LITERAFRO - www.letras.ufmg.br/literafro Abílio Ferreira (José Abílio Ferreira) Textos selecionados Tambores Canto Rufam os tambores E a índole fundida em mim Comove e move as imagens que já vi Os odores são assim – invisíveis Mas pregados no ar a ameaçar as pedras do mesmo modo vivem as cores que em silêncio vão marcando uma presença nobre nos espaços pobres que há (...) (“Tambores”, p. 11) Saga é uma onda que sufoca e estoura o peito dilata as veias tapa os olhos na sei se vai explodir numa lágrima soco grito ou beijo ah! Nem sei se os pedaços de mim vão fundir nas saliências pequeninas duniverso. (“Saga”, p.19) Rio Chorei Pela morte do rio A morte do rio me deu pena de mim Chorei A espuma fedorenta sobre o rio O rio coberto de branco – de luto A morte do rio me deu pena de mim Chorei De ódio do branco que mata o rio (“Rio”, p. 21) LITERAFRO - www.letras.ufmg.br/literafro Lembrança da dança E pensar que nossos gestos Derramamento de braços Corredeira de olhares Ondulações corporais enfim Eram nada mais que manifestação gritada E pensar que nem pensávamos no feio das coisas Porém tínhamos as veias já saltadas Dilatadas pelos sons universais da euforia E vagar pelas quebradas espontaneamente históricas Essas bocas temporais que deglutiram nossos medos Entre os dedos como líquido viscoso e quente O tempo foi escapando em doses fluídas e fecundas Canções encontros rastros descobertos Atrás de nós alguns amores sólidos Outros mortos Outros simplesmente adormecidos Todos espalhados no caminho afunilado que Fincado no tempo Nos golpeia a mente qual um espetáculo de dança (“lembrança da dança”, p. 36) Estória no Telespelho Falemos de nós agora Contemos nos dedos o que fomos nós Lembra da inocência! Pra onde foram aqueles meninos danados? Nossas fantasias ficaram nas calças Curtas Nos pés descalços, na bola de capotão Éramos perfeitos atores, às vezes Representando uma realidade que víamos Com a consciência lambusada de doces E auto-rejeição Lembra dos planos! Pra onde foram aqueles rapazes e garotas? Nossas fantasias ficaram nas esquinas Nas idas ao cinema, nos papos de madrugada Éramos personagens inexpressivos, às vezes Vivendo uma realidade que víamos Com a consciência incrustada de chicletes LITERAFRO - www.letras.ufmg.br/literafro E pastas de alisar cabelo Lembra das decepções! Onde estão os nossos velhos amigos agora? Nossas fantasias estão na cabeça No dia-a-dia, nas visões de futuro Somos protagonistas vulneráveis A espera de um perfil (“Estória no telespelho”, p. 37) Noite janela aberta pra eu ver a noite e deixar que ela me veja tudo o que ela despeja – a canção que se houve de longe a luz dolorida da lua a brisa leve e ardida os gritos de dor as gargalhadas iludidas – no meu coração janela aberta para eu ver a noite e deixa que Lea me veja. (“Noite”, p. 54)