Análise ultrassonográfica quantitativa da produção de encontros consonantais realizadas por crianças típicas e atípicas Autores: ALINE MARA DE OLIVEIRA VASSOLER, LARISSA CRISTINA BERTI, Palavras Chave: Fonoaudiologia; Transtornos da Articulação; Fonética Introdução Em um panorama mundial, e mais recentemente no Brasil, a ultrassonografia do movimento de língua tem ganhado popularidade junto aos fonoaudiólogos e linguístas, pois além de ser uma ferramenta altamente funcional para analisar o movimento da língua durante a produção da fala, possibilita a visualização de diferentes planos (sagital, coronal e oblíquo) em tempo real. O ultrassom permite ao fonoaudiólogo realizar análise articulatória da produção de fala do sujeito, tanto no processo de avaliação, quanto ao longo do processo terapêutico1. É uma técnica não invasiva, segura, rápida e de baixo custo (se comparado à outras tecnologias tais como Imagem de Ressonância Magnética (MRI), os Raios-X, o Micro raio-X e a Ressonância Magnética)2. Entretanto, é importante frisar que os procedimentos metodológicos e de análises da imagem ultrassonográfica ainda não são um consenso na literatura e devem ser estudados e aprimorados cientificamente, para assim, alcançar a eficácia da técnica no contexto clínico. Para esse estudo, optou-se por estudar a produção fônica do padrão silábico CCV (consoante, consoante, vogal) realizados por crianças com desenvolvimento fonológico típico e atípico. Por se tratar de um padrão silábico complexo se comparado a outros tipos silábicos (CV ou VC), as crianças adquirem a sílaba CCV mais tardiamente durante o processo de aquisição fonológica, sendo que algumas delas, não conseguem adquiri-lo na idade esperada, reduzindo a sílaba CCV para CV3-4. Baseados na ultrassonografia de língua, recente estudo tem mostrado que produções de encontros consonantais julgados como simplificados, apresentam um gesto de ponta da língua de menor magnitude, embora a sua presença não seja resgatada pelos ouvintes5. Por meio de dados ultrassonográficos provenientes da fala de 10 adultos falantes da língua persa, o estudo buscou investigar esse fenômeno fonológico da fala habitual que ocorre nas coronais precedidas de obstruintes ou nasais. A medida articulatória utilizada (a distância entre a trajetória da língua e palato) permitiu mensurar a magnitude do gesto de /t/, que auditivamente parecia excluído, porém ainda estava presente, ora com a magnitude reduzida, corroborando a previsão da Fonologia Gestual. O autor encontrou, ainda, diferentes graus de redução do gesto /t/: completo, parcial e zero. O estudo mostrou que nesse fenômeno fonológico da língua persa aparece tanto a sobreposição gestual como gesto de [t] com magnitude reduzida. Verifica-se, pois, que este estudo corrobora dois princípios da Fonologia Gestual: o uso de unidades gestuais como primitivo de um modelo fonológico com a incorporação das propriedades dinâmicas dessas unidades, assim como seu processo de coordenação. Pelo fato da análise ultrassonográfica da simplificação de encontros consonantais referir-se à fala adulta, não é possível uma completa generalização desses achados para a simplificação de encontros consonantais presentes na infantil. As hipóteses assumidas são a de que: (1) a produção de CV e CCV de crianças atípicas apresentariam diferentes medidas ultrassonográficas, ainda que as produções de CCV sejam julgadas auditivamente como CV; (2) medidas ultrassonográficas poderiam diferenciar a produção das crianças típicas e atípicas. Objetivo Dada à escassez de estudos ultrassonográficos com a população infantil, o objetivo foi o de caracterizar a produção de encontros consonantais de crianças com desenvolvimento fonológico típico e atípico, com o uso da ultrassonografia. Métodos O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Filosofia e Ciências – UNESP/Marília, sob o protocolo de nº 0974/2014. Participaram do estudo 10 crianças, sendo 5 crianças com desenvolvimento típico e 5 com desenvolvimento atípico (ou seja, apresentando redução dos encontros consonantais). As crianças gravaram um corpus com 10 pares de palavras contendo o padrão silábico CCV e CV: broa/boa, prato/pato, prego/pego, pressa/peça, bruxa/bucha, branco/banco, frita/fita, grato/gato, troca/toca, troco/toco6. As gravações foram obtidas por meio de um aparelho de ultrassom portátil (modelo DP 6600), localizado numa cabine tratada acusticamente com os seguintes equipamentos: microfone unidirecional, transdutor micro-convexo acoplado a um computador e um estabilizador de cabeça 7. O software AAA (Articulate Assistant Advanced) foi utilizado para capturar e analisar as imagens ultrassonográfica do contorno da língua8. O total da amostra de fala foram de 600 gravações (3 repetições x 20 palavras x 5 crianças atípicas + 5 crianças típicas). As produções de fala das crianças foram submetidas ao julgamento perceptivoauditivo de três juízes especialistas. No caso das crianças típicas, todas as produções foram julgadas como corretas, sendo 150 julgadas como CCV e 150 como CV. Já no caso das crianças atípicas, as 300 produções analisadas pelos juízes foram analisadas como CV, sendo que 150 repetições foram classificadas como “redução do encontro consonantal” (ou seja, a criança substituiu CCV para CV) e 150 como CV. Para a análise ultrassonográfica, inicialmente, realizou-se uma inspeção visual das gravações a fim de descartar as imagens com problemas na qualidade da imagem. Em seguida, o contorno da língua foi desenhado de forma semi auto-automática por meio de recursos proporcionados pelo AAA. As medidas articulatórias adotadas foram: distâncias da ponta, dorso e raiz de língua até o limite da imagem do ultrassom e área entre a ponta e o dorso de língua. O ponto de referência fixa adotado para as medidas foi o limite inferior da imagem do ultrassom, uma vez que esse ponto é sempre o mesmo em todos os sujeitos, independente do tamanho do trato vocal, como pode ser visto abaixo: Distância entre o limite inferior da imagem até o contorno de língua de ultrassom na fan que corresponde à ponta de língua . Figura 1: As setas indicam a distância mensurada pelo AAA, sendo da direita para a esquerda as fans correspondem à ponta de língua; ao dorso de língua e à raiz da língua. As medidas articulatórias foram realizadas em um único frame. O frame utilizado para realizar as medidas articulatórias foi detectado automaticamente pelo AAA dentro de um intervalo de sete frames (da C1 até a vogal seguinte), seguindo o critério de ponto máximo de constrição da língua. As medidas articulatórias foram submetidas ao teste estatístico Variância de dois fatores (ANOVA) para medidas repetidas. As variáveis dependentes foram as três medidas articulatórias de distância (a ponta, o dorso e a raiz de língua) e uma de área (entre a ponta e o dorso de língua). Os fatores independentes considerados foram a condição clínica dos sujeitos (típico e a atípico) e o contexto vocálico e os fatores intragrupo foram o padrão silábico e as repetições. O teste Bonferroni foi utilizado como post hoc. O nível de significância foi de p<0,05. Resultados Com relação às medidas de distância que envolve a região da ponta da língua, obteve-se significância para o padrão silábico, [F(1,8)=10.31, p<.001], bem como para as interações entre: (1) repetições x condição clínica [F(2,1)=6.06, p<.002]; (2) padrão silábico e condição clínica [F(1,8)=14.38, p<.0002]; (3) padrão silábico e contexto vocálico [F(9,8)=2.05, p<.043]. O teste post hoc mostrou que as crianças típicas diferenciaram as sílabas CCV de CV (p<.000). Entretanto, as crianças atípicas não diferenciaram as sílabas CCV (p<.058) e CV (p<.250). As medidas de distância que envolvem as regiões de dorso e da raiz da língua não se mostraram sensíveis para diferenciar CCV de CV em nenhum dos grupos de crianças. No tocante à medida de área (entre a ponta e o dorso da língua), o efeito principal para a condição clínica e para repetição foram significativos [F(1,7)=191.27, p<.000] e [F(2,1)=12.05, p<.000], bem como as interações entre: (1) padrão silábico e condição clínica [F(1,7)=4.61, p<.03]. Essa medida não diferenciou as sílabas CCV de CV nos grupos de crianças típicas (p<.131) e atípicas (p<.100), entretanto, foi capaz de diferenciar os padrões silábicos produzidos pelos grupos, ou seja, as sílabas CCV foram produzidas diferentemente pelas crianças típicas e pelas crianças atípicas (p<.000) e as sílabas CV também foram produzidas diferentemente pelos grupos de crianças (p<.000). Dessa forma, os resultados, tomados juntos, confirmam parcialmente as hipóteses assumidas, uma vez as medidas ultrassonográficas analisadas não diferenciaram a produção de CV e CCV realizadas pelas crianças atípicas, porém a medida articulatória que envolve a área da ponta e do dorso da língua mostrou diferenciar a produção das crianças típicas das atípicas, tanto no que diz respeito ao padrão silábico CCV, quanto CV. Conclusões Embora a literatura sugira que produções de CCV julgadas como simplificadas apresentem um gesto de ponta de língua de menor magnitude na fala adulta, as medidas ultrassonográficas utilizadas não foram sensíveis para diferenciar a produção de CCV e CV nas produções de crianças atípicas, sugerindo que haja uma simplificação de CCV. No entanto, a medida de distância entre a ponta da língua e o limite inferior do ultrassom foi capaz de diferenciar a sílaba CCV de CV produzidas pelas crianças com desenvolvimento fonológico típico. Além disso, a medida que envolve a área entre a ponta e o dorso de língua foi sensível para diferenciar as sílabas CCV e CV entre os grupos de sujeitos. Referências 1. Cleland J, Scobbie JM, Wrench AA. Using ultrasound visual biofeedback to treat persistent primary speech sound disorders. Clin Linguist Phon. 2015; 9(1):1-23. 2. Stone M. A guide to analysing tongue motion from ultrasound images. Clin Linguist Phon. 2005;19(1):455-501. 3. Ribas LP. Sobre a aquisição do onset complexo. In: Lamprecht RR. Aquisição fonológica do Português: perfil de desenvolvimento e subsídios para terapia. Porto Alegre: Artmed; 2004. p. 151-64. 4. Lamprecht RR, Bonilha G, Freitas C. Matzenauer C, Mezzomo C, Oliveira. Aquisição fonológica do português: perfil de desenvolvimento e subsídios para a terapia. Porto Alegre: Artmed; 2004. 5. Ardestani RF. Gradient and Categorical Consonant Cluster Simplification in Persian: An Ultrasound and Acoustic Study. [Thesis]. Canada: University of Ottawa, Canada, 2013. 6. Miranda ICC, Silva TC. Aquisição de encontros consonantais tautossilábicos: uma abordagem multirrepresentacional. Revista Linguística. 2011;7(1):1-17. 7. Scobbie JM, Wrench AA, Van Der Linden M. Headprobe stabilisation in ultrasound tongue imaging using a headset to permit natural head movement. In Proceedings of the 8th International Seminar on Speech Production; 2008 Dec 812; Strasbourg. Proceedings. Strasbourg; 2008; 373-6. 8. Articulate Instruments LTD. Articulate assistant user guide: version: 2.14. Edinburgh: Articulate Instruments; 2012.