XISTO BAHIA: O MAIS IMPORTANTE ARTISTA BAIANO DO SÉCULO XIX Luiz Américo Lisboa Junior [email protected] Universidade Estadual de Santa Cruz A modinha é uma canção lírica e sentimental que surgiu no Brasil na segunda metade do século XVIII tendo em Domingos Caldas Barbosa, poeta e tocador de viola carioca seu maior representante. Durante todo o século XIX consolidou-se como a expressão máxima da música popular brasileira, principalmente na Bahia onde teve muitos adeptos e segundo alguns historiadores o seu local de origem, como bem demonstra o escritor italiano Vicenzo Cernicchiaro em sua obra Storia della musica nel brasile. A modinha floresceu na clássica Bahia, onde de resto, nasceu e criou-se. Atingiu o apogeu no século XIX, graças ao talento de muitos compositores, os quais escreveram elegantes modinhas quase todas caracterizadas por um constante acento apaixonado, expressivas, de amorável languidez e colorido muito meridional, ou melhor dito, genuinamente brasileiras” (Cernicchiaro, Vicenzo, 1926). Em que pese a afirmação em relação à origem da modinha, ela, porém robustece o conceito de que a Bahia proporcionou realmente o surgimento de uma notável geração de compositores e intérpretes respeitados em todo o Brasil, entre quais destacamos os irmãos Possidônio e Olegário da Silveira Sales, autores de, O canto do bardo, Não sei o que sinto n’Alma, Saudades de Maria; D. Augusto Balthazar da Silveira, Lamentos; Anacleto de Carvalho, Os dois anjos, A esperança, Gratidão, Lares que outrora habitei; Jose de Souza Aragão, também conhecido por Cazuzinha, A mulher cheia de encantos, A nebulosa, As baianas, Quero partir, Os sonhos, enlevo d’alma; Jose Bruno Correia, A vingança dos anjos, Nada possuo neste mundo; Francisco Magalhães Cardoso, Vai ó sensível saudade, De lá onde estás, Anjo do céu, Tu me matas, Se foi no doce de um cismar saudoso. Contudo, o mais importante artista baiano do século XIX, aquele que verdadeiramente iria consolidar nacionalmente a modinha, foi sem sombra de dúvida, Xisto de Paula Bahia, nascido em Salvador no dia 6 de agosto de 1841, filho do major Francisco de Paula Bahia e Teresa de Jesus Maria do Sacramento Bahia, sua infância e adolescência foi no bairro de Santo Antonio Além do Carmo, local de origem e dos mais freqüentados pelos principais compositores e seresteiros baianos, como Francisco Sepúlveda, Padre Guilherme Sales, D. Augusto Balthazar da Silveira e muitos outros. Essa convivência seria fundamental na formação do jovem artista que logo aos 17 anos iria iniciar timidamente sua carreira como cantor e violonista no teatro da rua São José. Apresentando suas primeiras modinhas, em 1859 inscreve-se como amador no grupo teatral Recreio Dramático, cujo presidente era Jose Maria da Silva Paranhos, futuro Visconde do Rio Branco e logo depois ingressa como corista na companhia lírica Clemente Mugnai, que tinha entre suas principais figuras o tenor Giovani Bichi e a soprano Lygia Donatti, apresenta-se no teatro São João e depois participa do elenco de uma companhia organizada por seu cunhado Antonio da Silva Araújo seguindo em excursão pelas principais cidades da província. Esta experiência inicial lhe foi muito útil, pois possibilitou um maior contato com diversas platéias, proporcionando uma maior desenvoltura no palco e aprimorando sua arte de cantar e representar. De volta a capital em 1861 passa a fazer parte do elenco da companhia organizada pelo comendador Constantino do Amaral Tavares, diretor do Teatro São João, onde teve a oportunidade de demonstrar o aprendizado adquirido nesses primeiros anos, sendo, portanto aplaudido com muito sucesso. Destacando-se em seu Estado como artista de talento promissor, Xisto Bahia recebe um convite para trabalhar na Empresa Colás & Couto Rocha, cujos proprietários eram o maestro maranhense Francisco Libanio Colás e o ator Jose Couto Rocha, e com eles segue em viagem pelo Nordeste e Norte apresentando-se em 1863 em São Luis, acompanhado de grandes artistas da época, como o ilustre ator português Luiz Candido Furtado Coelho, a aplaudidíssima Eugenia Câmara, além de Joana Januária de Souza Bitencourt, Antonio da Fonseca Teixeira Leão, Vicente Pontes de Oliveira, que seria depois dono de uma das mais conceituadas companhias teatrais do país, Antonio Teixeira de Carvalho Lisboa e Joaquim Infante da Câmara. Do Maranhão o grupo seguiu para Belém, no Pará, realizando temporada no antigo Teatro Providência. Em 1864 Xisto Bahia, faz algumas apresentações em Recife e retorna a Belém, realizando curta temporada entre os meses de abril e maio, dessa vez como integrante fixo da empresa de Vicente Pontes de Oliveira. Dois anos depois em 1866 ao apresentar-se pela primeira vez em Fortaleza, no Ceará, deixa-se levar por forte nervosismo, conseqüência, talvez do excesso de trabalho e fracassa em sua apresentação, conseguindo, porém, a tolerância do publico. Recuperase e algum tempo depois, sob a direção de Joaquim Augusto e ouvindo os conselhos do crítico Joaquim Serra, realiza brilhantes apresentações em São Luis e retorna ao Ceará, recebendo desta vez a consagração da platéia. No mesmo ano estréia em Recife no Teatro Santa Isabel a comédia Sempre são primos do acadêmico paraense Casemiro Borges Godinho de Assis, e no início de 1867 entre os dias 6 e 10 janeiro apresenta a mesma comédia em Belém. Após dez anos fora de sua terra natal, Xisto Bahia retorna em 1873 a Salvador em triunfo, ingressando na Companhia de Mágicas de Lopes Cardoso, que viria a ser posteriormente o fundador do jornal Diário de Notícias, apresentando pela primeira vez em sua cidade no Teatro São João, uma peça de sua autoria, intitulada, Duas páginas de um livro, de conteúdo abolicionista e republicano e que já havia sido apresentada em Belém no Teatro Providência em 1871 e impressa no Maranhão em 1872. Sua temporada na Bahia, no entanto é curta, e de volta a Companhia de Vicente Pontes de Oliveira, retoma em 1874 as viagens ao Nordeste e Norte, apresentando-se em diversas capitais e estreando pela primeira vez no Teatro Chalet, em Belém, que havia sido inaugurado em17 de agosto de 1873. Mesmo com todo o sucesso obtido em suas inúmeras apresentações pelas principais cidades do Norte e Nordeste, a consagração de qualquer artista em sua época, só estaria completa depois de conquistar as platéias do Sul do país, e neste caso, diga-se, o Rio de Janeiro, capital do Império e centro cultural da nação, local para onde se dirigiam as principais companhias nacionais e estrangeiras, possibilitando um contato maior com os grandes artistas e apresentação nos famosos teatros da Praça Tiradentes, além é claro da repercussão na imprensa, que era fundamental para consolidar uma carreira. Assim, não restava outra opção a Xisto Bahia, a não ser, mostrar aos cariocas todo o seu talento e confirmar o sucesso já obtido em outras praças. Sua estréia no Rio de Janeiro se deu no Teatro do Ginásio em 1875 junto com o grupo de artistas da Empresa Pontes de Oliveira, onde se incluía a atriz baiana Clélia de Araújo, apresentando-se com grande destaque. Mesmo sem se estabelecer de maneira definitiva na capital do país, e continuando suas inúmeras viagens, a presença de Xisto Bahia no Rio de Janeiro foi logo percebida por um dos maiores homens de teatro do Brasil no século XIX o celebre Arthur Azevedo autor da peça Uma véspera de Reis na Bahia, que tinha em Xisto o ator principal, tornando-se num sucesso absoluto em várias cidades e capitais Brasileiras. Sobre a origem desta famosa peça é digno de nota o comentário de Vicente Sales, em seu livro, A Música e o tempo no Grão Pará: Joaquim Infante da Câmara pedira a Azevedo, para representar na noite de seu benefício, uma peça que se passasse na Bahia e que tivesse um papel de moleque destinado a ele. Xisto Bahia reforçou a solicitação sugerindo ao comediógrafo a figura de um tabaréu, para ele. Francisco Libanio Colás, maranhense como Arthur Azevedo e que era maestro da empresa Vicente Pontes de Oliveira comprometeu-se a escrever a partitura, dando a sugestão que a lição se passasse durante as festas de Reis, na Lapinha. Mas Arthur Azevedo achando boa a idéia lembrou que não poderia escrever a comédia já que não conhecia a terra onde a ação teria de ser desenrolada (Sales, Vicente. 1980). O fato de Arthur Azevedo não conhecer a Bahia não se constituiria em impedimento para a realização da peça, pois Xisto lhe daria todas as informações que precisasse, e assim feito, conclui-se então Uma véspera de reis. Depois de escrito e revisado o texto foi levado para a apreciação de Joaquim Câmara e Libanio Colás que o aprovaram, ocorrendo a sua estréia em Salvador no dia 15 de julho de 1875 depois de ter passado pelo crivo de Ruy Barbosa que na época ocupava a presidência do Conservatório Dramático. A sua apresentação no Rio de Janeiro, contudo, só aconteceu seis anos depois em 1881 merecendo de Arthur Azevedo um comentário acerca da performance de Xisto Bahia no papel do tabaréu Bermudes Não reconheci o tabaréu que inventara. No texto o personagem estava apenas indicado; o ator dera-lhe tudo quanto faltava, a principiar pelos vícios de linguagem, que tão hilariante o tornavam. Esbocei apenas o tipo, Xisto Bahia corrigiu o desenho, acentuou os contornos e deu-lhe um colorido admirável. Das minhas mãos inábeis naquela noite em claro, na rua da Conceição saíra um títere articulado, Xisto Bahia fez-lhe dentro uma alma, deu-lhe uma fisionomia penetrante, tornou-o profundamente humano. Aquele papel não era representado: era vivido. Depois dessa primeira representação d”A Véspera de Reis, no Lucinda, fiz ver ao artista que o seu nome tinha o direito de figurar como o de um co-autor da peça. Ele protestou, não consentiu que eu lhe desse metade dos aplausos que a generosa platéia fluminense dispensava ao comediógrafo, nem metade dos direitos de autor (Sales, Vicente.op. cit.). O ano de 1878 foi de glórias para Xisto Bahia e para as artes em Belém no Pará, com a inauguração em 15 de fevereiro do Teatro da Paz, na presença do presidente da província, inúmeras autoridades e uma platéia que lotou as 1.100 cadeiras do teatro. A solenidade começou às 8:00 horas da noite com a apresentação de inúmeras bandas, a execução do Hino Nacional regida pelo maestro Francisco Colás, secundada pela marcha intitulada Grão Pará. Após o intervalo seguiu-se a apresentação da peça As duas órfãs do original de A. Ennery em 5 atos e 8 quadros, representada pelos atores da Companhia Vicente Pontes de Oliveira, com destaque para as atrizes, Emília Câmara, Manuela Lucci e Xisto Bahia. Sob os auspícios da presidência da província a companhia dirigida pelo ator Pontes de Oliveira, permaneceu em Belém até dezembro de 1878 onde apresentou um total de 126 récitas. Em 1879 Xisto Bahia retorna mais uma vez a Salvador, faz algumas apresentações e viaja para o Rio de Janeiro onde se estabelece definitivamente, cumprindo assim uma etapa brilhante de sua carreira, que iria consolidar-se na capital do império. Atuando no conjunto de Furtado Coelho apresenta em 1880 a peça Os perigos do coronel, comemorativa a batalha do Riachuelo, na platéia estava o Imperador Pedro II que entusiasmado pela atuação de Xisto, escreve à condessa de Barral. Citado por Afonso Ruy em, boêmios e seresteiros do passado. Gostei de um cômico chamado Xisto Bahia, creio que é baiano, numa espécie de imitação de “Lês Jurons de Cadrac”. Lembra-se do Coquelinet e da Favart? Intitula-se “Os perigos do Coronel”. Declamou com muito talento a descrição da Batalha do Riachuelo. (Ruy, Afonso 1954). Em 1883 Arthur Azevedo juntamente com o cronista Moreira Sampaio escrevem a peça cômica O Mandarim, com um prólogo, 3 atos e 11 quadros, cujo tema versava sobre a chegada do imigrante chinês Tchin-Tchan-Fó que vem verificar a possibilidade de trazer outros imigrantes para trabalharem na lavoura em substituição da mão de obra escrava, assunto amplamente discutido pela imprensa em função da cobrança por parte dos abolicionistas da libertação dos escravos. A estréia deu-se no dia 9 de janeiro de 1884 no teatro Príncipe Imperial, na Praça Tiradentes e Xisto Bahia interpretava o Barão de Caiapó, guia do mandarim, numa alusão a João Jose Fagundes Resende e Silva, figura popular e muito esnobe, que contrariado com a paródia sobre si, queixa-se a polícia solicitando a suspensão da peça, não logrando êxito e com isso, sem o saber, concorrendo ainda mais para o sucesso do espetáculo. Corria o ano de 1887 e Xisto Bahia encontra-se desiludido da atividade teatral, mesmo com todo o reconhecimento conquistado pelo Brasil, sua vida era muito difícil, a atividade artística não lhe proporcionava uma independência financeira, e isso o deixava depressivo, pois não tinha outra alternativa a não ser representar e cantar suas modinhas para sobreviver, por outro lado decepcionava-se com o ambiente que lhe dera fama, incomodava-se com a falta de ética e o aspecto meramente mercantil que grassava nos bastidores dos teatros entre agentes e organizadores de temporadas, ressentia-se com o aspecto moral das peças e revistas, criticava o excesso de estrangeirismos em detrimento de nossos costumes, relatando todo esse desencanto em uma carta, dirigida ao amigo e ex-colega de profissão Tomaz Antonio Espíuca, que após terse afastado do teatro a fim de cursar a faculdade, escreve-lhe consultando-o sobre a possibilidade de retornar aos palcos, sendo desencorajado por Xisto através de palavras amargas, logo ele, que proporcionou alegrias a tanta gente. É um documento importante, pois seu conteúdo é muito significativo porque não só demonstra o perfil e o espírito do artista, como também descreve aspectos pouco conhecidos dos bastidores teatrais no século XIX. Em um de trechos ele faz uma critica veemente às nefastas praticas comerciais que grassavam na ocasião afirmando que: O teatro, isto é, a arte é uma traficância, um negócio de balcão, uma feira de novidades em que a imprensa faz de arlequim à porta da barraca, anunciando e pufiando as sumidades conforme as gorjetas dos contratadores. Essas novidades ambicionadas a todo o momento são estrangeiras. (Ruy, Afonso. op. cit) Adiante fala da decadência que grassava o teatro, critica-o, e faz uma confissão devastadora no que diz respeito às dificuldades que enfrentava para sobreviver com dignidade, o demonstra como deveria ser difícil viver exclusivamente de arte no Brasil em fins do século XIX. Devia ficar para poder comer e dar de comer aos meus; agitar-me nesta existência dolorosa, para não fenecer a míngua de trabalho. Foi-me então necessário agitar os guisos de palhaço, afivelar o cinto de lantejoulas e dar o grande salto mortal da opereta. E que é afinal a opereta? Um engodo, o mistifório ao sabor do público, que adora de preferência tudo quanto corrompe e decai. (Ruy, Afonso. op. cit.) Depois continua referindo-se as concessões que teve que fazer para manter-se em atividade, atuando em peças menores, de nível duvidoso, da exploração a que era submetido e num desabafo expõe toda a sua amargura e desencanto com a atividade teatral deixando exposto sua revolta diante do que tinha de submeter-se. Tu nunca depravaste a arte, tu, nunca deste cambalhotas, tu nunca concorreste para a desmoralização dos teus colegas, ao contrário, foste vitima como eu dos gaviões, das rapinas daqui.(Ruy, Afonso. op. cit) Por fim o aconselhamento inevitável, profundamente amargo: Queres voltar? Queres comer novo pão ainda mais amargo e duro do que o já comeste? Sentes-te animo? Ah! não venhas eu t’o peço. Como teu amigo velho e prático nestas coisas teatrais, faço a mais descarnada e franca oposição ao teu regresso. Se me venceres na luta ficarei satisfeito por teres acertado; se fores derrotado, lamentar-me-ei por não me teres ouvido. (Ruy, Afonso. op. cit) Apesar do momento difícil porque passava, Xisto Bahia continua firme empolgando platéias, e a sua experiência em ter conhecido e atuado nos melhores teatros do país, lhe credenciou a receber ainda em 1887 o convite da Empresa Dias Braga para dirigir o Teatro Lucinda, portanto, no dia 16 de março na função de ator e administrador, apresenta a revista de Arthur Azevedo, Mercúrio, mistura de romance e mitologia. Com um prólogo, 3 atos e 12 quadros tinha música de Adolfo Lindner, Gomes Cardim e Abdon Milanez. Xisto Bahia interpretava um malandro acompanhado por um grande elenco destacando-se nomes como, Correia Vasques, Cinira Polonio, Blanhe Grau e Alfredo Peixoto. Sob a sua direção o Teatro Lucinda passa a ser o primeiro do Rio de Janeiro a ter iluminação elétrica, o que foi um feito notável para a época, sua atividade artística é constante, e seu nome é um dos maiores entre todos os atores e cançonetistas do império, em 3 de janeiro de 1888 no teatro que administrava, estreava o espetáculo O Homem, da autoria de Arthur Azevedo e Moreira Sampaio, baseada num romance de Aluísio de Azevedo. Representada em prosa e verso a peça continha 3 atos e 10 quadros e música muito variada contando inúmeros compositores, entre eles, Frederico Cardoso de Meneses, que viria se tornar num dos maiores revistógrafos do país nas duas primeiras décadas do século XX e pai da afamada pianista Carolina Cardoso de Meneses. Na peça, Xisto Bahia fazia mais uma vez a figura de um malandro, contando ainda com o acompanhamento de Machado Careca, Cinira Polônio, Blanche Grau, João Colás, Antonio Joaquim de Matos, Anna Manarezzi, Augusto Mesquita e Germano Alves de Oliveira. Espírito irrequieto, mas também necessitando sobreviver Xisto Bahia não se contentava a ficar apenas no Rio de Janeiro, aceitando convites para se apresentar em outros lugares, e assim é que vamos encontrá-lo em Piracicaba, no Estado de São Paulo, ainda em 1888, onde representou e cantou modinhas ao violão. Sobre essa apresentação a Gazeta de Piracicaba, fez o seguinte comentário assinado por um jornalista ou crítico com o pseudônimo de O. Dilettanti: “Xisto é um cavalheiro extraordinário: reúne ao dom de uma fisionomia, um aspecto, singulares, fortes, um tom de melancolia, que cativa e no sexo amável abre uma brecha imensa, como a uma muralha de pedra não o faria a maior artilharia” . (Revista de Teatro da SBAT, N. 329, 1962). Em 1889, após um período de desgaste do Império, as forças políticas descontentes com o governo e apoiadas por boa parte do exercito, depõem o Imperador Pedro II, levam-no ao exílio juntamente com a família e em 15 de novembro o Marechal Deodoro da Fonseca, proclama a República, instituindo um governo provisório e mudando definitivamente os destinos da nação. Apesar das profundas transformações que estava passando o país, a ordem social não seria imediatamente afetada, e a normalidade estava pelo menos em tese garantida. Alguns meses depois da instauração do novo regime político, mais precisamente em 26 de março de 1890, estreava no Teatro Variedades Dramáticas, a peça de Arthur e Aloísio de Azevedo, denominada de A República, estruturada em um prólogo e 13 quadros, com um repertório variado regido pelo maestro Adolfo Lindner com música de sua autoria e vários compositores, como, Henrique Alves de Mesquita, Carlos Gomes, Francisco Manoel da Silva, Offenbach, Charles Lecoqc, Abdon Milanez, Jose Simões Jr., Francisco Carvalho, Serpetti, Chueca e Valverde, Louis Varney, Francisco Braga e Francesco Asenjo Barbieri. Muitas das canções apresentadas foram interpretadas com o talento de sempre por Xisto Bahia. A peça tinha direção de Machado Careca e Guilherme da Silveira, além de um corpo de baile sob a responsabilidade de Edmond Audron e cenários de Orestes Coliva e Carrancini. Além de Xisto Bahia atuaram os artistas, Rose Villor, no papel da República, Clélia de Carvalho, representando a Monarquia e Felipe Martins interpretando o Brasil. Para uma melhor compreensão desta peça e sua repercussão, vejamos o que diz, Salvyano Cavalcanti de Paiva, em seu livro, Viva o Rebolado – Vida e morte do teatro de revista brasileiro: Desde o primeiro quadro prestava homenagem a República, à Estátua da Liberdade implantada no porto de Nova York e a o ouro. Havia uma crítica a especulação financeira dos banqueiros da Alfândega Street, clara alusão aos “amigos” ingleses. Descrevia a importância da imprensa na propaganda republicana e o incêndio do gasômetro. Um quadro criticava a concentração de bookmakers no Largo de São Francisco e outro reproduzia a extravagância histórica do último baile da Ilha Fiscal, oferecido aos marinheiros de uma fragata chilena surta no porto, nas antevésperas da Proclamação.Todo o clima de júbilo não impediu que a revista, pouco após a estréia, sofresse as iras da censura do Governo Provisório. Foi cortado um quadro que aludia ao derrame de patentes, nomeações políticas de oficiais despreparados para as Forças Armadas. Arthur Azevedo em revide, publicou o texto do quadro em um jornal no qual colaborava. (Paiva, Salvyano Cavalcanti de. 1991). O Brasil muda seu regime de governo, contudo, as forças opressoras que assumem o país se mostram incapazes de conviver com a democracia e instauram a censura no intuito de impedir a nossa expressão de liberdade artística, como se isso fosse capaz de interromper o senso crítico e enfraquecer a caricatura e a leitura que tanto a música como o teatro e a literatura, faziam em relação às atitudes de nossos governantes, a história, contudo nos mostrou que isso era impossível. Apesar de seus esforços em manter-se na profissão, Xisto Bahia desencantado resolve abandonar a ribalta e afasta-se do palco em 1891 indo trabalhar a convite do presidente do Estado do Rio de Janeiro, Francisco Portela como amanuense na penitenciária de Niterói, cargo que ocupou até 1892, não só pelo fato do presidente, seu protetor ser demitido do cargo, mas provavelmente por ser uma atividade incompatível com seu talento e arte. Eis que o ano de 1892 marca a estréia no dia 16 de junho no Teatro Apolo da revista O Tribofe, mais uma vez escrita por Arthur Azevedo, com música de Assis Pacheco então em início de carreira e que viria a ser mais adiante um dos maiores compositores do teatro de revista brasileiro, a estrutura da peça era formada por 3 atos e 12 quadros. Xisto Bahia faz parte de um grande elenco que representavam 74 personagens, narrando a história de uma família de São João do Sabará, interior de Minas Gerais, que vinha ao Rio de Janeiro procurar o noivo da filha de um fazendeiro, um caixeiro viajante que havia seduzido a moça e desaparecido. Neste mesmo ano Xisto Bahia recebe um convite do empresário português Souza Bastos para apresentar-se em Lisboa em uma temporada no Teatro das Novidades, que infelizmente não pode se realizar devido a Revolta da Armada ocorrida em setembro, por fim, apresenta-se pela última vez na peça O Filho do Averno, de Arthur Azevedo, levada a cena no Teatro Apolo, onde representou o papel de São Bernardo ao lado do ator Vasques e das atrizes baianas Isabel Porto e Clélia Araújo. Com a saúde debilitada afasta-se de suas atividades e passa a residir na cidade de Caxambu, em Minas Gerais, vindo a falecer em 30 de outubro de 1894, deixando viúva a atriz portuguesa Maria Vitória de Lacerda Bahia e quatro filhos, Augusto, Maria, Teresa e Manuela, sendo relembrado e homenageado por Arthur Azevedo, seu grande amigo e admirador, que após dois anos sem escrever uma única peça, retorna com a revista O Major contendo 3 atos e 13 quadros, cuja estréia se deu no dia 3 de maio de 1895 relatando em seu enredo os principais acontecimentos do ano anterior, inclusive uma emocionante homenagem levada a cena por todo o elenco a Xisto Bahia. A obra do notável artista baiano traduz-se não só por suas atuações no palco, mas também pelo talento de suas modinhas e lundus, sendo a mais famosa de todas, o Quis debalde varrer-te da memória, um clássico do gênero, e uma das mais famosas em sua época, sendo executada não somente por seu autor, como também pelos mais importantes cantores de seu tempo, os belos versos são do poeta pernambucano Plínio de Lima. Quis debalde varrer-te da memória E o teu nome arrancar no coração Amo-te sempre...Oh! Que martírio infindo! Tem a força do luar esta paixão Eu sentia-me atado ao teu prestígio Por grilhões poderosos e fatais Não me vias sequer, te amava ainda Motejava de mim, te amavas mais Tu me vias sorrir os prantos d’alma So confia-se a Deus e à solidão Tu me vias passar calmo e tranqüilo Tinha a morte a gelar-me o coração Quantas vezes lutei com o sentimento Quantas vezes corei de minha dor! Quis até te odiar, te amavas sempre Sempre, sempre a esmagar o meu amor! Sofri muito por ti. Às minhas trevas Nem um raio de amor deste sequer Tu sorrias feliz, quando eu chorava E eu chorava só por te amar, mulher! Não consigo apagar-te da memória Nem teu nome arrancar do coração! Amo-te sempre! Oh! Que martírio infindo! Tem a força da morte esta paixão. Sobre esta canção e o talento musical de Xisto Bahia, Guilherme Pereira de Mello em seu livro em A música no Brasil, faz o seguinte comentário. Pela análise do Quis debalde varrer-te da memória, verdadeira epopéia de seu sentimento lírico, vê-se com que delicadeza ele percorria todas as gradações do sentimento melódico, ora majestoso nos graves, ora delicado nos agudos, ora encantador nas modulações, ora sublime nas falsas, ora agindo num movimento patético, ora ainda extasiado numa firmata! É também de admirar a naturalidade com que ele encadeava as frases e desenvolvia um tema, como se fosse um artista consumado e sem conhecer uma só regra de composição! Não haverá por certo no mundo, artista nenhum que se desdenhe assinar o seu Quis debalde... uma vez que no gênero ele é em nada inferior a seus similares. [...] Sempre uniforme, inspirado em toda a modinha, parece que o Dr. Plínio de Lima, autor da poesia comunicara a Xisto as chamas de seus afetos, razão pela qual ele fora tão bem interpretado. Sem isto, talvez que Xisto jamais tivesse logrado a sagração de cantor e compositor brasileiro, pois que ele não era, propriamente um artista musical, e sim um simples trovador. Parece que a arte, o estro, o sentimentalismo musical ingênuo do povo brasileiro, personificaram-se em Xisto, ao fazer a música Quis debalde [...] (Mello, Guilherme Pereira de 1947.) Xisto Bahia foi o maior artista de teatro e cantor de modinhas do século XIX, seu desaparecimento com apenas 53 anos e a fama conquistada reafirma essa assertiva, tornou-se famoso de Norte a Sul do país numa época em que os deslocamentos eram difíceis, seu nome e sua fama tornaram-no referencial na arte de interpretar e representar, foi aplaudido por gente simples e pelas mais altas autoridades, graças a seu talento ajudou o teatro popular brasileiro a alcançar maturidade adentrando o século XX consolidado. Viveu um período de grandes transformações na sociedade e na vida do país, acompanhou o auge do Império e o nascimento da República, contribuiu de forma decisiva para que modinha se transformasse em nosso ritmo mais popular e percebeu também o crescimento do choro, deixando com seu legado o caminho aberto para a consolidação da música brasileira nos centros urbanos, sendo neste campo um de seus maiores impulsionadores. Quando parte deixa também a música e as artes da Bahia órfãs, contudo o Estado já estava com sua trajetória traçada, e o Rio de Janeiro, passa a ser definitivamente o grande palco dos acontecimentos artísticos, e para lá se dirigem outros artistas baianos, a fim de brilharem tanto quanto seu conterrâneo ilustre são novos tempos, a história da música popular brasileira caminha para seu período mais fértil, a fim de confirmar-se como a maior expressão cultural de nossa gente, mas, sem esquecer seu maior incentivador, o mulato baiano Xisto Bahia, glória das artes nacionais. REFERENCIAS CERNICHIARO, Vicenzo. Storia della musica nell Brasile. Milão, Itália: Fratelli Riccione, 1926. LISBOA JUNIOR, Luiz Américo. A presença da Bahia na música popular brasileira. Brasília: Lin-há Gráfica Editora e Musimed Editora e Distribuidora Ltda., 1990. MELLO, Guilherme Pereira de. A Música no Brasil – desde os tempos da colônia até os primeiros decênios da república. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1947. PAIVA, Salvyano Cavalcante de. Viva o rebolado – vida e morte do teatro de revista brasileileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991. RUY, Afonso. Boêmios e seresteiros do passado. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1954. SALES, Vicente. A música e o tempo no Grão Pará. Belém, PaRá: Conselho Estadual de Cultura, 1980. Períodicos Revista de Teatro do SBAT – Sociedade Brasileira de Autores Teatrais. Número 329 – 1962.