Revista Litteris – ISSN 19837429
Março 2011. N. 7
Dossiê Estudos Árabes & Islâmicos
Identidade artística e a arte islâmica
Sarah de Barros Viana Hissa1
João Paulo Gomes Pereira2
Resumo
É possível falar em arte islâmica? Se afirmativo, qual seria a utilidade do termo? Essas são as
preocupações principais desse artigo, que se inicia em uma breve discussão sobre o conceito de
arte. Como exemplos da arte islâmica, apresentamos um panorama de dois desdobramentos
dessa arte, a saber, a pintura e a caligrafia. As questões que norteiam o texto se associam, ao
longo da discussão, a conceitos de natureza sociológica e antropológica, como os de
identidade, arte, política e sociedade.
Palavras-chave: arte, arte islâmica, identidade, caligrafia, pintura.
Abstract
Is it possible to speak of Islamic art? If so, which would be the term‟s usefulness? These are
the main concerns of this paper, which begins offering a brief discussion on the concept of art.
As examples of Islamic art, we present a panorama of a couple of expressions of this form of
art: painting and calligraphy. The issues that guide this text are associated, throughout this
discussion, to concepts of a sociological and an anthropological nature, such as identity, art,
politics and society.
Key-words: art, Islamic art, identity, calligraphy, painting.
Introdução
O Islã é a segunda maior religião monoteísta do mundo (islam em árabe significa
“submissão absoluta do Ser diante de Deus, ou Alá”), possuindo quase 2 bilhões de adeptos ao
redor do planeta – o que representa cerca de 20% do total da população mundial. Desde a sua
1
Sarah de Barros Viana Hissa graduou-se em Ciências Sociais (UFMG) e cursa mestrado em Antropologia
(PPGAN / UFMG). Contato: [email protected].
Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4294944A5
2
João Paulo Gomes Pereira é bacharel em Ciências Sociais (UFMG). Contato: [email protected]
Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4322106J6.
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Edição Março - ISSN 19837429
origem, na península arábica do século VII, foi se estendendo para o Oriente Próximo e Médio,
África, Europa e Ásia e englobando uma variada complexidade de etnias, culturas, e regiões.
Assim, a religião do Islã corresponde a mais que um grande império ou uma
civilização. Desde sua fundação em 622 d.C com a famosa fuga de Maomé, que saiu de Meca
para Medina devido às perseguições dos chefes da comunidade daquela cidade, o Islamismo
construiu um grande patrimônio artístico e cultural. Com uma filosofia conquistadora que
remonta ao seu fundador, o Islã anexou inúmeros territórios ao seu império: partindo da
Arábia, expande seu domínio pela Palestina e Iraque; em seguida, conquista a Síria, a
Mesopotâmia e o Egito; derrotam e convertem também a Pérsia, o Turquestão Ocidental e
parte do Pundjab, além de ocupar o norte da África e da Espanha. Dominam, em menos de um
século, metade do mundo civilizado então conhecido.
Durante todos esses séculos de interação e troca cultural, foi enorme a contribuição
legada pelos islâmicos (principalmente mouros, turcos e mongóis) ao mundo ocidental. Eles
preservaram e traduziram boa parte dos filósofos clássicos gregos e introduziram as primeiras
bibliotecas em solo europeu, como a grande biblioteca de Córdoba (Espanha) no século X, pelo
califa Alhakam II. Essa herança se apresenta desde a álgebra e a astronomia, até a arquitetura e
a pintura, entre outras áreas.
O que se costuma denominar arte islâmica, portanto, não foi elaborado por um país ou
um único povo em particular. Refere-se a uma compilação imensa de grupos culturais e de
circunstâncias históricas, que vem desde a conquista do mundo antigo pelos árabes, as
unificações forçadas e as invasões dos próprios espaços islâmicos por vários grupos de povos
estrangeiros. A orientação da arte islâmica foi em grande parte marcada por estruturas políticas
e sociais que desconheceram fronteiras geográficas. A natureza complexa da arte islâmica
desenvolveu-se na base de tradições pré-islâmicas nos vários países conquistados, em uma
síntese perfeitamente integrada de tradições árabes, turcas e persas, manifestando-se em todas
as partes do império muçulmano. Além da forte presença da política na arte islâmica, são
também cruciais as próprias crenças espirituais e normas religiosas, que aparecem nas várias
expressões artísticas do islã como elemento fundamental.
O estudo da arte islâmica oferece uma vasta gama de possibilidades. Sendo uma
identidade milenar que se expandiu por vários países e regiões diferentes, exercendo
influências extremamente ricas. No entanto, falar em arte islâmica requer não somente uma
delineação do que se compreende por islâmico, mas também do que se entende por arte.
2
I. Arte: uma breve definição serve como ponto de partida
A atribuição de caráter artístico a um objeto está longe de ser ato consensual. O estatuto de
arte é apenas possível para expressões artísticas costumeiramente reconhecidas como tal, como
a pintura, esculturas, literatura, entre outros. No entanto, para alguns, segundo Coli (1981), a
arte deve ser estritamente associada ao supérfluo, em oposição à ornamentação de objetos
utilitários. Para outros, pode ser possível para objetos arqueológicos ou de valor histórico, para
estruturas arquitetônicas ou para objetos destituídos de seu uso cotidiano, como o famoso vaso
sanitário de DuChamp (1917).
Para Franch (1988), a arte é um fenômeno universal. Essa característica implica na
universalidade do fenômeno entre as culturas, períodos e segmentos sociais diversos. Outra
característica do conceito de arte é sua ligação intrínseca com o conceito de beleza, no qual a
busca da arte e do artista pelo belo constitui o fundamento da noção de obra de arte, ainda que
o conceito de beleza não será o mesmo para cada cultura. Para Franch, a arte é universal e
apresenta intenção estética.
Outro elemento utilizado para caracterizar arte é a determinação histórica e social do
estatuto de arte. Em especial, Bourdieu (1996) busca superar os estudos então recorrentes sobre
estilo e forma, considerando o campo artístico em suas articulações externas e internas e a
produção do artista. Aqui o valor da obra é indissociado do seu valor econômico e da sua
recepção estética pelo observador (familiaridade com a obra e prazer estético). Bourdieu cria o
conceito de capital simbólico para referir-se a sociedades ocidentais. O capital simbólico
refere-se a um jogo de dissimulações e de interesse e vê sua existência negada nos campos
culturais. Cada grupo atuante em um campo constitui um sistema de interesses, de modo que
seus diversos pertencimentos determinam também suas interpretações estéticas. Sob essa
perspectiva, a cultura funciona como capital simbólico, por funcionar de modo diferente à
lógica econômica. O único capital que se pode acumular, uma vez que o capital econômico não
é acumulado no campo artístico, é o capital simbólico, referente à consagração social.
3
Por outro lado, Coli (1981) descreve a evolução da noção de obra-prima, que tem sua
origem muito diferente do seu uso atual. A obra-prima, antes tida como a realização técnica
eficiente de um produto utilitário, hoje é determinada com menos precisão. Essa noção ainda
faz parte da idéia de arte com a qual absorvemos e classificamos as expressões atuais e
passadas. Essa idéia da precisão é relacionada também à noção de realismo. Wölfflin, em 1888,
propõe uma oposição entre classicismo (linear, plural e utiliza-se de planos, de forma fechada e
de luz absoluta) e barroco (pictural, unitário e utiliza-se da profundidade, de forma aberta e de
luz relativa). Essa oposição, ainda muito utilizada, ainda que em outra formatação, se refere à
um grau relativo de realismo nas obras de arte, especialmente a pintura e, desde o
daguerreótipo, a fotografia. Para alguns, a arte deve retratar com fidelidade a própria realidade
que vemos com nossos olhos.
Finalmente, em Panofsky (1978), a História da Arte dará atenção ao problema do sentido e
dos símbolos na arte, mais que com o problema das formas, rompendo com o chamado
formalismo. A existência de símbolos e da intenção do sentido traz consigo a premissa de que
uma pessoa produz objetos artísticos a partir de uma série de caracteres a serem decifrados. No
entanto, esses elementos devem ser identificados por alguém conhecedor das origens dessas
características, ou seja, o próprio código. Panofsky se refere a elementos culturais, no caso,
iconográficos, que servem de base da produção da arte e, portanto, devem servir de base para
toda análise da arte.
II. A pintura Islâmica: representação e transcendência
O Islã possui uma tradição pictórica e iconográfica rica. Entre ela, as pinturas islâmicas
pesquisadas para o presente trabalho foram feitas originalmente em telas, em miniaturas, em
capas de livros, em pavimentos, fachadas, murais e tetos de edificações (como palácios,
mesquitas e mausoléus), azulejos de parede, em pratos, tigelas, jarros de cerâmica e em
manuscritos sob a forma de ilustrações de histórias e fábulas.
Um ponto de relevo, já mencionado anteriormente nesse texto, refere-se às
representações figurativas de seres humanos e animais. Certos pronunciamentos atribuídos a
Maomé foram interpretados como proibição contra atividades artísticas e à representação
pictórica, muito embora, para outros, tenham significação puramente religiosos. Não se deve
imitar a aparência de Alá ou dos outros seres vivos, quando o único que pode criar seres vivos
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é o próprio Alá. A criação artística é, nesse caso, compreendida como motivo documentado de
punição divina aos pintores ou escultores. No entanto, praticamente nenhum período da cultura
islâmica suprimiu representações figurativas ou pinturas, com a exceção da esfera estritamente
religiosa, onde a idolatria era mais temida, de modo que mesquitas e mausoléus realmente são
desprovidos de representações figurativas. Nos demais locais, as imagens ainda fazem presença
e as representações figurativas de seres humanos e animais estão então longe de terem sido
banidas da esfera artística. O fato deste tipo de representação ter sido banida dos ambientes
religiosos não significa que ela nunca tenha existido em outros lugares. Exemplos
interessantíssimos de pinturas com elementos antropomórficos podem ser observados, como é
o caso da pintura do Miraj-nameh de Mir Haydar, que retrata o profeta Maomé no inferno. Este
é um tema raro na pintura islâmica e demonstra que se as figuras humanas foram eliminadas
das decorações religiosas, o tema religioso não foi eliminado da arte.
De maneira geral, essas pinturas apresentam muito pouco realismo, no qual se destaca a
inexistência de sombras e de perspectiva, tal como as vimos no Renascimento europeu. Mesmo
quando da figuração de situações ao ar livre e à tarde (como as freqüentes figuras de recepções
em jardins) ou da presença de guardas-sol, não se cria sombras, o que retira a sensação de
movimento que poderia ter a pintura. As relações entre os objetos ou as pessoas não respeita as
suas dimensões ou suas posições prováveis, por vezes causando uma aproximação de corpos
exagerada ou até mesmo impossível e uma ocupação do espaço parecendo desordenada. Além
disso, a relação entre as paredes e os pisos não necessariamente cria ângulos possíveis.
As características físicas das pessoas são geralmente pouco detalhadas, sendo suas
feições pouco expressivas ou comunicativas, assemelhando os indivíduos uns aos outros. A
diferenciação entre os indivíduos parece se dar muito mais nos objetos relacionados a elas,
como, por exemplo, suas roupas, posição, atividade em que se dispõe na figura, possíveis
armas ou instrumentos de trabalho, que características em seus corpos. Assim, um príncipe
montado em um cavalo, trajado com roupas intensamente decoradas, portando uma arma de
fogo e caçando um animal feroz diferencia-se de um homem que o observa, sentado, em roupas
não decoradas, cujo olhar é fixo no príncipe e seus afazeres e, ainda, divide sua posição com
outros que fazem exatamente o mesmo que ele.
No caso do gênero, a diferenciação dos indivíduos começa pela diferença no tipo de
vestuário e de adereços e objetos pessoais de cada personagem. Por exemplo, um indivíduo
com uma arma na mão não será uma mulher, assim como um indivíduo com um véu
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transparente sob a cabeça não será um homem. Além disso, a pequena representação da mulher
em termos de número comparativo de aparições denota a função restrita que têm a mulher
nessa sociedade. Os personagens femininos são chamados a aparecer principalmente no caso
de nascimentos, nos quais a mãe não pode faltar, e nos casos em que o tema é algum
envolvimento amoroso. Dessa maneira, não será percebida a presença de personagens
femininos nem em batalhas ou em festas, que são as representações mais freqüentes e situações
nas quais sua presença não é adequada.
Se por um lado os humanos são pouco detalhados e individualizados, por outro, os
animais parecem ter mais detalhes em seus corpos, como o exemplo dos cavalos, animais que
parecem ter um alto número de aparições, talvez devido ao seu uso em batalhas, conhecendo-se
o gosto por guerra do povo muçulmano. Eles aparecem esguios e elegantes, em suas poses e
proporções. As paisagens, tanto as naturais quanto as artificiais, e os objetos, por gradação, são
as representações mais detalhadas, embora, como no caso dos animais e dos humanos, não
necessariamente são realistas. A busca por representação fidedigna da realidade parece não ter
lugar na pintura islâmica. Nem a natureza ou a humanidade, ou ainda objetos inanimados,
aparecem mirando tal alvo. Os detalhes referentes aos objetos e às paisagens são formas
geométricas e florais, desenhos de ramos e de folhas, e a caligrafia. Essa decoração exagerada
então aparece apenas em edificações (portas, paredes, janelas, pisos, telhados), árvores,
vestimentas, guardas-sol, carroças, asas de anjos, chão de jardins, instrumentos musicais, entre
outros.
Se o realismo não tem tanto espaço na pintura islâmica, o fantástico, por outro lado, tem
seu lugar. Um exemplo de desenho com a presença de um animal fantástico pode ser
vislumbrado na arte turca do século XVI, já em Istambul. O desenho mostra um dragão em
meio a folhagens. Pouco se conhece sobre a pintura dos primórdios otomanos, uma vez que é
difícil determinar quais delas datam do período anterior a Istambul.
As cores das pinturas são em geral cores fortes, cruas e vivas. São cores que não
existem no mundo real, como os vermelhos das representações do fogo ou os azuis das
representações das águas. As vestimentas e as edificações são sempre em cores intensas, como
se os objetos fossem extremamente novos e sem uso. Além de fortes e vívidas, as cores nos
objetos são homogêneas, como nos céus, nos pisos, nos edifícios, e nos chãos dos jardins, que
não apresentam nuances em suas cores.
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A maioria dos temas das pinturas parece variar entre religiosos e políticos. São
freqüentes as aparições de príncipes, imperadores, sultões e seus prisioneiros, além das
batalhas e dos feitos das pessoas de destaque (como caçadas, festas, nascimentos ou
casamentos). Os membros da realeza são facilmente identificados, sendo o centro dos olhares
dos outros indivíduos retratados, mesmo não estando no centro da figura. Além disso, suas
vestimentas são notadamente mais luxuosas (o que se expressa na intensidade de detalhes) e
esses indivíduos aparecem recebendo algum tratamento especial, como o uso de um guardasol. Muito freqüentes são os feitos de homens nobres, como príncipes caçando um leão ou
recebendo convidados em seu jardim. Acontecem também retratos de indivíduos específicos
proeminentes. Os maiores aglomerados de pessoas, muito freqüentes, ocorrem em festas reais e
em batalhas, denotando a importância dada à elas. Nesses aglomerados, as pessoas geralmente
fitam um indivíduo proeminente, como nas recepções, ou juntam-se a ela em uma tarefa
comum, entretanto, normalmente não se oculta o personagem nobre.
As representações religiosas mais encontradas no presente estudo foram “Adão e Eva”,
“a ascensão de Maomé”, ambas encontradas mais de uma vez, “o inferno e o paraíso”, “o
sacrifício de Abraão”, “a caminhada de Maomé para Meca” e inúmeras representações de
anjos. Maomé aparece, por várias vezes, rodeado de anjos e sempre sob uma criatura fantástica
(um misto entre cavalo e humano). Muitas vezes seu rosto não pode ser distinguido, o que pode
relacionar-se à conhecida proibição do Alcorão contra as representações humanas. Tal ausência
de rosto em Maomé muito se diferencia da cultura católico-cristã, que busca representar seu
profeta maior, Jesus, o máximo possível. Por outro lado, algumas pessoas nas pinturas
islâmicas são representadas com um círculo por detrás de suas cabeças, dourado ou não, o que
remete às representações cristãs da família Santa. Representações do nu e do seminu humano
na pintura muçulmana são poucas, mas não inexistentes, sendo que a representação de Adão e
Eva é a mais recorrente.
Assim, a unidade da cultura islâmica, já que não pode ser delimitada por fronteiras
políticas, pode ser encontrada sob a religião ou aos costumes e preferências que normatiza.
Pensamos que, enquanto a unidade da pintura islâmica pode ser encontrada nas preferências de
temas, cores e técnicas, ou em proibições religiosas e temas da conquista e da honra, as
particularidades são encontradas em preferências temáticas locais e históricas, assim como em
associações ou sincretismos específicos.
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De todo o modo, com toda a riqueza da pintura islâmica, a proibição das representações
figurativas no âmbito religioso certamente contribuiu para a valorização da escrita como forma
artística de destaque na arte islâmica, seja ela na pintura ou em outros suportes, como a
arquitetura e a decoração de objetos utilitários.
III. A caligrafia: entre a escrita e a arte
A caligrafia é um elemento presente em várias expressões artísticas. Aparece na
decoração de paredes e de portas das edificações figuradas, na pintura e desenhos, em objetos
cotidianos e rituais. Seu uso é permeado por normas, preferências e tradições, como, por
exemplo, o caso da pintura. Nela, a caligrafia não divide espaço com o desenho, podendo estar
no canto da pintura, por vezes dentro de um contorno retangular, enquanto, provavelmente, seu
significado irá se referir ao que é retratado na pintura, talvez oferecendo título ou explicação à
imagem (o uso da caligrafia será mais detalhado à frente).
Através dos tempos, as religiões, de modo geral, fizeram uso de imagens figurativas
para transmitir a essência de suas convicções. Para o Islã, no entanto, essa arte figurativa
assume aspectos de idolatria, motivo porque ele se utilizou de palavras ou letras, em formas e
tamanhos diversos, para a transmissão de seus princípios religiosos. Os muçulmanos passaram
a usar a arte da caligrafia como expressão religiosa e, no decorrer do tempo, a arte da escrita
tornou-se uma arte muito reverenciada.
Existem dois tipos principais de caracteres na caligrafia islâmica: o kufic, angular, e o
nashki, cursivo. O kufic, forma mais antiga, acentua os traços verticais dos caracteres. Foi
usado durante os primeiros cinco séculos do Islã em arquitetura, cópias do Alcorão, tecidos e
cerâmica. A partir do século XI o nashki foi substituindo o kufic.
Para os muçulmanos, a caligrafia sempre foi expressão religiosa, tornando-a assim uma
arte muito respeitada. Nas palavras do muçulmano Yasin Hamid Safadi:
A supremacia da palavra no Islã está refletida na aplicação universal da caligrafia.
Escrever imprime as características de lugar a todas as espécies de objetos - objetos de
uso cotidiano, assim como a superfície de paredes inteiras, mobiliário das mesquitas, o
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exterior e interior das mesquitas, dos túmulos e da Caaba, o mais famoso santuário
islâmico (SAFADI, 1978).
O alfabeto arábico alcançou um elevado nível de sofisticação, no que se refere à sua
apresentação. A escrita árabe requer caneta e tinta especiais, preparadas de acordo com um
método particular concordante com o estilo de caligrafia. Por exemplo, as cartas curtas são
feitas com canetas diferentes das cartas longas, assim como para atingir a perfeição em cada
estilo deve-se utilizar uma caneta apropriada. Dessa forma, existem inúmeros formatos de
canetas para a grande quantidade de estilos e de aplicações práticas desses.
Uma edificação islâmica pode apresentar inúmeros estilos de escrita em suas paredes,
janelas ou minaretes. Muitas destas inscrições não se referem necessariamente ao Alcorão, mas
também aos ahadith (ditos) do profeta, e estão em sintonia com a essência da construção, uma
vez que podem, por exemplo, esclarecer sua função e seu significado.
A história da caligrafia arábica significa a integração da arte com a erudição, através da
beleza abstrata das linhas, na qual a energia flui entre as letras e palavras, todas as partes estão
integradas ao todo. A caligrafia teve também seu papel político, nos Tughras (nomes de sultões
com autoridade política, servindo de assinatura oficial e representando o estado) e na
possibilidade dos sultões calígrafos.
De todos os elementos presentes e atuantes na arte islâmica o mais importante é a
religião. A vastidão de pequenos impérios e reinos que tinham adotado o Islamismo sentiu-se,
sobretudo, apesar de orgulhos e ciúmes, muçulmana, ao invés de árabe, turca ou persa. Todos
sabiam, falavam e escreviam de forma regular o árabe, a língua do Alcorão. A caligrafia é a
suprema das artes islâmicas, e a expressão mais típica do espírito muçulmano. Isso porque
apenas entendendo bem a escrita, os homens poderiam esperar compreender o pensamento de
Alá. Não podiam ter uma missão mais importante do que a de conservar e transmitir tesouro
tão precioso.
Origens da caligrafia árabe
De acordo com estudos contemporâneos, a escrita arábica é um ramo das escritas
semitas. O árabe tornou-se um alfabeto muito usado e hoje é o segundo em uso, perdendo em
espaço somente para o alfabeto romano.
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Os árabes eram um povo basicamente nômade antes do surgimento do Islã. Não
gozavam de uma vida fácil, mas tinham uma cultura fecunda que se expressava na escrita e na
poesia. Antes de se tornarem uma nação islâmica, os árabes já reconheciam o poder e a beleza
das palavras. A poesia, por exemplo, era uma parte essencial da vida cotidiana e as habilidades
lingüísticas eram exibidas na literatura e na caligrafia. Os árabes nutriram um grande apreço
pela palavra falada e mais tarde, pela sua forma escrita.
A escrita árabe deriva da nabatéia que, por sua vez, vem da aramaica. Os nabateus eram
árabes semi-nômades que viviam numa área que se estendia desde o Sinai e norte da Arábia,
até o sul da Síria, tendo em seu império as cidades de Hijr, Petra e Busra. Embora o império
tenha acabado em 105 d.C, sua língua e escrita tiveram profundo impacto sobre o
desenvolvimento do alfabeto arábico.
Na década de 650 d.C, foram consignadas, por escrito, as primeiras versões completas
do Alcorão, numa forma denominada Jazm, que revela uma influência nabatéia. Esta, por sua
vez, influenciou o desenvolvimento da forma cúfica, de traço vigoroso e angular, que durante
séculos se tornou o meio mais popular de recordar o Alcorão sagrado.
Simultaneamente, desenvolveram-se outras escritas cursivas com fins burocráticos e
privados, sendo possível apontar seis estilos clássicos da caligrafia islâmica, o aqlam al-sittah,
distinguido pelo turco Yaqut al-Mustasimi, no século XIII: Thuluth, Naskh, Kufic, Riqa, Taliq
e Nastaliq, entre vários outros estilos disponíveis no mundo árabe.
O jazm é o alfabeto arábico mais antigo de que se tem referência e acredita-se que era
uma forma mais avançada do alfabeto nabateu. As letras rígidas, angulares e bem
proporcionadas do alfabeto jazm iriam influenciar mais tarde o famoso alfabeto kufic, a escrita
cúfica, em uma pequena cidade do Iraque. Mais tarde, do estilo kufic, originariam todos os
outros estilos, de acordo com “Arabic Calligraphy in Manuscripts”.
Instrumentos de escrita
Os instrumentos típicos do ofício de calígrafo incluíam penas de junco, pincéis,
tesouras, uma faca para cortar as penas, um tinteiro e um apontador. A pena de junco parece ter
sido a preferida pelos calígrafos islâmicos.
Esta pena, chamada de cálamo, ainda é um instrumento importantíssimo para o
verdadeiro calígrafo. Os juncos mais procurados eram oriundos das terras costeiras do Golfo
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Pérsico. Os cálamos eram objetos valiosos e foram comercializados por todo o mundo
muçulmano.
Um escriba versátil precisava de diferentes cálamos, a fim de alcançar os diferentes
graus de delicadeza. Moldar um junco exigia do escriba habilidades excepcionais; além disso,
tinham um conhecimento meticuloso de como identificar a melhor vareta que fosse adequada
para ser uma boa pena, como aparar as pontas e como cortar as varetas exatamente no centro, a
fim de que o corte tivesse metades iguais. Uma boa pena era cuidadosamente guardada e,
algumas vezes, passava de geração a geração; outras vezes, ela era enterrada com o calígrafo.
Eram usadas tintas de muitas cores, incluindo o preto, o marrom, o amarelo, o
vermelho, o azul, o branco, a prata e o ouro. O preto, o marrom e o dourado eram as cores mais
freqüentemente usadas, porque sua intensidade e consistência podiam variar enormemente.
Muitos calígrafos davam instruções de como preparar a tinta, mas muitos guardavam em
segredo suas receitas. A tinta feita pelos persas, hindus e turcos conservavam seu frescor por
um tempo considerável, sendo sua preparação um processo complexo que levava vários dias.
O papel foi introduzido em 751 d.C, vindo da China para Samarkanda. Este foi um
marco decisivo na arte da escrita e desempenhou função importantíssima nas inúmeras
invenções subseqüentes que reformariam a caligrafia arábica. Este novo meio de comunicação
escrita teve um impacto decisivo sobre todos os aspectos da civilização islâmica. O papel era
feito de algodão e, algumas vezes, de seda ou outras fibras, mas não de madeira. Era polido
com uma pedra lisa, como a ágata ou o jade, antes que o calígrafo começasse a escrever.
Linhas de orientação quase imperceptíveis eram traçadas com uma ponta e as letras ficavam
sobre essas linhas.
Uma vez pronto, o manuscrito podia ser copiado de tempos em tempos pelos mestres
dos mais diferentes lugares. Como em muitas artes tradicionais, dava-se menos importância às
inovações e mais à imitação dos grandes mestres, tanto contemporâneos quanto os antigos. A
despeito disso, alguns mestres foram notáveis inovadores.
Exemplos de caligrafia
O aramaico possui menos consoantes que o árabe, de modo que durante o século VII
foram criadas novas letras através da adição de pontos a letras já existentes para evitar
ambigüidades.
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É possível fazer uma distinção básica entre o uso clássico e o uso moderno padrão da
escrita árabe. O árabe clássico é a linguagem do Alcorão e da literatura clássica. Distingue-se
do árabe moderno padrão principalmente no estilo e no vocabulário, sendo grande parte deste
arcaico. Apesar de existirem traduções, considera-se obrigação de todo muçulmano ler o
Alcorão em sua língua original.
O árabe moderno padrão é a língua universal do mundo árabe, entendido por todos que
falam árabe. É a língua da grande maioria do material escrito, aulas, transmissões de TV, etc.
O alfabeto árabe é composto por 28 letras. Algumas letras adicionais são usadas em
árabe quando se escrevem nomes de lugares ou palavras estrangeiras que contenham sons que
não existem no árabe padrão, como /p/ e /g/.
As palavras são escritas em linhas horizontais, da direita para a esquerda. Numerais são
escritos da esquerda para a direita. A maioria das letras muda de forma, dependendo se estão
sozinhas, no início, no meio ou no fim de uma palavra. Letras que podem ser associadas
aparecem juntas tanto na forma escrita quanto na forma impressa. A única exceção são
palavras cruzadas (quebra-cabeça) e placas de sinais nas quais se escreve também na vertical.
As vogais longas, /a:/, /i:/ e /u:/, são representadas respectivamente pelas letras „alif,
yaa e waaw. Um shadda, que parece a letra siin sem a cauda, é usado para indicar consoantes
duplas. Um pequeno círculo (sukuun) é usado para indicar a ausência de uma vogal.
As vogais curtas (a, i u) e os diacríticos anexados às vogais longas são usualmente
escritos apenas em poesias, livros de texto para estudantes estrangeiros, livros infantis e no
Alcorão.
Usos da caligrafia
A caligrafia arábica foi a primeira forma de arte da expressão visual e da criatividade
islâmica, através da vasta geografia do mundo islâmico, fundamentando tal conjunto de
crenças e sendo um símbolo que pode representar perfeição, unidade, beleza e poder. A
caligrafia arábica não é unicamente uma forma de arte de cunho estético, envolvendo também
representações divinas e morais, de onde adquire sua reputação sublime, sua beleza abstrata.
Os exemplos de caligrafia como motivos ornamentais encontram-se por toda a parte:
nas pedras dos túmulos e nos têxteis, nas ânforas, nas armas e nos azulejos, inscritos, cravados
no mármore ou escritos com ouro, adaptando as formas mais surpreendentes na decoração dos
edifícios. Além disso, pode aparecer em painéis e em quadros com provérbios (como o
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Basmalah), em Hilyes (caracterizações de Maomé, com formato e temas padrão), nos Tughras
(nomes de sultões dotados de autoridade política) e nos muthannas (escrita com espelho).
Entretanto, toda caligrafia tem como alvo um ideal de perfeição, cada estilo tendo uma forma
ideal. Cada uma dessas formas de decoração, assim como qualquer outra aplicação da
caligrafia, mesmo que mescle vários estilos, cada um desses estilos deve estar de acordo com
um modelo idealizado e particular. Segundo Al-Khatt et al (1986), a perfeição atingida através
da caligrafia tem cunho religioso, uma vez que ela se torna uma demonstração da devoção a
Alá.
Além do cunho religioso existente para toda forma de caligrafia, cada estilo ao longo do
seu desenvolvimento e da sua propagação no mundo islâmico, obteve uma significação social.
Dessa maneira, de acordo com sua significação contextualizada no tempo, cada estilo foi
apropriado para uma determinada função. Por exemplo, o kufic durante um tempo foi usado
somente em textos longos, de cunho religioso, como o Qur‟ans, pois demandava muito tempo e
habilidade do calígrafo, tendo uma posição esmerada entre as outras formas. Entretanto, em
meio a tantos outros estilos com diversas simbologias, hoje o kufic é usado apenas em títulos
de livros, em inscrições em monumentos e em placas. Assim, os estilos em tempos diferentes
são dotados de simbologias diferentes, por vezes mudando de nome no processo ou
eventualmente caindo em desuso, assim como se desdobrando em variações e em significados
e usos.
Os estilos de caligrafia
Os muitos estilos de caligrafia são formados a partir de variações de formato, de
espessura e do tamanho das letras. Além disso, variam também os espaços (havendo também a
inexistência de espaço – a escrita muthalthal) e as formas de junções entre as letras, sendo que
uma mesma letra pode variar, até mesmo dentro de um mesmo estilo, em formato, dependendo
da sua posição na palavra – como no estilo Ta‟liq – ou variar de acordo com sua posição em
relação à linha, podendo algumas estar abaixo da linha, como no estilo riq‟ah.
Alguns estilos serão abaixo caracterizados, quatro deles pertencentes ao aqlam al-sittah
e apontados (ou seja, os estilos já existiam antes, não sendo criados nesse momento) pelo turco
Yaqut al-Mustasimi, no século XIII (tuluth; naskhi; t‟aliq e riqa). Esses estilos não eram,
entretanto, usados apenas na região turca, mas haviam migrado pelo mundo árabe, tendo
correlatos e variações em vários lugares da área, e ainda, não são os únicos estilos disponíveis
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na caligrafia turca. A escolha desses seis estilos se deu devido à sua intensa caracterização na
bibliografia disponível. O estilo cúfico também será caracterizado, sendo o único tipo não
cursivo abaixo, além do nastaliq.
O estilo kufic
O kufic foi a caligrafia dominante nos primórdios do Islã, tendo sido criada após o
estabelecimento das duas cidades muçulmanas de Basra e Kufa, na segunda década da era
islâmica (século VII). O kufic exerceu um profundo efeito em toda a caligrafia islâmica.
Apresenta medidas proporcionais específicas, juntamente com ângulos bem definidos e
linhas quadradas bem pronunciadas. Em contraste com as linhas verticais, a escrita kufic tem
linhas horizontais prolongadas. É uma caligrafia consideravelmente mais larga do que alta.
Escolhido para ser usado em superfícies oblongas, com sua configuração geométrica, o
kufic podia ser adaptado em qualquer espaço e material, desde os pequenos quadrados de seda
até os monumentos arquitetônicos deixados por Timur, em Samarkanda.
A escrita assumiu diversas formas e variações, ora com um fundo floral, com desenhos
geométricos, ou formas geométricas interligadas, inclusive círculos, quadrados e triângulos,
formando palavras. Essas versões foram aplicadas a superfícies de objetos arquitetônicos,
incluindo superfície de estuque, madeira, metal, vidro, mármore, têxteis, etc.
As caracterizações do cúfico falam em ausência de fluidez nesse estilo. Dessa forma, a
percepção ocidental e a islâmica aqui coincidem, ambas tomando a fluidez como formas
arredondadas e ininterruptas, dando a impressão de um fluxo continuado. O cúfico, em formas
abruptas e geométricas aparece como descontínuo.
Os estilos cursivos – O Naskh
Os estilos cursivos, de maneira geral (e excetuando-se as formas complexas que podem
tomar), foram amplamente utilizados pela sua maior facilidade de realização se em comparação
com o cúfico.
O estilo naskh ganhou popularidade depois de ser redesenhado no século X pelo
famoso calígrafo Ibn Muqlah, que com seu sistema abrangente de proporção deu à caligrafia
naskh um estilo bem característico. Mais tarde, ela foi reformulada por Ibn al-Bawaab e outros
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calígrafos. Muitos exemplares do Alcorão foram escritos em naskh, mais do que qualquer outro
tipo de escrita, tendo em vista que é relativamente fácil de ler e de escrever. Provavelmente por
este motivo o estilo naskh teve grande aceitação por parte da população em geral.
A caligrafia naskh é normalmente feita com traços retilíneos pequenos, e curvas cheias
e profundas, além de não poder ser estilizada. Há também o uso de traços retos e verticais,
além de palavras geralmente bem espaçadas e em harmonia com a linha. Atualmente, a naskh é
considerada a escrita suprema para quase todos os muçulmanos e árabes em todo o mundo, no
que se refere à sua recomendação na escrita do Qur‟na.
Seu uso atual para o Qur‟na reflete um status religioso elevado para essa forma,
entretanto pode ser usado também para títulos de livros. Ao olhar do ocidental isso pode soar
estranho, já que a visão cristã procura separar os âmbitos secular e divino. Contudo, não soa
estranho ao islã, que usa a mesma escrita para ambos os fins.
O estilo Thuluth
Foi o primeiro estilo formulado no século VII, durante o califado omíada, mas só se
desenvolveu completamente no final do século IX, embora muito raramente tenha sido usado
para escrever o Alcorão. A escrita thuluth gozou de enorme popularidade como uma escrita
ornamental e foi muito usada para as inscrições ornamentais, títulos, cabeçalhos, etc. É ainda
uma das caligrafias ornamentais de maior destaque.
Ela se caracteriza pelas letras curvas, apresentando pequenos traços na parte de cima
das letras, que são ligadas e algumas vezes entrecortadas, produzindo assim, uma fluência
cursiva de grandes e complexas proporções. A caligrafia thuluth é então conhecida por seus
traços elaborados e por sua incrível plasticidade. As suas caracterizações recomendam-na
acima das outras para o uso artístico, devido à seu alto grau de elaboração. Tal princípio é
compatível com alguns estilos artísticos ocidentais que buscam um alto nível de elaboração,
como o barroco.
O estilo Riqa
O estilo riqa, também chamado ruq´ah, surgiu a partir dos estilos naskh e thuluth. Ainda
que tenha uma afinidade maior com a caligrafia thuluth, o riqa tomou uma direção diferente,
ficando mais simplificada.
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As formas geométricas das letras são semelhantes às do estilo thuluth, porém são
menores e com mais curvas. O riqa é arredondado e estruturado de uma forma mais densa, com
pequenos traços horizontais. A caligrafia riqa foi uma das favoritas dos calígrafos otomanos e
sofreu muitas modificações nas mãos do sheik Hamdullah al-Amasi. Mais tarde, ela foi revista
por outros calígrafos, até transformar-se num estilo mais popular e a mais amplamente
utilizado.
As caligrafias cursivas também foram rapidamente utilizadas para a transcrição do
Alcorão, trazendo novas possibilidades para o êxito de efeitos decorativos. Surgiram assim
outros estilos importantes, como o Taliq e o Nastaliq que, embora não se tornassem populares
entre os árabes, foram durante quase quatro séculos os favoritos dos muçulmanos do Irã, da
Turquia e da Índia.
O estilo Taliq ou Farsi
Acredita-se que esta foi uma caligrafia desenvolvida pelos persas, de uma antiga e
pouco conhecida escrita árabe, chamada firamuz. Taliq, também chamada de farsi e tawki, é
um estilo cursivo modesto, aparentemente em uso desde o início do século IX. O calígrafo Abd
al-Hayy, da cidade de Astarabad, parece ter desempenhado um papel importante no
desenvolvimento do estilo taliq. Ele encorajou seu patrono, xá Ismail, a estabelecer as regras
básicas da caligrafia taliq.
Atualmente, ela goza de aceitação entre os árabes e é um estilo caligráfico popular entre
os muçulmanos persas, hindus e turcos, sendo usada como escrita manual no Irã, no Paquistão
e outros países visinhos. Foi um estilo que atravessou muitas transformações de nome, de
significações e de usos, tendo sido usado no Irã em correspondências formais, em monumentos
otomanos, e amplamente em cópia de livros. Assim, demonstra uma ampla aplicação e um
grande número de versões ao longo do tempo, correspondente com a amplitude das
transformações a que foi sujeitada.
O estilo Nastaliq
O calígrafo persa Mir Ali Sultan al-Tabrizi desenvolveu uma variedade de estilo mais
leve que ficou conhecido como nastaliq. No entanto, os calígrafos persas e turcos continuaram
a usar o taliq como caligrafia para as ocasiões especiais. Nastaliq é uma palavra composta que
deriva de naskh e de taliq.
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A nastaliq foi muito usada nas antologias, épicos, miniaturas e outros trabalhos
literários, mas não para o Alcorão. Isso provavelmente foi devido à consideração islâmica
desse formato como muito simples, ou fácil de realizar. Os escritos religiosos são enobrecidos
com caligrafias mais complexas e mais trabalhosas.
Desenhando com palavras: entre a forma e o conteúdo
Princípios talvez possam ser percebidos regendo as cargas simbólicas de cada estilo, e
dessa forma seu uso prático e as preferências, que sejam interpretados por ocidentais de
maneira similar à maneira islâmica. Por exemplo, olhar a escrita cúfica para ambos os mundos
pode resultar na percepção de interrupção de fluxo, de escrita forte e elegante, ou ainda, a
intensa elaboração do tuluth, assemelhando-se ao princípio artístico regente do barroco, pode
gerar apreciação para ambos. Ou, além disso, a escolha de uma escrita mais simples para o uso
diário devido à razões práticas, como é o caso da escrita ocidental pode coincidir com a escolha
do estilo Taliq para o uso manual cotidiano no Irã e em outros países muçulmanos. Entretanto
podem ser percebidas também diferenças entre os princípios, como é o caso da escrita naskh,
podendo ser usada em escritos religiosos de estrema importância e também para títulos de
livros, enquanto o ocidental cristão procura separar, na arte, os âmbitos secular e divino.
É certo, no entanto, que o conteúdo da escrita também é de suma importância para os
muçulmanos. As palavras em uso decorativo muitas vezes não são aleatórias, mas sim
fragmentos do Alcorão. A beleza dos traços ganha um significado especial através das
mensagens do próprio Alá. O constante reforço dos ensinamentos do Alcorão através da bela
escrita com certeza contribui para a constituição da ortodoxia das práticas religiosas islâmicas.
É possível supor que a Bíblia, proporcionalmente, não é tão lida quanto o Alcorão, ao menos
no que diz respeito ao âmbito da vida cotidiana do indivíduo. A leitura do livro sagrado está
incrustada na natureza dos hábitos muçulmanos, o que remete diretamente à importância da
escrita naquela cultura.
O elemento religioso é seguramente de suma importância na constituição da escrita no
Islamismo, de modo que a caligrafia assume caráter contemplativo. No Catolicismo ocidental,
contemplam-se imagens diversas, que vão desde a forma mundana de Deus – Jesus – até
figuras humanas santificadas. As palavras sagradas da Bíblia demonstram seu valor nos
sentidos das mensagens e na história da religião ao invés do que no formato da escrita em si.
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Não é de uso da cultura ocidental a decoração de templos por meio da escrita. Ao contrário,
principalmente no que diz respeito ao Catolicismo, utilizam-se imagens suntuosas de figuras
humanas, tanto nos quadros como em paredes e tetos das igrejas. O aspecto contemplativo,
aqui, fica por conta dessas imagens de santos, seja na forma de estatuetas ou de pinturas.
De qualquer modo, apesar das particularidades culturais, há no mundo ocidental quem
admire a beleza da escrita árabe. Na verdade, o traçado complexo desta escrita provavelmente
desperta alguma admiração na maioria das pessoas. Entretanto, esta mesma maioria pode não
considerá-la como arte propriamente dita. Uns poucos, por outro lado, incorporam
efetivamente o aspecto artístico da escrita árabe. Como exemplo desta minoria, temos os
indivíduos que tatuam no corpo inscrições em árabe, não por motivações religiosas, mas
simplesmente pela beleza dos traços. O fascínio pelo exótico tem lugar destacado nessa prática,
uma vez que vemos outras escritas, formas e desenhos sendo tatuados em indivíduos que
muitas vezes não tiveram qualquer contato com a cultura de origem em questão. O fenômeno
da difusão de elementos culturais não deve ser desprezado, ainda que as manifestações
artísticas sejam interpretadas de maneiras distintas pelos diferentes povos.
IV. Considerações finais
Voltamos aqui à nossa questão inicial: É possível falar em arte islâmica? É uma questão
dupla. Para buscar respondê-la, fizemos uma breve passagem pelos questionamentos acerca da
determinação do estatuto de arte. Por outro lado, trata-se de uma questão também de identidade
antropológica e para abordar esse conceito, buscamos delinear características formais,
temáticas, simbólicas e sociológicas dessa arte.
A preferência por formas distintas daquelas do realismo podem colocar a pintura
islâmica ao lado de uma arte pré-renascentista ou naif. No entanto, a beleza das cores das
pinturas ou da precisão e sutuosidade da caligrafia, por exemplo, conferem intenção estética às
representações. Além disso, a compreensão da pintura, para retornar a Panofsky, faz necessária
a compreensão também dos itens iconográficos dessas sociedades ou culturas. O mencionado
zelo da tradição da caligrafia, expresso na precisão técnica e na habilidade instrumental,
envolve conhecimentos específicos que colocam o calígrafo na qualidade de artesão / artista e
sua obra na qualidade de obra-prima / arte. A pintura e a caligrafia são expressões de grande
teor estético e unicidade, qualificando-se como arquétipos da arte islâmica.
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No entanto, a dificuldade em se falar em unidade artística para o islã é o mesmo perigo
em se falar em uma cultura única que englobe ou que se refira a todas as regiões que uma vez
estiveram sob o regime religioso-cultural islâmico. As respostas culturais que tal vastidão de
grupos sociais podem desenvolver ou transformar são muito diversas e inúmeras. Esses ditos
grupos podem apresentar ou conservar características semelhantes, ou, ainda, se desenvolver
localmente.
Como característica social e cultural, a arte islâmica se comporta dessa mesma maneira:
apresenta semelhanças e particularidades, quando compreendida em termos locais e regionais,
ou ao longo do tempo. Em outras palavras, como vimos, existem tanto semelhanças culturais e
sociais que permitem o termo arte islâmica, quanto existem particularidades locais e históricas
que o dificultam. Por exemplo, focalizando as semelhanças, o formalismo da caligrafia e da
pintura islâmicas apresenta certas características em comum. Ambas apontam para o gosto pela
abstração, se espalham por vários tipos de suporte (arquitetura, objetos do cotidiano, etc.) e
expressam relações sociais.
Dito isso, é possível extrapolar uma identidade religiosa para outros âmbitos da vida
cultural? Vimos que um aspecto religioso não somente guia as artes religiosas da pintura e
representação imagética, mas impulsiona também na sociedade secular uma predileção pela
caligrafia frente à representação formal de seres. Vemos aqui o próprio âmbito religioso
penetrando nas determinações formais e temáticas da arte. O religioso e o artístico, no islã, se
cruzam e travam uma relação de troca identitária e normativa. Ainda, por outro lado, a escrita,
intimamente relacionada aos ensinamentos e dizeres do profeta Maomé, recebe intensa carga
de respeito e reverência, de modo a reforçar o caráter também simbólico das normas religiosas.
O capital simbólico adquirido pelas formas artísticas da caligrafia não provém somente do
campo artístico, mas também do campo religioso. Ainda mais, na medida em que a religião
permeia a arte e os símbolos e as normas utilizados se referem em grande medida à religião, ao
menos parte dos elementos utilizados para interpretar e compreender uma peça estarão
associados à iconografia e textos religiosos. Essa relação entre arte e religião não é excludente,
no sentido de que sua relação ou interação invalida a essência de uma ou de outra, mas, em
alguma medida, as define.
Finalmente, pensamos que o termo arte islâmica é sim de uso possível, desde que sejam
utilizados critérios adequados de ressalva, para que as diversidades e particularidades sócioculturais não se homogeneízem ou que os períodos históricos não se fundam. Desde que isso
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seja observado, as semelhanças artísticas motivadas ou intensificadas por outros aspectos da
vivência em conjunto – como o aspecto religioso ou o aspecto político – devem ser estudadas
na condição de conectores ou pontes culturais, potencialmente auxiliando na caracterização de
obras, artistas, movimentos artísticos ou trocas culturais.
Referências bibliográficas:
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Research and Islamic Studies, 1986.
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LEVEQUE, Jean-Jacques. Historia general de la pintura: Pintura islâmica e índia. Madrid:
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MAHIR, Banu. Turkish Calligraphy. Istambul: Ed. Nesteren Refioglu, 2007.
PANOFSKY, Erwin. Introdução In: Estudos de iconologia. Lisboa: Editorial Estampa, 1986.
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Identidade artística e a arte islâmica