A educação física na formação do
Colégio Brasileiro de
Ciências do Esporte
LUCIANO GALVÃO DAMASCENO
A educação física na formação do
Colégio Brasileiro de
Ciências do Esporte
P A P I R U S
E D I T O R A
Capa: DPG Editora
Foto de capa: Rennato Testa
Coordenação: Ana Carolina Freitas
Copidesque: Lúcia Helena Lahoz Morelli
Diagramação: DPG Editora
Revisão: Isabel Petronilha Costa e
Julio Cesar Camillo Dias Filho
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Damasceno, Luciano Galvão
A educação física na formação do Colégio Brasileiro de
Ciências do Esporte/Luciano Galvão Damasceno. – Campinas,
SP: Papirus, 2013.
Bibliografia.
ISBN 978-85-308-1012-2
1. Educação física – Estudo e ensino 2. Interação professoralunos 3. Pedagogia 4. Prática de ensino 5. Professores
– Formação I. Título.
13-03106CDD-372.8607
Índice para catálogo sistemático:
1. Professores: Formação profissional: Educação física: Educação 372.8607
Exceto no caso de citações, a grafia
deste livro está atualizada segundo o
Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
adotado no Brasil a partir de 2009.
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da obra de acordo com a lei 9.610/98.
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SUMÁRIO
PREfácio........................................................................................................... 7
Lino Castellani Filho
INTRODUÇÃO................................................................................................... 9
1. (1978-1985) A GÊNESE DO CBCE .............................................................. 15
Antecedentes da fundação do CBCE ........................................................... 15
A gênese do CBCE ...................................................................................... 20
2.(1985-1987) ENTRE CIÊNCIAS DO ESPORTE
E EDUCAÇÃO FÍSICA ................................................................................. 35
O surgimento do novo no seio do velho ..................................................... 40
Entre o tradicional e o novo: Transição política e científica ........................ 49
3. (1987-1991) O INÍCIO DE UMA NOVA HEGEMONIA .............................. 61
O pré-1989: Indo ao auge da batalha das ideias ......................................... 64
1989: O ano da luta pela hegemonia no CBCE ........................................... 71
4. (1991-1999) A COMPLEXA RELAÇÃO ENTRE
POLÍTICA E CIÊNCIA .................................................................................. 87
Breves notas sobre o contexto histórico-social dos anos 1990 ..................... 90
O foco nas discussões epistemológicas .......................................................95
A centralidade pedagógica na intervenção ............................................... 115
O início da informatização e da internet no CBCE .................................... 130
5. (1999-2009) INTERVENÇÃO E CONHECIMENTO:
POLÍTICA DE QUALIFICAÇÃO E QUALIFICAÇÃO
DA POLÍTICA............................................................................................ 133
A qualificação da política e a política da qualificação............................... 143
A Revista Brasileira de Ciências do Esporte: Busca de
qualificação científica dentro da ordem? .................................................. 194
CONSIDERAÇÕES FINAIS: OS DESAFIOS DO CBCE...................................... 207
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................... 215
Dedicatória
Ao Pablo (filho) pelo futuro.
À Renata (esposa) pelo amor e companheirismo.
À Neide (mãe) por me mostrar o caminho com amor.
Ao Enival (pai) por sua presença.
Ao camarada Edson Marcelo Hungaro
e sua contagiante humanidade.
Ao companheiro Lino Castellani Filho
por sua inenarrável dedicação à educação física.
prefácio
Luciano Galvão Damasceno, autor do livro que ora prefacio, deve
imaginar – dada sua sensibilidade – o significado, para mim, de tecer algumas
considerações sobre sua obra. Primeiro, por me propiciar a satisfação de
associar meu nome a um trabalho seu que acompanhei, na condição de
orientador, durante o período de sua gestação no Programa de Pós-graduação
da Faculdade de Educação Física da Unicamp.
Aliás, sei que pode surpreender o fato de que eu não tenha indicado
ou sugerido a meu orientando transformar sua dissertação em vários artigos,
a fim de dar vazão ao instinto produtivista que assola o meio acadêmico.
Contudo, considero que essa visão tem por pressuposto um entendimento
equivocado de produção acadêmica e, em última instância, de universidade.
Embora eu não obtenha nenhum tipo de vantagem no PPG da Faculdade
de Educação Física ou na Capes, sinto-me honrado neste ato de prefaciar o livro.
Por si só, esta obra faz com que eu me sinta respeitado naquilo que, por mais de
36 anos – 26 deles na própria FEF/Unicamp –, desenvolvi no meio acadêmico.
Depois, pelo fato de não se tratar de um livro abordando um tema
que a mim soaria distante; pelo contrário, o Colégio Brasileiro de Ciências
do Esporte (CBCE) é parte indissociável de minha vida. Dele me aproximei no
A educação física na formação do CBCE 7
ano de 1979 e, de lá para cá, o vivi intensamente, sendo por ele influenciado
na configuração do que carrego em mim de “militância acadêmica”.
De coordenador das Representações Estaduais (1983/85) até assumir
sua presidência (1999/2003), passando pelas diretorias das gestões de 1985/87,
1989/91, 2007/09 e 2009/13 e pela presença em todos os seus Congressos
Brasileiros de Ciências do Esporte, com exceção do primeiro (1979), tive com
o CBCE relação centrada no entendimento de sua importância na mobilização
e na articulação da ação de parte significativa dos professores e pesquisadores
da área batizada de educação física e/ou ciências do esporte.
Mesmo os que mantiveram desconfiada distância com o CBCE não têm
como negar a importância de seu legado para a configuração de uma área
acadêmica e para a formação de gerações e gerações de professores, acadêmicos
e pesquisadores críticos da realidade na qual se encontram inseridos.
Luciano é mais um dos que foi contagiado pelos valores defendidos e
difundidos pela sociedade científica CBCE.
Principalmente por ter estabelecido uma relação de cumplicidade
acadêmica com o Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte, o livro que ora nos
apresenta merece ser lido por ser revelador – para além do criterioso e minucioso
estudo que desenvolve dessa sociedade científica ao longo de seus mais de
30 anos de existência, no qual perspectiva “tempos” difíceis na atualidade e à
sua frente – da capacidade deste pesquisador de se distanciar de seu objeto
de estudo em busca da necessária imparcialidade na sua análise, jamais a
confundindo com a – por muitos até hoje defendida – neutralidade científica.
Em tempos de produtivismo acadêmico, em que quantidade é mecânica
e automaticamente vista como sinônimo de qualidade, este livro traz luz aos
que participaram – e ainda participam – dos esforços do CBCE para se fazer
protagonicamente presente no âmbito de sua área acadêmica. Ao mesmo
tempo, sinaliza, para os que agora começam a dar seus primeiros passos no
meio acadêmico/universitário, a necessidade de unirem seus esforços aos
daqueles que jamais se envergonharam de bradar aos quatro ventos, embalados
pela poética de Vandré, que “quem sabe faz a hora não espera acontecer”.
Lino Castellani Filho
Brasília, março de 2013.
8 Papirus Editora
INTRODUÇÃO
A principal tarefa do historiador não é julgar, mas compreender,
mesmo o que temos mais dificuldade para compreender.
Eric J. Hobsbawm
Para compreendermos as três décadas do Colégio Brasileiro de
Ciências do Esporte (CBCE), lançamos mão da ideia de que a vida dessa
entidade se formou como um complexo, no âmbito do que, segundo
Netto (2006, p. 44), alguns intelectuais marxistas italianos chamam de
“mundo da cultura” – “... rico e diversificado complexo de manifestações,
representações e criações ideais (...) envolvendo a elaboração estética,
a pesquisa científica, a reflexão sobre o ser social e a construção de
concepções de mundo”. E com base nesse “mundo da cultura”, que se
dá numa relação dialética com o “mundo do trabalho”, o CBCE acaba
desempenhando a função de “aparelho privado de hegemonia”, uma
vez que a entidade passa, em suas atividades científicas, a expressar
determinada perspectiva de educação física (EF) que pretende construir
uma nova hegemonia no campo acadêmico e profissional, e que por isso
passa a disputar espaços de construção cultural.
A educação física na formação do CBCE 9
É válido ressaltar que Netto (2006) está tratando do “mundo da
cultura” moderno, ou seja, o que pressupõe um Estado moderno e o
aumento relativo da autonomia de criação cultural. Desse modo, o “mundo
da cultura” estabelecerá uma relação dialética com o Estado, e não uma
relação de subordinação formal. Evidentemente, algumas das instituições
que contribuem para a organização da cultura se subordinam formalmente
ao Estado – trabalham pelos interesses do Estado –, ao passo que outras
o fazem relativamente – estabelecem relação com o Estado, mas mantêm
sua autonomia, correndo sempre o risco de sofrer influência deste em suas
decisões. Assim, o autor nos chama a atenção para o protagonismo do
Estado que, diferentemente da política econômica e de algumas políticas
sociais – que são projetadas e implementadas de forma direta –, tem, na
política cultural, a realização de um protagonismo indiretamente. Isso
quer dizer que a sociedade política, nos termos de Gramsci, não produz
diretamente cultura. Sua ação é muito mais de fomento e de difusão.
É possível notar que, em alguns momentos de sua história,
principalmente em seus primórdios, o CBCE se subordina relativamente à
sociedade política. Podemos perceber isso nas participações da entidade
na projeção de políticas esportivas e na configuração dos padrões de
formação profissional no início da pós-graduação, constatáveis nos planos
nacionais, bem como nos editoriais da Revista Brasileira de Ciências do
Esporte (RBCE). Já na atualidade, a relação que o CBCE estabelece com as
instâncias governamentais, principalmente com Ministério do Esporte, é
um pouco mais autônoma, o que não quer dizer que não haja risco de
uma subordinação relativa, bem como formal.
E, nesse sentido, instituições como o CBCE, que não se encontram
no Estado de forma direta e imediata, e sim no âmbito da sociedade civil,
possuem um papel fundamental para a difusão e, inevitavelmente, para
a orientação da produção. Isso quer dizer que tal função social deterá
mais ou menos autonomia de acordo com o ordenamento econômico,
político e cultural em que se efetiva concretamente e que determina a
sua particularidade – o que, nos casos da EF e do CBCE, se deu em meio à
autocracia burguesa (ditadura civil-militar), à redemocratização e à ofensiva
neoliberal com o fim do “socialismo real”.
10 Papirus Editora
O CBCE surge no âmbito da sociedade civil, estimulado,
evidentemente, por ações do Estado, que, à época, fomentava a criação
de entidades científicas tendo em vista a incipiente atividade dessa
natureza em nossa sociedade e a necessidade de formação de quadros que
contribuíssem para o processo de desenvolvimento industrial. Portanto,
inicialmente, coube ao CBCE cumprir o papel de organizar a cultura
específica relacionada à pesquisa sobre esporte e “atividade física”, e
participar numa perspectiva híbrida, isto é, conservadora na política e
progressista na ciência. Poderíamos dizer, com base em outra elaboração
de Gramsci (1978), que os intelectuais que compunham a entidade eram
orgânicos desde o princípio. O que muda é como se deu essa organicidade
em cada momento.
Nesse aspecto discordamos do único estudo feito sobre a entidade.
Nele, Paiva (1994) busca provar que, em períodos distintos, os dirigentes
do CBCE, mesmo com suas divergências mais profundas acerca da ciência
e da política, usam formas de “poder simbólico” – elaboração pautada
em Pierre Bourdieu – que variam, mas que conduzem ao mesmo objetivo,
qual seja, o de pronunciar uma representação superdimensionada da
importância científica da entidade, o que obviamente não encontrava
lastro na realidade.
A nosso ver, a autora chega a essa conclusão por não levar em
conta como se deram as relações de poder e a construção de hegemonia
em consonância com a constituição do campo da EF, bem como os seus
nexos causais, na medida em que as relações de hegemonia se invertem,
e o Colégio passa a cumprir, no espectro da EF, um espaço de construção
de uma nova hegemonia. Isso nos possibilita entender, por exemplo, os
limites das atividades científicas no início da existência da entidade e
não caricaturá-las, e os motivos de a organização ter se fundado numa
perspectiva de colegiado, diferentemente do que ocorria, por exemplo, na
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), o que problematiza
as ideias abstratas da autora sobre democracia.
Tentaremos mostrar, nas páginas seguintes, que, em seus 30 anos
de existência, o CBCE foi movido por muitas disputas teóricas e políticas
A educação física na formação do CBCE 11
entre visões diversas de ciência, de sociedade, de educação, de saúde,
de educação física e de esporte, o que envolveu, em cada tempo, formas
e conteúdos distintos e contraditórios que afetaram historicamente a
composição da organização estrutural e política da entidade tal como a
conhecemos nos dias atuais.
A história dos 30 anos de formação do CBCE foi tecida, desde seus
primórdios, essencialmente com os fios da EF. Não diria que o CBCE e a
educação física se confundem, mas não resta dúvida que estabeleceram
uma inter-relação dialética de retroalimentação não prevista nos “sonhos”
de seus fundadores. Desse modo, compreender a história recente de um
ou de outro implica considerar esse aspecto constitutivo.
Se o “sonho” dos fundadores do CBCE era formar um colegiado de
diferentes áreas do “saber” que realizassem pesquisas sobre o esporte –
foi o que disse Victor Matsudo, seu primeiro presidente, no Painel
Comemorativo dos 30 anos da entidade –, o fato é que essa aspiração não
foi, de certo modo, ou na perspectiva de seus fundadores, concretizada.
No entanto, o CBCE e a EF avançaram muito a partir de sua
fundação, principalmente nos anos 1980, quando esta última passou por
um movimento de renovação, impactada pelas transformações societárias
ocorridas em meio ao processo de redemocratização do Brasil. Nesse
processo, uma perspectiva progressista da EF começou a tomar corpo,
dentro mesmo da entidade, e a vislumbrar novos encaminhamentos
políticos e científicos, condizentes com um entendimento crítico a
respeito da forma como, em sua história, em seus aspectos científicos e
interventivos, havia reduzido a compreensão de homem ao seu aspecto
biológico/orgânico e contribuído significativamente para a construção de
uma sociedade burguesa no século XX.
O momento político da redemocratização tornou propícias a
formação de críticas e a busca dos elementos que dessem o caldo
necessário para que estas fossem consequentes. E o CBCE, mesmo nas
gestões de médicos, em nenhum momento se utilizou da censura ou tentou
impedir a divulgação de uma compreensão crítica de EF ou o debate a
respeito dessa questão. Na verdade, o que faltava era uma produção teórica
consistente para que as críticas fossem levadas a cabo.
12 Papirus Editora
Os efeitos do desenvolvimento da crise da EF, que acabou induzindo
à produção teórica, foram sentidos pelo CBCE, que passou a ser um
espaço tão significativo – talvez único – para debates, reflexões, circulação
de ideias, participação nos rumos da política científica, educacional e
esportiva, que se tornou estratégico na disputa pela hegemonia no âmbito
do campo da EF.
De lá para cá, uma perspectiva progressista se tornou hegemônica
na entidade. Tal perspectiva esboçava uma “intenção de ruptura” com a EF
tradicional, portadora dos referentes ideológicos burgueses de esporte,
educação e saúde, indicando a necessidade da construção de pilares para
uma sociedade que fosse humanamente emancipada – a referência era
o socialismo, bem como o processo de democratização brasileiro – e a
urgência de uma nova EF, que pudesse contribuir para a formação de um
homem de novo tipo.
O CBCE teve um papel importante nesse período em que a
hegemonia de uma perspectiva progressista de EF foi alcançada. A entidade
passou a socializá-la a ponto de ser tachada como político-partidária e
ideológica. Mas não foi somente na questão da socialização das ideias que
o CBCE contribuiu. Ele teve também um papel fundamental no processo
de qualificação e ampliação do espectro de temáticas tratadas por esse
campo em formação. Foi essa perspectiva progressista defendida pelo
CBCE e pela EF que possibilitou a esta última se qualificar academicamente,
na medida em que ambos problematizaram profundamente o que até ali
vinha se produzindo teoricamente. Todavia, tais fatos não conduziram a
perspectiva renovadora e progressista a uma hegemonia no campo da EF.
Com o passar do tempo, devido às conjunturas pouco propícias,
os intentos de ruptura dessa perspectiva passaram para segundo plano.
No entanto, manteve-se uma posição crítica em relação às perspectivas
empírico-analíticas – que carregam a tendência a isolar, fragmentar e
quantificar o ser humano em detrimento da cultura – que hegemonizavam
a área. Manteve-se um entendimento de homem e sociedade que se
constituem mutuamente e que necessitam que essa relação seja levada
em conta para serem entendidos. Manteve-se a defesa de democratização
A educação física na formação do CBCE 13
do conhecimento e de práticas esportivas críticas ao alto rendimento e
à espetacularização. Mantiveram-se as preocupações com uma formação
educacional em que a EF pudesse contribuir como componente curricular, e
não como uma prática pedagógica menor. Mantiveram-se as preocupações
com as desigualdades sociais que assolam o país, e também com as
desigualdades na estruturação da pós-graduação que se deu e continua
se dando numa ordem Sul-Sudeste.
E nesse processo de manutenção de perspectivas progressistas o
CBCE teve que se qualificar não só nas questões científicas e políticas,
por meio do Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte (Conbrace) e da
Revista Brasileira de Ciências do Esporte (RBCE), mas também nas questões
organizacionais, em torno de suas secretarias estaduais e seus grupos de
trabalhos temáticos (GTT).
O CBCE se tornou um protagonista no campo da EF, ao mesmo
tempo em que ajudou a constituí-lo da forma como o conhecemos hoje. Se
a EF em sua amplitude tem participado mais sistematicamente dos rumos
da política científica, educacional e esportiva brasileira, e se preocupado
com os intercâmbios internacionais, além de se fazer presente nos
mecanismos de comunicação, informação e socialização do conhecimento
na internet, isso muito se deve às possibilidades constituídas por essa
entidade ao longo dos seus 30 anos.
Por fim, não poderia deixar de agradecer à valorosa contribuição
dos ex-presidentes do CBCE: Laércio E. Pereira, Celi N.Z. Taffarel, Valter
Bracht, Elenor Kunz, Lino Castellani Filho, Ana Márcia Silva e Fernando
Mascarenhas.
14 Papirus Editora
1
(1978-1985) A GÊNESE DO CBCE
Se eu sou quem sou, que importa a minha origem?
William Shakespeare
Antecedentes da fundação do CBCE
A reunião de fundação do Colégio Brasileiro de Ciências do
Esporte (CBCE), segundo Paiva (1994) e Pereira (2007), ocorreu no dia
17 de setembro de 1978, em São Paulo, mas a ata do evento é do dia
2 de novembro desse mesmo ano, tendo sido redigida no Paraná, pois
lá se realizava então a II Jornada de Medicina Desportiva e Treinamento
de Londrina, oportunidade que os 26 participantes da primeira reunião
não desperdiçaram para registrar o estabelecimento do Colégio. O Brasil
se encontrava, nessa época, estruturado na lógica do grande capital e
mantinha um ordenamento político com face ditatorial (Ianni 1981) que
se constituía, se efetivava concretamente e estabelecia seus lastros com
a economia (“mundo do trabalho”) e com o “mundo da cultura”, no
A educação física na formação do CBCE 15
âmbito do planejamento que era a tônica do período do grande capital
monopolista. Isso é demonstrado pelos diagnósticos e planos realizados
nessa ocasião. Ianni (1981) nota como a ditadura, a partir de 1964,
ao se instalar no poder e mobilizar as vias acumulativas e expansivas
para o grande capital, trata a questão do planejamento como fulcro do
“desenvolvimento com segurança”, mas envolto por uma névoa ideológica
com a intenção de dizê-lo neutro, isto é, imunizado contra questões
político-ideológicas, e tratado como técnico tão somente, para além
do vetor socioeconômico. Essas disposições estabeleceram nexos com
diferentes vetores para que se pudessem efetivar. No nosso caso, o nexo
foi estabelecido com o que Netto (2006, p. 44 ss.) nomeia de “mundo da
cultura”, em que o rebatimento pode ser percebido na política educacional
e de ciência e tecnologia (C&T), ambas entendidas como política social, e
estas na política de educação física (EF) e esporte, e consequentemente
na estrutura e no ordenamento do CBCE.
Como o Colégio foi fundado num momento em que a pós-graduação
em educação física estava iniciando sua constituição, e como esta guardava,
na visão dos técnicos a serviço do governo ditatorial, relações íntimas com
o esporte, houve, incontestavelmente, certa influência dos diagnósticos,
planos, comissões etc. na sua formação inicial. Ora, um exemplo dessa
tendência é o Diagnóstico de Educação Física e Desportos de 1971,1
que não só indicou as deficiências e as ausências no que diz respeito
às “condições materiais”, mas também apontou os caminhos para as
“condições ideais”, o que foi corroborado e ampliado no Plano Nacional
de Educação Física e Desportos de 1975.
O CBCE, em sua gênese, como mostraremos, trouxe consigo
concepções formadas na década de 1970 pelos governos ditatoriais acerca
da função social da educação física e do esporte. Porém, o fato de o Colégio
haver sofrido influência do entendimento governamental sobre a política
esportiva, de formação profissional e científica não quer dizer que tenha
havido, em sua origem, concordância ideológica expressa e consciente com
1.
Doravante o mencionaremos como Diagnóstico de 1971.
16 Papirus Editora
a autocracia burguesa. O depoimento que Victor Matsudo, seu primeiro
presidente, deu a Daolio (1997), a exposição que ele realizou no Painel
Comemorativo dos 30 anos do CBCE, afirmando sua discordância com a
lógica de pesquisa dos laboratórios implantados pela política de formação
de pesquisadores, com base nos dados consignados no Diagnóstico de
1971, e a criação do Laboratório de Atividade Física de São Caetano do Sul
(Lafiscs), desvinculado da política governamental da época, indicam a não
aceitação acrítica. Por outro lado, mesmo em face dessa postura, o fato é
que as perspectivas de pesquisas em torno do esporte e da educação física
se aproximavam das defendidas pelo governo militar. Ou seja, é possível
achar que o CBCE, em sua gênese, foi conivente com a autocracia burguesa
porque não negava a visão de esporte fundada na pirâmide esportiva e
a visão de educação física como veículo para aptidão física. Mas essa
concordância não pode ser generalizada para as questões econômicas,
políticas e científicas.
O CBCE foi fundado no momento de formação da pós-graduação
em educação física no Brasil, que passara a ser planejada em decorrência
dos resultados alcançados pelo Diagnóstico de 1971. Este trazia em seu
bojo a mesma tônica mobilizada a partir de 1964, e evidenciada acima
pelos autores, sobre planejamento econômico e cultural. O Diagnóstico de
1971 foi coordenado pelo professor Lamartine Pereira da Costa. Baseado
em um estudo realizado por Ginzburg, Costa (1971) esclarece que havia
então uma escassez de dados sobre o nível de vida econômico em vários
países do mundo, e que estes eram imprescindíveis para a sistemática
do planejamento. Esta, por sua vez, estava amarrada a um projeto de
sociedade, ou seja, havia um plano de “aperfeiçoar” o homem funcional
de acordo com a ordenação que se instituía (cf. Corrêa 1971, p. 7).
Com o objetivo de indicar o estado de coisas em que se encontravam
a educação física e os desportos no Brasil, o Diagnóstico de 1971 (cf.
Costa 1971 e Palafox 1990, p. 17 ss.) apontou uma série de deficiências
e ausências (basilares) em relação a pesquisa, pós-graduação stricto sensu,
laboratórios, infraestrutura, cursos de formação, espaços recreativos,
clubes e entidades classistas e afins, assim como em relação às bases
científicas e teóricas a serem seguidas, evidentemente à luz de certa
A educação física na formação do CBCE 17
orientação político-ideológica defendida pelo governo “revolucionário”.
Vale notar que as ciências almejadas que davam bases para a pesquisa
científica do esporte eram ancoradas na medicina esportiva, e que o
parâmetro a ser seguido e o estado a ser alcançado pelo desenvolvimento
acadêmico-científico da EF e dos desportos tinham como foco a aptidão
física.2 Nota-se que as preocupações com o desenvolvimento da pesquisa
e da formação de recursos humanos em geral – e especificamente as
relacionadas a EF e desportos – não eram neutras em nenhum sentido. O
horizonte vislumbrado pelo Diagnóstico de 1971 indica certa escolha que
não era aleatória, visto que contribuía para a busca “revolucionária” do
“aperfeiçoamento” do “homem” brasileiro (Palafox 1990). Desse modo,
para os intelectuais e os técnicos orgânicos do governo ditatorial que
dominava o país, o aperfeiçoamento do homem se dava por meio da
medicina esportiva e do desenvolvimento da aptidão física. Como nos
mostra Castellani Filho (2001), medicina esportiva e aptidão física se
relacionavam e se autocompletavam. Essas questões são expressas, como
bem notou o autor, nas legislações a respeito de educação, EF e esporte do
final da década de 1960 e do início da década de 1970. Segundo Castellani
Filho, as legislações educacionais se pautavam na Teoria da Economia da
Educação, e eram exaltados, para a prática de EF e esporte, os aspectos
técnicos subordinados às necessidades desenvolvimentistas, bem como
os aspectos político-ideológicos e os ideológico-culturais que visavam
à formação de um homem com civilidade e moralidade subordinadas
às legitimações éticas do regime, com o lema da “segurança” e do
“desenvolvimento”. Assim, a aptidão física constitui-se como componente
curricular e como parâmetro esportivo.
2.
O Diagnóstico segue a proposição do Manifeste sur le Sport propagado pelo Conseil
International pour l’Education Physique et le Sport da Unesco. No sentido do
Manifeste “(...) o objetivo prioritário da Educação Física/Desportos é o da melhoria
da aptidão física da população como um todo”. A acepção de “aptidão física”
defendida no Manifeste: “(...) é aqui compreendida, em sua definição técnica,
no sentido psicossomático, incluindo necessariamente o estado de saúde, a
capacidade mental, etc.” (Costa 1971, p. 20).
18 Papirus Editora
Se destacava a aptidão física, como horizonte, e a medicina do
esporte, como base teórica para o alcance desse horizonte, o Diagnóstico
de 1971 também ressaltava a pobreza infraestrutural, laboratorial, isto é,
a pobreza relacionada ao desenvolvimento e à ampliação da pesquisa e da
formação de recursos humanos. Fatos subsequentes e lógicos, segundo
Palafox (1990), foram o investimento governamental e o impulso na
instalação de laboratórios ligados à EF e à medicina esportiva. A própria
estruturação inicial da pós-graduação stricto sensu aponta para tal horizonte.
Nesse particular, Souza e Silva (1997) diz que os primeiros programas de
pós-graduação em EF e esportes foram constituídos na vigência do primeiro
Plano Nacional de Pós-graduação (PPNPG) a partir de 1975. Indica a autora,
corroborando o que afirmaram Castellani Filho (2001) e Palafox (1990), o
caráter teórico-metodológico e político-ideológico dominante no início da
pós-graduação no Brasil, que se pautava pelo paradigma da aptidão física.
É válido notar que a elaboração da pós-graduação no Brasil esteve
atrelada aos interesses do regime militar e que estes eram consoantes
à efetivação expansiva do capitalismo brasileiro. Segundo Souza e Silva
(1997), esse era seu maior objetivo, o que fez com que se desenvolvesse pari
passu com as particularidades de cada área de conhecimento e intervenção,
e com a necessidade de qualificá-las para mais ou para menos.
Buscamos evidenciar até aqui como, a partir de 1964, com a
ênfase do regime militar na ideia de “Brasil Potência”, “Brasil Grande” e
“milagre brasileiro” (cf. Ianni 1981), foi despendida uma série de esforços
relacionados ao “mundo da cultura” (especialmente nas áreas de ciência
e tecnologia [C&T] e educação), visando à formação de recursos humanos
e ao desenvolvimento da pesquisa, o que gerou nexos na constituição
acadêmica, no desenvolvimento da pós-graduação, na ideia de componente
curricular e, inevitavelmente, na fundação da instituição científica de maior
relevância da educação física/ciências do esporte (EF/CEs), o CBCE, que não
se deu sem contradições, mesmo em seus primeiros anos.
A educação física na formação do CBCE 19
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1012 - A educação física na formação do Colégio