CONVIVENDO COM A LOUCURA: as representações sociais de familiares de usuários de instituição psiquiátrica Joel Lima Júnior Psicólogo e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde (UFRN). Thelma Maria Grisi Velôso Doutora em Sociologia. Professora titular do Departamento de Psicologia (UEPB). Resumo Com o advento da Lei de Reforma Psiquiátrica no Brasil, observase uma significativa queda nas internações psiquiátricas e, conseqüentemente, a necessidade de uma maior participação da família no tratamento do louco. O presente artigo, ao analisar as representações sociais dos familiares de usuários de instituição psiquiátrica acerca da loucura, seus conflitos, seus medos e anseios, acredita estar contribuindo para esse processo de mudança, visto que ao entendermos a forma como a loucura é representada pela família, teremos mais elementos para a reflexão sobre a permanência do louco fora do asilo. Palavras-chave: loucura; família; representação social. Abstract With the institution of the Law of Psychiatric Reform in Brazil, a significant decline is observed in the psychiatric internments, consequently, the necessity of a larger family participation in the treatment of insane people. In the present article, when analyzing the users of psychiatric institution relatives' social representations concerning the insanity, their conflicts, fears and longings, we believe to be contributing to this process. The comprehension of the form as the insanity is represented by the family will give us more elements for the reflection on the insane's permanence out of the asylum. 163 Keywords: insanity; family; social representation n. 32 2007 p. 163-172 Introdução O interesse pelo presente tema surgiu em uma pesquisa, realizada em um Hospital Psiquiátrico na cidade de Campina Grande, Paraíba. Naquela pesquisa, procurou-se analisar as representações sociais elaboradas pelos usuários psiquiátricos internos (exceto alcoolistas e usuários de drogas) sobre a sua medicalização (Lima Júnior, Silva e Freitas, 2002). Naquele estudo, explicitou-se a grande revolta dos usuários com relação ao tratamento recebido na instituição. Verificou-se um panorama precário no interior do hospital psiquiátrico, com constantes queixas acerca da alimentação e das condições de estadia. Além das reclamações relativas às precariedades institucionais, observou-se, também, a referência aos conflitos advindos da dificuldade da família de relacionar-se com os loucos. Logo, muitos eram levados de volta ao hospital psiquiátrico, como forma dos familiares livrarem-se de um "problema". De acordo com Melman (2001), o papel da família, já há algum tempo, vem ocupando lugar privilegiado nas reflexões e discussões na área de Saúde Mental. Com o advento da Lei de Reforma Psiquiátrica no Brasil (Lei 10.216/2001), verifica-se o surgimento de novas expectativas no tocante à relação entre a família e o usuário de instituição psiquiátrica, visto que a citada Lei tem como palavra-chave a desconstrução não só dos manicômios, mas também dos saberes e estratégias utilizados para lidar com a loucura. Assim, propõe-se uma transformação no modo como os loucos são tratados. Essa nova forma de cuidar estimula uma significativa queda nas internações psiquiátricas, intensificando a exigência do comprometimento da família, o que modifica, de forma significativa, a participação da mesma nesse processo. Sendo assim, entendendo que a família possui um papel primordial no tratamento dos usuários de instituição psiquiátrica e pretendendo contribuir nas discussões que se travam na área de Saúde Mental, optou-se por desenvolver uma pesquisa qualitativa, fundamentada na Teoria das Representações Sociais, que teve como objetivo principal a análise das representações sociais acerca da loucura, elaboradas por familiares de usuários do Instituto Campinense de Neuropsiquiatria e Reabilitação Funcional (ICANERF) que se localiza na cidade de Campina Grande - PB. (Lima Júnior, 2003). A clientela da referida instituição é de baixa renda e os internamentos são realizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Vale ressaltar ainda que utilizamos o conceito de Representação Social proposto por Moscovici (1978). Segundo esse autor, as representações sociais são um conjunto de conceitos e explicações originado no cotidiano dos indivíduos, logo, estão presentes em todos os lugares onde as pessoas interagem informalmente, tendo como função orientar seus comportamentos e suas comunicações. 164 Metodologia Considerando que um dos pesquisadores era estagiário de Psicologia na referida instituição psiquiátrica, os primeiros contatos com os familiares ocorreram nas reuniões que havia mensalmente entre as famílias dos usuários da instituição, os psiquiatras, a assistente social, a psicóloga e o estagiário de Psicologia. Ao término das reuniões, informou-se aos presentes que se pretendia desenvolver uma pesquisa no hospital com os familiares, explicando também que a participação nessa pesquisa seria voluntária. n. 32 2007 p. 163-172 Não foi delimitado um número total de familiares a serem entrevistados, visto que se utilizou o conceito do ponto de saturação, proposto por Bertaux (1980 apud Lang; Campos; Demartini, 2001). A utilização desse critério pressupõe a análise dos dados ao longo de todo o processo de realização das entrevistas, objetivando, assim, determinar o momento em que se atingirá o ponto de saturação. Desse modo, à medida que os dados começam a se repetir, realizam-se mais algumas entrevistas e se encerra essa etapa da pesquisa. Um outro critério empregado foi o de que esses familiares morassem na mesma casa que o usuário. Por fim, foram realizadas dez entrevistas semi-estruturadas. O grupo de entrevistados constituiu-se apenas de familiares do sexo feminino, visto que, ao longo do processo de realização das entrevistas, nenhum familiar do sexo masculino compareceu à instituição psiquiátrica no período de visita. Das dez mulheres entrevistadas, oito eram mães, uma esposa e a outra era irmã de usuários, com idade variando entre quarenta e dois e oitenta e três anos. Grande parte das entrevistadas mora na periferia de Campina Grande, são analfabetas, aposentadas e com renda média de um salário mínimo e meio. As entrevistas, que foram realizadas individualmente nos dias em que o hospital estabelecia para as visitas, foram gravadas em fitas cassetes, com o livre consentimento da entrevistada, e, posteriormente, transcritas na íntegra. A análise dos dados, por sua vez, foi feita a partir da proposta de Análise de Conteúdo desenvolvida por Demartini (1988). Apesar de certa resistência em dar a entrevista, elas chegaram a verbalizar que esse seria um momento de desabafo, no qual elas poderiam contar suas histórias e diminuírem, assim, suas angústias. As Representações Sociais dos familiares Representando a Loucura A partir das análises das entrevistas, evidenciou-se que alguns familiares representaram a loucura como uma doença dos nervos, que leva à agitação e provoca medo: “Agora ela começou a juntar as enxadas do lado de fora do terreiro [quintal] e a guardar dentro de casa [...] e eu sozinha, esse povo doente dos nervos fica agitado, aí eu fiquei com medo” (E 1- M)1 O discurso desta e de outras entrevistadas ressalta a questão do medo da loucura, o que contribui com a idéia de que o medo é constante para aquele que convive com o louco. Essa questão foi ressaltada também em outra pesquisa, já mencionada, na qual se constatou que o medo que os familiares tinham do louco era um dos principais fatores que justificavam as internações (Lima Júnior, Silva e Freitas, 2002). Observemos também, na seqüência discursiva acima, que a loucura é representada como doença, portanto, algo orgânico. Nesse sentido, outras entrevistadas representaram a loucura como desvio no cérebro: "Ele é adotivo, no tempo que ele era pequeno, nós colocamos ele pra estudar, urinava e chorava o tempo todo e a professora n. 32 2007 p. 163-172 165 Segundo Foucault (1999), o medo da loucura não é algo recente. Ele surge em meados do século XVIII, à medida que o medo da lepra diminui. O referido autor sublinha também que esse medo está relacionado à forma como o louco é representado socialmente, ou seja, como um indivíduo que não merece confiança, já que é difícil precisar suas ações. mandou a gente trazer ele pra bater um eletro, aí detectou que ele tinha desvio no cérebro" (E5 - M). "Ele tem um desvio no cérebro, quando eu bati um eletro o doutor disse que ele tinha desvio no cérebro" (E7 - M). É possível constatar, com base nessas duas citações, que o discurso médico influencia na representação da loucura, pois foi com base em um diagnóstico médico que algumas entrevistadas a representaram, sugerindo, assim, que essa representação foi construída a partir de um saber já difundido amplamente pela medicina. No entanto, Moscovici (1984 apud Sá, 1993) ressalta que os indivíduos não são apenas processadores de informações, nem meros portadores de ideologias, mas pensadores ativos, que mediante inúmeros episódios cotidianos de interação social, produzem e comunicam incessantemente suas próprias representações e soluções específicas para as questões que se colocam a si próprios. Ainda afirma que: "coexistem nas sociedades contemporâneas duas classes distintas de universos de pensamento: os universos consensuais e os universos reificados. Nos últimos, bastante circunscritos, é que se produzem e circulam as ciências e o pensamento erudito em geral [...] Aos universos consensuais correspondem as atividades intelectuais da interação social cotidiana pelas quais são produzidas as Representações Sociais" (Moscovici, 1984 apud Sá, 1993, p.28). Logo, o conceito de representação social é de fundamental importância para se compreender o senso comum, pois é através dele que se poderá construir uma epistemologia popular, em contraposição a uma epistemologia científica. O referido autor não hierarquiza esses dois tipos de conhecimento, pois, para ele, sempre vão existir, cada um deles com propósitos distintos. Ressalta-se então que, embora o discurso médico tenha influenciado a representação da loucura como desvio no cérebro, ele não a determina, pois toda informação nova, que chega ao sujeito, confronta-se inicialmente com as informações que este já possui e, só a partir de então, são incorporadas em um sistema particular de categorias. Moscovici (2003, p.1978), denomina esse processo de ancoragem, um dos processos de formação das Representações Sociais. Verificou-se que outras entrevistadas representam a loucura como uma fraqueza na cabeça. A exemplo: "Ele passou três dias sem comer, tomava água, café, fumava [...] aí botou pra chorar. Na minha casa tinha um pedaço de terra, tinha uns pés de manga, ele ficava debaixo dos pés de manga, chorava, quando pensa que não ele começou [pausa] percebi que estava fraco da cabeça" (E 2 - M). 166 Observa-se que, para essa entrevistada, o fato de estar "fraco da cabeça" foi associado à falta de comida. O que sugere um axioma: "deixar de comer pode enfraquecer a mente a ponto de conduzir à loucura". Percebeu-se, mais uma vez, que a loucura é representada como uma doença orgânica; representação esta veiculada pela maioria das entrevistadas. De acordo com Serrano (1982), o status de doença atribuído à loucura teve origem com a internação específica dos loucos, o que também marcou o início da Psiquiatria. n. 32 2007 p. 163-172 Nesse sentido, Fleming (1976) ressalta que as imagens culturais associadas à loucura (vício, castigo de Deus, paixão desenfreada, entre outras) começam a ser abandonadas progressivamente em favor de uma imagem positiva: a loucura, como entidade objetiva, localizada no corpo, adquire gradualmente o estatuto de doença. Entretanto, na pesquisa realizada, uma entrevistada, partindo de um pressuposto religioso, representou a loucura da seguinte forma: “Eu imagino assim, que isso não seja doença, que não é coisa de Deus, na minha mente eu penso que isso é um encosto, eu imagino” (E 7 - M). Esse discurso sugere-nos o seguinte questionamento: Se a loucura “não é um negócio de Deus”, seria ela “um negócio do Diabo”? Será que na tentativa de responder o “certo” para o entrevistador, outras entrevistadas omitiram o discurso “místico” tão presente no senso comum? A representação da loucura como “problema espiritual” também foi encontrada, entre outros, no trabalho desenvolvido por Alves (1994). Segundo o autor, além dos familiares atribuírem a causa da loucura a um “encosto”, o tratamento administrado foi “banhos” e despachos em encruzilhadas. De acordo com Foucault (1975), o louco era considerado, até o advento de uma medicina positiva, como um possuído. E todas as histórias da Psiquiatria até então, quiseram apontar, no louco da Idade Média e do Renascimento, um doente ignorado, preso no interior da rigorosa rede de significações religiosas e mágicas. Assim, teria sido necessário esperar a objetividade de um olhar médico sereno e, finalmente, científico para descobrir a deterioração da natureza lá onde se decifrava apenas perversões sobrenaturais. Vale ainda sublinhar que ser entrevistado no âmbito institucional, reduto do conhecimento médico, pode ter interferido significativamente nas respostas dadas, talvez fora do hospital as representações veiculadas fossem outras. No entanto, como afirma Orlandi (1987 apud Queiroz, 1999), o discurso do sujeito não mudará completamente em diferentes relações, uma vez que sua identidade não é perdida em cada relação de linguagem diferente. O que há é uma modulação do seu discurso e da sua identidade nas diferentes relações. Nesse sentido, as representações sociais agem diretamente na definição da finalidade da situação, determinando os tipos de relações pertinentes para o sujeito, e dentro das situações de resolução de tarefas, produz um sistema de antecipações e expectativas, o qual seleciona, filtra e interpreta as informações, visando adequar a realidade à representação, definindo o que é lícito e tolerável em um contexto social (Abric, 2000). Representando as Causas da Loucura “Ele começou chorando e sorrindo por causa de uma mulher. Tinha a casa de uma filha minha, tinha uma senhora lá, uma moça. Diz ele que era doido pra arrumar uma namorada, 'ela deu bola a ele', você sabe, menino, né? Depois que ele ficou doido pra falar com ela, ela mandou um bilhete pra ele dizendo que não podia mais falar com ele, por causa que tinha um n. 32 2007 p. 163-172 167 Em relação às representações sociais elaboradas pelos familiares, acerca do que causou a loucura em seu parente, observou-se que, para algumas entrevistadas, a loucura foi causada por um profundo desgosto, advindo de uma desilusão amorosa: amante, e o amante morava em João Pessoa [capital do Estado da Paraíba]. Ele chegou em casa chorando, parecia que tinha morrido uma pessoa” (E 2 - M). “Eu acho que foi mais devido à mulher dele ter largado ele. Quando ele adoece só fala nela e nos filhos” (E 9 - M). As entrevistadas que são mães, a todo o momento, sentem necessidade de culpar alguém pelo estado de seus filhos: namorados (as), maridos e esposas. Esse fato remete-nos para um modelo familiar ainda encontrado na sociedade (o burguês), no qual a mulher assume uma maior responsabilidade no tocante à criação dos filhos, visto que recai sobre ela a culpa por qualquer desvio na educação, ou mesmo qualquer doença, que venha a prejudicar a prole (Reis, 1992). Com isso, supomos que as mães necessitam culpar alguém antes que essa mesma culpa recaia sobre elas. Para Cooper (1980 apud Duarte Júnior, 1987), o sentimento de culpa é o principal meio de controle utilizado pela família que se orienta pelo modelo burguês. É através dele que se consegue o cumprimento das normas prescritas no seio familiar. Rabelo, Alves e Souza (1999), ressaltam que, no caso da internação em hospital psiquiátrico, essa culpa não recai apenas sobre a mãe, mas sobre toda a família. É como se esta não tivesse cumprido a função de zelar pela saúde de seus membros, sendo assim, interna-se o louco, como forma de omitir uma falha. Nesse sentido, a ausência da figura paterna também foi ressaltada como fator desencadeante da loucura: "Acho que foi a ausência do pai. Não é que ele tenha ficado, eu é que penso [...] Ele tem raiva de mim, porque ele queria que eu prendesse o pai, quando ele [pai] arrumou a mala pra ir embora, essa mala ficou quatro dias lá em casa, mas todo dia que eu chegava, a mala estava desarrumada, ele [usuário] tirava tudo de dentro e o pai reclamava [...] tirava tudo e ficava gritando, aí ele [usuário] ficava com raiva de mim [...] quando era novinho de dois pra três anos, ele tinha febre quando o pai não estava em casa, é por isso que eu juntei uma coisa e outra" (E 3 - M). A seqüência discursiva acima também sugere uma reflexão sobre o modelo familiar composto por pai, mãe e filhos, no qual todos possuem um papel, que é determinado socialmente: o pai representa o poder econômico-financeiro, a comunicação com a sociedade e a referência das regras e leis; a mãe cuida da casa e dos filhos e os filhos obedecem aos pais (Ariès, 1981). Portanto, essa seqüência sugere a importância atribuída ao homem (chefe da casa), pois a sua ausência desestruturou a família de forma tão intensa que, segundo a entrevistada, causou a loucura em seu filho. Supõe-se, ainda, que a possível mágoa por ter sido abandonada pelo marido possa também influenciar significativamente esta representação. Já outras entrevistadas associaram a causa da loucura a pancadas na cabeça: "A sobrinha do meu marido foi balançar ele na rede, aí ele caiu, bateu com a cabeça na parede" (E 5 - M). 168 "Quando tinha oito anos, ele sofreu uma queda e ficou sangrando, aí levaram ele pro hospital e o médico falou que ele tinha que ficar de repouso" (E 10 - I). As entrevistadas acima, ao associarem a causa da loucura a pancadas na cabeça, corroboram a representação da loucura como doença orgânica, atribuída pela maioria das entrevistadas. n. 32 2007 p. 163-172 Convivendo com a Loucura A relação dos familiares com os usuários, quando estes se encontram em casa, foi representada de forma conflituosa por todas as entrevistadas. Dizem sentir medo, devido ao comportamento diferente apresentado pelo usuário, bem como, às inúmeras agressões físicas e verbais que sofreram e ainda sofrem: "O que trouxe ele ao hospital é que ele já estava com dezesseis anos e eu não agüentava mais apanhar dele. Ele me dava cada tapa, está por fora!" (E 3 - M). "Ele é agressivo, me espanca com freqüência, e eu dialogando. Eu ia pra Belo Horizonte, mas quando a gente tem filho, eles ficam no meio. Fiquei com medo dos meus filhos me cobrarem mais tarde o porquê deu ter dado o desprezo ao pai deles, agüentei a conseqüência" (E 4 - E). Ao longo dessas seqüências discursivas, percebe-se que, novamente, surge a questão do medo. Se em outras seqüências, esse medo era causado pela possibilidade de algo acontecer, agora ele é real, diante das agressões e ameaças de morte. O medo da loucura mais uma vez é utilizado para legitimar a internação. As citações acima sugerem certo sentimento de culpa e/ou medo de estar fugindo das responsabilidades. Internar uma pessoa da família é como eximir-se de confrontar com um problema que a família tem o dever de enfrentar. Rabelo, Alves e Souza (1999), reiteram a idéia de que a família é o principal lócus de cuidado dos doentes, é onde se delineia grande parte das decisões e estratégias para lidar com essa situação. Conseqüentemente, a principal carga de cuidados recai sobre a mãe (ou outra figura feminina que assume papel equivalente), sendo a mesma responsável, não só pela administração da vida diária do doente, como também pela escolha do tratamento. Nesse sentido, nos discursos das entrevistadas, pode-se observar que o familiar mais "atingido" pelo comportamento do usuário é aquele que tem a tarefa de cuidar do mesmo e, na maioria das vezes, é o único que o visita na instituição psiquiátrica, neste caso: mãe, esposa ou irmã, a exemplo de E 5: "Ele gosta de andar de ônibus, teve momento que dentro do ônibus, ele começou a bater no pessoal, mas quando eu dizia pra ele não fazer aquilo, ele 'voava em cima de mim', aí eu tinha que descer pra ele não ficar batendo, pois se ele ficasse ali o prejudicado seria ele. Se ele pedir pra andar e eu disser que não, ele 'voa em cima de mim' e me bate" (E 5 - M). Evidencia-se certa resignação diante da loucura, percebe-se que as entrevistadas encontram-se em um caminho sem volta, caminho esse onde nada mais pode ser feito a não ser se conformar. Observou-se, ainda, que os familiares reestruturam suas vidas de forma significativa, mudando suas rotinas: "Me sinto completamente neutra quando ele está em casa. Por exemplo, quando ele me espanca eu não contribuo do mesmo jeito. É pedir calma a Deus e ficar, procurar me controlar, me controlar e deixar ele fazer, reagir como ele quiser" (E 4 - E). n. 32 2007 p. 163-172 169 "Aí quando ele está dormindo, alivia a cabeça dele e a minha, né? Ninguém liga rádio, ninguém liga a televisão, falam lá no quintal, pra deixar ele dormir sossegado. Depois que ele está acordado ele diz: 'Mãe, eu quero isso pra eu comer!', se não tiver eu arrumo na hora, tem que fazer primeiro que o do pai, e se eu não tiver eu saio nas bodegas pra comprar fiado, pra não atrapalhar ele, né? Pra não vê ele brabo" (E 2 - M). A análise das seqüências acima nos remete à questão de gênero como também ao modelo familiar burguês. Os usuários citados são do sexo masculino e verifica-se o surgimento, no seio familiar, de uma estrutura que impede que esses indivíduos sejam perturbados ou que suas vontades não sejam satisfeitas. Essa situação não foi encontrada, quando se tratava de usuário do sexo feminino. Embora a voz da loucura tenha sido abafada ao longo do tempo pela voz da razão (Foucault, 1999), observa-se que o considerado louco, quando é o chefe da casa, ainda tem poder de subjugar os outros membros da família, embora seja uma subjugação, sobretudo, através da força física e do medo. A presença do usuário no lar mostrou-se coercitiva para todos os familiares, evidenciando, portanto, uma grande tensão, devido ao constante estado de alerta a que estão submetidos. Por outro lado, os discursos sugerem que essa situação legitima a internação. De acordo com Souza (1999), não é isenta de dor e sofrimento a tarefa de internar alguém em um hospital psiquiátrico, principalmente, na primeira vez que isso acontece. O referido autor ressalta, ainda, que a sensação de se estar cometendo uma violência para com a pessoa que vai ser internada confronta-se com a representação que esse familiar tem acerca do hospital psiquiátrico, representação que corresponde à visão dominante no senso comum: local onde as pessoas são submetidas a tratamentos desumanos, a torturas com choqueelétrico e camisa-de-força. Entretanto, as decisões pelas internações seguintes são sempre mais fáceis que a primeira. O Tratamento no Âmbito Hospitalar O hospital foi indicado, pela maioria das entrevistadas, como o melhor lugar para o usuário ficar. Desse modo, algumas entrevistadas dizem que o usuário precisa do hospital, enquanto estiver se tratando: "Eu queria ele comigo, mas eu não posso. O melhor lugar pra ele ficar é aqui" (E3-M). "Eu queria colocar ele em um hospital em João Pessoa [capital do Estado da Paraíba], já ouvi dizer que lá, a pessoa fica efetiva, só não sei onde é" (E8-M). "É bom, completamente bom. Os meninos têm cuidado com ele, não deixam ele fugir, tem a alimentação dele na hora certa, tem medicação e, em casa, eu não posso dar" (E 4 - M). Já para outras, o tratamento não adianta: "Parece que o medicamento se acostuma com o problema, e não faz efeito. Nenhum medicamento resolve o problema, né? A gente tem que pedir muito tempo de vida a Deus, pois a vida dele [usuário] depende da nossa" (E 5 – M). 170 Verificou-se certa resistência dos familiares ao responderem questões acerca do tratamento recebido pelo usuário na instituição. Talvez, por medo de este conteúdo ser transmitido aos dirigentes do hospital psiquiátrico, comprometendo a internação do seu parente. Torna-se importante ressaltar que a neutralidade do entrevistador é inexeqüível. E, nesse sentido, o fato de o entrevistador ser um estagiário da instituição também deve ter influenciado as respostas. Como já salientamos, no processo de elaboração das representações é produzido um sistema de antecipações e expectativas que adapta a realidade à representação, definindo o que é lícito e tolerável em um contexto social (Abric, 2000). n. 32 2007 p. 163-172 Ao longo das entrevistas, os familiares, geralmente, falam bem da instituição psiquiátrica e dos funcionários e, quando relatam algo que precisa ser melhorado, imediatamente é dito algo bom em relação à instituição. Nas representações da maioria das entrevistadas, o hospital cumpre seu papel, uma vez que o discurso das mesmas sugere que se o usuário não fica curado, é por causa da doença e não por causa da instituição psiquiátrica. Considerações finais A partir da pesquisa desenvolvida, constatou-se que a proposta do Movimento de Reforma Psiquiátrica no Brasil ainda tem um longo caminho a percorrer. Acreditamos, então, que as atenções devam voltar-se para a família, visto que não basta apenas abolir a prática asilar, mas dar subsídios para que os usuários de instituições psiquiátricas possam permanecer do lado de fora dos asilos. Sendo assim, não perdendo de vista que as entrevistas foram realizadas num hospital psiquiátrico e que isto, provavelmente, interferiu nas respostas, observa-se a urgência em desenvolver trabalhos que abranjam a sociedade como um todo, pois, enquanto a loucura for representada como doença, o louco como um ser perigoso e incapaz, e o hospital como o único local e/ou local mais adequado para tratar a loucura, a reforma psiquiátrica não se efetivará. NOTA 1 Visando manter o anonimato das entrevistadas, optamos por atribuir um número a cada entrevista, número que equivale à ordem que as entrevistas foram realizadas, seguido do grau de parentesco da entrevistada (E – Esposa, I – Irmã e M – Mãe). REFERÊNCIAS ABRIC, Jean-Claude. 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