Obra analisada: A Mão E A Luva – (1874) Gênero Romance AUTOR Machado de Assis DADOS BIOGRÁFICOS Nome completo: Joaquim Maria Machado de Assis BIBLIOGRAFIA Poesias Crisálidas (1864); Falenas (1870); Americanas (1875); Poesias completas (1901). Romance Ressurreição (1872); A Mão e a Luva (1874); Helena (1876); Iaiá Garcia (1878); Memórias póstumas de Brás Cuba (1881); Quincas Borba (1891); Dom Casmurro (1899); Esaú e Jacó (1904); Memorial de Aires (1908). Conto Contos Fluminenses (1870); Histórias da meia noite (1873); Papéis avulsos (1882); Histórias sem data (1884); Várias histórias (1896); Páginas recolhidas (1899); Relíquias de casa velha (1906). Teatro Queda que as mulheres têm para os tolos (1861); Desencantos (1861); Hoje avental, amanhã luva (1861); O caminho da porta (1862); O protocolo (1862); Quase ministro (1863); Os deuses de casaca (1865); Tu, só tu, puro amor (1881); Teatro coligido (incluindo) Não consultes médico e Lição de botânica (1910). Resenha O romance inicia-se com a primeira desilusão de Estevão em relação à sua paixão, a moça Guiomar, ainda adolescente. Na ocasião, Estevão está decidido a tirar a própria vida em razão da dor de saber que seu amor pela moça não seria correspondido no futuro. Quem o ouve e o impede de prosseguir com esse intuito é seu amigo Luís Alves. Afilhada de uma rica baronesa, pela qual era sustentada em um colégio para professores, Guiomar era uma moça simples que ficou órfã logo cedo. Após a morte da filha da baronesa, Guiomar deixou os estudos para morar com sua madrinha, desenvolvendo-se entre ambas (a baronesa e Guiomar) um sincero e recíproco amor maternal. A posição social de Guiomar é apresentada ao leitor logo nos primeiros parágrafos. Sabe-se que ela é uma moça de dezessete anos, e que suas circunstâncias pessoais são modestas: “Guiomar tivera humilde nascimento; era filha de um empregado subalterno, não sei de que repartição do Estado...” (p. 13). Inteligência e força de vontade lhe permitem superar a tristeza pela perda dos pais, mas também têm influência em sua reação diante da humilde condição socioeconômica em que se encontrava. Relatos de como vivem certas pessoas deixam profundas impressões na moça, aflorando naturalmente sua ambição por prosperidade material. Mas essa característica não é a que unicamente define o caráter de Guiomar. Quando posta sob a proteção da baronesa, Guiomar insiste em que se lhe permita ganhar o próprio sustento, como professora: “Peçolhe uma coisa honrosa para mim” (p. 15). Há certo orgulho e desejo de emancipação na fala da moça, mas a ideia de trabalhar para obter seu próprio sustento é, conforme as convenções de classe da época, um sacrifício social para Guiomar: “Estas últimas palavras passaram-lhe pelos lábios como que à força. O rubor subiu-lhe as faces de vergonha” (p. 15). Mas, como o próprio narrador mais tarde sugere, “é preciso dizer que ela contava com a ternura da baronesa” (p. 41). Assim, segundo o narrador, Guiomar contava com o favorecimento da madrinha, mas não queria que esse fato influenciasse o julgamento dela a seu respeito, mostrando-se, então, humilde e polida. Desse modo, seu ato teria sido premeditado. Entretanto, há outros indícios, no desenrolar do enredo, que permitem identificar os motivos de Guiomar ao pedir “uma coisa honrosa” à protetora, mesmo sabendo que a baronesa não permitiria que ela buscasse seu próprio sustento: Guiomar temia que o favorecimento da baronesa se convertesse em algum tipo de dívida de gratidão que mais tarde lhe pudesse ser cobrada. Com efeito, há um momento em que essa possibilidade se torna mais nítida. É quando Guiomar tem de escolher entre o pretendente favorito da baronesa, seu sobrinho Jorge, e o homem com quem gostaria de se casar, o advogado Luís Alves. Apesar de Guiomar temer que a baronesa insistisse em uni-la a Jorge, deu-se o oposto: a madrinha compreendeu que seu coração não pertencia a Jorge, aceitando com satisfação a união da afilhada ao advogado Luís Alves. Guiomar tem de se decidir, portanto, ao longo da narrativa, por um entre três pretendentes: Estêvão (que dois anos após a desilusão sofrida confessou seu amor pela moça, sem conseguir reatar o namoro); Jorge (que foi aconselhado por Mrs. Oswald - uma amiga da família - a tentar a união com Guiomar porque, segundo ela, era o maior desejo da baronesa - a quem todos queriam agradar) e Luís Alves (que, apesar de ser amigo confidente de Estêvão, decidiu deixar aflorar o sentimento que já existia pela moça). Dos três pretendentes, apenas Luís Alves tinha as características que combinavam com as de Guiomar, já que ela pretendia aquele que estivesse à altura de sua força e de seu caráter. O capítulo final de “A Mão e a Luva”, que nos mostra Guiomar e Luís Alves um mês após o casamento, parece sugerir que a escolha da jovem foi acertada, já que ela conseguiu encontrar um homem capaz de unir-se a ela em seus dotes de inteligência, ambição e força de vontade, ajudando-o em sua carreira. Assim, caberia ao amado propiciar à esposa a única possibilidade de poder que se abre a uma mulher de sua época. Nesse sentido, sua união lembra o casamento entre uma luva feita sob medida para determinada mão. Estilo de Época Machado de Assis divide sua obra romanesca em dois períodos distintos. No prefácio de “Ressurreição”, o autor afirma que esse romance (bem como outros que vieram depois, e alguns contos e novelas de então) “pertence à primeira fase da minha vida literária” (“Obra Completa”, p. 116). Os enredos de seus romances iniciais possuem muitos elementos do Romantismo: a heroína de nascimento obscuro em “Helena”; o tema da redenção pelo amor em “Ressurreição”; a menina órfã protegida da baronesa em “A Mão e a Luva” e o orgulho de Estela em “Iaiá Garcia”. Porém, Machado de Assis traz importantes inovações em relação ao romance tradicional. Em “A Mão e a Luva”, situações e personagens são criados, de forma que o motivo das ações humanas não é o amor, e sim a conquista da satisfação pessoal através do poder e da ascensão social. Há, além disso, a discussão sobre o poder reservado às mulheres no século 19, levando-nos a questionar certas convenções sociais da época. INTERTEXTUALIDADE Em “A Mão e a Luva” podemos identificar menções a cidadãos de destaque na Grécia Antiga. O narrador faz referência a Diógenes para caracterizar um dos pretendentes de Guiomar, em: “Jorge causava-lhe tédio, era um Diógenes de espécie nova; através da capa rota da sua importância, via-se lhe palpitar a triste vulgaridade” (A Mão e a Luva, p. 41) Diógenes, conhecido como “Diógenes, o cínico” (do grego kunikós “que concerne a cachorro”), foi um filósofo grego. Seu objetivo era buscar o ideal da autossuficiência: uma vida que fosse natural, e não dependesse das luxúrias da civilização. Por acreditar que a virtude era melhor revelada na ação e não na teoria, sua vida se consistiu de uma campanha incansável contra a sociedade corrupta. Em outra passagem, nota-se uma referência a Plutarco e a Alcebíades: “Eu, que sou o Plutarco desta dama ilustre, não deixarei de notar que, neste lance, havia nela um pouco de Alcibíades - aquele gamenho e delicioso homem de Estado, a quem o despeito também deu forças um dia para suportar a frugalidade espartana” (A Mão e a Luva, p. 41). Plutarco foi um historiador, biógrafo, ensaísta e filósofo grego. Interessado em questões morais e religiosas, atribuiu pouca importância às questões teóricas e duvidou da possibilidade de algum dia essas questões serem resolvidas. No trecho, observamos que o narrador se compara a Plutarco, e compara Guiomar a Alcebíades. Alcebíades tornou-se um general ateniense de grande influência política. Tendo ficado órfão, foi educado por Péricles, de quem era sobrinho, e cresceu entre os dirigentes da democracia grega. Em 411 a.C., Alcebíades foi eleito comandante de uma esquadra ateniense, e conquistou duas importantes vitórias sobre Esparta, fato que devolveu o domínio do Mar Egeu a Atenas. Plutarco escreveu uma obra biográfica a respeito de Alcebíades. VISÃO CRÍTICA As primeiras descrições de Guiomar enfatizam a inteligência e a força de vontade da moça, mas revelam pouco sobre sua capacidade afetiva, o que poderia levar o leitor a concluir que seu temperamento é um tanto frio, já que a personagem perdeu seus entes queridos, e não correspondeu ao amor devoto de Estêvão. Mas as personagens de Machado de Assis não podem ser classificadas sem levar em consideração sua complexidade. O autor vai além, para dizer que Guiomar “revelou a posse de uma alma igualmente terna e enérgica, afetuosa e resoluta [...] deste modo os vínculos do afeto mais se apertaram” (p. 16) entre a moça e a baronesa. O relato do afeto e dedicação à madrinha logo após a morte de Henriqueta (sua filha), e a habilidade em substituir essa ausência contrastam, até certo ponto, com a afirmação do narrador de completa sinceridade de Guiomar em relação a essa questão. Em que medida o afeto dispensado à baronesa é, inicialmente, destituído de outras intenções? O caráter de Guiomar é suficientemente articulado para saber se fazer agradável. Ela também revela adaptabilidade a uma classe social acima da sua. A resposta para a questão proposta é que o leitor não pode precisar com exatidão qual das nuances do caráter da personagem irá sobressair em cenas futuras. Com efeito, em muitas cenas dadas a dúvida permanecerá. A mudança de classe social é tema frequente no desenvolvimento de certas personagens femininas de Machado de Assis, e, em cinco dos sete primeiros romances do autor, é ressaltado o fato de a protagonista ter status diferente ao do homem por quem se sente atraída. As consequências dessa situação variam de romance para romance, mas em se tratando de Guiomar, fica evidente que características como inteligência e ambição permitem que sejam superadas distinções de classe social. As implicações sociais dessa característica de Guiomar não podem ser ignoradas. Numa sociedade em que o acesso direto ao poder não é permitido à mulher, uma jovem inteligente e ambiciosa tenta alcançar o poder de forma indireta, através do casamento com um homem que é capaz de conseguir esse poder. O fato de ela ter tido a chance de escolher o próprio marido pode nos levar a crer que ela estava no controle da situação, mas essa ideia é ilusória. Ao final do romance, a visão de Luís Alves em relação à vida futura do casal, quando diz que a esposa lhe será de grande valia, provoca a pergunta de Guiomar, em tom de brincadeira: “Mas que me dá você em paga? Um lugar na câmara? Uma pasta de ministro?”, e a resposta do marido é inteiramente sincera: “O lustre do meu nome”. Portanto, Machado de Assis traça o retrato de uma sociedade em que a liberdade da mulher é limitada, e qualquer parcela de poder que elas venham a adquirir dependerá de seus maridos. Essa é a visão do autor em relação à sociedade do século 19, “murada para as mulheres ambiciosas, com poucas vias para escolher o destino” (“Obra Completa”, p. 265).