Steffen Dix Travessa da Horta, 6 / Apt.19 1200-220 Lisboa Apresentação breve do projeto, do plano de trabalho e da estratégia de divulgação Título do projeto: “Os deuses são uma função do estilo.”: A vida póstuma da Antiguidade no modernismo de Fernando Pessoa. Embora Fernando Pessoa seja principalmente um poeta e não possa ser considerado como um pensador sistemático, a sua obra polifacetada tornou-se nos últimos anos um objeto de estudo em várias disciplinas científicas, tais como sociologia, ciência politica, ciência das religiões, filosofia ou história. Contudo, o projeto da pesquisa aqui proposta baseia-se metodologicamente nos Estudos de Cultura e pretende analisar uma parte essencial do corpus pessoano, nomeadamente os textos sobre fenómenos “religiosos” e filosóficos e sobre a sua teoria de arte. Trata-se de textos que podem, na sua maioria, ser relacionados direta ou indiretamente com a Antiguidade. Ou seja, o objetivo primordial da pesquisa consiste na identificação da forma como a Antiguidade continua a estar presente na conceção pessoana da modernidade europeia. Assim, dividi o projeto em duas partes principais: 1.) uma análise vertical da continuação moderna ou da vida póstuma [Nachleben] da Antiguidade no modernismo de Pessoa; e 2.) uma reconstrução horizontal, isto é uma contextualização histórica desta vida póstuma. A análise vertical significa a interpretação do entrecruzamento de tempos ou épocas diferentes na obra de Pessoa, perguntando essencialmente quais são as consequências desta intersecção, sobretudo em relação à sua teoria da arte e à sua perceção estética. A contextualização horizontal traduz-se na identificação de analogias ou paralelismos com conceções estéticas semelhantes no modernismo europeu, no período de 1914 ao início da Segunda Guerra Mundial. Depois de uma breve apresentação destes dois pontos, pretendo explicar, em linhas gerais, a metodologia adotada e, finalmente, a forma como o projeto pode ser relacionado ou integrado nas atividades do CECC. No que diz respeito à análise vertical da vida póstuma dos deuses antigos ou da mitologia na obra de Fernando Pessoa, temos de chamar a atenção, particularmente, para os fragmentos acerca do “programa geral do neopaganismo português” (escritos sobretudo entre 1914 e 1918) onde Pessoa distingue entre um “paganismo ortodoxo” e um “paganismo heterodoxo”. A partir da poesia de Alberto Caeiro, designada várias vezes como a “consubstanciação” ou a “essência absoluta” do paganismo, surgiram o heterónimo Ricardo Reis e o (semi-)heterónimo António Mora que aspiraram nas suas obras a uma revitalização material (ou ortodoxa) dos deuses antigos. 1 Ricardo Reis entendeu os seus poemas como tábuas votivas nos altares dos deuses e compreendeu Neptuno, Vénus ou Júpiter como deuses reais. Ele percebeu os Nereides como seres vivos e organizou a sua vida solitária a partir de regras éticas dos Estoicos ou dos discípulos de Epicuro. António Mora foi um filósofo que estabeleceu uma teoria para as bases sociais, políticas ou metafísicas de uma nova era pagã. Contudo, Pessoa entendeu rapidamente que esta reanimação dos deuses pagãos não ultrapassaria um anacronismo, tendo em conta que cada sistema religiosa tem uma ideia diferente em relação à posição do indivíduo dentro do universo. Em cada sociedade ou civilização existe, necessariamente, um sistema interpretativo e cognitivo que está implícita e explicitamente moldado e definido por um sistema religioso. No que diz respeito à tradição judaico-cristã da civilização europeia, Pessoa aponta na sua conceção, indiretamente, para uma questão que reaparece com alguma pertinência nos debates de quase todas as disciplinas das ciências humanas, onde surgem regularmente perguntas como por exemplo: Até que ponto um indivíduo moderno sem crença continua a ser cristão (Augé, 1995: 45-80)? A estrutura do nosso pensamento está determinado por uma predisposição em relação a um pensamento monoteísta cristão, ou pelo menos por um “sentimento oceânico” [ozeanisches Gefühl] (Freud, [1930] 1994: 31-39)? Ou é mesmo verdade que não podemos separar-nos de Deus (cristão) enquanto ainda acreditarmos na gramática (Nietzsche [1889] 1988: 78)? Neste sentido, Pessoa revelou uma capacidade impressionante em diagnosticar o estado mental da sua época e sublinhou várias vezes que 2000 anos de cristianismo deixaram raízes erradicáveis. Tal como Nietzsche, Freud ou Max Weber, Pessoa entendeu perfeitamente que o cristianismo está na base das faculdades interpretativas e cognitivas, dos fundamentos metafísicos, dos comportamentos económicos ou geralmente da racionalização do europeu moderno. Por outro lado, ele sabia também que uma mentalidade moderna não pode prosseguir singularmente na base destas faculdades ou fundamentos que se revelaram cada vez mais incapazes de reagir perante a pluralização crescente do mundo ocidental, já anunciada por Nietzsche em 1878 como a “época da comparação” [Zeitalter der Vergleichung], ou seja uma era caracterizada pela “mistura das pessoas, pela polifonia dos esforços” e onde vivem lado a lado “diferentes mundividências, costumes e culturas.” (Nietzsche, [1878] 1988: 44-45). Embora nunca tenha sido de uma forma sistemática, Pessoa desenvolveu, nesta situação aparentemente contraditória, a ideia de um “paganismo heterodoxo” que significa uma “interiorização do politeísmo”, o “sentido subjetivo do politeísmo” ou mais concretamente o “paganismo transcendental”. Esta espécie de paganismo não designa meramente uma orientação religiosa, mas sim uma aceitação e adaptação positiva da pluralidade moderna, representada metaforicamente através do panteão do mundo antigo. A partir da intersecção de tempos diferentes ou da continuação moderna da Antiguidade surge uma estrutura cognitiva ou uma atitude estética que tem menos dificuldades em relacionar-se com a pluralidade ou a complexidade moderna. Os deuses são modernamente 2 uma função de estilo, e assim torna-se inteligível o facto aparentemente enigmático de que o seu sensacionismo é “the aesthetic attitude in all its pagan splendor” (Pessoa, 2009: 157). Sumariamente, quero sublinhar que pretendo um estudo sistemático de uma parte extremamente importante dentro do corpus pessoano que permite uma análise mais detalhada do seu modernismo, e que será, ao mesmo tempo, capaz de posicionar Pessoa dentro da história europeia das ideias do seculo XX, ou seja, dentro de um pensamento filosófico, estético e político que entendeu a viabilidade de uma Europa moderna e plural apenas a partir de uma recordação ou de uma continuação permanente da Antiguidade (vide Dix, 2004). Em relação à contextualização destes textos teóricos, pode-se dizer que Pessoa foi uma espécie de “recetor de ondas mnémicas” [Auffänger der mnemischen Wellen], quase da mesma maneira como Aby Warburg descreveu as epifanias da Antiguidade em Nietzsche e Jakob Burkhardt (Warburg, 1927). E, de facto, olhando para a História pode-se identificar expansões e contrações permanentes da Antiguidade (Calasso, 2003: 31). As expansões que começaram já com o Imperador Julião Apostata, são, por exemplo, claramente visíveis nas obras de Hölderlin e Schiller e tornam-se patentes nos ensaios de Borges e Calvino, na ninfa Lolita de Nabokov ou na profetisa Cassandra de Crista Wolf ou de Jean-Paul Sartre. Além da época do Renascimento, a Antiguidade teve uma das suas grandes expansões no período entre as duas Guerras Mundiais. Este período já foi comparado a uma estátua de Jano, cujas duas faces representam o zeitgeist dos anos entre 1914 e 1939, conjugando um olhar para o passado e um para o presente ou futuro (Fabre, 1990: 303). Olhando para a arte e a literatura destes anos, a Antiguidade representa uma presença material nas obras de artistas como René Magritte, Man Ray, Francis Picabia, Joan Miro ou Giorgio de Chirico, de escritores como André Gide, Jean Cocteau, André Breton, Rainer Maria Rilke ou Stefan George, ou de compositores como Igor Stravinski, Alexander Scriabine ou Sergei Prokofiev. A revista mais emblemática do Surrealismo francês chama-se Minotaure (na qual se procurou estabelecer uma “arqueologia da modernidade”), as revistas modernistas fundadas por Pessoa chamam-se Orpheu e Athena. Em relação a esta enorme expansão da Antiguidade durante e depois da Primeira Guerra Mundial, a contextualização do modernismo de Pessoa significa, primariamente, uma análise pormenorizada do seu lugar na circulação das ideias intelectuais do seu tempo e uma descrição detalhada do ambiente histórico e social que originou esta circulação. Em termos teóricos, trata-se de uma identificação (a) do contexto real, isto é o lugar histórico, social e cultural do texto, a genealogia do texto; (b) da forma como a mesma ideia ou ideias semelhantes estão publicamente repetidas, isto é a regularidade discursiva; (c) da relação com outros textos literários e não literários, isto é a contingência textual; (d) dos limites ou do controlo do texto, isto é a sua condicionalidade. Trata-se concretamente da descrição do sistema geral da formação e da trans3 formação dos textos, das regras implícitas e explícitas que estão na base da estruturação do texto, ou seja o esquema cognitivo e social que organiza o texto (Foucault, 1971; Maingueneau, 1991). Com base na convicção de que toda a literatura e todo o conhecimento estão historicamente condicionados, o projeto apoia-se teoricamente nos Estudos da Cultura, e particularmente no New Historicism. Esta orientação metodológica – que se sustenta na “análise do discurso” de Michel Foucault, na “descrição profunda” de Clifford Geertz e na inclusão de textos (assuntos) não-literários – permite simultaneamente um entendimento de uma obra literária através do seu contexto histórico e a interpretação de uma determinada história intelectual e cultural através de uma obra literária. Tendo em conta que cada sociedade está marcada historicamente por uma prática discursiva própria, que representa um entendimento específico da realidade, também todos os textos literários têm uma historicidade própria, e a história é ao mesmo tempo textual. A escrita e a leitura dos textos literários, e os processos da sua circulação, categorização ou análise estão determinados historicamente, assim como eles próprios determinam a produção cultural ou a ideologia do seu tempo. Ou seja, a produção literária e as condições histórico-sociais apresentam uma relação de reciprocidade ou de uma influência mútua (Montrose, 1989). No que diz respeito a esta condição analítica, até agora existem relativamente poucos estudos que procuraram uma análise detalhada do ambiente histórico, intelectual, social ou transnacional no qual os textos teóricos de Pessoa nasceram. Este facto é bastante curioso, tendo em conta que um enquadramento histórico, social e intelectual destes escritos permite, ao mesmo tempo, uma decentralização do texto, revelando assim os pontos de conexão e o intercambio com outros textos ou geralmente com o ambiente material. A partir deste processo, torna-se possível uma leitura mais vasta da época entre as duas guerras, ou quase um contacto físico com uma realidade histórica que continua no presente uma força formativa e determinante. Embora a aproximação teórica ou metodológica tenha sido, nesta apresentação, explicada apenas em linhas muito gerais, considero que as minhas pesquisas vão relacionar-se perfeitamente com as atividades do CECC, permitindo assim, em termos científicos, uma fecundação recíproca. Além da pesquisa propriamente científica, uma das minhas pretensões centrais é uma integração máxima na equipa do CECC, especialmente no que diz respeito a um retorno social e intelectual da bolsa. Isto significa a participação na formação de investigadores ou alunos nos respetivos cursos e a colaboração com outros centros de investigação da UCP-FCH. Além da participação e da preparação de eventos académicos (congressos, colóquios, seminários, etc.) nacionais e internacionais, pretendo integrar as minhas pesquisas em redes ou projetos europeus (também com o objetivo de obter financiamentos). Durante o período da bolsa, pretendo publicar (ou pelo menos submeter) dois artigos com os resultados da minha investigação em revistas internacionais (se for possível com um “impact factor” elevado). No que diz respeito ao crono4 grama dos trabalhos, num primeiro passo pretendo uma recolha sistemática e uma reavaliação de todos os textos pessoanos acerca de fenómenos religiosos, da filosofia e da teoria de arte (nomeadamente com referências à Antiguidade) para analisar a posteriori metodicamente a relação entre os mesmos. Num segundo passo, pretendo a contextualização destes textos, sobretudo em relação ao período entre as duas Guerras Mundiais. Contudo, não se trata propriamente de dois passos sucessivos, mas sim paralelos. Embora estes objetivos possam parecer, à primeira vista, bastante ambiciosos, tenho de sublinhar que os mesmos são perfeitamente praticáveis, tendo em conta que se baseiam já em alguns trabalhos anteriores (Dix 2004; 2005; 2006; 2010). Bibliografia: Augé, Marc (1995), Der Geist des Heidentums, Klaus Boer Verlag, o.O. Calasso, Roberto (2003), Die Literatur und die Götter, Hanser-Verlag, München. Dix, Steffen (2010), “The Plurality of Gods and People, or ‘The Aesthetic Attitude in all its Pagan Splendor’ in Fernando Pessoa”; in: The Pluralist 5/1, Illinois University, (73-93). ------ (2006) „Nachwort des Übersetzers“; in: Fernando Pessoa, António Mora (et al): Die Rückkehr der Götter, (Ed. de Steffen Dix), Ammann Verlag, Zürich, (509-24). ------ (2005), Heteronymie und Neopaganismus bei Fernando Pessoa, Königshausen & Neumann, Würzburg. ------ (2004), “Pessoa e Nietzsche: deuses gregos, pluralidade moderna e pensamento europeu no princípio do século XX.” Clio 11, (139–74). Fabre, Gladys (1990), Antiguitat/modernitat en l’art del segle XX, Fundació Joan Miro, Barcelona. Foucault, Michel (1971), L'Ordre du discours, Gallimard, Paris. Freud, Sigmund ([1930]1994), Das Unbehagen in der Kultur, Fischer-Verlag, Frankfurt am Main. Maingueneau, Dominique (1991), L'analyse du discours, introduction aux lectures de l'archive, Hachette Université, Paris. Montrose, Louis A. (1989), ‘Professing the Renaissance: Poetics and Politics of Culture’, in: H. Aram Veeser (Ed.), New Historicism, Routledge, Chapman and Hall, (15-36). Nietzsche, Friedrich ([1889] 1988), Götzendämmerung (KSA 6), dtv/de Gruyter, München/Berlin. ------ ([1889] 1988), Menschliches, Allzumenschliches I/II (KSA 2), dtv/de Gruyter, München/Berlin. Pessoa, Fernando (2009), Sensacionismo e outros Ismos, (Ed. Jerónimo Pizarro), INCM, Lisboa. Warburg, Aby (1927), Burkhardt-Übungen, Notizbuch 1927. [Citado a partir de Ernst H. Gombrich (2006), Aby Warburg. Eine intelektuelle Biografie, Philo & Philo, Hamburg.] 5