PORCHAT, Patrícia. Psicanálise, gênero e singularidade cromossomos, hormônios, enfim, a cada vez aumentam o número de elementos que fazem tender nossa percepção de um ser como mais ou menos masculino ou feminino. Entre a concordância e a discordância desses elementos, acrescentando-se aí os aspectos de criação e circunstanciais que interferem na vida de uma pessoa, como avaliar o quantum de masculinidade ou de feminilidade presentes num indivíduo? Um caso frequentemente usado para se refletir sobre as questões de gênero e de sexo é o de Herculine Babin. O historiador e filósofo francês Michel Foucault, assim como Butler, comentam o caso. Herculine é um hermafrodita do século 19, vive como menina num convento até que um dia, aos 20 anos, confessa a padres e, posteriormente, a médicos, que seus desejos e práticas eróticas se dirigem às meninas. A partir desse momento é obrigado a assumir legalmente um sexo masculino, vestir-se como homem e a se afastar das meninas com quem vivia, inclusive sua amante. Na sequência desses acontecimentos, ele se suicida. Foucault escreve uma introdução aos diários de Herculine em que aponta para o fato de que um corpo hermafrodito ou intersexuado denuncia e rejeita implicitamente as estratégias que regulam as categorias sexuais (Foucault apud Butler, 2003). Não há sexo inteligível. Os prazeres sentidos e experimentados por Herculine escapam à inteligibilidade imposta pelos sexos unívocos na relação binária. Para Foucault, Herculine viveria num mundo feliz de uma não identidade. Ainda segundo Foucault, essa felicidade teria sido possível graças à sua história específica, ou seja, à sua convivência quase exclusiva com meninas e mulheres numa situação em que havia a sugestão de um amor homossexual ao mesmo tempo estimulado e proibido. Foucault considera a sexualidade de Herculine uma expressão fora de qualquer convenção e, portanto, livre das identidades. Uma sexualidade múltipla, “antes” da lei ou, mesmo, “fora” da lei. Butler (2003) se opõe a essa ideia de felicidade, quando afirma que Herculine sofre com a injunção de ter que pertencer a um dos dois sexos. Herculine, em seus escritos, deposita em seu corpo a causa do sofrimento. Um corpo anômalo, causa de seus desejos e aflições, fomentando confusões de gênero e estimulando prazeres transgressivos. Mas a causa do sofrimento de Herculine não estaria no corpo, afinal Herculine é “signo de uma ambivalência insolúvel, produzida pelo discurso jurídico sobre o sexo unívoco” (Butler, 2003, p.147). Em seu caso, a ambivalência é fatal. A ênfase de Butler é na cobrança médica, religiosa, jurídica e social de um gênero inteligível, enquanto Foucault enalteceria as possibilidades de prazer por se estar fora das convenções. Herculine não poderia ser mulher ou homem “por inteiro”, como idealizavam seus interlocutores da época. Então, não lhe restava o que ser. Não havia uma opção, intermediária, que se poderia chamar de terceiro sexo, ou a possibilidade de ser/criar um quarto, quinto, sexto... de acordo com todas as combinações possíveis entre corpo, gênero, desejo e práticas sexuais. Butler tenta mostrar – e esse parece ser um limite da psicanálise – que trabalhar com uma noção de gênero binária empobrece a capacidade de lidar com o outro ser humano. Faremos eternamente uma comparação dessa pessoa a um determinado ideal, a um estereótipo. É precisamente isso que a sociedade tende a exigir dela, e a Psicologia, como disciplina das Ciências Humanas, não deveria jamais adotar essa mesma perspectiva, qual seja, a de uma lógica da adaptação. É a busca de uma singularidade para o indivíduo que chega com todos os seus atravessamentos (do discurso, do imaginário social, daquilo que emana de seu corpo e em relação ao qual ele não sabe o que faz) que deve nortear o trabalho da Psicanálise e da Psicologia. Referências BENTO, B. A. (2006). Reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond. BUTLER, J. (2003). Problemas de gênero – Feminismo e subversão de identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Original publicado em 1990. _____. (2004). Undoing gender. New York and London: Routledge. FEMENÍAS, M. L. (2003). Judith Butler: Introducción a su lectura. Buenos Aires: Catálogos. 201 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 195-202, out. 2012/mar. 2013. PORCHAT, Patrícia. Psicanálise, gênero e singularidade GOFFMAN, E. (1978). Estigma. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editor. ISSA, T.; ALVAREZ, R. (2010). Dzi Croquettes. DVD, TRIA Productions, Canal Brasil. LÉVI-STRAUSS, C. (1976). Raça e História. In: Lévi-Strauss. São Paulo: Abril Cultural (Coleção Os Pensadores). Original publicado em 1952. MILLOT, C. (1992). Extrassexo. São Paulo: Escuta. MERLEAU-PONTY, M. (1994). O corpo como ser sexuado. In: Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes. NERY, J. W. (2011). Viagem Solitária. São Paulo: Leya Brasil. PORCHAT, P. (2007). Gênero, psicanálise e Judith Butler – Do transexualismo à política. Tese – Doutorado em Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. SHEPHERDSON, C. (2000). Vital Signs – Nature, Culture, Psychoanalysis. New York and London: Routledge. STOLLER, R. J. (1993). Masculinidade e feminilidade: apresentações de gênero. Porto Alegre: Artes Médicas. STOLLER, R. J. (1998). Observando a imaginação erótica. Rio de Janeiro: Imago. Original publicado em 1985. Patrícia Porchat é psicanalista e professora do Departamento de Psicologia da Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista (FC/UNESP). E-mail: <[email protected]>. Recebido para avaliação em março de 2013. Aprovado para publicação em julho de 2013. 202 Resenhas Memórias de um criminoso Resenha: NETTO, Marcelo; MEDEIROS, Rogério. Memórias de uma Guerra Suja. Cláudio Guerra em depoimento a Marcelo Netto e Rogério Medeiros. Rio de Janeiro: Topbooks, 2012. 291 p. ISBN: 8574752045. LOSNAK, Célio J. Como o título sugere, o livro apresenta a memória do agente Cláudio Guerra, que foi policial civil no Espírito Santo, posteriormente delegado e então passou a coordenar o Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops) do Estado. Em 1972, começou a trabalhar para o Serviço Nacional de Informações (SNI) em conjunto com agentes do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), grupo especial formado para investigar e prender os militantes políticos de esquerda do período. Teria atuado em diversas operações armadas e secretas por cerca de quinze anos, incluindo os atentados visando à desestabilização do processo de abertura durante os mandatos dos presidentes Geisel e Figueiredo. O tema em pauta não é novo, alguns aspectos da repressão militar e tortura de presos políticos já foram detalhados pela pioneira obra Brasil: nunca mais,1 de 1985. Vários livros posteriores, com pesquisas, depoimentos e memórias, exploraram as entranhas da ditadura militar e as trajetórias dos presos e exilados. Apesar da difusão de razoável manancial de informações em torno do assunto, o livro é impactante e fascina pelos detalhes que desvela. Guerra não abstrai, fala de si, o que fazia, via e ouvia, descreve seu trabalho com pormenores, narrando operações, citando nomes e lugares, revelando rotinas, descrevendo perfis pessoais de militares e policiais. Enfatiza que atuou como matador; ocultou e destruiu cadáveres; executou pessoas, além de planejar outras execuções; traficou e distribuiu armas; arquitetou, acompanhou e executou atentados à bomba; falsificou documentos; conviveu com grupos de esquadrões da morte; colaborou com as equipes de tortura e participou da operação Condor; trabalhou como segurança para chefes do jogo do bicho, do qual depois se tornou banqueiro. Ele agia com codinome, tinha duas contas bancárias, uma oficial, para o salário e com o seu nome e, outra, com o codinome, pela qual recebia altas somas para pagar as despesas das operações. Guerra afirma que era comandado pelo coronel Freddie Perdigão, que atuara no Centro de Informações do Exército (CIE), e, depois, como agente do SNI e do DOI-CODI. Suas estratégias misturavam a formação vinda dos militares norte-americanos, dos 1 Brasil: nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1985. 205 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 205-207, out. 2012/mar. 2013. LOSNAK, Célio J. Memórias de um criminoso grupos ingleses combatentes do IRA,2 e o apoio de membros de organizações parapoliciais atuantes em esquadrões da morte e outros tipos de crime. Outro superior imediato era o comandante Antônio Vieira, do Centro de Informações da Marinha (Cenimar), e atuava no SNI carioca com Perdigão. Um terceiro oficial importante no grupo era o coronel do Exército Ênio Pimentel da Silveira, o doutor Ney, que teria ingressado no esquema por meio da Operação Bandeirantes (Oban) e mantinha relações estreitas com o delegado Sergio Paranhos Fleury. Parte das operações também estaria ligada à chefia do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-CODI paulista no início dos anos 1970. O entrevistado coloca-se em vários acontecimentos importantes do período. Os principais casos foram: participação na reunião desse grupo de líderes quando decidiram eliminar Fleury, e Guerra teria sido indicado para a ação, mas posteriormente houve mudança nos planos e outros agentes concluíram o trabalho; atuação em duas tentativas frustradas de assassinato do jornalista Alexandre Baumgarten, sobre a qual revela detalhes da execução finalizada por outro grupo; apoio à chacina da Lapa (quando líderes do PCdoB foram executados), ocorrida em 1976, liderado por Fleury, doutor Ney e Perdigão; colaboração com o atentado do Riocentro, em 1981; criação de uma forma segura de eliminar cadáveres de torturados usando a fornalha de uma usina de açúcar em Campos (RJ), transportando e queimando corpos, com destaque para os dos militantes David Capistrano, Rosa Kucinski e seu marido Wilson Silva. A justificativa para os atos descritos é o anticomunismo. O agente afirma que era conservador e considerava o comunismo uma grande ameaça à sociedade. Em nome da luta de defesa do país e dos valores tradicionais, ele teria sido cooptado e passou a atuar em um grupo autodenominado de extrema direita. Não questionava as ordens, muitas vezes sequer sabia quem era a pessoa a ser executada, apenas cumpria, em nome do dever cívico e preservação do grupo que deveria estar incólume para continuar a defender a ordem. O texto usa o recurso da narração em primeira pessoa mesclada com explicações e detalhes factuais sobre ações, acontecimentos, órgãos e atores. As perguntas foram eliminadas e os jornalistas organizaram os capítulos por assuntos, indicando o recurso da edição pela qual a ordem original da entrevista foi remodelada. As notas no pé da página e no fim do livro completam algumas lacunas informativas. Muitas dúvidas surgem no decorrer da leitura, como, por exemplo, em relação à veracidade dos depoimentos e aos objetivos do policial que decidiu falar e denunciar. As lembranças do entrevistado nem sempre são precisas, muitas datas e lugares estão enevoados, há certa dificuldade para definir uma cronologia dos fatos. Por outro lado, ele tem certeza de rostos vistos há mais de trinta anos. A comprovação das informações apresentadas pelo ex-policial é parcialmente indicada pelo trabalho dos dois autores, Marcelo Neto e Rogério Medeiros, jornalistas experientes com longa trajetória de atuação em grandes veículos. Eles conviveram com o entrevistado durante quase dois anos, realizaram longa negociação dos termos do depoimento e do livro, checaram as informações em arquivos oficiais e de imprensa, confrontaram documentos oficiais produzidos por órgãos diferentes e que tratavam do mesmo caso, levantaram nomes, usaram livros publicados sobre os presos políticos, as prisões, torturas e mortes nas dependências do aparato repressivo, inclusive a obra Direito à Memória e à Verdade,3 usada para o entrevistado se lembrar de pessoas que matou ou dos cadáveres que transportou. Outro indício de veracidade pode ser encontrado na internet. Pouco tempo depois do lançamento da obra, Alberto Dines veiculou uma entrevista com o ex-policial e, por meio dela, é possível perceber as expressões faciais, as ênfases do depoimento, o tom de voz, a assertividade e os argumentos.4 No período de prisão, Guerra teria mudado de vida, converteu-se à fé cristã e se tornou pastor da Assembleia de Deus. Por isso, afirma querer resolver o passado de pecados, mas a reconciliação com Deus não foi considerada suficiente. Guerra declara que é preciso prestar contas aos homens, denunciar a estruturas desumanas e pedir perdão aos familiares dos mortos. Tornar-se cristão significaria, para ele, ajudar os familiares com informações e alguns detalhes para, quiçá, atenuar a dor da incerteza do que teria acontecido com os 3 BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à verdade e à memória. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007. 4Entrevista veiculada no programa Observatório da Imprensa e disponível na Internet no endereço: <http://www.youtube.com/ watch?v=pCBlh0NKs0o>. 2 Sigla em inglês do Exército Republicano Irlandês, no original Irish Republican Army. 206 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 205-207, out. 2012/mar. 2013. LOSNAK, Célio J. Memórias de um criminoso entes queridos desaparecidos. E como demonstração de disposição, Guerra já havia prestado depoimento a uma equipe de promotores públicos federais e a um delegado da Polícia Federal, tendo declarado que iria apresentar-se à Comissão da Verdade para dar mais informações além daquelas contidas no livro. Além disso, outro elemento de plausibilidade das informações é a riqueza de detalhes descritos sobre os bastidores das ações dos grupos clandestinos. E esses detalhes estão ligados a casos, lugares e a acontecimentos conhecidos, delineando lógicas já explicitadas, pesquisadas e narradas por presos e torturados políticos. Como último ponto, realço a validade do depoimento de Guerra relembrando Alessandro Portelli quando defende que a memória e a história oral se centram mais nos significados, nos sentidos da história do que nos detalhes factuais.5 Ainda assim, pairam dúvidas, principalmente pela falta de precisão factual em alguns momentos e ausências de fontes. O livro carece de metodologia de pesquisa e elaboração editorial. Não há relação de documentos consultados, arquivos visitados, livros lidos, pessoas entrevistadas, matérias jornalísticas publicadas que já apontavam a trajetória criminal do agente, falta também uma cronologia das datas dos julgamentos e períodos de prisão. A despeito desses problemas, várias questões são intrigantes. A primeira é sobre a participação de policiais civis nas operações. Ele argumenta que os militares não tinham grande experiência na investigação, de campanas nas ruas, interrogatórios e torturas. A polícia civil, sim, acumulava longa tradição dessas práticas legais e ilegais. Daí a colaboração de agentes civis principalmente da área de roubos e furtos. O delegado Fleury seria um expoente dessa colaboração. A segunda questão importante é a estratégia de queima de arquivo: matar membros dos grupos secretos que se tornariam perigosos para a segurança do esquema e para o SNI, em uma primeira fase, e para garantir o anonimato dos militares que poderiam ser denunciados, numa segunda fase, nos anos 1980. Os casos mais famosos seriam o assassinato do delegado Fleury e o do jornalista Baumgarten com detalhes estarrecedores. Guerra questiona o suicídio do doutor Ney e aponta falhas da versão oficial, menciona a eliminação de um grupo inteiro de policiais militares do Rio de Janeiro e narra a execução, por ele mesmo, do tenente Odilon, um especialista em explosivos e companheiro de trabalho. A terceira questão é sobre a participação de setores civis, empresários, artistas e jornalistas que financiaram e apoiaram as atividades repressivas, beneficiaram-se por esquemas legais e extralegais e eram coniventes às ações violentas. O livro sugere a participação intensa de empresários no financiamento das atividades clandestinas, questão já conhecida e divulgada pela bibliografia, mas a diferença são os indícios de que essa prática era muito mais comum do que se sabia e não ocorria apenas nos grandes centros. Enfim, a violência política teria apoio significativo de civis. Como último ponto, essas questões indicam que os grupos de repressão relatados por Guerra atuavam fora da lei, de maneira clandestina e criminosa, não só por negar os direitos legais dos presos políticos, e cometerem atentados de extrema direita que atingiam civis, mas por criarem um poder paralelo ao Estado e ao espaço público, realizando atividades típicas de crime comum, tais como assassinato, contravenção, tráfico, formação de quadrilha, escutas clandestinas. As arbitrariedades não se resumiam à prisão ilegal, à tortura e à morte forjada. Em nome do combate ao comunismo, qualquer estratégia era válida. Guerra revela que os agentes formados no esquema clandestino e ilegal apoiaram o Estado e, depois, com o processo de abertura, lutaram contra ele. Apesar de derrotados, depois do fim dos governos militares, passaram a atuar como criminosos comuns independentes e ainda hoje estariam organizados como “irmandade”. Passaram a usar a expertise para interesses privados, tais como assassinatos e explosões de encomenda, espionagem e escutas, atuação no jogo do bicho. O mais significativo do livro é a explicitação da tese de que, além de a ditadura gerar violência e autoritarismo nas instituições legais, recebeu apoio de segmentos da sociedade civil e criou grupos ilegais que permaneceram, anos depois, atuando como criminosos e à revelia do Estado democrático. 5 PORTELLI, A. O que faz a história oral diferente. Projeto História. São Paulo. n. 14, p. 25-39, 1997. p. 31. Célio José Losnak é historiador doutorado pela FFLCH/USP e professor da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (FAAC/UNESP). E-mail: <[email protected]>. Recebido para avaliação em março de 2013. Aprovado para publicação em maio de 2013. 207 Futebol, política e religião: a vingança do reacionário Resenha: MARQUES, José Carlos. O futebol em Nelson Rodrigues. O óbvio ululante, o Sobrenatural de Almeida e outros temas. 2. ed. São Paulo: Educ, 2012. 194p. ISBN: 978-85-283-0446-6. TOLEDO, Luiz Henrique de severamos sobre as ideias e ideais de nação, prática intermitente na história brasileira; a religião escancara a diversidade onde se contrapõem, se amalgamam e se fundem expressões religiosas as mais diversas, fruto das peculiaridades na formação de um país feito mestiço desde os tempos da colonização. Clamamos a intervenção dos santos e pastores por dias melhores, porém, mais do que essa demanda, convivemos com eles num pacto cultural assimétrico que não deixa de ser um exercício político posto a serviço das nossas convicções inabaláveis. Por fim, o que nos detém nesse texto, o futebol, consiste num fenômeno lúdico que se transformou num megaevento universal a enfeixar vontades torcedoras arrebatadas por milhares de clubes de futebol que compõem um mosaico de paixões a sociabilidade, dando alguns dos contornos mais nítidos do jeito de ser de um povo, de suas expressões estéticas, de seus manejos plásticos da língua, dos trejeitos corporais que se multiplicaram em expressividades que foram além das quatro linhas originalmente destinadas à prática daquele que em alguns países simplesmente recebe a denominação de esporte. Quem, já fatigado, nunca disparou em meio a pelejas verbais intermináveis com os amigos a frase decisiva e um tanto retranqueira, Futebol, política, religião não se discutem, na vã tentativa de dar cabo da artilharia contrária? Que potências misteriosas guardariam tal frase que atravessa nossos tempos e que, ao expressar a vontade sincera de alguém ansioso por encerrar uma discussão perdida numa acirrada conversa de boteco, acaba por produzir efeitos contrários, inflamando ainda mais as tomadas de posição dos demais interlocutores? Por que, ao afinal das contas, ao se supor o término da discussão proferindo tal máxima, muitas vezes o resultado acaba trazendo à tona e escancarando ainda mais posições ideológicas, ou convicções íntimas da fé ou ainda paixões clubísticas feéricas? E por que, ao final das contas, futebol, religião e política apareceriam como regiões intocáveis, verdadeiros tabus, que habitariam nossa subjetividade? Há algo de sacralizado em toda a frase. A política consiste na arena pública por excelência onde se dão os embates permanentes sobre as convicções que continuamente elaboramos e as209 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 209-211, out. 2012/mar. 2013. TOLEDO, Luiz Henrique de. Futebol, política e religião: a vingança do reacionário Nessa frase tão popular quanto profunda, estamos diante das potências simbólicas mais arrebatadoras que fazem – e tomo de empréstimo e modifico um título de livro do antropólogo Roberto Da Matta – o Brasil, Brasis. Profunda porque a uma penada parece totalizar o universo cultural que chega às nossas soleiras e invade nossa privacidade, salientando algumas das dimensões mais cruciais da experiência de ser brasileiro. Experiência e aventura tão bem capturadas por autores como Nelson Rodrigues em sua prosa visceral, agora dissecada por José Carlos Marques, que se pôs a investigar outro Nelson, o míope, porém, visionário cronista esportivo que arrebatou tantos e tantos leitores. José Carlos Marques mostrará que, para Nelson Rodrigues, o futebol está muito além dessa definição tecnicista, cientificista e empobrecedora porque não traça os melhores contornos do modo como clamamos por nosso jogo maior. Aqui, pois, o futebol instiga, mistura e convive com tantas outras dimensões da cultura, do político, do religioso. Apresenta-se, portanto, não como mais um esporte, mas peleja que se transforma num jogo da vida, daí a profundidade popular que o realoca numa frase tão sintética como aquela, tornando-o tão decisivo para a nossa existência quanto o governo dos homens e o governo dos deuses. Ao lado da política e da religião, portanto, se insistirmos em desvendar tal máxima, o futebol apareceria formando uma espécie de trindade cultural nacional. Mas o futebol pode ser tomado ainda como o governo da vontade popular. Vontade estética, corporal e existencial do homem comum que dita parte dos rumos da cultura e da ideia de nação dominada por poderosos representantes dos céus e da terra. Certamente, ninguém ousaria proferir adaptações da máxima, tais como Política, religião e vôlei não se discutem, em que pese importantíssima adesão popular conquistada por essa outra modalidade na história esportiva recente do país. Porque não se trata apenas de popularidade, algo facilmente mensurado em estatísticas expressas na frieza dos números. O futebol organiza, classifica simbolicamente, dinamiza a sociabilidade, produz continuamente as formas de adesão que invadem nosso cotidiano, nossa linguagem, nossa música, nosso gosto em dispor palavras e coisas, nossas formas de religiosidade e constitui, por fim, uma das linguagens da grande política travada pelo e no país. O legado do futebol no Brasil já está alinhavado no domínio popular, tal como assevera a aludida máxima, mas poucos como Nelson Rodrigues, aqui protagonista da escrita atenta de José Carlos Marques, deram tanta vazão e visibilizaram no fluxo da memória escrita tamanha vontade que, dispersa no cotidiano, poderia ainda suscitar alguma dúvida em relação à sua importância. Nelson soube reposicionar os rumos de uma cultura e celebrar um modo de viver inscrito na óbvia relação entre povo e futebol. E José Carlos Marques mostrará nesse livro como o tricolor Nelson atiçou todas as dimensões vislumbradas num jogo a partir do esmero da narrativa, ateando ainda mais fogo ao rico simbolismo cultural emanado pelo futebol no Brasil. O livro segue um movimento que parte do futebol como fato cultural para se centrar num recorte mais particular, o conjunto criterioso e expressivo de crônicas recolhidas pelo autor, e retorna para a argumentação mais geral que, por fim, reposiciona as crônicas esportivas rodrigueanas no registro mais expressivo e elevado dos fenômenos culturais brasileiros, donde aflora um particular nacionalismo – muitas vezes e mecanicamente tomado por reacionário. O futebol, cuja onipresença na sociedade brasileira se faz notar por inúmeras manifestações populares – e mais tardiamente eruditas, sobretudo, pela intelectualidade acadêmica, possivelmente uma das últimas frações da intelectualidade a redescobrir o futebol como fenômeno relevante – impacta Nelson desde sua infância. E a força de persuasão de suas crônicas, faz notar José Carlos, estão ancoradas num desequilíbrio mais estrutural e histórico, conceitualmente definido no livro como de longa tradição barroca, e que descortina o embate sem solução de continuidade entre razão e emoção. Razão e emoção que se engalfinham em vários níveis: primeiro, dentro da própria fatura mais geral da escrita rodrigueana, revelada com ineditismo por José Carlos a partir de uma bela análise semiológica das crônicas esportivas e, segundo, enunciando temas sociológicos ancorados em várias outras dicotomias, tais como esporte e jogo, futebol força e futebol arte, amadorismo e profissionalismo, mas também profano e sagrado, objetividade e subjetividade, tradição e modernidade, individualidade e coletividade, progressista e reacionário, e a já citada popular e erudito. A análise realizada com vivacidade por José Carlos revela todo o potencial expressivo desse desequilíbrio na profusão de figuras de linguagem como metáforas, metonímias, hipérboles que exageram e, por vezes, erotizam a narrativa esportiva. Daí o turbilhão quase descontrolado de imagens que com210 revistafaac, Bauru, v. 2, n. 2, p. 209-211, out. 2012/mar. 2013. TOLEDO, Luiz Henrique de. Futebol, política e religião: a vingança do reacionário põem a opção deliberada de Nelson pelo conotativo, enfatiza José Carlos, esse, aí sim, subversivo e transgressor recurso de escrita que incomoda a objetividade administrativa jornalística, mas cujo resultado acaba oferecendo ao leitor um modo de ler e perceber o futebol pelas lentes de uma grande angular, tornando-o ainda mais espetacular. Nelson promove um reles jogo em acontecimento extraordinário: jogadores se tornam titãs, a bola ganha subjetividade, o óbvio se torna singular, estádios ganham personalidade, partidas se elevam à condição de sagas mitológicas, instauram-se atemporalidades num esporte que, por força das regras, está confinado aos 90 minutos. E ao enunciar tais dicotomias dentro de uma tradição barroca impregnada de desequilíbrios, artificialismos e oximoros, José Carlos vai mostrando que Nelson, ao mesmo tempo, parece escapar a todas elas na medida em que inverte ou simplesmente brinca com suas valências valorativas, tal como faz notar o autor quando mostra que certas conveniências ditam seus argumentos que ora pendem para a emoção, ora para alguma razão. Exemplo claro disso é o modo como desdenha da tecnologia (o videoteipe, mas, sobretudo daqueles que fazem contínua e irrefletida apologia das técnicas para verificar a ocorrência de certas jogadas controversas), mas também, e por conveniência, reivindica-o para afirmar sua percepção que, de resto, é sempre guiada por sua apreensão subjetiva. Não importam os fatos e suas versões, mas o jogo assimétrico e contraditório que se instaura na relação entre eles, daí a falação interminável sobre uma partida porque, acima de tudo, em Nelson o futebol parece alcançar a narrativa mais sublime da eternização da controvérsia, razão última da apreciação estética das grandes jogadas, dos gols impossíveis, dos placares improváveis. O infinitesimal e o singular é que interessam, desconfia-se do coletivo, da ordem e do normativo, seja de direita ou de esquerda, pois Nelson desdenhou das patrulhas políticas, esportivas ou religiosas. E se reivindicou algum arroubo revolucionário foi justamente para recolocar o homem comum e sua sabedoria na fatura de sua prosa renovada. E se ainda, por motivos técnicos e táticos, tais singularidades (que não precisam necessariamente ser as jogadas) não brindarem uma partida, a narrativa se incumbe de inventá-las para bem do próprio jogo. E se nada de interessante ocorrer numa peleja que seja digno de nota, apela-se para a cusparada metafísica, convoca seres imaginados, tais como o Sobrenatural de Almeida, joga-se na trama da intertextualidade a convidar um Cervantes, um Camões, um Dostoievsk e tantos outros titãs da literatura para jogarem conosco e nas bases de nossa brasileira sabedoria vinda dos pés, um jogo decisivo e demasiado humano. Enfim, todo esse universo rodrigueano e sua potência narrativa são oferecidos por José Carlos Marques num texto tão leve quanto denso, recheado de bons insights que nos convida a retornar, sempre, aos jogos que nunca vimos, às jogadas que nunca fizemos nos campinhos e arrebaldes, ao segundo tempo daquela partida que jamais terminou com o trilar que saiu da boca de um árbitro. Luiz Henrique de Toledo é antropólogo, professor do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social e coordenador do Laboratório de estudos das práticas e sociabilidade (LeLuS) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: <[email protected]>. Recebido para avaliação em março de 2013. Aprovado para publicação em maio de 2013. 211