Acórdãos STA
Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:
0529/09
Data do Acordão:
30-09-2009
Tribunal:
2 SECÇÃO
Relator:
JORGE LINO
Descritores:
CONTRA-ORDENAÇÃO FISCAL
RECURSO JURISDICIONAL
ALÇADA
Sumário:
Se o valor da coima aplicada não ultrapassar um quarto da
alçada fixada para os tribunais judiciais de 1.ª instância e
não for aplicada sanção acessória, não há, em regra,
recurso da decisão do tribunal tributário de 1.ª instância –
nos termos do n.º 1 do artigo 83.º do Regime Geral das
Infracções Tributárias.
Nº Convencional:
Nº do Documento:
Recorrente:
Recorrido 1:
Votação:
JSTA000P10904
SA2200909300529
MINISTÉRIO PÚBLICO
A...
UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral
Texto Integral:
1.1
O Ministério Público interpõe recurso do despacho do
Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, que, nos
presentes de contra-ordenação fiscal aduaneira, nega
provimento ao recurso judicial da decisão de aplicação da
coima.
1.2 Em alegação, o recorrente Ministério Público formula
as seguintes conclusões.
1. O procedimento administrativo de contra-ordenação
enferma de nulidade na medida em que deveriam ter sido
inquiridas as duas testemunhas arroladas pela arguida e,
sem qualquer justificação não o foram.
2. A imperiosidade da sua inquirição residia na
necessidade de averiguar se houve uma impossibilidade
objectiva de realização do varejo ou se houve uma recusa
deliberada e consciente de cooperação com a AT.
3. Não se julgando verificada tal nulidade violou-se os
arts. 120, nº 2, al. d), do CPP, aqui aplicável “ex vi” do
disposto no art. 41, n° 1, do RGCO.
4. Sem conceder, a decisão administrativa recorrida
enferma de nulidade insuprível por lhe falecer a “descrição
sumária dos factos”.
5. Efectivamente, dá como provada a recusa de realização
do varejo e ao mesmo tempo considera a actuação da
arguida como negligente. Ora, não se vê como é que uma
recusa de colaboração pode ter carácter negligente.
6. Destarte, no lugar da descrição sumária dos factos
aparece-nos uma contraditória e insuficiente descrição dos
factos. Se é contraditória não pode ser suficiente. E se não
é suficiente não satisfaz o requisito legal.
7. Não a declarando nula a sentença violou os arts 79, n°
1, al. b), 63, n° 1, al. d), e 109, n° 2, al. o), do RGIT.
8. Ainda sem conceder, a ter havido recusa de realização
de varejo a conduta integra-se no tipo legal de contraordenação de “recusa de entrega, exibição ou apresentação
de (...) mercadorias” previsto no art. 110, n° 1, do RGIT e
não no tipo legal contra-ordenacional de “introdução
irregular no consumo” previsto no art. 109, n° 2, al. o, do
RGIT.
9. Pelo que deve ser substituída por outra que declare nulo
o processo de contra-ordenação a partir da defesa da
arguida, ou, subsidiariamente, declare nula a decisão
administrativa ou, por último, subsidiariamente, considere
cometida a contra-ordenação p. e p. no art. 110, n° 1, do
RGIT com fixação, em concreto da coima em 200.00 €.
1.3 Não houve contra-alegação.
1.4 O Ministério Público neste Tribunal emitiu o seguinte
parecer.
O presente recurso tem como objecto melhoria da
aplicação do direito e também promoção da uniformidade
da jurisprudência, no que concerne à questão de saber se a
contra-ordenação prevista no art. 109, n° 2, al. o), do
RGIT pode ser praticada por negligência.
A jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo
vem entendendo que a expressão “melhoria de aplicação
do direito” deve interpretar-se como abrangendo todas as
situações em que há “erros claros na decisão judicial ou
seja com provadamente duvidosa a solução jurídica ou em
que se “esteja perante uma manifesta violação do direito” vide neste sentido os acórdãos de 18-06-03, 16-11-05, 1701-07, 15-02-07, 2-02-07 e de 06-11-08, nos recursos n.ºs
503/03, 524/03, 1116/06, 1128/06, 115/06 e 619/08, e
ainda Jorge Lopes de Sousa e Simas Santos, Regime Geral
das Infracções Tributárias, 2.ª edição, pág. 506.
A nosso ver o recurso deve ser admitido pois que o
Ministério Público invoca como fundamento da
necessidade de melhoria de aplicação do direito a questão
de saber se a contra-ordenação prevista no art. 109, n° 2,
al. o), do RGIT pode ser praticada por negligência, sendo
que a posição assumida na sentença recorrida - em sentido
afirmativo - constitui uma solução jurídica
comprovadamente duvidosa.
Vejamos:
Alega o recorrente que a decisão da Administração Fiscal
padece de nulidade por contraditória e insuficiente
descrição dos factos.
E isto porque dá como provada a recusa de realização do
varejo e ao mesmo tempo considera a actuação da arguida
como negligente.
Ora, sustenta o recorrente que não se vê como é que uma
recusa de colaboração pode ter carácter negligente.
Afigura-se-nos que lhe assiste razão.
Do auto de notícia de infracção consta (fls. 23) ter sido
imputada à arguida uma contra-ordenação fiscal
aduaneira, nos termos da alínea o) do nº 2 do artº 109° do
RGIT, punível pelo nº 1 do mesmo dispositivo legal,
conjugado com o n° 4 do artº 26° do mesmo diploma
legal, com coima no mínimo de € 300.00 e no máximo de
€ 300.000, por violação da al. d) e h) do nº 2 do artº 24° do
CIEC, conjugado com o nº 3 do artº 21 do CIEC, tendo-se
dado como provado (fls. 24) que:
- a arguida, beneficia do estatuto de depositário
autorizado, atribuído pela Direcção Geral das Alfândegas
e dos Impostos Especiais Sobre o Consumo;
- a arguida, não permitiu o acesso às instalações do
entreposto, inviabilizando o controlo físico das operações,
inviabilizando o varejo e/ou outros controlos determinados
e planeados pela autoridade aduaneira no dia e hora
previamente fixados.
Sucede, no entanto, que a infracção em causa foi imputada
à arguida a título de negligência.
É certo que resulta do artº 24º nº 1 do RGIT que, salvo
disposição expressa da lei em contrário, as contraordenações tributárias são sempre puníveis a título de
negligência.
Porém como esclarecem Jorge Lopes de Sousa e Manuel
Simas Santos, no seu Regime Geral das Infracções
Tributárias Anotado, 2001, pág. 229, pese embora não
exista no RGIT qualquer disposição estabelecendo
directamente o afastamento da punibilidade a título de
negligência, «deverá entender-se que contêm uma
disposição expressa em contrário as normas que exigem
um dolo específico para punição a título de dolo».
Será esse o caso da norma do art° 109° nº 1, al. o) que
pune com coima de 150 a 150 000 euros quem recusar,
obstruir ou impedir a fiscalização das condições do
exercício da sua actividade, nomeadamente a não
prestação de informação legalmente prevista ao serviço
fiscalizador.
Para haver uma recusa, obstrução ou impedimento à
realização da fiscalização das condições do exercício da
sua actividade, não basta uma omissão ou falta de cuidado
devido, sendo necessário um comportamento no sentido de
obstaculizar a fiscalização, em que o agente prevê o facto
ilícito como resultado, ou como consequência necessária
da sua conduta, ou pelo menos assume o risco de que ele
se venha a produzir (as formas de dolo directo, necessário
ou eventual previstas no Código Penal, art. 14º, nºs. 1, 2 e
3).
Trata-se portanto de contra-ordenação em que, à
semelhança do que acontece com a prevista no art.º 110º
do RGIT, dos próprios elementos resulta o afastamento da
possibilidade de punição a título de negligência.
Daí que se entenda, tal como o Ministério Público na 1ª
instância, que só pode integrar a contra-ordenação um
comportamento positivo no sentido de impedir ou
embaraçar a prática dos actos referidos, resultando a
descrição dos factos contraditória considerando a
imputação da contra-ordenação, pela Administração
Fiscal, a título de negligência.
Termos em que somos de parecer que o presente recurso
deve, nesta parte, ser julgado procedente revogando-se a,
aliás douta, sentença recorrida.
1.5 Tudo visto, cumpre decidir, em conferência.
2.1 Em matéria de facto, o despacho recorrido assentou o
seguinte.
1. Contra a arguida A..., Ld.ª foi instaurada na Delegação
Aduaneira de Peso da Régua o processo de contraordenação n.° 244/2003, com base na participação de fls. 2
do processo de contra-ordenação.
2. Notificada no cumprimento do disposto no artigo 70°
n.° 1 do RGIT, a arguida apresentou defesa e indicou
testemunhas para serem inquiridas - fls. 5 a 14 do processo
de contra-ordenação.
3. Foi proferida a decisão que condenou a arguida numa
coima no montante de € 900, datada de 22-06-2004, sem
que tenha havido qualquer pronúncia sobre a produção de
prova requerida pela arguida.
4. A arguida interpôs recurso daquela decisão para o
Tribunal, que por sentença de 30-11-2007 declarou nula a
decisão por falta dos requisitos legais - fls. 173 a 177 do
processo de contra-ordenação.
5. Foi proferida nova decisão, datada de 15-01-2008 de 15
de Janeiro de 2008, a fls. 178 a 182 do processo de contraordenação, cujo teor dou aqui por reproduzido,
condenando a arguida na coima no montante de € 300,00
por violação do disposto nas alíneas d) e h) no n.° 2 do
artigo 24° do CIEC, prevista e punida pela alínea o) do n.°
2 do artigo 109° do RGIT.
2.2 De acordo com o disposto nos números 1 e 2 do artigo
83.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, o arguido
e o Ministério Público podem recorrer da decisão do
tribunal tributário de 1.ª instância para o Tribunal Central
Administrativo, ou para a Secção de Contencioso
Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, se o
fundamento exclusivo do recurso for matéria de Direito,
excepto se o valor da coima aplicada não ultrapassar um
quarto da alçada fixada para os tribunais judiciais de 1.ª
instância e não for aplicada sanção acessória.
Por outro lado, pode aceitar-se recurso da sentença,
«quando tal se afigure manifestamente necessário à
melhoria da aplicação do direito ou à promoção da
uniformidade da jurisprudência», nos termos do n.º 2 do
artigo 73.º da Lei Quadro das Contra-ordenações,
aprovada pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro,
com as alterações introduzidas pelos Decretos-Lei n.º
356/89, de 17 de Outubro, e n.º 244/95, de 14 de Setembro
– aplicável às contra-ordenações tributárias por força da
alínea b) do artigo 3.º do Regime Geral das Infracções
Tributárias.
Da problemática acerca da necessidade de recurso
jurisdicional para a “melhoria da aplicação do direito” se
tratou já nesta Secção do Supremo Tribunal
Administrativo, primacialmente no acórdão de 18-6-2003,
proferido no recurso n.º 503-03 – aresto do qual, por
particularmente significativas, transcrevemos as seguintes
passagens.
O artº 73º nº 2 do RGCO - aplicável ao caso por força do
artº 3º al. b) do RGIT - prevê a aceitação do recurso da
sentença, a requerimento do arguido ou do MP, "quando
tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da
aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da
jurisprudência".
Na verdade e uma vez que a não admissibilidade do
recurso, em matéria contra-ordenacional, suscita
fundadas dúvidas de constitucionalidade, tal inciso
normativo concretiza “uma válvula de segurança do
sistema de alçadas que permita assegurar a realização da
justiça”.
Cfr. Jorge de Sousa e Simas Santos, RGIT, Anotado, 2ª
edição, pág. 506.
[…]
Refere-se tal inciso normativo à necessidade manifesta do
recurso para melhoria da aplicação do direito.
E, dado o escopo referido - válvula de segurança do
sistema - ele não deve restringir-se, ao contrário do que
parece resultar da sua letra, aos casos em que apenas
estejam em causa questões de interpretação ou aplicação
da regra jurídica, propriamente ditas.
Antes deve admitir-se em termos de "permitir o controle
jurisdicional dos casos em que haja erros claros na
decisão judicial ou seja comprovadamente duvidosa a
solução jurídica" ou em que "se esteja perante uma
manifesta violação do direito".
Cfr., cit, pag. 506.
2.3 No caso sub judicio, a decisão administrativa em
causa, confirmada pelo despacho judicial ora recorrido, é
de condenação da arguida «na coima no montante de €
300,00 por violação do disposto nas alíneas d) e h) no n.º 2
do artigo 24° do CIEC, prevista e punida pela alínea o) do
n.º 2 do artigo 109.º do RGIT» – cf. especialmente o ponto
5. do probatório.
No caso, não foi aplicada sanção acessória e a coima
aplicada, no valor de € 300, é inferior à alçada dos
tribunais tributários, a qual se cifra no valor de € 935,25
ao tempo em que ocorreram os factos imputados à arguida
(2003) – sendo certo que a alçada dos tribunais tributários
corresponde a um quarto da alçada estabelecida para os
tribunais judiciais de 1.ª instância, fixada em € 3.740,98
pelo Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de Dezembro.
Muito embora o Ministério Público neste Tribunal seja de
parecer de que o recurso se justifica pela necessidade de
“melhoria do direito”, o que é certo é que o Ministério
Público recorrente não invoca sequer a necessidade do
recurso com tal finalidade. O Ministério Público
recorrente pretende (tão-só) que se «declare nulo o
processo de contra-ordenação a partir da defesa da
arguida, ou, subsidiariamente, declare nula a decisão
administrativa ou, por último, subsidiariamente, considere
cometida a contra-ordenação p. e p. no art. 110, n.º 1, do
RGIT com fixação, em concreto da coima em 200.00 €».
Por isso que a causa se mantém dentro da alçada do
tribunal recorrido – pelo que seria inadmissível o recurso.
De resto, a solução do despacho judicial ora recorrido, de
considerar que a contra-ordenação em foco é punível por
negligência, nos termos do artigo 24.º do Regime Geral
das Infracções Tributárias, não constitui solução
“comprovadamente duvidosa” em que "se esteja perante
uma manifesta violação do direito" – cf., a este respeito, e
por todos, Jorge Lopes de Sousa, e Manuel Simas Santos,
Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado, 2008,
em anotação 3. ao artigo 24.º.
E, então, havemos de convir, a terminar, que, se o valor da
coima aplicada não ultrapassar um quarto da alçada fixada
para os tribunais judiciais de 1.ª instância e não for
aplicada sanção acessória, não há, em regra, recurso da
decisão do tribunal tributário de 1.ª instância – nos
termos do n.º 1 do artigo 83.º do Regime Geral das
Infracções Tributárias.
3. Termos em que se acorda não tomar conhecimento do
recurso.
Sem custas.
Lisboa, 30 de Setembro de 2009. – Jorge Lino (relator) –
Lúcio Barbosa – António Calhau.
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