O tratamento documental de manuscritos ao serviço da investigação: a experiência da Biblioteca Nacional Teresa Duarte Ferreira Ana Cristina Santana 1. Os manuscritos foram desde sempre entendidos como objecto de enorme notoriedade. Definidos como documentação especial e preciosa - ideia que a declaração de António Ribeiro dos Santos, em 5 de Janeiro de 1795, bem testemunha, notando a necessidade de enriquecer a Real Biblioteca Pública da Corte (ainda não instituída por alvará) com aquisições de manuscritos: «está ainda m[ui]to desprovida de livros raros, e de Codigos M[anu]s[crito]s de estimação que são os que formam a preciosidade das grandes Livrarias […]»1 - foram conservados à parte, ocupando a Sala XIª, designada «Sala dos Manuscritos», na estrutura orgânica da Real Biblioteca Pública da Corte. De facto, reside nestas colecções, consolidadas ao longo dos tempos, uma das maiores riquezas patrimoniais da Biblioteca Nacional. Entre elas temos de salientar, pela excepcional importância, a Colecção Alcobacense, proveniente da livraria do Mosteiro cisterciense de Santa Maria de Alcobaça, que reúne um conjunto de 461 códices, compreendidos entre os séculos XII e XVIII. Trata-se de uma colecção ímpar a nível do país - inclui o mais completo fundo de manuscritos medievais existente - no que toca à singularidade da iluminura, e à abrangência de textos, sendo particularmente relevante o conjunto de cerca de 180 códices dos séculos XII e XIII, executados na sua maior parte no próprio scriptorium do mosteiro, e que é, por si só, um verdadeiro tesouro do património nacional2. As colecções de manuscritos da Biblioteca Nacional, actualmente denominadas Códices, Manuscritos Avulsos, Alcobacense, Iluminados, Pombalina e Tarouca são constituídas por manuscritos de biblioteca e, em menor número por espécies de arquivo. Caracterizam-se pela sua heterogeneidade, em termos de limites cronológicos (o códice mais antigo data do século XII – Liber quaestionum in Vetus Testamentum, de Santo Isidoro de Sevilha, escrito em letra visigótica3 - e os mais recentes datam de finais do século XIX), e de tipologia (obras literárias em prosa e em verso, memórias e descrições históricas, crónicas, nobiliários e armoriais, livros litúrgicos, livros de horas, Bíblias, hagiografias, postillae4, sermões, [Relatório do Dr. António Ribeiro dos Santos, 5 Jan. 1795] (AHBN/DGA/04/Lv. 01, p. 2-8), citado por Manuela D. Domingos, in «A caminho da Real Biblioteca Pública: dois documentos, 17751795». Revista da Bibl. Nac. Lisboa, S. 2, 5 (1) (1990), p. 139-160. Agradecemos à autora esta e outras informações que oportunamente nos cedeu. 2 Na acepção da Bibliothèque Nationale de France, que aqui utililizamos, tesouro nacional é entendido como a categoria de bem cultural de excepcional valor bibliográfico, histórico, artístico, arqueológico, etc., devendo o Estado assumir a suprema responsabilidade da sua preservação, e captação para território nacional (vd. http://www.bnf.fr/pages/mecenat/avantages.htm) 3 BN ALC. 136 4 Também designadas em português «postilas» ou «apostilas» (do latim postilla, postillae, que aqui preferimos): textos ditados pelos professores nas suas aulas, em manuscrito autógrafo ou em cópia do aluno. Aparecem frequentemente escritos em letra miúda e com um sistema de abreviaturas muito específico. (vide: António de Morais Silva - Grande Dicionário da Língua Portuguesa. 10.ª ed.. 1 1 discursos, etc). Tematicamente, embora abarcando todos os ramos do conhecimento, estas várias espécies são indispensáveis como fontes para a investigação nos domínios da História e Literatura, Genealogia e Heráldica, Ciência, Teologia e Filosofia. Tendo-se constituído desde 1796, o núcleo inicial das colecções corresponde ao acervo primitivo da Biblioteca Nacional: a livraria da Real Mesa Censória, formada essencialmente com os fundos procedentes dos colégios e casas da extinta Companhia de Jesus; as incorporações da Academia Real da História Portuguesa; a doação da livraria dos Clérigos Regulares da Divina Providência (Teatinos); e as doações de Fr. Manuel do Cenáculo (1797)5 e do 1.º bibliotecário-mor António Ribeiro dos Santos6. De referir igualmente, na primeira fase da vida da instituição, o enriquecimento patrimonial por meio de compras excepcionais, nomeadamente a da Bíblia hebraica, feita em Cervera no século XIII, e comprada em Haia em 1804 por 240 mil reis.7 Destacam-se ainda as incorporações das livrarias dos conventos, com a extinção das Ordens Religiosas (1834), em 1852, a aquisição da valiosa livraria de D. Francisco de Melo Manuel da Câmara (Cabrinha), e a do diplomata Cipriano Ribeiro Freire, e novas incorporações dos conventos extintos, com a implantação da República. Recentemente, salientam-se como aquisições relevantes, a livraria Tarouca, e parte da antiga livraria da Casa Cadaval. 2. A característica essencial do documento manuscrito8 – documento escrito à mão, seja qual for a sua data de elaboração – é o seu carácter de espécie única e irrepetível; entende-se aqui quer o texto escrito pela mão do autor, quer as cópias subsequentes, em que o texto se vai reproduzindo mais ou menos integralmente. Em termos estritamente formais, os manuscritos que se guardam nas bibliotecas agrupamse em dois grandes conjuntos: códices (livros manuscritos organizados em cadernos habitualmente solidários entre si por costura) e avulsos, independentemente do material de suporte (pergaminho ou papel). Considerando a natureza muito diversificada, em termos de conteúdo e características formais específicas, das colecções de manuscritos que se encontram à guarda das bibliotecas patrimoniais, deveremos distinguir: 1948?; «Museu do Livro» : Exp. Permanente de História do Livro – O Manuscrito através dos Tempos / I. Cepeda. Lisboa: BN, 1991) 5 Parte significativa, pelo seu valor patrimonial, de muitas espécies da colecção de Códices Iluminados, deveu-se fundamentalmente à entrada na BN das doações de Fr. Manuel do Cenáculo, caso do Speculum historiale de Vincent de Beauvais (IL. 125-131) ou do Thoyson d’or de Guillaume Fillâtre (IL. 116) 6 Manuela D. Domingos - Subsídios para a História da Biblioteca Nacional, 1995, p. 82; «Biblioteca Nacional: crónica de 200 anos», in Tesouros da Biblioteca Nacional, 1992, p. 7 7 Em carta de 23 de Julho de 1804, Francisco José Maria de Brito, oficial da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino em Haia, avisa Ribeiro dos Santos para a «oportunidade de adquirir para a RBPC a mais antiga e rara Bíblia hebraica conhecida» (AHBN/DGA/03/01/Cx.02-41), in Catálogo da Correspondência dos Directores da BN. Lígia Martins, Paulo Barata. No prelo. 8 Na definição de M. Sánchez Mariana - Introducción al libro manuscrito. Madrid, 1995, p. 7-12. É habitual considerar-se na categoria de manuscrito o documento dactilografado. 2 • • • livro manuscrito - códice com unidade física e intelectual inequívoca, segundo Sánchez Mariana9: contém um texto (ou textos) de carácter monográfico e unitário; miscelânea - códice composto por vários textos intencionalmente coligidos, com ou sem ligação temática entre si, frequentemente escritos na mesma letra10; copiam-se textos de uma mesma temática, de um mesmo autor, de uma mesma forma literária11, sendo que o próprio gosto pessoal pode presidir a essa aglutinação; códice factício - conjunto de documentos originariamente independentes, reunidos numa mesma encadernação, em fase posterior à sua produção, e por motivos alheios ao processo documental, resultado, muitas vezes, de uma prática antiga de conservação das espécies. Poderemos detectar ainda a coexistência de um número sempre considerável de manuscritos classificáveis rigorosamente como documentos de arquivo, como sintoma da permanência de realidades documentais muito díspares na generalidade das bibliotecas patrimoniais, e que naturalmente se conservaram entre as diversas colecções12. 3. Muito embora a acepção de livro manuscrito aponte, à primeira vista, para uma época recuada, compreendida entre os primeiros vestígios de textos escritos e a invenção da tipografia, em meados do século XV, a verdade é que a tradição de copiar à mão constituiu um fenómeno com largo êxito até tempos relativamente recentes (meados do século XIX, na Europa). Com efeito, diversos factores poderão explicar a persistência do manuscrito como instrumento de difusão cultural - são habitualmente apontadas algumas resistências à relativa banalização do livro impresso, cuja regularidade formal, ritmo de produção e resultante abundância de espécies no mercado lhe fazia diminuir valor de objecto nobre e artesanal, apesar de considerado, obviamente, precioso - mas deveremos compreender que se tratou essencialmente de um processo que «naturalmente» evoluiu em paralelo. A facilidade e economia do acto de copiar muito contribuíram para uma dinâmica circulação de manuscritos, que o advento da tipografia não poderia, obviamente, demolir. E mesmo depois, o incremento das tiragens, e consequente diminuição de custo, não anularia essa «cultura dos escribas», como chamou Castillo Gómez13 à tradição de utilizar o M. Sánchez Mariana - Iibidem, p. 51 Exemplo claro destas situações observa-se em muitas miscelâneas provenientes do Convento do Varatojo (Colecção de Códices), elaboradas por copistas identificados, que copiaram documentação de vária índole, obedecendo a critérios diversos (tipológico, temático, etc.). 11 Encontram-se também na colecção de códices da BN inúmeros casos, semelhantes entre si, de miscelâneas poéticas ou de outros géneros literários, de vários autores contemporâneos ou de um mesmo autor. 12 Facilmente se detectarão, nas várias colecções de manuscritos da BN, sendo a este respeito bastante representativa a Colecção Pombalina, diversos casos de códices (factícios) constituídos por originais de documentos de vária ordem, descontextualizados e sem organicidade reconstituível, ou cartas de variadíssimas personalidades, ou ainda dos chamados copiadores (livros onde se reuniram cópias de cartas de um autor/individualidade – emissor - com o intuito de as conservar no seu arquivo pessoal). Não é raro, portanto, encontrarmos documentação de arquivo deslocada do seu fundo produtor, e fisicamente agregada numa encadernação. 13 Antonio Castillo Gómez - Das tabuinhas ao hipertexto. Lisboa: Biblioteca Nacional, 2004, p. 51 9 10 3 manuscrito como (principal) instrumento de divulgação de saberes, que tocava toda a sociedade.14 Por outro lado, o apreço pelo livro manuscrito como objecto privilegiado, atravessou os séculos, já que na sua materialidade ele sempre foi inconfundível. A encomenda particular desempenhou constantemente um papel vital na produção manuscrita; assim, aos príncipes, na sua formação, destinavam-se livros feitos à mão15, e para os tempos de devoção os livros de horas, profusamente ilustrados, representavam um instrumento de utilização privada diária e simultaneamente objecto de fruição estética; de resto, a quantidade destes últimos que ainda hoje se conserva nas bibliotecas eruditas revela o sucesso da «produção», pelo menos até ao século XVI16. Segundo Sánchez Mariana, foi a partir do século XVI, que os códices medievais começaram a ser estudados e valorizados, como testemunhos culturais do passado. A este respeito refira-se o grande incremento que sofreu a disciplina da Paleografia no sentido da sua afirmação como «ciência», e o contributo do movimento humanista na leitura, fixação do texto e procura da mais correcta interpretação, e ainda a ênfase que se foi dando ao problema da integridade dos textos antigos. De facto, os copistas eram frequentemente acusados de impregnar as cópias com erros, acrescentos e omissões, deturpando a obra original17. Curiosamente, a cópia manuscrita serviu afortunadamente os objectivos de repositório e veículo de transmissão cultural até muito tarde18, ora reproduzindo textos célebres, considerados imprescindíveis numa biblioteca erudita (foi, demasiadas vezes mesmo, o único meio que sustentou a sobrevivência de muitas obras que de outro modo se teriam perdido para sempre, e as quais, por uma multiplicidade de razões, que só um estudo caso a caso poderia clarificar completamente, não houve ocasião de imprimir, como se passou com as crónicas de Fernão Lopes ou Zurara), ora respondendo naturalmente à procura, A este respeito, é de grande interesse observar as inúmeras cópias de trabalhos de cariz «técnicoprofissional» que proliferaram nos séculos XVII e XVIII. Encontram-se na Colecção de Códices da BN alguns exemplos: Taboadas gerais para com facilidade se medir qualquer obra do officio de pedreiro…(COD. 5166), Medidor de obras de Architetura Militar e Civil (COD. 5167), entre outros. 15 Como sucedeu à Infanta D. Maria, filha de D. João III, para quem João de Barros compôs, por volta de 1538, uma gramática manuscrita sobre pergaminho, iluminada, para aprendizagem da língua latina (Grammatices Rudimenta, BN IL. 148); apenas dois anos depois, publica a Grammatica da Língua Portuguesa. 16 Não será forçado estabelecer, como lembrou Isabel Cepeda, que «[…] entre meados do século XIV e até princípios do século XVI, os livros de horas foram as obras que mais se produziram no mundo ocidental» (vide: «Manuscritos medievais iluminados». In Tesouros da Biblioteca Pública de Évora, p. 16) 17 A. Dain - Les manuscrits. Paris: «Les Belles-Lettres», 1964 18 Atente-se, a propósito, numa interessantíssima nota de António Ribeiro dos Santos, que já em 1816, a respeito da proveniência das colecções de manuscritos da Biblioteca Nacional, refere a elaboração de cópias de textos certamente relevantes no contexto cultural dos fundos das grandes bibliotecas europeias: «[…] O fundos dos Mss. vierao: 1.º Dos Códigos, e papeis, que já havia na caza, e tinhao sido espolio dos Jesuítas. 2.º Dos que vierao por doação da Casa dos Theatinos desta Corte. 3.º Dos que doou à casa o Exmo Bispo de Beja […]4.º De alguns outros que se tem doado a Bibliotheca. 5.º Dos que se tem mandado copiar de Mss. de fora.», in Constituição e Estado da Real Bibliotheca da Corte, [1816] – AHBN/CR/01/CX01 – 06. Este documento foi-nos cedido pela Dr.ª Lígia Martins, a quem agradecemos toda a ajuda prestada na concepção e elaboração deste trabalho. 14 4 por parte de um universo cada vez mais alfabetizado, facto que explica em grande parte o êxito de muitas obras literárias de índole lúdica, para leitura «doméstica», que a sobrevivência de inúmeros testemunhos deixa adivinhar. Este facto, lateral aos censos das grandes colecções, prevaleceu até ao século XIX, como atestam abundantemente tantas cópias das mesmas novelas, romances ou peças de teatro. Há ainda que considerar as justificações habituais, para a prevalência de manuscritos que não veriam por muito tempo (ou nunca) a luz da imprensa, razões de censura política ou religiosa, cuja difusão foi essencialmente feita à custa das várias dezenas ou centenas de cópias, num discreto mas muito eficaz processo de circulação. 4. As datas de produção «maciça» de testemunhos manuscritos abarcam muitos séculos, e têm sido geralmente fixadas pelos especialistas a partir do processo de proliferação de livros mais «portáteis» contendo textos fundamentais, para uso universitário,19 nos séculos XII e XIII (as chamadas Bíblias parisienses, de que há vários exemplos na Colecção de Alcobacenses) até aos copiadores literários dos séculos XVIII e XIX, ou cópias tardias que serviram para divulgação de variadíssimas obras, e que por múltiplas razões, como temos observado, prevaleceram à impressão. Tal como na maioria das grandes bibliotecas patrimoniais, as colecções de manuscritos da Biblioteca Nacional oferecem exemplarmente ao estudioso, um riquíssimo e complexo panorama. Torna-se assim evidente que a capacidade de análise de textos relativos a épocas historicamente tão diversas, constitui o desafio principal do tratamento biblioteconómico de manuscritos. A este respeito, e sendo válido para todas as épocas, surgem, à partida, a diversidade tipológica, e a evolução linguística. São as características fundamentais do manuscrito – o seu carácter único e irrepetível, a sua heterogeneidade formal, concretamente os níveis de apresentação muito variáveis da informação, no que toca a título/autor/data (não explícitos ou inexistentes), o facto de ser habitual não ter sido elaborada uma «folha de rosto»20, onde se possam detectar inequivocamente os elementos de data e local de redacção, por oposição ao que se encontra no livro impresso - que explicam, fundamentalmente, quase todas as dificuldades de catalogação. E, se é certo que nos incunábulos persiste este problema, ele desvanece-se hoje em dia, mediante a consulta das obras de referência, que descrevem praticamente a totalidade das espécies conhecidas. Torna-se assim necessário recorrer a informações internas, ou seja, detectáveis – por análise e reflexão - no conteúdo do manuscrito; deste modo, do texto se identifica o assunto, para atribuição de um título (significativo do conteúdo da obra), se extraem e referenciam nomes de personalidades que possam constar do documento, contribuindo para uma possível datação, e ainda, pela observação atenta de sinais nem sempre previsíveis como Ao tempo da redacção do presente texto, a Dra. Isabel Cepeda alertou-nos para a existência de bibliografia recente que sublinha o papel de outros agentes responsáveis pela circulação das Bíblias de pequena dimensão, citada no artigo de sua autoria «Manuscritos medievais iluminados». In Tesouros da Biblioteca Pública de Évora. 2005. Agradecemos a disponibilidade que sempre nos demonstrou e o acerto das suas sugestões. 20 A utilização deste conceito constitui uma apropriação discutível da terminologia específica do livro impresso: no códice, raramente se encontra uma folha de rosto onde constem todas as indicações esperadas numa obra publicada. 19 5 marca de posse, se reconhecem, por vezes, os antigos possuidores do manuscrito, no sentido de tentar reconstituir a história do mesmo. Relativamente à tradição documental, a necessária distinção entre original e cópia nem sempre é isenta de questões. Em caso de omissão de assinatura do autor, elementos encontrados no texto como a abundância de rasuras e emendas, ou uma apresentação gráfica menos cuidada não chegam, muitas vezes, para nos assegurar da natureza de original, uma vez que, a partir do século XVII sobretudo, o livro manuscrito passou também a ter uma função utilitária, e objectivamente de uso prático. É o caso das postillae, frequentemente anotadas à margem, na mesma letra do texto ou em letras de outras mãos, pelas quais passaram e serviram. A datação do manuscrito, vulgarmente não explicitada, é igualmente «construída» com base em inúmeros elementos, dos quais se salientam a datação do papel, por meio da identificação da marca de água, e, o mais fiável, a datação da letra do texto. Também aqui concorrem indispensáveis conhecimentos de Paleografia, sobretudo no que se refere aos textos medievais, para a classificação da letra; a partir do século XVIII, a abordagem dos textos é geralmente considerada mais acessível, e os problemas de leitura relacionam-se mais com o carácter «pessoal» das caligrafias. 5. A primeira tentativa de uniformização das regras de catalogação de manuscritos na Biblioteca Nacional baseou-se na aplicação das normas oficiais espanholas21 (1957; 1969); estas foram utilizadas até 1983, quando se tornou necessário proceder a uma reformulação de procedimentos, no sentido de aproximar o tratamento de manuscritos do de outros tipos de material documental, para cuja descrição existiam já diversos documentos normativos ISBD. Na sequência de alguns contactos com as principais bibliotecas nacionais estrangeiras e com a IFLA, optou-se pela aplicação do esquema da ISBD (G) à descrição de manuscritos, constante no capítulo 4.º das Regras de Catalogação Anglo-Americanas (AACR2).22 Este contempla a aplicação dos princípios normativos da ISBD ao tratamento deste tipo de espécies, abrangendo a totalidade das formas, suportes, tipologias e âmbito cronológico. Estes princípios respondem, ainda hoje, de forma satisfatória aos requisitos necessários à descrição de manuscritos, atendendo mesmo às particularidades da documentação medieval e renascentista, em oposição à do séc. XVII em diante. As Reglas de catalogación pressupunham um modelo de descrição de tipo genérico, cujos elementos informativos sobre a espécie a catalogar eram os seguintes (inscritos em linhas distintas): Título e Autor; Data, Paginação/Foliação e Dimensões; Encadernação; Cota antiga; Proveniência; Observações. 22 Utilizaram-se as Règles de catalogage anglo-américaines. Elaborées par the American Library Association [...] ; rédigées par Michael Gorman et Paul W. Winkler ; version française établie par Paule Rolland-Thomas avec la collaboration de Pierre Deslauriers. 2.ème éd. Montréal : ASTED, 1980, p. 167-188, e mais tarde as Anglo-American Cataloguing Rules . Prepared under the direction of the Jointy Steering Commitee for revision of AACR [...] ; ed. By Michael Gorman and Paul Winkler. 2nd ed. revision. Ottawa : Canadian Library Association, 1988, p. 122-138 21 6 Com efeito, subjacentes a estas regras, encontram-se dois conceitos fundamentais para o entendimento das diferenças do manuscrito em relação ao impresso, com o consequente reflexo a nível do tratamento: o seu carácter único e irrepetível, exigindo um grau de descrição bastante exaustivo, ao qual a Zona das Notas das AACR2 - sendo a mais desenvolvida – permitia responder, registando elementos essenciais à catalogação; e a heterogeneidade formal, que implicava considerar como fonte principal de informação, para descrever o documento, o manuscrito «em si mesmo». É de notar que se estabelece a utilização de fontes externas (outras cópias, edições do documento, referência em obras historiográficas, etc.) como mais um dos recursos, porque, precisamente devido à estrutura intrínseca de cada espécie, as outras referências nem sempre respondem de forma cabal às particularidades da descrição da mesma. Ao longo do tempo, tem-se vindo ainda a proceder a certas adaptações próprias da ISBD a este modelo de descrição, algumas delas procurando a uniformização da catalogação em relação ao livro impresso (por exemplo, a inclusão da menção do local de produção do manuscrito na designada Zona da Data - correspondente à Zona do Pé de Imprensa para as obras impressas). É de referir que, desde que se iniciou a aplicação do esquema da ISBD, evidentemente se deu continuidade ao Catálogo Geral de Manuscritos, catálogo manual que data de finais do século XIX23. 6. Procurando responder de forma mais rápida e eficaz às necessidades de pesquisa dos investigadores, o projecto de informatização implicou efectivamente uma maior sistematização dos elementos de descrição relativos aos documentos manuscritos, com vista a acompanhar a adopção do formato UNIMARC como formato nacional de catalogação em suporte electrónico. Tratou-se de um processo de relativa simplicidade, atendendo à experiência catalográfica da BN, mas houve, no entanto, que ultrapassar algumas dificuldades no que toca à inclusão24 de determinados elementos informativos específicos destes materiais, algumas das quais tinham já sido resolvidas na catalogação manual: a abrangência do conceito de 23 Data de 1898 (?) o Catálogo Geral de Manuscritos, que abrange a totalidade das colecções de Códices e Manuscritos Avulsos; trata-se de um catálogo em fichas, maioritariamente manuscritas, o qual, embora reflicta critérios que variaram ao longo dos tempos, e não apresente, por vezes, uma forma de entrada uniforme, ou omita alguns elementos de identificação, constitui ainda hoje um precioso instrumento de pesquisa. É ainda de salientar, no que toca a catálogos parciais com descrição exaustiva, o Inventário. Secção XIII – Manuscriptos, relativo à parte inicial da colecção de códices, da autoria do bibliotecário José António Moniz, figura de referência na história do tratamento técnico da BN, que aí ingressou em 1887, na época de António Enes e Gabriel Pereira; foi igualmente responsável pelo catálogo da Colecção Pombalina. É ainda obrigatória uma referência ao trabalho de Raul Proença realizado no âmbito biblioteconómico, que resultaria, após consultas a bibliotecas estrangeiras, na redacção das Regras de Catalogação; estas, apesar de não contemplarem qualquer «regra» para material manuscrito, atendem inovadoramente às particularidades de documentos como atlas, obras musicais ou cimélios. 24 No campo 106 estabelece-se a necessária codificação para o material manuscrito ($h). 7 responsabilidade25, que inclui copista e iluminador/ilustrador, e a menção do suporte, no campo 215, bem como certas particularidades relativas aos manuscritos medievais (número de colunas, linhas de texto por fólio, classificação do tipo de pauta e notação musical, a incluir neste mesmo campo). Já no que respeita ao Bloco 3, tem-se vindo a desenvolver um trabalho de pormenorização, com o objectivo de fornecer explicações e informações essenciais à descrição documental, mas não passíveis de ser incluídas em outras zonas, como é o caso da definição da natureza do manuscrito no que concerne à sua tradição documental, sempre que tal informação se afigura significativamente credível, ou seja, tratar-se de um original, de um original autógrafo, de uma cópia, de uma cópia assinada, de um apógrafo, etc. Devendo ser a primeira nota a respeito do documento, estabeleceu-se o seu preenchimento no campo 300, notas gerais. No caso de textos anónimos, medievais e do séc. XVI, muitas vezes sem título, inclui-se a transcrição do Incipit 26, e eventualmente do Explicit, no campo 304. A nota de publicação preenche-se forçosamente no campo 305, referindo-se a informações sobre a edição do manuscrito. Determinadas notas específicas aos manuscritos medievais, como o número e composição dos cadernos, assinaturas e reclamos, regramento, picotagem, classificação do tipo de letra, referência à letra das anotações marginais, descrição da iluminura, etc. incluíram-se no campo 307, por dizerem respeito ao manuscrito como objecto físico. É de referir, pela pertinência destes dados para a possível reconstituição da história do manuscrito, e por vezes para a sua própria identificação, a «nota de proveniência»: não existindo um campo específico no formato UNIMARC para este elemento, optou-se pela utilização do campo 317 relativo ao exemplar (e que implica sempre a indicação da cota), muito embora tal conceito não possa ser aplicado ao manuscrito, atendendo ao seu carácter único. Com efeito, é perfeitamente viável recuperar a informação fundamental de documentos com exigências de descrição tão diversas como as relativas aos manuscritos medievais, garantindo igualmente a recuperação do(s) título(s) da(s) obra(s) contida(s) nos códices, e dos nomes de todos os responsáveis pelo conteúdo intelectual, artístico e gráfico dos mesmos. 25 26 Incipit e Explicit: palavras significativas iniciais e finais de um texto. Estes elementos de informação serão fornecidos sempre que se trate de textos anónimos medievais e do século XVI, visto contribuírem para a identificação dos mesmos. 8 Em conclusão A ausência de princípios normativos para a descrição de manuscritos, que contemplem em definitivo a multiplicidade de situações com que se depara o bibliotecário, devidas à própria heterogeneidade e diversidade deste tipo de material, acabou por conferir alguma «liberdade» na adaptação das regras existentes. Tornou-se possível desenvolver, mesmo utilizando o formato UNIMARC, um trabalho de descrição documental abrangente, inserindo o manuscrito no seu contexto histórico e no conjunto da produção do seu autor, procurando igualmente descrever conteúdos, produzindo assim descrições bibliográficas detalhadas, opção que se começou a seguir na Biblioteca Nacional a partir de 2001 (cfr. A Ciência do Desenho: a ilustração na colecção de códices da Biblioteca Nacional), no sentido de corresponder às exigências crescentes da investigação. Tão importante como a identificação de autores, obras, datas e outros dados de carácter bibliográfico sobre a espécie, é a informação que se deverá obter e divulgar, tanto quanto possível, sobre a sua origem e história, tentando estabelecer relações de semelhança e proximidade com materiais afins, para um mais completo conhecimento, fundamental para a história das bibliotecas, do saber e da cultura27. A componente de investigação histórica é pois essencial no tratamento documental, a par de um grau elevado de exigência técnica na descrição de manuscritos; de ambas depende a valorização de um património bibliográfico privilegiado, como é o do livro manuscrito. Maio 2006 Aires Nascimento- «Em nome do livro impresso : por entre alheamento e valorização de um património privilegiado». Leituras : Rev.da BN. S. 3, 14-15 (2004-2005), p. 103-132 27 9 000 01347cbm 02200289 04500 001 622267 005 20030414145700.0 095 $aPTBN00833680 100 $a19990105f12011300k y0pory0103 ba 101 0 $alat 102 $aFR 106 $ah 200 1 $a[Bíblia]$bManuscrito] 210 $a[Paris,$d12--] 215 $a[4, 1211, 2] p. (2-4 colns., 46-47 l.)$cvelino, il. color.$d165x120 mm 304 $aTrata-se de um exemplo das designadas "Bibles de poche", "Bibles portatives" ou parisienses, executadas em Paris em meados do século XIII, em oficinas de copistas que se dedicaram sobretudo à produção deste tipo de bíblias. Estas tiveram enorme divulgação por toda a Europa 304 $aTexto em latim 307 $aLetra gótica 307 $aIniciais historiadas a cores e ouro; iniciais ornamentadas com elementos vegetalistas e animais fantásticos; capital "I" do princípio do Génesis representando as cenas dos sete dias da Criação do Mundo e ainda a representação da Crucificação 307 $aFólios aparados 310 $aEncadernado com pastas de madeira forradas de pele; ferros gravados a seco 317 $aPert.: Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça$5PTBN: ALC. 457 321 1 $aDescrição em: Inventário dos Códices Iluminados : até 1500 / Inventário do Património Cultural Móvel. - Lisboa : Inst. da Biblioteca Nacional e do Livro, 1994. Vol. 1, p. 40 620 $dParis 712 02 $aOrdem de Cister.$b Mosteiro de Santa Maria$c(Alcobaça)$4390 801 0 $aPT$bBN$gRPC 966 $lBN$mMSS$sALC. 457 10 000 03437cbm 2200337 450 001 1283935 100 $a20040430g16401641k y0pory01030103ba 101 0 $apor 102 $aPT 106 $ah 200 0 $aAduertençias de naueguantes$bManuscrito]$fPor o capitão Marcos serueira de Aguilar natural desta Cidade de l[i]x[bo]a e v[i]z[inh]o de Setubal 210 $d[1640-1641] 215 $a[6 br], [V], 172 f., enc.$cil.$d19 cm 300 $aOriginal autógrafo. Apresenta várias rasuras 304 $aMarcos Cerveira de Aguilar, capitão de ordenança em Setúbal, escreveu "Diálogos das armadas e naus de guerra destes reinos de Portugal e senhorios", dirigidos ao conde D. Diogo da Silva, "Governador dos Reinos, e Senhorios de Portugal" 304 $aObra dedicada "a dom Joseph de meneses do concelho de guerra de Sua Magestade guouernador da fortaleza de São G[ul]iao" (f. III). D. José de Meneses foi nomeado em 1640 por D. João IV conselheiro de guerra e governador do forte de S. Julião. Vítima de uma calúnia de Pedro Bonete, que o acusou de conspiração, foi preso em 1643 e libertado no ano seguinte por confissão do seu acusador. Foi exilado para Cantanhede, onde viveu o resto da sua vida. O brasão dos Meneses de Cantanhede aparece no f. I 306 $aReferência à data do ms. no verso do f. 2 307 $aIlustrações de uma embarcação (f. 91), de peças de embarcações e rosas dos ventos. Tabela de relação entre números naturais, os seus quadrados e sequência de números ímpares (f. 167) 310 $aEncadernação em pergaminho com vestígios de atilhos; capa com pequenos rasgões; título na lombada 317 $aPert: "Casa de Cadaval" (carimbo no f. de guarda e no f. I v.)$5PTBN: COD. 13390 321 $aFontoura da Costa, Bibliografia náutica portuguesa até 1700. 1940, p. 36; Os descobrimentos portugueses e a Europa do Renascimento, Conselho da Europa, 1993 (com referência e ilustração de uma embarcação em construção no manuscrito), p. 93; B. Machado, vol. III, p. 399; Dicionário Portugal, vol. I, p. 103 e vol. IV, p. 1052; GEPB, vol. 1, p. 666 e vol. 16, p. 934; Indice Biográfico de España, Portugal e Ibero-América, München, New York, London, Paris: K. G. Saur, 1990, vol. 1, p. 21 (remete para o Dicionário Portugal) 321 $aReferido em: Martinho da Fonseca, "Os manuscriptos da Casa Cadaval". Bol. da Soc. de Bibliophilos Barbosa Machado, Lisboa, Ano III, 1915, p. 12; Francisco Contente Domingues,"Os navios da expansão - o livro da fabrica das naos de Fernando Oliveira e a arquitectura naval portuguesa dos séculos XVI e XVII" , Lisboa, 2000, vol. 1. resumo e comentários à obra p. 474 à 483, com ilustração da nau na p. 475 327 1 $aObra com 35 capítulos na forma de diálogo entre um capitão e um soldado, relativa a navegação e ciência bélica naval e roteiro dos portos peninsulares desde 11 o Cabo de S. Vicente até ao Cabo Finisterra e desde este até Cartagena. Possui uma parte introdutória (f. II), uma dedicatória a D. José de Meneses (f. III) e uma advertência aos leitores (f. IV e V) 518 1 $aAdvertências de navegantes 700 1 $aAguilar,$bMarcos Cerveira de,$ffl.1640 702 1 $aMeneses,$bJosé de,$ffl. 164-$4280 722 0 $aCadaval, Casa de$4390 801 0 $aPT$bBN$gRPC Bibliografia AMERICAN LIBRARY ASSOCIATION. ASSOCIATION FOR LIBRARY COLLECTIONS & TECHNICAL SERVICES. SERIALS SECTION ACQUISITIONS COMMITTEE – Règles de Catalogage Anglo-Américaines. Rédigées par Michael Gorman et Paul W. Winckler ; version française établie par Paule Rolland-Thomas avec la collaboration de Pierre Deslauriers. 2ème éd. Montréal : ASTED, 1980, p. 167-188 BOUZA-ÁLVAREZ – «Cultura escrita e história do livro : a circulação manuscrita nos séculos XVI e XVII». [Tradução de Manuela D. Domingos]. Leituras : Revista da Biblioteca Nacional. Lisboa : BN. 9-10 (2001-2002), p. 63-95 BUESCU, Ana Isabel – «Cultura impressa e cultura manuscrita em Portugal na Época Moderna : uma sondagem». Penélope. 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